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RESPOSTA AO EDITORIAL “CUIDADOS PSICOAFETIVOS EM UNIDADE NEONATAL DIANTE DA PANDEMIA DE COVID-19”

Prezadas Autoras,

O Editorial da Revista Paulista de Pediatria intitulado “Cuidados psicoafetivos em unidade neonatal diante da pandemia de COVID-19” contribui para uma profunda reflexão acerca da saúde mental materno-infantil. Com base nos conceitos teóricos da perspectiva de Winnicott, os quais são descritos neste texto, dá-se prosseguimento à importante discussão sobre o tema “cuidar”, especialmente no atual contexto da pandemia de COVID-19.11. Morsch DS, Custódio ZA, Lamy ZC. Cuidados psicoafetivos em unidade neonatal diante da pandemia de COVID-19. Rev Paul Pediatr. 2020;38:e2018277. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/2020/38/2020119
http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/2020...

Em geral, o ato de cuidar traz em si uma carga de responsabilidade que pode acarretar sentimentos e experiências de desgaste físico, psíquico, social e institucional. Nos espaços institucionais em que cuidamos da saúde com o intuito de promover o bem-estar e a cura, especialmente do bebê em unidade neonatal, faz-se necessário considerar tanto o período de desenvolvimento em que o bebê se encontra como o estado de disponibilidade emocional que a equipe de saúde pode oferecer para a promoção do desenvolvimento socioafetivo da criança e sua família.

Na perspectiva dos processos de maturação inicial, de acordo com a teoria psicanalítica de Winnicott, a saúde mental do indivíduo compreende três aspectos principais: o estado de “vir a ser”, que para o autor é continuo em potencial; o “sentir que é”, ou seja, sentir que existe e habita no próprio corpo; e o sentir que é capaz de “fazer” verdadeiramente, por meio da criatividade e com autonomia. Para que esses processos alcancem o desenvolvimento do verdadeiro self, isto é, o “ser” e o “fazer” com criatividade e autonomia, Winnicott postulou que, durante os últimos meses de gestação e as primeiras semanas após o parto, a mãe experimenta um estado psicológico especial denominado de “preocupação materna primária”. Esse estado de sensibilidade aumentada, que a mulher experimenta no período gravídico-puerperal, possibilita que a mãe atenda às necessidades do bebê por meio da identificação projetiva. Dessa forma, a experiências passadas da mãe como filha, as expectativas da mãe como progenitora do bebê, assim como as expectativas e experiências da mãe com a sua própria mãe (avó do bebê), poderão ser observadas na interação da mãe com o bebê no presente. Sendo assim, a interação mãe-bebê atual envolve os aspectos objetivos e subjetivos de interações do passado e do presente (expectativas e experiências) somados aos diferentes contextos e condições sociais atuais em que a díade mãe-bebê está inserida. Durante o período gravídico-puerperal, segundo Winnicott, a mulher experimenta uma regressão parcial do ego, para identificar-se com o bebê e atender às necessidades da criança. Com isso, é fundamental que a mãe experimente no presente um ambiente suficientemente bom (holding), a fim de exercer a função de cuidar do seu bebê com o predomínio de experiências subjetivas atuais positivas.22. Winnicott DW. Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000.,33. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Poro Alegre: ArtMed; 1983.

No atual contexto da pandemia de COVID-19, a unidade de tratamento intensivo neonatal, com os profissionais da saúde, tem exercido as funções mencionadas, as quais são consideradas essenciais para promover os processos de maturação física e psíquica do bebê. Winnicott destaca os processos de maturação como atrelados ao conceito de holding (sustentação), que envolve a experiência da proteção física em virtude da sensibilidade epidérmica do bebê — tato, temperatura —, tanto quanto da sensibilidade auditiva, visual e ao toque. Isso também pelo fato de o bebê ainda desconhecer a sua plena existência (fragmentos de ego ou experiências subjetivas), assim como tudo o que não seja ele próprio (ambiente externo). Nesse sentido, a meta do período inicial do desenvolvimento humano é a integração das experiências subjetivas (pulsões, instintos, capacidades perceptivas e motoras) para formar o núcleo do self (ego) e a personalização — adquirir a sensação de que o corpo aloja o verdadeiro self. Além disso, para esse teórico, o holding envolve a rotina de cuidado físico ao bebê ao longo do dia e da noite, bem como a expressão de amor e carinho pelo contato físico de sustentar a criança nos braços. O ambiente que proporciona o holding (mãe/pais, cuidador principal ou profissional da saúde) funciona como um ego auxiliar, sendo um fator determinante na passagem do estado de não integração (dependência absoluta do bebê) para o da integração (dependência relativa rumo à independência). Esses estados podem ser observados mais tarde no comportamento exploratório da criança, em sua criatividade, autonomia, iniciativa, atenção, entre outros, durante o ato de brincar. O contínuo processo de vir a ser do indivíduo por meio das experiências subjetivas na interação com o ambiente (mãe/pais, cuidador principal ou profissional da saúde) formará as bases para o desenvolvimento do potencial saudável do indivíduo rumo à autonomia e à independência, como os sentimentos de confiança, pertencimento, autoestima, segurança, regulação emocional, entre outros.44. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.

O teórico destaca os processos de maturação emocional como sendo inatos ao indivíduo em direção à vida, ou seja, ao encontro de objetos interno (eu) e externo (outro). A oportunidade de o bebê encontrar esses objetos, decorrente das experiências subjetivas dadas nas interações com o ambiente, possibilita ao indivíduo a construção de sentidos e significados sobre si e o outro (mundo). Assim sendo, o holding (ambiente suficientemente bom), que reflete a imagem de si e a do outro, inicialmente mescladas e indiferenciadas, possibilita a separação e a diferenciação verdadeira dos objetos reais por intermédio das trocas interativas e experiências subjetivas do self.22. Winnicott DW. Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000.,33. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Poro Alegre: ArtMed; 1983.,44. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.

A integração é obtida por duas séries de experiências: por um lado tem especial importância a sustentação exercida pela mãe, que “recolhe os pedacinhos do ego”, permitindo à criança que se sinta integrada a ela; por outro lado há um tipo de experiência que tende a reunir a personalidade em um todo de base interna (a atividade mental do bebê). Chega um período em que a criança, graças às experiências citadas, consegue reunir os núcleos do seu ego, adquirindo a noção de que ela é diferente do mundo que a rodeia. Esse momento de diferenciação entre “eu” e “não eu” pode ser perigoso para o bebê, pois o exterior pode ser sentido como perseguidor e ameaçador. Essas ameaças são neutralizadas, no desenvolvimento sadio, pela existência do cuidado amoroso por parte da mãe. O self verdadeiro começa a adquirir vida pela força que a mãe dá ao ego débil da criança, quando cumpre as expressões da onipotência infantil. Novamente, o papel do ambiente (mãe/pais, cuidador principal, profissional da saúde) é prover ao bebê um ego auxiliar que lhe permita integrar suas sensações corporais, os estímulos ambientais e suas capacidades motoras. Caso contrário, o bebê poderá substituir a proteção que lhe falta por uma “fabricada” por ele, envolvendo-se em uma casca, às custas da qual cresce e desenvolve o falso self. O indivíduo vai se desenvolvendo como uma extensão da casca, uma extensão do ambiente não suficientemente bom, ameaçador e hostil, o qual não conseguiu interpretar as suas necessidades, sendo incapaz de cumprir a onipotência infantil e impondo o seu gesto. O falso self, especialmente quando se encontra no extremo mais patológico da escala, é acompanhado geralmente por uma sensação subjetiva de vazio, futilidade e irrealidade.55. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 3ᵃ ed. São Paulo: Martins Fontes; 1999.

Winnicott define a personalização como “o sentimento de que a pessoa de alguém encontra-se no próprio corpo”. O autor propõe que o desenvolvimento normal levaria o indivíduo a alcançar um esquema corporal, chamando-o de unidade psique-soma, que forma o seu esquema corporal como um todo — interpenetra-se e desenvolve-se em uma relação dialética e apresenta o paradoxo da diversidade na unidade. À medida que o desenvolvimento progride, a criança tem um ego relativamente integrado e a sensação de que o núcleo do si próprio habita o seu corpo. Ela e o mundo são duas coisas separadas. A etapa seguinte é conseguir alcançar uma adaptação à realidade. Nessa etapa, os pais, cuidador principal, profissionais da saúde têm a função de prover à criança os elementos da realidade com as quais ela poderá construir a sua imagem psíquica e a do mundo externo.55. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 3ᵃ ed. São Paulo: Martins Fontes; 1999.

Nesse sentido, as estratégias de intervenção na rotina de cuidados em unidades neonatais voltadas para o recém-nascido, as voltadas para a família, bem como as estratégias de cuidados com o cuidador descritas pelas autoras Denise Streit Morsch, Zaira Aparecida de Oliveira Custódio e Zeni Carvalho Lamy no Editorial da Revista Paulista de Pediatria são essenciais para a promoção da saúde física, psíquica, social e institucional na relação bidirecional estabelecida entre as famílias com bebês em unidade de tratamento intensivo e os profissionais de saúde da unidade.

REFERENCES

  • 1
    Morsch DS, Custódio ZA, Lamy ZC. Cuidados psicoafetivos em unidade neonatal diante da pandemia de COVID-19. Rev Paul Pediatr. 2020;38:e2018277. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/2020/38/2020119
    » http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/2020/38/2020119
  • 2
    Winnicott DW. Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000.
  • 3
    Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Poro Alegre: ArtMed; 1983.
  • 4
    Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.
  • 5
    Winnicott DW. Tudo começa em casa. 3ᵃ ed. São Paulo: Martins Fontes; 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2020
  • Aceito
    14 Dez 2020
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