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Saúde, ambiente e o primado do interesse público

Health, environment and the public interest primacy

RESUMO

Este artigo, na forma de ensaio, discute implicações do poder do mercado e dos interesses privados frente à defesa dos interesses públicos e bens comuns que deveriam marcar o campo da saúde pública. A referência para essa discussão é a atuação do autor no campo da saúde ambiental e sua relação militante com os movimentos por justiça nesta área. As reflexões desenvolvidas analisam conflitos decorrentes do modelo predatório de desenvolvimento adotado pelo Brasil na produção de commodities rurais e metálicas, assim como os limites da academia para enfrentar os desafios diante de tais conflitos. O artigo finaliza com a proposição de temas relevantes para a construção de uma agenda crítica e propositiva para os campos da saúde coletiva e ambiental.

PALAVRAS-CHAVES
Saúde Pública; Saúde Ambiental; Poder do Mercado; Conflitos Ambientais; Justiça Ambiental

ABSTRACT

This article, an essay, discusses the implications of market power and private interests against the defense of public interest and common goods that should mark the Held of public health. The reference for this discussion is the author’s role in the field of environmental health and its relationship as militant with movements for environmental justice. The developed reflections analyze environmental conflicts arising from the predatory model of development adopted by Brazil in the production of rural and metal commodities, as well as the limits of science to face the challenges related to these conflicts. The article concludes with a proposal of relevant topics to the construction of a critical and proactive agenda for the fields of public and environmental health.

KEYWORDS
Public Health; Environmental Health; Market Power; Environmental Conflicts; Environmental Justice

Introdução : uma breve apresentação pessoal

Este artigo tem por origem minha participação na mesa ‘O primado do interesse público na saúde’, durante o Simpósio de Política e Saúde1 1 Relatório do Simpósio de Política e Saúde, Disponível em; <http://www.cebes.org.br/media/File/Blog/relatorio_simposio.pdf>. Acesso em: 2 abr 2012. , organizado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), em Brasília, de 7 a 9 de julho de 2011. Ele visa, a partir de reflexões decorrentes da experiência militante que tenho na saúde coletiva e junto aos movimentos por justiça ambiental, estabelecer algumas analogias entre o que está ocorrendo na relação saúde e ambiente com o campo da saúde coletiva e o Sistema Único de Saúde (SUS), dialogando com algumas teses e visões sobre o Estado, a sociedade, o público, a interferência ou ingerência dos interesses privados de mercado, em especial das grandes corporações, e a produção de conhecimentos frente a tudo isso. Ao final, proponho temas e agendas propositivas que apontem saídas para a crise na qual nos encontramos, o que, para mim, e uma crise civilizatória.

Porém, antes de prosseguir, é importante situar o contexto acadêmico de meu trabalho. Como pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca - Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) desde 1986 venho desenvolvendo ações com saúde do trabalhador e, a partir dos anos 1990, com saúde ambiental. Minhas áreas temas de interesse maior são a ecologia política, a justiça ambiental, a ciência cidadã e o que tenho chamado de epistemologia política, a partir dos referenciais da complexidade, da discussão sobre as incertezas e ignorâncias do conhecimento científico, e da integração entre saberes, incluindo o saber local e popular por meio da produção compartilhada de conhecimentos. Como campos empíricos, de atuação acadêmica e engajada, tenho trabalhado junto à Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)2 2 Site da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Disponível em: <http://www.justicaambiental.org.br>. Acesso em: 2 abr 2012. desde a sua criação, em 2001, no questionamento aos problemas ambientais e de saúde decorrentes de várias atividades econômicas e industriais, e no projeto Laboratório Territorial de Manguinhos, desde 20043 3 Projeto Laboratório Territorial de Manguinhos, Disponível em: <http://www.conhecendomanguinhos.fiocruz.br>, Acesso em: 2 abr 2012. .

Também tenho atuado com temas e conceitos como riscos tecnológicos e ambientais, vulnerabilidade e processos de vulnerabilização, globalização, modelo de desenvolvimento, (in) sustentabilidade ambiental e (in) justiça social. Dentre os autores que têm iluminado meu percurso, destaco os teóricos da globalização, dos movimentos sociais e do território, como o cientista social Boaventura de Souza Santos (2006)22 SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006., o sociólogo Zygmunt Bauman (1999)2 BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. e o geógrafo político Milton Santos (2005)24 SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: USP, 2005.; autores da epistemologia política e da complexidade, entre eles Silvio Funtowicz e Jerolme Ravetz (19938 FUNTOWICZ S. O.; RAVETZ J. R. Epistemologia politica - ciencia con la gente. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1993., 19947 FUNTOWICZ S. O.; RAVETZ J. R. Emerging complex systems. Futures, Lincolm, v. 26, n, 6, jul/ago 1994, p. 568-582.); autores da justiça ambiental e da vertente ecomarxista, como James O’Connor (2001)18 O’CONNOR, J. Causas naturales, ensayos de Marxismo ecológico. México: Siglo XXI, 2001., Joan Martinez-Alier (200715 MARTINEZ-ALIER, J. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2007., 201116 MARTINEZ-ALIER, J. et al. Between science and activism: learning and teaching ecological economics with environmental justice organisations. Local Environment, Boston, v. 16, n. 1, jan 2011, p. 17-36.), que busca integrar a ecologia política à economia ecológica, e o brasileiro Henri Acselrad (2004)1 ACSELRAD, H. Justiça ambiental - ação coletiva e estratégias argumentativas. In: ACSELRAD, H; PÁDUA, J. A.; HERCULANO S. (org). Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004.. E tenho aprendido muito com o campo da educação popular, com Paulo Freire (2001)5 FREIRE, P Pedagogia do oprimido, 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001., com a arte-educação por meio de minha esposa Marina, e muito com os movimentos sociais e populações que lutam com dignidade em situações limites de conflito, com atitudes que se expressam em sua forma mais clara e bela, justamente quando não estão envolvidos em esquemas de cooptação. Simplesmente lutam e celebram suas identidades, suas culturas, suas vidas, suas resistências, que os mantêm dignos, e não se rendem ao canto da sereia do consumismo, que descaracteriza e poderia destruir os sentidos mais nobres de suas vidas.

Atualmente, devo dizer, sinto-me cada vez mais contra-hegemônico na academia e na própria saúde coletiva. Uma das razões e que meus objetos de pesquisa envolvem a avaliação crítica de riscos ambientais, apoiando movimentos sociais e populações atingidas, em setores de grande poderio econômico e político, como a mineração e a siderurgia; o agronegócio e fabricação e uso de agrotóxicos - o Brasil é, desde 2009, o maior consumidor mundial; o setor energético - produção de petróleo e as grandes hidrelétricas; a mineração de urânio no país. Como somos poucos os pesquisadores engajados e dispostos a se envolver em situações de conflito, a pressão política é cada vez maior, e isso inclui ameaças de processos judiciais. Outra razão para sentir-me contra-hegemônico na saúde coletiva é que estou fazendo exatamente o que dizem que devo fazer: trabalho interdisciplinar e intersetorial, assessoria e integração com movimentos sociais, etc. Mas isso pode valer muito pouco ou nada nos critérios da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da área de Saúde Coletiva do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Publicar em revistas, ainda que fundamentais para a promoção da saúde e o campo ambiental e com grande dificuldade no cenário internacional, pode significar muito pouco nos critérios especializados da área. Os tempos de reunião e relatórios produzidos na assessoria a movimentos sociais e organizações de justiça ambiental, ou mesmo a participação em eventos no Congresso nacional para debater políticas públicas, ou ainda o testemunho em ações na justiça contra poluidores; tudo isso significa pouco ou nada, mesmo que sejam fundamentais para mudar a legislação, reduzir o sofrimento de populações atingidas ou contribuir para uma sociedade mais justa. Esta é uma das insanidades de nossos tempos atuais.

Saúde, ambiente e as tensões em situações de conflito ambiental

Antes de prosseguir, é importante destacar como a relação saúde e ambiente tenciona e amplia o conceito de saúde, pois assume e desenvolve questões centrais na origem histórica da medicina social e da saúde coletiva, como: os determinantes sociais (ou socioambientais) da saúde (MARMOT, 200514 MARMOT, M. Social determinants of health inequalities. The Lancet, Londres, v. 365, n. 9464, mar 2005, p. 1099-1104) e a permanência ou agravamento das desigualdades socioespaciais; e as condições de vida e trabalho e, cada vez mais importante, a discussão ambiental a partir da crise ecológica global, que coloca em xeque as condições materiais da vida humana e não humana no planeta, fato agravado pela eclosão dos riscos ecológicos globais nas últimas quatro décadas (PORTO, 200719 PORTO, M. F. S. Uma ecologia politica dos riscos: princípios para integrarmos o local e o global na promoção da saúde e da justiça ambiental. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007.). A questão ambiental também contribui para manter acesas discussões adormecidas na saúde coletiva atual, entre elas a vigilância da saúde, surgida nos anos 1990; e a crítica ao modelo de desenvolvimento, não só em termos de desigualdade, mas também de insustentabilidade ambiental e destruição de alternativas futuras,

Uma primeira questão a destacar, que aparece em quase todos os textos que subsidiam o simpósio do CEBES, e de forma especialmente aguda no texto de Sonia Fleury, é o crescente poderio do mercado, e eu acentuaria o ‘das grandes corporações, sejam privadas ou mesmo de empresas estatais que atuam como global players’. O mercado e as grandes corporações cada vez mais influenciam e ditam o conteúdo de políticas públicas e o comportamento de instituições públicas (SANTOS, 200622 SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.). E fazem isso de forma perversa, pois ao mesmo tempo em que defendem a eficiência gerencial como principal justificativa para a modernização da sociedade e o maior alcance das políticas públicas, usam estratégias, como apontou o Alcides Miranda, como a privatização, a terceirização e a publicização ou agenciamento paraestatal. Concordando com Sonia Fleury, existe uma agenda oculta que esconde enorme privilégio de interesses privados e lucratividade obtida justamente pelo subsídio público, pela corrupção, pela crescente transformação de bens públicos e comuns em instrumentos de mercado e lucro, como a educação, a saúde e as formas de produção de conhecimentos e tecnologias que deveriam servir ao interesse público.

É possível citar alguns exemplos da área ambiental para ilustrar como a força do mercado e das corporações penetrou na lógica pública e vem afetando o primado do interesse público na saúde, se ampliarmos este conceito para além da assistência e incorporarmos a prevenção, a promoção e a precaução. Um caso atual se refere ao projeto de instalação e operação da siderúrgica TKCSA no bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro, junto à baía de Sepetiba (GUIMARÃES, 201111 GUIMARÃES, V. T. O licenciamento ambiental prévio e a localização de grandes empreendimentos: o caso da TKCSA em Santa Cruz, Rio de Janeiro, RJ. 2011. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.). Trata-se do maior investimento privado do país nos últimos 15 anos, com exportação para a Europa de toda a produção anual de 5 milhões de toneladas de placas de aço. Mas, ao olhar-mos de perto, como um grupo reduzido de pesquisadores militantes tem feito nos últimos 3 anos, verificamos que se trata de uma indústria altamente poluente e problemática, cujo empreendimento só foi possível de ser viabilizado à custa de um enorme subsídio público, que inclui empréstimo de R$ 1,48 bilhão do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), assim como isenção total do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas fases de construção, pré-operação e operação do complexo siderúrgico durante 20 anos. Somente nos últimos 4 anos, segundo dados da Secretaria Estadual da Fazenda, a TKCSA deixou de pagar ao governo estadual R$ 695 milhões devido à isenção de ICMS. Por outro lado, recursos da empresa financiaram a construção da nova sede do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), órgão fiscalizador que concede o licenciamento, e de uma escola pública na região, fruto de uma parceria entre a empresa e a Secretaria Estadual de Educação. A escola, que recebeu o nome de um ex-dirigente alemão da empresa, também alemã, é considerada pela indústria como a primeira sustentável do Brasil, Além disso, foram adotados critérios flexíveis e permissivos de licenciamento ambiental que seriam inaceitáveis na União Europeia, caracterizando um duplo padrão (PORTO et al., 2009;20 PORTO, M. F.; MILANEZ, B. Eixos de desenvolvimento econômico e geração de conflitos socioambientais no Brasil: desafios para a sustentabilidade e a justiça ambiental. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 6, dez 2009, p. 1983-1994. FIOCRUZ, 20116 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ). Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Avaliação dos impactos socioambientais e de saúde em Santa Cruz decorrentes da instalação e operação da empresa TKCSA. 2011. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/d/ Relatorio_TKCSA.pdf>. Acesso em: 2 abr 2012.
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). Dentre os impactos destacam-se: o empreendimento afetou a vida de milhares de pescadores artesanais que vêm sendo impedidos de pescar nas águas da baía; a instalação de fábrica poluente em região com bacia atmosférica já saturada; e também os problemas que moradores vizinhos têm tido, que vão desde o barulho dos trens de carga nas madrugadas, às rachaduras das casas na época da construção e episódios de poluição aguda, com verdadeiras ‘chuvas de prata que invadem ruas e casas. A empresa se defende na mídia e em relatórios técnicos afirmando serem os poluentes de baixa toxicidade (grafite) e inexistirem associações ou nexo epidemiológico que relacionem o evento a impactos relevantes à saúde, com o apoio técnico de um consultor com larga experiência no campo da saúde do trabalhador e da toxicologia ocupacional no Brasil, o que revela outra faceta do mercado para profissionais do campo.

Processos semelhantes, envolvendo investimentos econômicos poderosos e mecanismos perniciosos de licenciamento ambiental, estão ocorrendo com a mesma velocidade com a qual o Brasil está se tornando um poderoso país emergente, baseado num modelo de globalização econômica e de desenvolvimento. Isso envolve a produção de commodities rurais, como as monoculturas de soja, de cana para biocombustível, dos desertos verdes de eucaliptos para celulose ou carvão verde’, além da produção de carnes bovina, suína e de frango, e também as commodities metálicas, decorrentes de ciclos de produção como ferro-aço e bauxita-alumínio. Esse modelo de intensa exploração de recursos naturais, em grande parte se sustenta pelas enormes externalidades negativas, como dizem os economistas. Portanto, o modelo brasileiro faz parte de um metabolismo social e um comércio global injustos e insustentáveis, como relatam os teóricos da ecologia política e da economia ecológica mais crítica.

As externalidades negativas se materializam pelas destruições e prejuízos sociais, ambientais, culturais e à saúde pública, que não são pagos pelos produtores e consumidores destas cadeias produtivas na formação dos preços, mas sim pelos sistemas públicos de saúde e seguridade social, pelas populações vulneráveis e discriminadas, pobres, camponeses e pequenos agricultores, indígenas, quilombolas e extrativistas que vivem e dependem da vitalidade dos ecossistemas, pelos trabalhadores superexplorados nos canaviais ou nas cidades, pelos moradores das zonas de sacrifício nos municípios dos lixões, das enchentes e fábricas poluentes, pelas gerações futuras que encontrarão um mundo com menos recursos e vários riscos ecológicos globais. Muitas destas populações protagonizam o relatado, na maior parte das vezes, de forma invisível e sofrendo inúmeras violências, resistências e mobilizações coletivas em casos de conflitos e injustiças ambientais pelo país afora (PORTO et al., 200921 PORTO, M. F.; MILANEZ, B. Parecer técnico sobre o Relatório de Impacto Ambiental da Usina da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA). Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009.).

Neste sentido, nosso modelo, como bem aponta Roberto Nogueira, se assemelha de alguma forma ao de crescimento chines, por suas características de aceleração não só do incremento econômico, mas também das decisões autoritárias, do desprezo às questões ambientais, do sofrimento e vulnerabilização das populações e territórios que recebem as principais cargas, e da dificuldade dos movimentos sociais em atuar de forma mais efetiva na resistência e construção de alternativas emancipatórias. Mas a capacidade redistributiva do modelo chinês reduz certos impactos sociais com mais eficiência que o brasileiro.

Algumas características do modelo predatório de desenvolvimento

Uma pergunta central a ser feita é: por meio de quais mecanismos este modelo predatório de desenvolvimento e de redução do primado do público nas esferas públicas e governamentais vêm se intensificando, em particular nas áreas ambiental e de saúde pública?

A velocidade desta subordinação política e econômica pode ser explicada de inúmeras formas. Sem dúvida, o mundo se tornou mais complexo e as grandes narrativas ou utopias entraram em descrédito, sem que outras conformassem novos sonhos de futuro, o que é grave para a nossa juventude. Mas, aqui, gostaria de destacar algumas questões que talvez possam lançar luzes sobre o debate, discutindo como vem se dando esse crescente poderio do mercado sobre a esfera pública em tempos de força neoliberal, ainda que em também tempos de crise do próprio sistema.

Uma primeira questão está relacionada ao processo de construção de consciência coletiva e crítica dentro da sociedade. De certa maneira, o dilema público versus privado, de forma similar ao dilema individual versus coletivo, vem obscurecendo ou nos fazendo fugir de outros debates, talvez em nome de certos dogmas ou tabus que ainda não superamos, e que se o fizéssemos poderíamos aprofundar e construir plataformas políticas e bandeiras mais avançadas. Por exemplo: as atividades na esfera privada podem ser legitimadas na sociedade pela sua subordinação ao bem comum, pelo enfrentamento ao que Sen (2011)4 DE SEN, A. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. denomina de injustiças intoleráveis.

Um dos problemas do sucesso do modelo econômico hegemônico no país é que isso tende a fortalecer uma forma de cegueira política e intelectual. Certamente o país tem aumentado nossa riqueza material nos últimos anos, nossos níveis de emprego formal e informal, e também os recursos voltados a programas sociais, como o bolsa família, além da própria existência e atuação eficiente do SUS, e isto tem resultado na melhoria de importantes indicadores. Mas a redução da pobreza tem se dado simultaneamente à inserção de classes populares num ideário consumista de classe média, sem a suficiente mediação, formação e organização política que apoie o crescimento de visões críticas e perspectivas emancipatórias, por meio, por exemplo, do fortalecimento da educação com qualidade de crianças e jovens; do debate público sobre temas relevantes e de uma mídia mais independente; da organização dos trabalhadores, de movimentos ligados à reforma agrária e ao ambientalismo popular ou justiça ambiental; do fortalecimento dos inúmeros sujeitos portadores de direitos no cenário político. O que assistimos, pelo contrário, e uma enorme dificuldade para a expansão desses processos de formação de consciência coletiva, ao mesmo tempo em que se evita o aprofundamento de discussões públicas acerca do bem comum e do interesse público, difundindo-se formas alienadas e fetichizadas de consumismo, que deste modo se tornam injustas e insustentáveis. Um exemplo é a expansão dos carros nas cidades cada vez mais poluídas, imobilizadas e desumanas, ou o consumo intensificado de proteína animal.

Como dizia o Giddens (1998)10 GIDDENS, A. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássicoe contemporâneo. São Paulo: UNESP. 1998., a democracia não é inimiga da diversidade, mas sim deveria ser do privilégio e da injustiça. Nas visões críticas ao subdesenvolvimento, sejam marxistas revolucionárias, ou nas teorias cepalinas da dependência a que se refere Roberto Passos Nogueira, havia uma forte convicção, diria uma ideologia do desenvolvimento e do otimismo científico-tecnológico (STRAND, 200125 STRAND, R. The role of risk assessments in the governance of genetically modified organisms in agriculture. Journal of Hazardous Materials, Buffalo, v. 86, set. 2001, p. 187-204.), que colocava na pobreza, nos conflitos de classe - especialmente dos trabalhadores da indústria - e no desenvolvimento das forças produtivas de forma mais autônoma, o caminho para a superação das principais mazelas do conflito capital-trabalho, cuja consciência de classe e a organização política produziriam as condições objetivas de transformação. Porém, ecomarxistas como James O’Connor, cientistas sociais e filósofos contemporâneos, como Pierre Bourdieu (2007)3 BOURDIEU, R Razões práticas: sobre a teoria da ação. 9. ed. Campinas: Papirus, 2007., Bruno Latour e Steve Woolgar (1998)13 LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. e Boaventura de Souza Santos (2006)22 SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006., têm nos ajudado a compreender com novos olhos os mecanismos atuais da crise, sejam materiais, políticos, epistemológicos ou simbólicos. Muitas das questões levantadas por estes autores mexem com vários tabus da esquerda, e não me refiro ao infantilismo esquerdista apontado por Lenin, mas a questões como a excessiva valorização do papel estrutural do Estado, associada à certa forma distância ou de dirigismo na organização e condução na formação de quadros e movimentos populares, o que dificulta a emergência que Paulo Freire denomina ‘inéditos viáveis’, ou seja, uma entrega e um aprendizado permanente para a emergência de formas mais autônomas e conscientes de organização da sociedade que contribuam para a construção da democracia e a emancipação social.

Ao mesmo tempo, podemos aprender mais com o que os ecomarxistas acentuam como a segunda grande contradição do capitalismo, um elemento importante para compreender a crise contemporânea associada não mais, de forma central, à superexploração do trabalho e distribuição de riquezas, mas à crise de (re) produção social e ambiental associada às condições de produção (O’CONNOR, 200118 O’CONNOR, J. Causas naturales, ensayos de Marxismo ecológico. México: Siglo XXI, 2001.). Isso pode ser ilustrado por inúmeros problemas atuais, como a escassez de recursos naturais e a crise ecológica acentuada pelos riscos globais, mas também envolve as crises de fragmentação da sociedade frente à dialética de despolitização de parcela da população, que adere a um modelo alienado e individualista de consumo e inserção nas benesses do mercado, mas também da emergência e busca de direitos das inúmeras identidades, tradicionais, novas ou em transformação, protagonizadas pelas mulheres, pelos agricultores familiares, pelas populações indígenas, movimentos antirracistas das populações negras e outros grupos étnicos.

Na saúde coletiva, possivelmente os movimentos mais representativos destas novas esferas de conflitos e emergências de transformações emancipatórias se encontram em dois campos: (1) o da saúde mental, com toda a desconstrução e construção dos significados da loucura, da normalidade e do sentido do humano colocado pelo movimento antimanicomial; (2) o da saúde ambiental, pelo menos a parte que se envolve com a questão do desenvolvimento, com os conflitos ambientais e os movimentos sociais e comunitários que resistem à mercantilização do território e produzem novas políticas da vida, como a economia solidária, a agroecologia, a luta pelas cidades inclusivas e democráticas, o banimento de tecnologias que provocam mortes evitáveis e moralmente inaceitáveis4 4 Um exemplo concreto desses movimentos no Brasil pode ser verificado no site do ‘Encontro Nacional de Diálogos e Convergências: agroecologia, saúde e justiça ambiental, soberania alimentar e economia solidária’, que disponibiliza artigos, vídeos e uma excelente carta política. Disponível em: <http:://dialogoseconvergencias.org>. Acesso em: 2 abr 2012. .

Tendo por referência Santos (2002,23 SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 63, out. 2002, p. 237-280. 200622 SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.), poderíamos enxergar nesses casos exemplos atuais de tensão entre os dois pilares fundamentais da modernidade, o da regulação social e o da emancipação social, que representam também a tensão entre, de um lado, a ignorância e o saber, entre a ordem em busca da superação do caos; e, de outro lado, entre a solidariedade, que sonha com o bem comum, e a liberdade frente às violentas forças da dominação e exploração que impedem a realização dos sonhos. Neste sentido, podemos enxergar novos movimentos sociais no campo da saúde pública e do ambientalismo popular/justiça ambiental como uma busca de outras formas de direito, mas também da produção de novas formas de conhecimento associadas a também novos experimentos sociais de transformação política, institucional, econômica e cultural, que não sabemos bem no que vai dar, ou ainda se teremos tempo para vislumbrar o florescer mais consistente de novas formas de sociedade próximas ao que chamamos de ideário socialista, mais igualitário, democrático e humanista.

Outra questão se refere à crescente submissão de uma classe política que cada vez mais aceita, silenciosamente, sem enfrentamentos, contestações ou apoio a mobilizações públicas, o que Sen (2011)4 DE SEN, A. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. chamaria de injustiças intoleráveis; ou ainda, aceita a proliferação e exposição de inúmeras populações, em especial as mais discriminadas e vulneráveis, ao que a UNESCO (2005)26 UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION (UNESCO); World Commission on the Ethics of Scientific Knowledge and Technology (COMEST).The precautionary principle. 2005. Disponível em: <http://unesdoc. unesco.org/images/0013/001395/139578e.pdf>. Acesso em: 2 abr 2012.
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, em seu relatório sobre o princípio da precaução, define como riscos evitáveis moralmente inaceitáveis. Tais injustiças, riscos e cargas do modelo de desenvolvimento ocorrem ao mesmo tempo em que privilégios absurdos e a entrega da coisa pública ao mercado e às grandes corporações vêm sendo realizados oficialmente em nome do crescimento econômico e do progresso, da eficiência eleitoral, governabilidade política, de acordos para composições na esfera legislativa e melhoria da gestão por resultados baseada no ‘sucesso’ da gestão privada. Mas a agenda oculta não explicita o outro lado dos acordos, baseados nos financiamentos eleitorais, benefícios pessoais e de grupos políticos e de certa burocracia governamental, envolvidos em acordos fechados de cúpulas, em que muitos acabam seduzidos pelo can-to da sereia do acesso rápido ao mundo dos pequenos e grandes privilégios da riqueza material do curto prazo, E o pior é que essa teia de submissão envolve um número crescente de políticos e gestores nos mais diversos níveis e setores de governos com um nobre passado de lutas. Parece que estamos cada vez mais perdidos numa enorme nuvem que obscurece nossa visão e produz as mais incríveis alianças ideológicas e políticas, como as que vêm ocorrendo atualmente no caso do Código Florestal e da política energética, em especial os que envolvem os setores de petróleo, das grandes hidrelétricas e da própria energia nuclear.

Limites da academia e proposta de agenda para a produção de um conhecimento emancipatório

Outra questão, que me parece ainda insuficientemente trabalhada nos textos produzidos por intelectuais da saúde coletiva e do CEBES, é a que considero uma subordinação crescente da própria academia a uma forma de regulação e atuação que pouco contribui para o conhecimento libertário ou emancipatório. Falo também da própria saúde coletiva em seu sucesso paradoxal de ter-se estabelecido como área de relevância no cenário institucional acadêmico do país. Como dizia Schumacher, autor em 1973 do livro Small is Beautiful: a study of economics as if people mattered (cuja tradução livre é algo como ‘O pequeno é belo: um estudo da economia como se as pessoas importassem’, bem diferente do nome dado, ‘O negócio é ser pequeno’), o problema da ciência não se encontra no fato dos generalistas estarem a se especializar, mas dos especialistas estarem a se generalizar. A ciência normal, no sentido dado por Kuhn (1987)12 KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987., tende a se especializar nos moldes de um conhecimento científico que se crê piamente ser uma boa ciência produtora das melhores, ainda que provisórias, verdades, em oposição à pseudociência, à metafísica ou à mitologia. A boa ciência seria aquela que separa fato e valor, que se autorregula dentro de seu paradigma por comunidades fechadas de pares especializados, se baseia em evidências empíricas, de preferências absolutas (o que é um fato raro ou impossível em realidades complexas), sem ao mesmo tempo evidenciar, com o mesmo ímpeto, as incertezas e ignorâncias que se encontram por detrás de seus modelos e resultados (FUNTOWICZ et al., 19947 FUNTOWICZ S. O.; RAVETZ J. R. Emerging complex systems. Futures, Lincolm, v. 26, n, 6, jul/ago 1994, p. 568-582.).

Certamente este modelo de ciência foi, e é importante, mas implica uma característica paradoxal que explica como a ciência permanece como um dos pilares centrais do próprio capitalismo, da sociedade de mercado, produtivista e consumista, A arrogância das comunidades acadêmicas fechadas, neutras, objetivas e não dialógicas, caminha par e passo com certo comportamento ingênuo e acrítico que considera o político, os problemas éticos fundamentais e o conhecimento libertário ou emancipatório como questões que não lhes dizem respeito, já que pertencem ao campo da filosofia, da política e da sociedade como um todo. Dessa forma, a ciência sem consciência, como dizia Morin (1996)17 MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996., é um prato feito para financiamentos e assessorias que estão na base dos crescentes conflitos de interesse da produção acadêmica como engrenagem da máquina industrial, seja no campo da saúde, da indústria farmacêutica e do complexo médico-hospitar, ambiental, dos critérios de avaliação e gestão de riscos, dos licenciamentos ambientais, do que é analisado, permitido, consentido ou silenciado quando se libera uma fábrica, uma hidrelétrica, um agrotóxico, uma usina atômica ou um resort num território paradisíaco habitado por povos originários.

Essa ciência acrítica também deixa de analisar a economia política própria ou de ter contato com as forças sociais e culturais emancipatórias de nosso tempo e dos nossos territórios em disputa. Essas populações resistem, transformam e embelezam o sentido do viver, e essa ciência e os produtivos pesquisadores que dela fazem parte, se vêem silenciosos ou, então, beneficiados diante da proliferação dos cursos MBA, difusores de conceitos e métodos de interesse do mercado, carregados de ideologia pouco ou nada emancipatória, ainda que pretensamente complexa. São os cursos in company, contratados a bons preços por organizações e agências públicas que nos falam de gurus dos negócios, como Peter Drucker, do Massachussets Institute of Technology (MIT) e Harvard, de conceitos tão objetivos quanto rasteiros na lógica empresarial presentes no senso comum dos especialistas em gestão, tais como (eco) eficiência, competitividade e marketing, valorizados por conceitos de aparente caráter humanístico, entre eles gestão de pessoas, indicadores de satisfação e qualidade de vida, governança e responsabilidade social corporativa. Cada vez mais tais conceitos são adotados acriticamente por instituições públicas, sem que estejamos dialogando, resistindo e propondo alternativas, pelo menos no campo da saúde, a esta invasão simbólica na formação acadêmica e profissional de técnicos, pesquisadores e gestores.

Este modelo de ciência hegemônica e produtivista tem por base, como se refere Santos (2006)22 SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006., uma epistemologia da cegueira que “exclui, ignora, silencia, elimina e condena a não-existência epistêmica tudo o que não é susceptível de ser incluído nos limites de um conhecimento que tem como objetivo conhecer para dominar e prever”. Para ele, uma alternativa seria a constituição de uma ecologia dos saberes e uma epistemologia da visão que reconheça as ausências, emergências e possibilidades de outros futuros a partir das experiências e processos em curso fora do universo eurocêntrico dos países centrais, dos espaços cooptados pelos interesses do mercado nas formas pasteurizadas de produção e consumo e que emergem nos espaços de resistências e manifestações que afirmam e expandem o exercício do viver. Por meio dessas políticas da vida as novas formas de conhecimento, produção, economia e sociedade poderão, para Santos (2006)22 SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006., reinventar a emancipação e as práticas democráticas com novas formas de direitos, de novos portadores de direitos que se expressem não como mercadorias, clientes, usuários ou eleitores eventuais, mas sujeitos individuais, comunitários e coletivos que sonham e reconstroem os sentidos e o exercício do viver, da liberdade, felicidade e inevitáveis tragédias que todos os humanos, de forma mais ou menos consciente, hão de passar.

Para finalizar: sugestões para uma agenda crítica e propositiva

Para finalizar, sugiro alguns temas que, considero, poderiam orientar os debates no campo da saúde coletiva e na sociedade brasileira com vistas a revitalizar nossos sonhos, ideais, práticas políticas e a própria produção de conhecimentos. O primeiro, em total acordo com vários autores críticos que militam no CEBES e na saúde coletiva, é a necessidade de produzirmos mais conhecimentos que revelem a faceta oculta dos interesses privados, corporativos e de mercado nas diversas áreas da saúde e da vida em sociedade. Ou seja, como o setor privado se beneficia de subsídios, duplas entradas e outros mecanismos espúrios de lucro na forma de lidar com a vida, a doença, o cuidado e o sofrimento da pessoa humana, em especial dos mais vulneráveis. Uma questão estratégica, concordando com Sonia Fleury, é deslocar e inovar a abordagem de defesa do SUS, saindo da condição de reféns do precário e do indefensável e ampliando o olhar para os diferentes sistemas de saúde que lucram com a doença da população, seja no SUS ou via operadoras de saúde. Essa estratégia, apoiada por pesquisas empíricas e novas formas de ação política, poderiam ajudar a romper o olhar acrítico da crescente massa de novos consumidores despolitizados que sonham em resolver seus problemas via a saúde privada, em boa parte financiada por recursos públicos.

Vejo esse tipo de análise em articulação com o que vem ocorrendo no campo ambiental, relacionada aos grandes empreendimentos: é necessário ampliarmos o debate sobre as externalidades negativas e os impactos socioambientais e sanitários desse modelo de crescimento econômico e de inserção na economia globalizada. Estamos destruindo nossos ecossistemas, nossas culturas e inúmeras vidas, gerando sofrimentos atuais e, certamente, às futuras gerações. Mas resistir a isso só será possível se estabelecermos mediações conceituais e políticas na construção de sonhos desejáveis e possíveis de nação que se pautem em processos dialógicos e interculturais na construção de sociedades democráticas, justas e plurais. Ou, como propõe Roberto Nogueira, sociedades dcmocrático-radicais, mas que só o serão se estivermos abertos à reinvenção da emancipação social, que é, de alguma forma, a reinvenção de nós mesmos, da capacidade de aprendermos com o decorrer dos anos na produção de políticas para a vida.

Não vejo que a vida, em sua plenitude, possa emergir de certo academicismo produtivista rígido atual, inclusive no campo da saúde coletiva. Por isso, defendo aproximação produtiva - e não produtivista - entre as agendas libertárias e emancipatórias de diversos campos e linguagens de produção e organização da sociedade; o acadêmico, o político, o educacional e o cultural, fortalecendo, sem perda de certo rigor e qualidade, nossos resultados como cientistas, cidadãos e militantes. Até porque a qualidade do conhecimento científico deveria incluir questões fundamentais como a defesa da vida frente às injustiças intoleráveis e aos riscos evitáveis moralmente inaceitáveis.

Minha última e singela sugestão talvez pareça algo simples, ingênuo, um apelo à sabedoria: certamente é preciso firmeza no ato de intolerar o intolerável, ou, parafraseando o grupo Rappa, ‘qual a paz que eu não quero conservar prá tentar ser feliz?’. Para isso, é preciso que rompamos com certos cantos da sereia e atitudes passivas que reduzem nossa capacidade de indignação e posicionamento frente a situações de injustiça. Ao mesmo tempo, o estado helicoso da resistência e do conflito são, muitas vezes, arredios à abertura do aprendizado, à quebra de dogmas, da valorização de uma cultura da paz que, sem se submeter passivamente a consensos indignos, aceite e respeite as diferenças que nos caracterizam como humanos pertencentes a certas culturas, identidades, dons, talentos e tradições. O desafio, parafraseando Santos (2006)22 SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006., é caminhar na tênue linha equilibrista dos que sabem transitar entre o respeito às diferenças e o enfrentamento das injustiças que geram desigualdades que inferiorizam.

Para isso, talvez um critério seja diferenciar os conflitos e dinâmicas que correspondem às situações intoleráveis mais radicais, oscilando entre a defesa da vida fiente à aniquilação ou morte injustas, nas quais as formas de enfrentamento devem também ser mais radicais, e aqueles outros conflitos e práticas sociais que permitem reinventar espaços de experimentação dialógica, nos quais resistências, construções de alternativas e celebrações da vida possam se mesclar na construção das novas narrativas que permitirão visões diferentes de Estado, nação e sociedade. Porém, me parece, jamais voltaremos a construir uma ideia de nação e de sociedade que não possua uma forte identidade e consciência global e planetária em seu entrelaçamento como unidade e utopia, relacionadas à própria consciência da condição humana em tempos de crise global.

Neste sentido, mais que uma frase dos ambientalistas, a relação local-global necessariamente fará parte desta nova grande narrativa, que não deve desprezar avanços da ciência moderna. Para isso, será necessário superar o individualismo e a sensação de não pertencimento do ser humano moderno. Arendt (FUNTOWICZ et al., 20119 FUNTOWICZ, S.; STRAND, R. Change and commitment: beyond risk and responsibility. Journal of Risk Research, Londres, v. 14, n. 8, set. 2011, p. 995-1003.) mostrou, em sua obra, como a solidão moderna decorre do desenraizamento e do culto ao superfluo, que, em suas palavras, têm sido a maldição das massas modernas desde o início da revolução industrial. Nossas sociedades têm produzido população crescente de indivíduos que não pertencem nem são bem-vindos ou incluídos em qualquer lugar.

Encontrar sentidos e lugares do viver onde haja espaço para as múltiplas formas do ser humano, de respeitar e contemplar a vida em seus mistérios e belezas: eis o desafio, talvez mais necessário do que nunca nestes dois séculos de modernidade que têm nos levado a inúmeras tragédias. Talvez nossa sorte seja poder redescobrir que estes sentidos e lugares encontram-se, por vezes, mais próximos do que possamos imaginar em inúmeras esferas do viver, no lugar do amor, dos compromissos dessinteressados, da amizade, contemplação, celebração, lugar onde o poder se entrega diante das necessidades da vida e da compaixão pelo sofrimento do outro. Oxalá queira que a produção de conhecimentos possa se intereruzar com tais lugares na construção das bases de uma nova sociedade diante da atual crise civilizatória.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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