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O processo de envelhecimento e a problematização das práticas de saúde no Brasil

The process of aging and the problematization of health practices in Brazil

RESUMO

Este artigo teve como objeto discorrer sobre o processo de envelhecimento, problematizando as práticas em saúde destinadas à população idosa no Brasil. Para isso, a partir da metodologia de revisão bibliográfica, elaborou-se um texto que inicialmente discute algumas definições e termos conceituais do campo da Gerontologia, a partir do diálogo entre diferentes perspectivas teórico-conceituais. Em seguida, são apresentados alguns dados históricos, epidemiológicos e socioculturais sobre o processo de envelhecimento, para, posteriormente, realizar possíveis articulações entre os dados apresentados e as práticas de cuidado em saúde na atualidade.

PALAVRAS-CHAVE:
Envelhecimento; Gerontologia; Saúde Coletiva

ABSTRACT

This article aimed at talking about the aging process, questioning the practices in health for the elderly population in Brazil. For this, from the methodology of literature review, we developed a text that initially discusses some definitions and conceptual terms of the field of Gerontology, from the dialogue between different theoretical and conceptual perspectives. Then, it presents some historical, epidemiological and socio-cultural aspects by the aging process, in order that later, it is possible to make connections between the aspects presented and the practices of health care today.

KEYWORDS:
Aging; Gerontology; Public Health

Introdução

O desenvolvimento de pesquisas sobre o envelhecimento populacional e sobre a reforma das Políticas Públicas, destinada aos idosos, é um tema cada vez mais relevante, mediante a mudança das pirâmides etárias em quase todo o mundo e sua consequente necessidade de transformação das políticas públicas em geral.

Com o intuito de investir nesta temática, este trabalho foi realizado com o objetivo geral de analisar o processo do envelhecimento em sua interface com as práticas do setor saúde no Brasil. Para isso, optou-se por três categorias de análise, a saber: o campo do saber sobre a saúde do idoso, o processo de envelhecimento e as práticas de saúde no Brasil, as quais se desdobram em dois objetivos específicos: apresentar alguns conceitos-chave da Gerontologia e refletir sobre as práticas de saúde brasileira, que têm como alvo a população idosa.

A metodologia utilizada consistiu em pesquisa bibliográfica, tendo como referenciais teóricos o Construtivismo e a Filosofia da Diferença.

Gerontologia: definições do campo

O termo ‘Gerontologia’, como designa a sua etimologia grega, refere-se à ciência que estuda o envelhecimento, tendo sido utilizado pela primeira vez em 1903, por Metchnicoff (NERI, 2001aNERI, A.L. Palavras-Chave em Gerontologia. Campinas: Alínea, 2001 a.).

Utilizando a conceituação de Campos (2000)CAMPOS, G.W.S. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2000, p. 219-230. sobre ‘campo’ e ‘núcleo’, pode-se compreender que o ‘campo’ da Gerontologia possui ‘núcleos’ oriundos de diferentes disciplinas e ciências, que tem como uma de suas vertentes de intervenção o processo de envelhecimento sob diversos enfoques. Ademais, pode-se considerar a Gerontologia como uma área de estudo e de práticas intersetoriais entorno das mudanças típicas do envelhecimento e de seus determinantes biológicos, psicológicos, afetivos e socioculturais.

Para o entendimento dos estudos da Gerontologia, alguns termos como ‘velhice’ e ‘envelhecimento’ merecem ser melhor conceituados. Segundo Neri (2001a)NERI, A.L. Palavras-Chave em Gerontologia. Campinas: Alínea, 2001 a., o termo ‘velhice’ é utilizado para designar a última fase do ciclo vital dos seres vivos, sendo, em geral, marcada por eventos de natureza múltipla, incluindo, por exemplo, perdas psicomotoras, afastamento social, restrição em papeis sociais e especialização cognitiva. O ‘envelhecimento’, por sua vez, representa o processo de mudanças universais, pautado geneticamente para a espécie e para cada indivíduo, que se traduz, entre outros aspectos, pela diminuição da plasticidade comportamental, pelo aumento da vulnerabilidade, pela acumulação de perdas evolutivas e pelo aumento da probabilidade (ou proximidade) da morte.

Neste sentido, a idade biológica consiste em um indicador do tempo que resta a um indivíduo para viver, de acordo com o ‘tempo cronológico’ – aquele que, segundo Moisés (1997)MOISÉS, M. A criaçâo literória. São Paulo: Cultrix, 1997., corresponde ao tempo objetivo, regido pelas ‘batidas do relógio ou as marcas do calendário’. Nesta perspectiva, os fatos se encadeiam uns aos outros num processo linear e nos leva a uma narrativa convencional do envelhecimento.

O ‘envelhecimento biológico’ ou a ‘senescência’ apresenta-se como o processo que preside o potencial de cada indivíduo para permanecer vivo, o qual diminui com o passar dos anos. A partir deste conceito, nota-se, portanto, que qualquer indivíduo, a partir do seu nascimento, já começa a envelhecer (NERI, 2001aNERI, A.L. Palavras-Chave em Gerontologia. Campinas: Alínea, 2001 a.).

Em outra perspectiva, diversos autores inspirados por Bergson (1990)BERGSON, H. Matéria e Memória Rio de Janeiro; Martins Fontes, 1990., como Deleuze e Guattari (1990)DELEUZE, G.; GUATIARI, F. A imagem-tempo; cinema 2. São Paulo; Braslliense, 1990., apesar de reconhecerem a importância da vivência temporal cronológica para a existência humana, investiram também suas apostas na vivência do ‘tempo intensivo’, ou seja, o tempo dos desejos e das sensações; é o tempo do liberto, que segue o ritmo intemporal das vivências íntimas de cada um, o tempo vivido, tempo subjetivo, flexível, paradoxal, que se abre ao impessoal e às singularidades. Aqui, a experiência sensível do passar dos anos não pode ser generalizada como uma experiência comum a todos os velhos, mas trata-se de uma experiência singular para cada sujeito que envelhece, de acordo com os devires de cada um na relação com o coletivo, com o mundo e com si mesmo.

Temporalizar o corpo que envelhece pode se referir, também, a passar de ‘Cronos’ (tempo cronológico) a ‘Aïon’ (tempo intensivo), isto é, ir além da representação das coisas, abrindo-se ao plano de imanência. Essas duas diferentes perspectivas do tempo coexistem na experiência do envelhecimento e se complementam.

Pelbart (2001)PELBART, P.P. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D’Água, 2001. descreve a vivência da passagem do tempo do intensivo no corpo. Para ele, há tempos em que o corpo atende à linearidade, respeitando a ordem dos movimentos e sua harmonia com a idade cronológica; é um tempo enquanto arborescência, conservação de sentidos. Contudo, se a velhice pode supor um tempo intensivo, ao envelhecer, sentimos os devires tomarem e transportarem nosso corpo para novos corpos; sentimos o tempo rachando, cindindo-se, descentrando-se e crescendo pelos meios. Deste modo, ao viver na velhice, um acontecimento repleto de sentido e significado intensivo, seu corpo pode viver esse momento, criando e recriando possibilidades de novos modos de vida, apesar das inevitáveis perdas inerentes ao viver. Seria como um exercício de somar a noção de arborescência, que é comumente relacionada ao idoso, à noção deleuziana de rizoma:

em Gerontologia, é comum uma associação do processo de envelhecimento e o desenvolvimento de plantas frutiferas, compreendendo-o como o desenvolvimento ordenado, que possui sua culminância no momento em que se gera frutos e o declínio natural após cumprir sua função. (NERI, 2001bNERI, A.L. O fruto dá sementes; processos de amadurecimento e envelhecimento. In; NERI, A.L. Maturidade e velhice: trajetórias individuais e socioculturais. Campinas: Papirus, 2001b. p. 11-52.).

Essa associação exprime a teoria que justifica um determinado processo de envelhecimento. Sob o ponto de vista de inspiração filosófica, remete-se à experiência do tempo e do desejo atravessando o ser humano que envelhece. Também fazendo uso da Botânica, na perspectiva de Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATIARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995., pode-se fazer coexistir a velhice em seu aspecto de arvorecência com seu aspecto rizomático: agora, não mais como uma árvore, mas como uma trepadeira, na qual não é simples identificar o começo e o fim. A raiz e o ápice da planta se misturam e se desenham de acordo com o meio em que a planta se desenvolve e os estímulos que ela recebe.

O tempo cronológico corresponderia à imagem da árvore, que serve para pensar a sucessão, a hierarquia e os sistemas organizados com centro definido: nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer. O tempo intensivo, como rizoma, entretanto, não se remete a esse mesmo processo, uma vez que retrata um tempo em sua multiplicidade; não há um início nem um fim, mas um ‘entre’, configurando-se numa rede complexa e sem centro, na qual experiências de nascimento, recriação e reprodução de vida poderiam se atualizar na infância ou na velhice.

Aspectos epidemiológicos, psicológicos e socioculturais do processo de envelhecimento

No contexto atual, epidemiologicamente, considerase que a velhice se inicia a partir dos 60 anos no Brasil. Dados recentes do CENSO 2010 confirmam a mudança demográfica, indicando o aumento da população com 65 anos ou mais nas últimas décadas: em 1991, era de 4,1%; em 2000, 5,9%; e, em 2010, alcançou 7,4% (IBGE, 2011INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Primeiros resulrados definitivos do CENSO 2010. Disponível em: Error! Hyperlink reference not valid.http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_ visualiza.php?id_noticia=1866&id_pagina=1>. Acesso em; 05 jun. 2011.
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). O recenseamento também constatou que o crescimento absoluto da população brasileira na última década ocorreu em virtude do incremento da população adulta, com ressalva para o aumento da participação da população idosa, especialmente do sexo feminino. Tais dados caracterizam o envelhecimento populacional.

O aumento da expectativa de vida está relacionado a múltiplos fatores, tais como a melhoria das condições sanitárias no Brasil, a ampliação das tecnologias em saúde e do acesso às informações de comunicação, refletindo a existência de mudanças sociais, culturais e tecnológicas. Além disso, são registradas mudanças nos fatores causadores de morte com importante redução de mortes causadas por doenças infectocontagiosas e aumento daquelas causadas por doenças crônico- deeenerativas. Esse quadro de modificações históricas caracteriza a ‘transição epidemiológica’ e tem relação direta com a alteração dos hábitos de vida, das formas de organização social e dos investimentos em novas tecnologias das ciências da saúde e da informação, característicos da vida moderna (OMRAM, 2001OMRAM, A.R. The epidemiologic transition: a theory of the epidemiology of population change. Bulletin of the World Health Organization, v. 79, n.2, 2001, p. 161·170.).

Mais do que apresentar dados estatísticos, faz-se necessário utilizar essas informações como analisadores da atual conjuntura da sociedade contemporânea e estímulos para algumas questões: uma vez evidenciado o aumento significativo e gradual da população de idosos no Brasil, pode-se verificar na mesma proporção investimentos em Políticas Públicas para idosos e em medidas de prevenção das patologias associadas ao envelhecimento?

Como foi observado, o embasamento científico das ciências médicas de décadas e o senso comum da contemporaneidade considerava a velhice como um platô no ciclo de vida relacionado estritamente a perdas e degenerescências. Recentemente, com a contribuição dos estudos da História Oral, da Psicologia do Desenvolvimento e da Gerontologia, entre outros campos do saber, reconhece-se que, em termos físicos, cognitivos, psicológicos e, especialmente, socioculturais, o desenvolvimento continua. No entanto, não consiste em um processo homogêneo na multiplicidade da população, variando, por exemplo, segundo a cultura e o gênero, e, em sua radicalidade, de um sujeito para outro.

A sexualidade na pessoa idosa consiste, ademais, em um tema desprezado. Entretanto, é necessário “contextualizar a percepção dos valores relacionados à vivência sexual da geração do idoso” (MELLO, 2007, p. 375-376MELLO, M.A.F. Terapia Ocupacional Gerontológica. In: CAVALCANTI, A.; GALVÃO, C. Terapia Ocupacional: fundamentação & prática. Rio de Janeiro: Guanabara·Koogan, 2007. p. 370·373.). Criou-se um mito acerca da assexualidade’ da pessoa idosa, que estereotipa negativamente as pessoas desta faixa etária que demonstrem algum tipo de manifestação sexual. Sabe-se que a sexualidade não se restringe somente à relação sexual e em suas diferentes formas de expressão, defende-se que, enquanto houver vida, há sexualidade ativa.

No entanto, a possibilidade de criação e produção de vida não faz parte do senso comum a respeito da velhice e nem das teorias em geral. Contempla-se a velhice oprimida, despojada, banida, relegada, excluída, marginalizada, desrespeitada e desvalorizada. Enfatizam-se, no processo de envelhecimento, as perdas e, em seu benefício, realizam-se predominantemente ações assistencialistas para suprir algumas carências.

Observa-se o fenômeno de aumento da expectativa de vida, no contexto mundial, mas que, no entanto, não e acompanhado por um correspondente aumento na expectativa de vida saudável, que não contribuiu para desmistificar os estereótipos de velhice como símbolo de doença e de improdutividade, embora, segundo dados do Ministério da Saúde, atualmente, os idosos são responsáveis por grande parte da renda familiar. Não queremos com isso confundir a uma valorização do idoso apenas enquanto ser produtivo de correspondência ao ideário capitalístico de superprodução dos corpos, mas, ao contrário, aposta-se numa valorização do corpo vivo em seu processo de recriar-se, de refazer-se e de fazer seu mundo — mesmo que isso se dê no rememorar e no envelhecer de um ‘corpo vibrátil’1 1 Corpo-vibrátil: conceito elaborado por Suely Rolnik, inspirada pelo conceito do ‘corpo sem órgãos; de Artaud.Trata-se do corpo sensível aos efeitos da agitada movimentação dos fluxos ambientais que nos atravessam (ROLNIK, 2003). , no qual certa organização social busca imprimir a marca da opressão.

Geralmente, associa-se a função social do velho à imagem do ‘guardião do passado’, que deve lembrar e aconselhar. Chauí (2003)CHAUÍ, M. Os trabalhos da Memória. In: BOSI, E. Memóriae Sociedade: lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. destaca que a sociedade capitalista impede a lembrança, oprimindo a velhice e despojando o idoso de suas armas e forças, isto é, de exercer parte de sua função social.

Oprime-se o idoso por intermédio de mecanismos institucionais visíveis, ou seja, a burocracia da aposentadoria e dos asilos; por mecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis, a tutelagem, a recusa do diálogo e da reciprocidade, que forçam o velho a comportamentos repetitivos e monótonos, a tolerância de má-fé que, na realidade, é banimento e discriminação; por mecanismos técnicos, as próteses e a precariedade existencial daqueles que não podem adquiri-las; por mecanismos científicos, as ‘pesquisas’ que demonstram a incapacidade e a incompetência sociais do idoso. Que é, pois, ser idoso na sociedade capitalista? E sobreviver. Sem projeto, impedido de lembrar e de ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se (sic) tornando cada vez mais viva, a velhice, que não existe para si mas somente para o outro. E este outro é um opressor (CHAUÍ, 2003, p. 18CHAUÍ, M. Os trabalhos da Memória. In: BOSI, E. Memóriae Sociedade: lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.).

Essa forma de vislumbrar o envelhecer, repleta de dados da realidade, gera inquietações suficientes para tentarmos pensar em estratégias criativas para a superação desse modelo hegemônico de opressão à velhice e ao idoso. Aposta-se como Foucault (1990)FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro; Graal, 1990., que onde há poder há também forças de resistência.

Neste caso, as Políticas Públicas de Saúde para o idoso podem ser dispositivos para fortalecer o sujeito em seus eventuais processos de adoecimento, mas também na reapropriação de seu cotidiano, na ampliação de sua autonomia, de suas relações intra e interpessoais no sentido da produção de vida, mais do que sobrevida, numa relaçáo de cogestáo do cuidado. Não trata-se da negaçáo das perdas, dos limites e das relações de dependência, mas de uma ressignificaçáo dessas relações que imanam da velhice a partir do cuidar.

As práticas de saúde e o processo de envelhecimento

Uma vez apresentados alguns dados acerca do envelhecimento, propõe-se debruçar sobre sua interface com o universo clínico-político e, neste caso, com a clínica que se vislumbra nas práticas do setor saúde no encontro com os usuários idosos.

É possível analisar a atuação clínica em Gerontologia sob dois enfoques: o técnico e o sistêmico. No enfoque técnico, compreende-se a atuação interdisciplinar frente às demandas em diferentes formas de atendimento e em diversos níveis de intervenção. No enfoque sistêmico, os elementos componentes de um sistema de saúde para o idoso. Dito de outro modo, o enfoque técnico varia clinicamente de acordo com O referencial teórico-ideológico de cada profissional ou equipe de saúde e de acordo com o núcleo profissional específico (Medicina, Terapia Ocupacional, Psicologia, Fisioterapia, Assistência Social, Farmácia, Nutrição, Fonoaudiologia, Enfermagem etc), que deve, ao levar em conta os aspectos conceituais mencionados. considerar aspectos biológicos, psíquicos e sociais, desejos, limitações e potencialidades de cada um, ou seja, a singularidade de cada corpo que envelhece num contexto diferente, com enfoques próprios a cada profissão e a cada sujeito que procura por cuidado.

O enfoque sistêmico considera as ações clínicas como um conjunto integrado de políticas. práticas, programas, arranjos e dispositivos em saúde, que contribuem para o envelhecer sadio de uma população. Sob este enfoque, destaca-se algumas experiências internacionais, tomando-se como referência o relatório executivo da Agência Nacional de Saúde Suplementar (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar. Experiências de financiamento da saúde dos idosos em países selecionados: Relatório Executivo. Rio de Janeiro: ANS, 2011. Disponível em; <http://www.amam.med.br/AMAM_Documentos/relatrio_executivo_financiamentosaudeidosos.pdf> Acesso em: 20 jul. 2011.
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). Deste documento, são ressaltados os dados voltados para as políticas que tenham relação com a saúde do idoso em alguns países (Austrália, Canadá e Inglaterra) que apresentam um sistema de saúde com caráter universal redistributivo, similar ao Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, que faz cobertura de 100% da população pelo sistema público (independentemente de contemplar ou não a complementação ou suplementação da assistência com o sistema privado). Embora haja similaridades entre os sistemas de saúde desses países, cabe indicar que as diferenças existentes tornam complexa a comparação entre as experiências estudadas, por isso, serão tratados alguns dados apenas para fins exploratórios.

A diferença mais marcante existente entre os modelos assistenciais desses países relaciona-se ao percentual de gastos públicos dirigidos à saúde como um todo, sendo que os gastos na Inglaterra são de 82%; no Canadá, 70%; na Austrália, 68%; e no Brasil, apenas 42% são destinados ao setor de saúde e à saúde pública (OMS, 2000ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Milbank Memorial Fund. Towards an International Consensus on Policy for Long-Term Care of the Ageing. Ageing and Health Programme. World Health Organization. 2000. Disponível em: <http://www.milbank.org/0007120ms.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2011.
http://www.milbank.org/0007120ms.pdf...
).

Na Inglaterra, a proporção de idosos acima de 60 anos na população é de 28% (ONU, 2009ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU) World populalion prospects: The 2008 revision. Vol. II Sex and age distribution of the world population. NewYork, 2009. Disponível em: <http://esa.un.org/unpd/wpp2008/publications/vol_2/16%20March%202010_FINAL_FINAL%2008WPP%20VOL_l1%20_FULL%20DOCUMENT_PRESS%20QUALlTY.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2011.
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) e o sistema de saúde é denominado National Health Service (NHS). No que diz respeito à atenção à saúde dos idosos, surge no âmbito do sistema britânico o Long-Term Care, considerado na Inglaterra como ajuda com tarefas domésticas e com cuidados pessoais, que cobre os residentes legais do país que tenham dificuldades importantes para o desempenho da vida diária e prática, incluindo os idosos (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar. Experiências de financiamento da saúde dos idosos em países selecionados: Relatório Executivo. Rio de Janeiro: ANS, 2011. Disponível em; <http://www.amam.med.br/AMAM_Documentos/relatrio_executivo_financiamentosaudeidosos.pdf> Acesso em: 20 jul. 2011.
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).

O Canadá, país com 24% de idosos sobre o total da população, tem sua cobertura universal no que diz respeito à atenção hospitalar e ambulatorial, sendo regulamentada pelo Canada Health Act (CHA). No que diz respeito à atenção à saúde dos idosos, destacam-se as políticas de Home & Continuing Care, as quais, embora sejam voltadas a pessoas com necessidades especiais em geral, estão intimamente ligadas ao envelhecimento populacional e à decorrente necessidade de cuidados domiciliares e continuados (Long-Term Care). As propostas atuais sendo implementadas para os serviços de saúde são de aprimoramento nos tempos de espera dos idosos, integração entre os serviços. melhoria na informação, capacitação de geriatras e gerontólogos e implementação de programa integrado para cuidados no fim da vida. Também foram criadas ações para mudar as percepções sobre os idosos, superando o chamado ageism (preconceito de idade). Além disso, discute-se a proposta de um fundo de financiamento para compensar as províncias em termos das diferenças em percentual de idosos (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar. Experiências de financiamento da saúde dos idosos em países selecionados: Relatório Executivo. Rio de Janeiro: ANS, 2011. Disponível em; <http://www.amam.med.br/AMAM_Documentos/relatrio_executivo_financiamentosaudeidosos.pdf> Acesso em: 20 jul. 2011.
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).

A experiência australiana, país com 12% de idosos na população geral, tem se destacado rica pela variedade de programas públicos voltados especificamente à população idosa, financiados pelo Governo Federal em conjunto com os governos esraduais e dos territórios. No Commonwealth, sistema federal australiano, pessoas com alto grau de dependência e idosos podem ser atendidos em instituições, em sua própria casa ou em casa de família, às vezes com a ajuda de serviços à comunidade (apoio domiciliar para atividades diárias, serviços de Enfermagem à entrega de refeições). Entre as estratégias voltadas para a terceira idade, destacam-se o National Palliative Care Program, o Acessible Cinema e o National Falls P,wention for Older People Initiative (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar. Experiências de financiamento da saúde dos idosos em países selecionados: Relatório Executivo. Rio de Janeiro: ANS, 2011. Disponível em; <http://www.amam.med.br/AMAM_Documentos/relatrio_executivo_financiamentosaudeidosos.pdf> Acesso em: 20 jul. 2011.
http://www.amam.med.br/AMAM_Documentos/r...
).

Percebe-se, portanto, que esses governos associam as ações do setor saúde um conjunto de políticas públicas de previdência, emprego e renda e assistência social, voltado ao atendimento intersetorial da terceira idade, com forte ênfase nos atendimentos domiciliares.

Na América Latina, além do Brasil, apenas Cuba e Costa Rica possuem sistemas universais de saúde. No caso da Costa Rica, não há disponível no site do Ministério da Saúde costa-riquenho um programa destinado especificamente a idosos, mas ações específicas dentro de outros programas destinados a essa população, como o Programa de Nutrição, que dedica instruções específicas para a alimentação da pessoa idosa e um manual com indicações sobre acesso e segurança de pessoas idosas para espaços de saúde que atendem tal população. Este é organizado pela Direção de Serviços de Saúde, Habitação e pela Unidade de Comunicação e Educação para a Saúde. Além disso, há referências na Política Nacional de Saúde de que o país segue como norma reguladora para a atenção em saúde do idoso a resolução 46 da ONU, de 19912 2 Para maiores informações, acessar: http://wvw.adj.org.br/download/pdf/idoso_onu.pdf .

Em Cuba, segundo dados da pesquisa de Andrade e Noronha (2005)ANDRADE, L; NORONHA, K.V.M. Desigualdades sociais em saúde e na utilização dos serviços de saúde entre os idosos na América Latina. Revista Panamericanade Salud Pública, Washigton, v. 17, n.5-6, 2005, p. 410-428., a proporção de idosos passou de 4,9%, em 1950, para 9,6%, em 2000. Neste país, 100% da população é coberta pelo setor público (não há sistema complementar como no Brasil, como nos demais países citados), apresentando, por isso, menores desigualdades sociais em saúde e maior participação dos idosos na população total. Em parte esses dados se justificam por Cuba apresentar um estágio mais avançado da transição demográfica e por seus fortes investimentos na Atenção Primária à Saúde e no modelo de atenção médica domiciliar.

As práticas de saúde relativas aos idosos no Brasil

No Brasil, que tem 12% de idosos na população geral, diferentemente dos outros países, a atenção pública de saúde a essa clientela está mais vinculada aos serviços de saúde do que à atenção domiciliar, embora visitas domiciliares sejam realizadas em alguns municípios por Centros de Saúde e pelo Serviço de Assistência e Internação Domiciliar, quando necessário.

Constatou-se que, além da rede de atenção geral à saúde do idoso, composta por Hospitais, Unidades Básicas, Ambulatórios, Centros de Convivência, Oficinas de Geração de Renda, Organizações Não Governamentais e Centtos de Referência do Idoso, permanecem ativas as instituições de longa permanência de Idosos, estas são vinculadas principalmente a igrejas ou entidades privadas e filantrópicas.

O campo de atuação da Saúde com idosos é vasto, podendo abranger os setores público e privado, o terceiro setor e práticas autônomas, mas procura-se dar maior ênfase à ideia da saúde como um direito de cidadania e, portanto, como um dever do Estado e das políticas públicas. No caso da saúde do idoso, se queremos partir de medidas eficazes, referimo-nos a políticas intersetoriais que articulam o setor da saúde a outros setores como Educação, Assistência, Cultura, Seguridade Social, Segurança, entre outros.

Embora maiores avanços sejam necessários, é inegável que, nos últimos anos, muitas conquistas foram alcançadas, incluindo o Estatuto do Idoso, elaborado pelo Congresso Nacional em 2003; a capacitação nacional no campo da prevenção da osteoporose, quedas e fraturas; a facilitação da venda de medicamentos a idosos nas farmácias populares e a Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa lançada pelo Ministério em 2007.

Observa-se, portanto, que a saúde da pessoa idosa vem sendo foco de políticas públicas implantadas pelo SUS com base no conceito de ‘envelhecimento ativo’, possibilitando, assim, uma mudança gradual no entendimento das práticas dirigidas a essa população. Desta forma, não se considera somente o aumento da expectativa de vida em anos ou os cuidados em saúde como os principais fatores de avaliação, busca-se também otimizar as oportunidades de saúde, participação, segurança, proteção e respeito às pessoas na medida em que se tornam mais velhas. Neste sentido, as políticas públicas, do ponto de vista sistêmico, devem promover ‘modos de viver’ mais saudáveis. Em parte, isso ocorre por meio de ações que o Ministério da Saúde vem destacando desde 2005: a Agenda de Compromisso pela Saúde que agrega os eixos Pacto pela Defesa do SUS, Pacto em Defesa da Vida e Pacto de Gestão.

Entre as prioridades do Pacto em Defesa da Vida estão as ações específicas referentes à saúde do idoso, à promoção da saúde e ao fortalecimento da Atenção Básica. As ações em relação à promoção da saúde do idoso foram descritas como: divulgação e implementação da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS); alimentação saudável; prática corporal/atividade física; prevenção e controle do tabagismo; redução da morbimortalidade em decorrência do uso abusivo do álcool e outras drogas; redução da morbimortalidade por acidentes de trânsito; prevenção da violência e estímulo à cultura de paz e promoção do desenvolvimento sustentável.

A respeito de tais ações, é importante destacar que práticas educativas em saúde, em geral, tendem a ser semelhantes com prescrições normativas comportamentais e consideradas pelos indivíduos que as recebem como verdadeiras intromissões de cunho impessoal, técnico e objetivo em seu estilo de vida – campo pessoal, afetivo e subjetivo (CASTRO et al. 2007, p. 572CASTRO, I.R.R. et al. A culinária na promoção da alimentação saudável: delineamento e experimentação de método educativo dirigido a adolescentes e a profissionais das redes de saúde e de educação. Revista de Nutrição, v. 20, n. 6, 2007, p. 571-588,). Especificamente em relação a hábitos como atividade física e alimentação, há ainda que se considerar os aspectos culturais e simbólicos envolvidos que remontam a anos de práticas e crenças em determinadas considerações.

Do ponto de vista operacional, em 2006, a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSP1) definiu que a atenção à saúde da pessoa idosa tem como porta de entrada a Atenção Básica/Saúde da Família e como referência a rede de serviços especializada de média e alta complexidades. Neste sentido, é importante que cada município redimensione suas condições de assistência para a garantia desse direito por parte da população. Nas Unidades Básicas de Saúde, é importante que seja oferecida à pessoa idosa e sua rede de suporte social

uma atenção humanizada com orientação, acompanhamento e apoio familiar, com respeito às culturas locais, às diversidades do envelhecer e à diminuição das barreiras arquitetônicas. (BRASIL, 2006b, p. 13BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica. Envelhecimento e Saúde da Pessoa Idosa. Brasília, 2006b. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad19.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2011.
http://dab.saude.gov.br/docs/publicacoes...
).

Nas práticas de cuidado, que já inclui o enfoque técnico e não apenas o sistêmico, é importante que sejam realizadas abordagens interdisciplinares, flexíveis e adaptadas às necessidades específicas dessa clientela e à sua rede de suporte social. Portanto, em última instância, o que está em jogo é a mudança e o aprimoramento da qualidade do ‘encontro’ entre trabalhadores do SUS e usuários da terceira idade, é a micropolítica do trabalho vivo (MERHY, 2002MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.) que pode concretizar qualitativamente as propostas sistêmicas da política nacional, valorizando-se a dimensão intensiva do processo de envelhecimento.

Embora considere-se que a multiplicidade é a marca da população e inclusive da população com a idade avançada, para a operacionalização da PNSPI foi proposta a divisão desse grupo em dois tipos de grupos populacionais: idosos independentes e frágeis ou em processo de fragilização. Os primeiros são pessoas idosas que, mesmo possuindo alguma doença, mantêm-sc ativas no ambiente familiar e no meio social. As pessoas idosas frágeis ou em processo de fragilização são aquelas que apresentam determinadas condições de risco e/ou vulnerabilidade, que podem ser identificadas e priorizadas pelos profissionais de saúde. Um dos meios para essa identificação é a difusão da Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa (BRASIL, 2006aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria do Gabinete do Ministro do Estado da Saúde de nº 2.528, de 19 de outubro de 2006a, que aprova a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasilia, DF, 2006a.).

A Caderneta é preenchida no momento da realização da visita domiciliar, em que haja um morador com 60 anos ou mais de idade, ou na unidade de saúde, quando a pessoa for se consultar. O idoso que preencher essa caderneta tem liberdade para responder apenas o que julgar necessário. Trata-se de um documento que contém informações individuais, coletivas, culturais, ambientais e econômicas sobre o usuário e que pode ser acessado pela equipe de saúde que o acompanha. A função primordial da Caderneta é, portanto, propiciar o levantamento periódico de determinadas condições do indivíduo idoso e outros aspectos que possam interferir no seu bem-estar.

Embora saiba-se que esse instrumento ainda não consiga por si só garantir o atendimento singular para idosos com necessidades singulares, quando bem utilizado, avança nesse processo, além de cumprir importantes funções para a gestão e para a prática clínica em saúde (enfoque sistêmico e técnico). Para os trabalhadores, seria um instrumento inicial para a mudança do Daradiema da atenção e corresponsabilização da clínica com os usuários. Para os usuários, a caderneta pode ser utilizada como um dispositivo de empoderamento do tratamento para educação em saúde, participação, facilitação e melhoria da qualidade dos atendimentos.

Além disso, a ampliação das equipes de Saúde da Família em todo o Brasil tem gerado impacto importante sobre sua população idosa adscrita. O Programa de Saúde da Família (PSF) foi instituído em 1994, no Brasil, visando à reconfiguração do modelo de atenção até então vigente na atenção básica, ampliando a participação comunitária e tendo como eixo norteador o princípio da integralidade do cuidado. Por exemplo, no Rio de Janeiro, realizou-se um estudo em parceria entre o Ministério da Saúde e a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com o objetivo de analisar se essas ações contribuem na melhoria da qualidade de vida dos idosos e identificar a valorização e importância que a equipe dispensa a esse grupo etário. Como resultado, foi possível identificar que as ações realizadas pela equipe multiprofissional do PSF contribuem para a qualidade de vida dos idosos, por meio da preocupação com medicamentos, melhora do estado geral, alimentação e preocupação com a socialização (CASTRO; VARGAS, 2005CASTRO, M.R; VARGAS, LA A interação/atuação da equipe do Programa de Saúde da Família do Canal do Anil com a população idosa adscrita. Physis, Rio de Janeiro, v 15, n. 2, 2005, p. 329-351.). Intervenções como essa iniciam um processo de transformação do quadro de abandono do idoso e da baixa prioridade atribuída à terceira idade nas políticas públicas.

Na mesma direção, os estudos de Garcia et al. (2006)GARCIA, M.A.A. et al. A atuação das equipes de saúde da familia junto aos idosos. Revista APS, Juiz de Fora, v. 9, n. 1, 2006, p. 4·14. apontam que, embora o programa nào defina estratégias específicas para a população idosa, consegue ampliar a horizontalidade do cuidado a essas pessoas. Verificou-se uma preocupação sempre presente voltada para a oferta de atividades aos idosos, pelo aumento do acesso e resolutividade dos serviços. Entre as atividades com maior contingente de idosos, destacam-se os grupos de atividades sociais, físicas e educativas e a atenção domiciliar aos indivíduos mais fragilizados. Nesse mesmo estudo, os Agentes Comunitários de Saúde são considerados profissionais importantes para a articulação entre a população idosa do território e a unidade básica de saúde (UBS). Concluiu-se que o PSF tem permitido lidar com os efeitos da desigualdade e do despreparo de nossas políticas para o envelhecimento populacional, mesmo com recursos insuficientes.

Embora considere-se que essa é uma ferramenta significativa para o aprimoramento das políticas públicas à terceira idade, é notório que, por consequência do princípio da descentralização do SUS, o investimento ou o desinvestimento nessa iniciativa fica a cargo de cada município e tem efetividade desigual em todo o Brasil, uma vez que a eficácia desse instrumento depende da capacitação dos profissionais para seu preenchimento, do monitoramento de seus resultados e da avaliação de sua utilização. Já estão em andamento pesquisas pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) que avaliam o impacto do uso da Caderneta em esferas locais, disponíveis no portal de pesquisa e desenvolvimento tecnológico do Ministério da Saúde (ainda sem resultados divulgados), porém não foram encontradas avaliações da implementação nacional e seus efeitos.

Depreende-se dos aspectos descritos que, tanto a Política Nacional Idoso, como a PNSPI e o Estatuto do Idoso, são dispositivos legais que norteiam ações, sociais e de saúde, visando garantir os direitos das pessoas idosas e vincular o Estado na proteção dos mesmos, entretanto é notório que a efetivação das políticas públicas requer a atitude consciente, ética e cidadã dos atores envolvidos (Estado, profissionais da saúde, idoso e sociedade em geral) e interessados em viver envelhecendo de modo mais saudável possível, na medida em que todos são corresponsáveis por esse processo.

Em convergência com essas diretrizes, as presentes propostas caminham na direção de colocar como centro das ações em saúde o sujeito em envelhecimento, seus interesses, suas demandas e suas necessidades. Para isso, faz-se necessário ampliar o enfoque da discussão. Não se trata apenas de discutir as estratégicas extensivas e macropolíticas no campo da saúde, mas uni-las ao fortalecimento das práticas intensivas, do dia-a-dia do cuidado que ocorre no encontro entre usuários e trabalhadores de saúde. Em outras palavras, interessa também investir na micropolítica do trabalho vivo em ato (MERHY, 2002MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002.). Para isso, não basta investir em grandes estratégias de gestão da clínica, é preciso somar o investimento na formação e capacitação dos trabalhadores, no processo de trabalho no interior dos Centros de Saúde e demais equipamentos no trabalho em rede, no reconhecimento dos usuários como sujeitos ativos.

Um dos modos de valorizar essa esfera da clínica é falar menos ‘sobre’ o idoso e mais ‘com’ o idoso. Por isso, a criação e a divulgação de métodos de tratamento e de pesquisa participativos se fazem tão importantes no contexto atual. Dar voz a essa população significa criar estratégias de intervenção mais coerentes e conforme suas reais necessidades.

Esta ideia, embora esteja mais presente no campo das pesquisas qualitativas, é interessante de se considerar no campo da saúde em geral, especificamente para a clínica, uma vez que trata-se de um método que possibilita o questionamento acerca de quem é o narrador da história de vida do usuário do serviço de saúde: os dados epidemiológicos? Seu prontuário? O relato de seus familiares sobre suas doenças e incapacidades? Ou há possibilidade para a versão do próprio sujeito? Como proporcionar para que ele também tenha direito a sua própria voz e seja gestor de sua própria saúde?

O objetivo primordial da intervenção clínica com idosos é oferecer um tratamento que proporcione a possibilidade de viver um processo de envelhecimento de forma sadia, compreendendo a dinâmica da saúde neste período da vida da pessoa, considerando seus aspectos biopsicossociais, o que não se reduz a ideia simplista de estar ‘sempre em atividade’. Não queremos também reproduzir uma conceituação estéril ou um pensamento ingênuo de negação da morte ou das limitações da velhice. Para isso, a subjetividade inerente ao conceito de ‘envelhecimento sadio’ precisa ser problematizada. Sadio para quem? O que chamamos de saudável? Em nossa perspectiva, as intervenções em saúde só serão eficazes se as possíveis respostas para essas perguntas forem coconstruídas com as pessoas idosas em sua singularidade.

Essas contribuições da área da saúde para a população idosa precisam ser realizadas com o cuidado de não tornar a velhice um diagnóstico, o que traria consequências danosas para a população, as quais podem ser exemplificadas com a hipermedicalização do idoso e sua transformação em objeto constante de intervenções clínico-terapêuticas. Ressalta-se também a prudência de não transformar a intervenção clínica em controle sobre a vida do outro, em infantilização do idoso ou em assistencialismo, como ainda acontece em muitos serviços de saúde.

Sabe-se também que a melhoria dos modos de viver da pessoa idosa não está condiciona apenas a uma boa saúde. Por isso, e necessário, ainda do ponto de vista sistêmico, serem ampliados os incentivos a ações intersetoriais, que articulem essas noções de uma ‘boa saúde’ a condições para uma ‘boa vida’: condições dignas de aposentadoria, acesso a atividades de lazer e segurança, por exemplo.

Considerações finais

No Brasil, a Gerontologia é uma área relativamente nova e em processo constante de mudança, consistindo em um promissor campo de atuação dos diversos campos profissionais do setor saúde em articulação com outros setores. No entanto, para que sua atuação seja eficaz, faz-se necessário maior investimento na formação de profissionais geriatras e gerontólogos, além de uma imprescindível sensibilização e capacitação dos demais profissionais da rede e, sobretudo, superar o atual cenário nacional de subfinanciamento do setor público de saúde.

As reflexões propostas pelo presente trabalho não visam enfatizar uma imagem romantizada do idoso, mas destacar as possibilidades de intervenção dos profissionais da saúde na área da Gerontologia e das instituições de saúde pública na melhoria da saúde individual e coletiva. Faz-se necessário o conhecimento e reflexões críticas sobre o processo de envelhecimento em sua complexidade, aprendendo com as experiências internacionais exitosas e exportando saberes e práticas efetivas conquistadas pelo Brasil.

É importante lembrar que o trabalho de transformar a cultura instituída de exclusão e de desvalorização do idoso é uma tarefa que ultrapassa o setor saúde e áreas técnicas de produção de saber. No entanto, as imagens atribuídas às pessoas inseridas na faixa etária da velhice são oriundas de contingências históricas, e sua revalorização depende, em grande medida, do reconhecimento e do empenho do trabalho dos profissionais da saúde, visto que a representação social do idoso está fortemente associada a processos de adoecimento e de abandono social.

Atualmente, muitos estudos comprovam a melhoria da qualidade de vida dos idosos quando seu contexto de vida passa a ter valor para si e para as pessoas que o rodeiam, transformando seu mundo de perdas em possibilidades de criação de novas relações sociais e projetos de vida. O universo da saúde pode contribuir imensamente para essa mudança paradigmática, a partir da ressignificação do processo de envelhecimento nas construções de seus saberes teóricos e a partir de efetivas transformações ética-políticas de intervenção sobre o processo de saúde-doença do idoso. Essa mudança ocorre a partir da construção de políticas públicas de saúde eficazes, com gestão-clínica comprometida com o envelhecimenro saudável da população que é composta por uma multiplicidade de pessoas envelhecendo singularmente.

Essa singularidade ainda é pouco trabalhada em termos de saúde pública, uma vez que, em raras situações, os coletivos são compreendidos como uma multiplicidade de singularidades. Neste sentido, as práticas de saúde voltadas à mulher idosa ainda são pouco trabalhadas, uma vez que fogem da fase reprodutiva, a saúde dos homens idosos continua centrada nos efeitos da aposentadoria e a sexualidade persiste como um tema que não é associado ao envelhecimento.

Observa-se uma gritante e instigante necessidade de o idoso falar e ser ouvido, relatar experiências e compartilhar memórias. Esta necessidade pode ser utilizada pelos diferentes campos de atenção ao idoso, da área social, humana ou da saúde. Ademais, parece-nos que essas estratégias podem ser revertidas em inovadora ferramenta de atuação no processo terapêutico e de criação de novos modos de existência. Mais do que trabalhar para a o aumento do número dos dias de vida, a saúde precisa agir na direção da intensificação desses dias. Desse modo, é necessário somar-se as estratégias extensivas de cuidado (políticas públicas e ações ministeriais apresentadas nesse trabalho) a ações intensivas (investimento na melhora da qualidade do encontro entre trabalhadores e usuários e na participação no idoso para ditar as regras de seu tratamento).

Transformações como essas são fortalecidas mediante a criação de amplas redes interdisciplinares e intersetoriais de atenção, por uma gestão política participativa, pelo trabalho de profissionais comprometidos com a vida e em consonância com os princípios do SUS. Todos envelhecem, inclusive nossas práticas. Resta a nós a capacidade criativa de nos reinventar constantemente e construir novas potências.

  • Suporte financeiro: CAPES
  • 1
    Corpo-vibrátil: conceito elaborado por Suely Rolnik, inspirada pelo conceito do ‘corpo sem órgãos; de Artaud.Trata-se do corpo sensível aos efeitos da agitada movimentação dos fluxos ambientais que nos atravessam (ROLNIK, 2003ROLNIK, S. Fale com ele ou como tratar o corpo vibrátil em coma. Núcleo de Subjetividade, 2003. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/falecomele.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2008.
    http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividad...
    ).
  • 2
    Para maiores informações, acessar: http://wvw.adj.org.br/download/pdf/idoso_onu.pdf

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2012

Histórico

  • Recebido
    Maio 2011
  • Aceito
    Jan 2012
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