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Reflexões sobre a Rio + 20, a Cúpula dos Povos e a Saúde Coletiva

Reflections about Rio + 20, the People's Summit and Public Health

RESUMO

Este artigo discute a crise socioambiental a partir de uma visão crítica de interesse para a Saúde Coletiva. Caracterizamos a crise socioambiental como expressão da mercantilização da vida e da natureza, decorrente do capitalismo globalizado e do crescente poderio de corporações que influenciam o modelo de desenvolvimento de países como o Brasil. Ainda, buscamos analisar duas grandes vertentes que disputam soluções para essa crise. Uma, a da Rio + 20, baseada na ecoeficiência, na economia verde e em arranjos de 'governança' global; são os interesses empresariais pautados por soluções economicistas de mercado, por tecnologias ditas limpas e gestão ambiental, que desprezam as desigualdades sociais e os conflitos ambientais. Outra, a da Cúpula dos Povos, que busca novas formas de produção de conhecimentos e um modelo de mundo solidário; apoia-se em articulações de movimentos de trabalhadores urbanos e rurais, ambientalistas, feministas, de populações atingidas por riscos ambientais e de povos tradicionais e étnicos, em defesa de seus modos de vida.

PALAVRAS-CHAVES
Saúde Ambiental; Rio + 20; Saúde Coletiva; Crise Ambiental; Justiça Climática

ABSTRACT

This paper discusses the socio-environmental crisis from a critical point of view for the Public Health. We characterized the environmental crisis as an expression of life and nature commercialization, a result of the global capitalism and the growing power of corporations that influence the development model of countries such as Brazil. We also analyze two initiatives that propose solutions for this crisis. The first one is Rio +20, which is based on eco-efficiency, green economy and models of global governance. These are the corporative interests based on solutions for the market by means of technologies and environmental management that neglect social inequalities and environmental conflicts. The other initiative is the Earth Summit, which seeks new means of knowledge production and a more supportive world model. This is based on movements of urban and rural workers, environmentalists, feminists, peoples at environmental risk, and traditional and ethnic peoples in defense of their ways of life.

KEYWORDS
Environmental Health; Rio + 20; Public Health; Environmental Crisis; Climactic Justice Action

Introdução

Qual o significado da Rio + 20 e da Cúpula dos Povos? Como compreendê-los a partir de uma visão crítica sobre os limites e as potencialidades desse momento para a Saúde Coletiva e a luta pela democracia? Para responder a estas perguntas buscamos apontar alguns elementos que podem ajudar a entender a crise socioambicntal, considerando o significado da Rio 92 e a crítica à economia verde, no contexto da disputa política em jogo, para o encaminhamento de soluções da crise ambiental.

Reconhecendo que este texto não poderá esgotar a complexidade do tema, esperamos nos somar a outras iniciativas em andamento, despertando reflexões no campo da saúde coletiva em respeito ao compromisso histórico do campo com a democracia, a luta contra as desigualdades sociais e pela transformação social. Acreditamos que esse compromisso, além de ajudar a pressionar governos e organismos internacionais, possa fortalecer articulações com movimentos sociais progressistas do país e do mundo, que se reunirão durante a Cúpula dos Povos, para combater os efeitos perversos da mercantilização da natureza e da vida – incluindo a própria saúde – e construir alternativas solidárias e democráticas para sociedades mais justas e sustentáveis.

Alguns elementos da crise (socio) ambiental

A Rio + 20 acontece num momento em que cada vez mais se reconhece o agravamento e a articulação entre as crises ambiental e social no planeta. Esse reconhecimento vem crescendo, principalmente, a partir da II Guerra, com a intensificação do ritmo de produção e consumo e suas consequências. Diversos trabalhos vêm, desde então, produzindo indicadores dessa transformação e suas consequências, incluindo inúmeros eventos e tragédias que marcaram o surgimento do ambientalismo internacional. Dentre eles, podemos destacar o trabalho pioneiro de Rachel Carson, que publicou, em 1962, nos EUA, o livro Primavera Silenciosa (Silent Spring). Suas denúncias sobre a poluição dos rios e dos campos estadunidenses, pela indústria química e dos agrotóxicos, acabou impulsionando diversos movimentos, tendo tamanha ressonância que o clamor popular pela proteção do meio ambiente levou às regulamentações estaduais e federais, que proibiram o uso de dicloro-difenil-tricloroetano (DDT) doméstico, e à própria criação da Environmental Protection Agency (EPA), a poderosa agência ambiental dos EUA.

Desde então, vêm sendo discutidos os elementos que caracterizam a crise ambiental contemporânea, como o consumo sem precedentes dos recursos naturais associado à degradação dos ecossistemas, a dramática redução da biodiversidade, assim como a geração e intensificação dos riscos ambientais, em particular os chamados riscos ecológicos globais, como aqueles relativos à destruição da camada de ozônio, à poluição química transfronteiriça e às mudanças climáticas globais decorrentes dos gases de efeito estufa liberados pela combustão do carvão e derivados do petróleo. Ao mesmo tempo, a concentração de poder econômico e político das corporações transnacionais, em tempos de globalização do capital industrial e financeiro, trazem novas dimensões para compreendermos as desigualdades, precariedades e formas de exclusão socioespacial que afetam trabalhadores do campo e das cidades, assim como demais populações nos mais diversos territórios do planeta, inclusive as tradicionais e étnicas. Portanto, a crise ambiental passa a ser vista, cada vez mais, em sua dimensão social e política.

Vários indicadores vêm apontando para a continuidade ou agravamento da crise socioambiental no planeta, conforme já indicado em diversos documentos. Dentre os vários problemas já apontados anteriormente (MIRANDA, 20126 MIRANDA. A. O Dilema da Rio + 20. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro. v. 17. n. 2, 2012. p.284.), podemos destacar: quebras do sistema financeiro com impactos na economia mundial; três guerras desencadeadas pelos EUA, envolvendo disputas geopolíticas e por petróleo, com ou sem o apoio do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), com enorme destruição de vidas humanas, da infraestrutura dos países invadidos e do meio ambiente, em geral: Afeganistão, Iraque (esta com mais de 140.000 mortos, entre civis e militares) e a recente guerra na Líbia, sustentada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); precarização do mundo do trabalho, com desemprego estrutural e/ ou subemprego atingindo um bilhão de trabalhadores; pobreza e miséria com cerca de um bilhão de pessoas com carência alimentar (desnutrição proteico-calórica e/ou algum tipo de carência nutricional) e sem acesso adequado à água; expectativa de vida ao nascer de vários países africanos não chegando aos 50 anos, enquanto nos chamados países ricos ultrapassa os 80 anos.

Ambiente, desenvolvimento e Rio 92: uma leitura da crise

Nas últimas décadas, diversos trabalhos e marcos vêm ocorrendo com a internacionalização do movimento ambientalista através de organizações com atuação global, bem como a busca de arranjos internacionais para enfrentar o problema.

O Clube de Roma, nascido em 1968, lançou, em 1972, o estudo intitulado Limites do Crescimento, onde buscava investigar o que ali são consideradas como as cinco grandes tendências de interesse global: o ritmo acelerado da urbanização, o rápido crescimento demográfico, a desnutrição generalizada, o esgotamento dos recursos naturais não renováveis e a deterioração ambiental. Com base nessa constatação, propõe um desenvolvimento que assegure o equilíbrio global capaz de preservar os recursos naturais, manter a sustentação do capital e atender às necessidades fundamentais de toda população, que para tal deverá conter seu espiral demográfico. Desse modo, diz o relatório:

[...] chegamos a um conjunto mínimo de exigências para se ter o estado de equilíbrio global São elas: 1 – A fonte de capital e a população devem ser constantes em tamanho; 2 – Todas as taxas de aplicação de recursos e de produção – nascimento, mortes, investimentos e depreciação – devem ser mantidas dentro de um mínimo e 3 – Os níveis de capital e de população e a sua proporção devem ser fixados de acordo com os valores da sociedade. (MEADOWS et al., 19785 MEADOWS. D. H. et al. Limites do crescimento. São Paulo: Perspectiva. 1978.).

O lançamento do livro Nosso Futuro Comum (CMMAD, 19882 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (CMMAD). Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Editora da FGV. 1988.) pelas Nações Unidas, em 1988, estabelece formalmente, no plano institucional, a conexão entre o tema ambiental e o do desenvolvimento, desde então adjetivado como insustentável, propagando a sustentabilidade como o caminho para a solução da crise.

No escopo do conceito de desenvolvimento sustentável do Nosso Futuro Comum (também conhecido como Relatório Brundtland) está a critica à distribuição de renda desigual entre países pobres e ricos, que deve ser superada, não só em seus aspectos econômicos, mas também do ponto de vista social e de bens ambientais. Com essa abordagem, propugna pela superação dos problemas de saúde, educação, acesso à água, ar puro, disponibilidade de alimentos e participação democrática dos povos, principalmente dos países em desenvolvimento. Contudo, assim como nas premissas do Clube de Roma, os elementos centrais que determinam as contradições diagnosticadas estão omissos no relatório, ou seja, a dominação político-econômicomilitar das grandes potências e corporações transnacionais no mundo globalizado, assim como a exploração no interior de cada nação, pelo constructo lógico das sociedades de mercado. A omissão é então substituída pela tentativa de pulverização das determinações, quando afirma o relatório em sua página 50: “Não é que de um lado existam vilões e de outro vítimas. Todos estariam em melhor condição se cada um considerasse os efeitos de seus atos sobre os demais” (CMMAD, 19882 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (CMMAD). Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Editora da FGV. 1988.). Ou seja, reproduz a afirmação amplamente disseminada por certo ambientalismo que diz serem todos igualmente responsáveis e vítimas em relação aos problemas ambientais vigentes.

Cinco anos mais tarde, a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio 92, representou o amplo reconhecimento político sobre a importância da questão ambiental pelos governos e pela sociedade internacional. A Cúpula da Terra, evento que aconteceu paralelamente à conferência oficial, gerou uma mobilização social quase sem precedentes envolvendo organizações ambientalistas e inúmeros movimentos sociais. A Rio 92 acabou gerando documentos e compromissos que marcariam os anos seguintes, como a Agenda 21, a Convenção sobre a Diversidade Biológica e a Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas,

Porém, tais avanços acabaram esbarrando em fortes limites estruturais, pela incapacidade dos organismos multilaterais e pela falta de compromissos dos governos responsáveis pela sua implementação, fragilizados e subordinados às fortes pressões das corporações transnacionais dos países mais ricos. O que esteve e continua cada vez mais agudamente em disputa são as distintas formas de compreender a crise socioambiental e as distintas alternativas de desenvolvimento – ou de sociedade – que nos farão sair dela. Por isso, um dos motes da Cúpula dos Povos é a denúncia das causas estruturais das múltiplas crises e das falsas soluções que vêm sendo defendidas nos documentos e encontros oficiais que precedem a Rio + 20.

Numa perspectiva crítica da Economia Política e sua atualização via Ecologia Política (PORTO, 20079 PORTO, M. F. S. Uma ecologia política dos riscos: princípios para integrarmos o local e o global na promoção da saúde e da justiça ambiental. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007. v. 1, 248 p.; PORTO; MARTINEZ-ALIER, 200710 PORTO, M. F. S.; MARTINEZ-ALIER, J. Ecologia política, economia ecológica e saúde coletiva: interfaces para a sustentabilidade do desenvolvimento e para a promoção da saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, 2007, p. S503-S512.), e em diálogo com a saúde coletiva e a teoria dos determinantes sociais da saúde, podemos compreender o agravamento dos problemas socioambientais em sua relação com as desigualdades socioespaciais decorrentes do capitalismo globalizado, responsável pela crescente mercantilização da vida e da natureza. A globalização econômica em curso, pautada na visão neoliberal, fortalece uma divisão internacional do trabalho e dos riscos que gera diferentes formas de comercio internacional injusto e insustentável. A base de tal comércio é um metabolismo social que concentra os maiores riscos, cargas, degradação ambiental e exploração do trabalho nas populações e territórios mais vulneráveis, em especial na América Latina, África e Ásia.

Essa compreensão da ecologia política, ou do ecologismo popular, tenta superar os reducionismos das vertentes ambientalistas pautadas pelo olhar conservacionista romântico com foco na destruição da natureza e das espécies, sem considerar a dimensão humana; ou ainda, pelo ‘evangelho’ da ecoeficiência, que é o olhar empresarial pautado pelas soluções economicistas de mercado, pelas tecnologias ditas limpas e uma gestão ambiental que despreza a dimensão política das desigualdades e dos conflitos ambientais (MARTINEZ-ALIER, 19944 MARTINEZ-ALIER, J. De la economía ecológica al ecologismo popular. Barcelona: Icaria. 1994.362 p.).

É interessante resgatar como os autores da corrente ecossocialista buscam entender a atual crise ambiental para além do conflito capital versus trabalho, que marcou o capitalismo industrial até a o início da segunda metade do século XX. Para James O’Connors, por exemplo, tal conflito está relacionado às condições de trabalho, tendo como principais protagonistas os trabalhadores expropriados da sua produção – alienação e mais-valia – e os movimentos sociais revolucionários desse período. As últimas décadas, contudo, vêm acentuando uma segunda importante contradição associada às próprias condições de produção (POLANYI, 20018 POLANYI, K. The great transformation. Boston: Beacon Press, 2001.), aquelas relacionadas à força de trabalho, à infraestrutura física social, que inclui os sistemas de transporte, comunicação, educação, saúde e à natureza não humana, ou seja, o meio ambiente, provedor de alimentos e matérias primas.

Seus principais protagonistas são coletivos contrahegemônicos organizados em torno de suas próprias agendas de mudança social, como coletivos feministas, ambientalistas, populações atingidas por riscos ambientais, povos tradicionais e étnicos que lutam por suas culturas e territórios e contra o racismo ambiental (O’CONNOR, 20017 O'CONNOR, J. Causas naturales: ensayos de marxismo ecológico. México: Siglo XXI, 2001.; SCHÜTZ, 200811 SCHÜTZ, G. E. La insoportable levedad del papel: Conflicto socioambiental y salud en torno de la producción de celulosa en el Cono Sur latinoamericano. Tese (Doutorado) - Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2008.).

O caso brasileiro: o modelo injusto e insustentável baseado na produção de commodities

No caso brasileiro, e em boa parte dos países emergentes e periféricos, essa leitura se traduz na crítica ao modelo de desenvolvimento injusto e insustentável baseado na produção de commodities rurais e metálicas que se apropria dos recursos naturais, externalizando as suas consequências negativas. Isso se concretiza em diferentes empreendimentos econômicos:

(i) A expansão do agronegócio e das monoculturas de grandes extensões para a produção de grãos, agrocombustíveis e árvores plantadas dos ‘desertos verdes’, articulados com a indústria dos agroquímicos – fertilizantes e agrotóxicos – e dos próprios transgênicos, sendo que, desde 2008, o Brasil se transformou no maior consumidor mundial de agrotóxicos. A expansão do agronegócio e seus impactos têm gerado críticas por parte dos movimentos sociais e entidades que defendem a reforma agrária, a segurança e soberania alimentar, os alimentos saudáveis e a solução estruturante através da chamada transição agroecológica;

(ii) O crescimento dos setores de mineração, beneficiamento e fabricação de commodities ligados aos ciclos ferro-aço ou bauxita-alumínio. Um exemplo é a transposição da fase ‘quente’ e fortemente poluente da produção do aço para países emergentes como o Brasil, com a construção de grandes siderúrgicas e portos para exportação, responsáveis por inúmeros conflitos ambientais como a Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) e o Porto de Açu, no Rio de Janeiro, e a siderúrgica em construção no porto de Pecém, no Ceará. São empreendimentos que articulam grupos nacionais e internacionais como a Vale, o empresário Eike Batista e outras corporações nacionais e internacionais. Todos esses conflitos estão envolvendo a mobilização de populações atingidas – inclusive indígenas, quilombolas, pescadores e demais comunidades tradicionais – e organizações diversas na defesa de direitos violados nos quais a questão da saúde possui papel relevante. Também o fortalecimento da Petrobras como globalplayer, a descoberta do pré-sal e a construção de diversas refinarias no Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão têm gerado inúmeros conflitos ambientais num momento em que o país e o mundo deveriam estar voltados para uma mudança radical das fontes de energia e na transição para fontes renováveis, tema que, contraditoriamente, é central na própria Rio + 20, através da chamada Economia Verde;

(iii) O impacto de outros grandes empreendimentos está na origem de conflitos ambientais em territórios urbanos e rurais. No campo da infraestrutura, podem ser destacadas a construção de Belo Monte e a transposição do rio São Francisco, além da realização de grandes eventos como a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos, que serão realizados no Brasil nos próximos anos, que se articulam ao capital imobiliário para colocar as metrópoles brasileiras no circuito internacional de grandes negócios.

É importante perceber que mesmo investimentos em tecnologias ‘limpas’ ou em energia renovável, quando orientados por interesses econômicos que desrespeitam os direitos fundamentais dos que habitam e trabalham nos territórios, podem gerar conflitos e situações de injustiça ambiental. Um exemplo atual é a construção de parques eólicos no Nordeste, como no caso do Estado do Ceará, que afetam pescadores e comunidades tradicionais durante e após a construção dos parques.

Ainda que o montante dos investimentos em andamento com os empreendimentos citados seja defendido como estratégico para o crescimento do país e a implementação de políticas públicas contra a pobreza, sua realização intensifica a crise ambiental, desrespeita o princípio precaucionário e cria novas ‘zonas de sacrifício’ nas quais as populações atingidas e discriminadas pelos empreendimentos e pela falta de atuação dos órgãos governamentais acabam por receber os principais riscos decorrentes desse modelo.

Limites e contradições nos compromissos assumidos após a Rio 92: justiça climática versus economia verde

Os últimos anos têm revelado não apenas a intensificação da crise ambiental, mas as contradições e limites para implementação dos compromissos assumidos, desde a Rio 92, para resolvê-la. Um exemplo é o caso da Convenção Marco sobre Mudanças Climáticas, que entrou em vigor em 1994. As várias Conferências entre as partes, chamadas de COP, realizadas desde então, produziram, com o Protocolo de Kyoto, em 1997, um grande acordo internacional para a redução das emissões dos gases de efeito estufa válido até 2012. Demonstrando a força do tema ambiental junto à sociedade civil, em todas as COP vêm ocorrendo encontros paralelos aos oficiais com a ampla participação de Organizações Não Governamentais (ONG), movimentos sociais, ambientalistas e pensadores críticos. Nesses espaços acabou sendo cunhada a expressão justiça climática, um conceito que articula a crise climática com a justiça social e ambiental. Dois aspectos são fundamentais nessa proposição: primeiro, a ideia de que as consequências das alterações climáticas são e serão desiguais, pois afetam mais as populações e territórios mais vulneráveis, pobres, econômica, racial e etnicamente discriminados. A segunda ideia se refere ao fato de que os países ditos mais industrializados e desenvolvidos foram aqueles que mais contribuíram para o efeito estufa nos últimos dois séculos, sendo, portanto, mais responsáveis para financiar tanto as medidas mitigadoras, como os processos de transição para sociedades mais sustentáveis. É por isso que os movimentos sociais vêm falando de ‘dívida climática’.

A 17a COR realizada em dezembro de 2011, em Durban, África do Sul, uniu os movimentos e organizações que participavam do evento paralelo acerca do fracasso da conferência oficial da COP em Durban, Para muitos, o atual período será conhecido no futuro como a década perdida da luta contra as mudanças climáticas. Dentre as críticas, destacam-se a falta de compromissos claros, a ausência de importantes países (EUA, Canadá, Japão, Rússia, Austrália e Nova Zelândia) e a fragilidade dos instrumentos de mercado adotados pela economia verde, que vem orientando os novos compromissos, como acordos voluntários, os Mercados de Carbono e os chamados REDDS (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação de Florestas).

De acordo com o documento intitulado A caminho da Rio + 20 e mais além, produzido por diversos movimentos sociais envolvidos na organização da Cúpula dos Povos, mobilizados pela Justiça Social e Ambiental, contra a mercantilização da vida e da natureza e em defesa dos bens comuns, a economia verde é uma resposta de esverdeamento do capitalismo voltada ao enfrentamento da questão climática. Tal proposta dá continuidade à agenda neoliberal de privatizações de serviços públicos nos anos 1990 – incluindo o próprio setor saúde – e vem liberalizar a Natureza e seu acesso por parte dos mercados, dividindo em componentes – como o carbono, a biodiversidade ou os serviços ambientais – para gerar ao mesmo tempo títulos de especulação financeira, controle corporativo, perda da soberania alimentar e esvaziamento dos territórios. Portanto, a economia verde funcionaria como uma espécie de panaceia contra todas as crises, aprofundando a mercantilização da natureza através da constituição de novos mercados – como o do carbono –, mantendo a aposta no aprofundamento do capitalismo como remédio para a crise civilizatória criada pelo próprio capital. É por isso que Carlos Walter Porto-Gonçalves, em seu texto Sustentando a insustentabilidade: Comentários à Minuta Zero do documento base de negociação da Rio + 20, sugere substituir o conceito de ‘economia verde’ por ‘desenvolvimento de práticas sustentáveis’, já que futuras soluções para a crise e a transição para uma nova forma de organização social não poderão prescindir dos acúmulos historicamente produzidos por tecnologias e práticas de gestão desenvolvidas na atualidade.

O que está em jogo na Rio + 20 e na Cúpula dos Povos?

A partir da leitura da crise realizada anteriormente, podemos resumidamente dizer que, em última instância, a Rio + 20 coloca em jogo a disputa entre dois processos políticos. De um lado, uma vertente econômica, gerencial e de mercado para enfrentar a crise ambiental, apoiada por governos hegemonicamente atrelados a tais interesses, buscando consensos dentro de uma lógica liberal que enxerga e admite a participação da sociedade, desde que o modelo atual de desenvolvimento se mantenha. Para isso, é necessário que as atuais lutas e movimentos sociais sejam ou mantidos enquanto identidades sociais isoladas, fragmentadas e controláveis, ou, então, excluídas e invisibilizadas. Os participantes da governança política desse processo são os stakeholders, os portadores de interesses reconhecidos dentro dos limites da democracia liberal e burguesa, incluindo organizações empresariais, entidades de classe e ONG, principalmente as que, de uma forma ou de outra, aceitam e participam dos interesses e benefícios da lógica de mercado aplicada aos campos social e ambiental. O espaço desse processo é o da organização oficial da Rio + 20, das agências internacionais e das cúpulas governamentais, cujas contradições e margens de manobra, atualmente, são relativamente pequenas.

De outro lado, encontranvse as organizações da sociedade civil e movimentos sociais que confrontam a crise em sua relação com o modelo capitalista de produção e consumo. Essa posição se manifesta por diversos movimentos sociais, populações atingidas pelos empreendimentos econômicos e organizações que se mobilizam por justiça social e ambiental, ou ainda na defesa de populações tradicionais, etnias e questões de gênero. Tais sujeitos protagonizam inúmeras denúncias sobre as contradições do modelo que se concretizam nos territórios onde vivem e trabalham. As denúncias incluem a mercantilização da natureza e da vida, assim como a privatização de recursos naturais e bens públicos; os conflitos ambientais e situações de injustiça ambiental; as violações aos direitos humanos fundamentais; a ineficiência das políticas e instituições públicas; a concentração de poder político e econômico; enfim, a própria defesa da democracia, das identidades étnicas e culturas dos povos, do acesso aos recursos naturais e ambientes saudáveis, ou ainda a busca de alternativas através de práticas solidárias, justas e sustentáveis que reinventem o sentido de desenvolvimento, progresso e trabalho, através de novas formas de economia.

Talvez o grande desafio histórico desse processo político seja como transformar as várias lutas sociais e utopias em agendas comuns, diretrizes claras e resultados mais consistentes a partir desses novos, e não tão novos, movimentos sociais que giram em torno da segunda grande contradição do capitalismo contemporâneo. As lutas por direitos e cidadania dos vários sujeitos políticos – righthoíders – esbarram, não apenas, no poderio e institucionalização dos interesses de mercado e das grandes corporações, mas na forma como especialistas e a própria ciência clássica ‘neutra’ a eles se subordinam. Portanto, as transformações da sociedade demandam também novas maneiras de conceber e produzir ciência e tecnologia.

Tal desafio está presente na atual proposta de cinco plenárias previstas para acontecer na Cúpula dos Povos, cujos conceitos e propostas associadas fazem parte da semântica em construção dos movimentos. São elas:

Plenária 1 – Direitos, por Justiça Social e Ambiental: Direitos Humanos, Coletivos e Territoriais, a Terra, a Cidade, a Água, Étnicos, das Mulheres, Ambientais, da Natureza/Mãe Terra, à Vida Combate ao Racismo, Desigualdade e à Injustiça Ambiental Afirmação dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCA), Justiça Ambiental, Justiça Climática;

Plenária 2 – Defesa dos Bens Comuns Contra a Mercantilização: Terra/Território, Água, Biodiversidade, Ar/Clima, Espaços Públicos, Conhecimento, Cultura, Saber Popular e Tradicional, Comunicação, Financeirização e Dívida;

Plenária 3 – Soberania Alimentar: Agricultura Familiar e Camponesa, Agroecologia, Sementes, Mudanças Climáticas e Desertificação, Relação campocidade, agricultura urbana, Agroenergia, Monocultivos e Agrotóxicos;

Plenária 4 – Energia e Indústrias Extrativas: Mineração e indústrias extrativas, Megaprojetos, Energia para que e para quem, Infraestrutura, Militarização, Combustíveis Fósseis, Agrocombustíveis, Energia Nuclear, Grandes Barragens, Soberania Energética e descentralização da geração e distribuição de energia;

Plenária 5 – Trabalho: Por uma Outra Economia e Novos Paradigmas de Sociedade: Trabalho Decente, Divisão Sexual do Trabalho, Modelo de Produção e Consumo, Saúde, Educação, Migrações, Economia Solidária e Cooperativismo, Novas políticas habitacionais e urbanísticas, de saneamento e de transporte coletivo, Crise global e lutas de resistência contra as corporações, Governança e a captura do sistema financeiro sobre as instituições e a política, Novos Valores e Paradigmas de Sociedade, Desenvolvimento/Desdesenvolvimento, Buen Vivir, Decrescimento, economia da reciprocidade e do cuidado (CÚPULA DOS POVOS, 20123 CÚPULA DOS POVOS. Na Rio + 20 por justiça social e ambiental. 2012. Disponivel em: <http://cupuladospovos.org.br>. Acesso em: 02 maio 2012.
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).

Questões para uma agenda política para a saúde coletiva

Todas as questões colocadas neste breve documento trazem grandes desafios para a saúde coletiva, pois a dimensão ampliada de saúde e dos determinantes sociais encontram-se no cerne da problemática socioambiental contemporânea. De certa forma, é possível observar que o campo da saúde ambiental encontra-se antenado a tais desafios, conforme podemos ver no I Simpósio Brasileiro de Saúde Ambiental, organizado pelo Grupo Temático Saúde & Ambiente, da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), realizado em dezembro de 2010, em Belém do Pará. Nele estiveram presentes cerca de 1.000 professores, pesquisadores, estudantes e técnicos, e a ‘Carta de Belém’ elaborada ao final do evento coloca de forma contundente o espírito que, acreditamos, deva nortear a compreensão da Saúde Coletiva frente à Rio + 20 e os problemas ambientais:

Há, entre nós, um sentimento comum de indignação e não passividade para com a apropriação da ciência e da tecnologia pela racionalidade instrumental econômica, que concorre significativamente para a crise civilizatória, nas dimensões ambiental, econômica, sociosanitária e política, como também denuncia uma crise ética e paradigmática do conhecimento cientifico.

No contexto da ordem mundial dos ‘neo’ colonialismo, imperialismo e liberalismo, dialeticamente, povos indígenas, afrodescendentes, comunidades tradicionais, trabalhadores e moradores das periferias urbanas resistem e avançam na construção de alternativas a este modelo, como são a Agroecologia e a Economia Solidária, preservando suas culturas e saberes de cuidado com a Vida.

Colocamo-nos ao lado dos cuidadores da vida e afirmamos a importância da práxis na produção de uma ciência cidadã, com pressuposto éticos, que supere as barreiras disciplinares e os muros da academia, para produzir processos coletivos de produção de conhecimentos emancipatórios e de proteção da saúde e do ambiente.

Acreditamos ser necessário resgatar e avançar tais ideias, prosseguindo na relação com os movimentos sociais. Para isso, é necessário fortalecer o conceito ampliado de saúde em sua relação com a ética, a democracia e os direiros humanos nas lutas por justiça social e ambiental. No campo da saúde, a mercantilização da Vida e da Natureza possui seu contraponto na luta contra a mercantilização da saúde e pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) público, tema marcante do 2° Simpósio de Política de Saúde do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), ocorrido entre 7 e 9 de julho de 2011, em Brasília (DF) (CEBES, 20111 CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS EM SAÚDE (CEBES). Relatório do 2° Simpósio de Política e Saúdedo CEBEs. 2011. Disponível em: <http://www.cebes.org.br/media/File/Blog/relatorio_simposio.pdf> Acesso em: 02 maio 2012
http://www.cebes.org.br/media/File/Blog/...
). Os títulos das três mesas que discutiram as teses do simpósio traduzem questóes centrais da agenda da saúde brasileira e possuem relação direta com os temas da Rio + 20, quais sejam: Saúde, Desenvolvimento e Democracia: O primado do Interesse Público na Saúde e Direito Universal ao Acesso a Serviços de Saúde de Qualidade.

Uma agenda política da saúde deve buscar dialogar com os conceitos e proposiçóes que incidirão na Cúpula dos Povos, conforme apontado no item anterior, indo para além de junho de 2012, fortalecendo denúncias, reivindicaçóes e alternativas em construção no contexto brasileiro e internacional. Dentre eles, podemos destacar atividades como a Assembleia dos Povos, as Toxic Tours, que levarão vários participantes internacionais e brasileiros a conhecer as mazelas do desenvolvimento no Rio de Janeiro e Duque de Caxias, o movimento pelo banimento do amianto do país e tantos outros que articulam lutas locais presentes nos territórios com movimentos e análises globais. Para além das denúncias e contestações, várias alternativas em curso já revelam significado da transição para outros mundos possíveis, como as açóes e mobilizaçóes pela agroecologia, a economia solidária e a defesa dos bens comuns.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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