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Desafios da operacionalização do Método da Roda: experiência em Sobral (CE)

Operational challenges of Wheel Method: experience in Sobral (CE)

Resumos

O texto discorre sobre os atuais desafios institucionais da operacionalização do Método da Roda, tendo como cenário o Sistema Municipal de Saúde de Sobral (CE). Considera-se que as Rodas representam possibilidade de construção de espaços coletivos e de constituição de sujeitos, com capacidade de análise e de intervenção como estratégias de democracia institucional. Na sua operacionalidade, ficou evidente o predomínio da dimensão administrativa, em detrimento da pedagógica, da política e da terapêutica. Os trabalhadores expressaram pouco engajamento político e afetivo, o que tem sido realizado em uma relação demanda-execução, com absenteísmo de algumas categorias profissionais.

Avaliação em saúde; Gestão em saúde; Organização e administração; Atenção Primária à Saúde


The paper is about the current institutional challenges of the operationalization of the Wheel Method, having as background the Municipal Health System of Sobral, Ceará. It is considered that the Wheels represent the possibility of building collective spaces and of constitution of subjects, with capacity of analysis and intervention as institutional democracy strategy. In its operation, it was evident the predominance of administrative dimension, in detriment of the pedagogical, politics and therapeutics. Workers expressed little political and emotional engagement, which has been held in a demand-execution relationship, with absenteeism of certain professional categories.

Health management; Democracy; Family Health Strategy


Introdução

Durante as décadas de 1970 e 1980, forjou-se no País o Movimento da Reforma Sanitária (MRS), com a afirmação de que 'saúde é democracia'. No entanto, ao longo desses anos, no que se refere à consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), tal experiência demonstrou o quanto é complexa a implantação de um sistema de serviços de saúde em um país com dimensões continentais, com profundas desigualdades e em um contexto sociopolítico bastante adverso, sob o domínio de políticas neoliberais. Em parte, pelas dificuldades enfrentadas ao reconfigurar a organização dos serviços, em defesa do direito à saúde, sendo esta compreendida como "[...] expressão de um conjunto de condições saudáveis - condições de vida e de trabalho - das quais não se poderia abrir mão" (CECCIM; FERLA, 2008CARDOSO, I.M. "Rodas de educação permanente" na Atenção Básica de Saúde: analisando contribuições. Rev. Saúde Soc., São Paulo, v. 21, supl. 1, p. 18-28, maio 2012., P. 444). Por outro lado, somam-se a tais fatores os desafios de uma transformação social, na inserção da gestão democrática.

O SUS, enquanto política democrática possui o desafio de constituir modos de administração que atendam aos seus princípios e tencionem novas lógicas no setor saúde. Todavia, essa não é uma tarefa simples, pois é interessante observar que alguns temas continuam como desafios durante esses 25 anos em que se instituiu o SUS como política pública. Podemos citar, por exemplo, a descentralização e o financiamento do sistema de saúde como dimensões que permanecem sempre em debate, ainda que com novas complexidades de problemas e alternativas de soluções, ou seja, o SUS aparece como processo tencionado e incompleto, na conjuntura do Estado brasileiro.

Desse modo, para elaborar alternativas aos modelos predominantes sobre a gestão em saúde, é necessário o fortalecimento do SUS. O que é, porém, gestão em saúde? Para Paim (2003OLIVEIRA, L. C.; PINHEIRO, R. A participação nos conselhos de saúde e sua interface com a cultura política. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2455-2464, 2010., P. 559)

[...] a gestão em saúde pode ser reconhecida como a direção ou condução de processos político-institucionais relacionados ao sistema de saúde, eminentemente conflituosos ou contraditórios, ainda que nos níveis técnico-administrativo e técnico-operacional desenvolva ações de planejamento, organização, gerenciamento, controle e avaliação dos recursos humanos, financeiros e materiais empregados na produção de serviços de saúde. Nessa perspectiva, a noção de gestão se aproxima da proposta de administração estratégica (OPS/OMS, 1992), na qual podem ser valorizados os componentes vinculados à distribuição dos diferentes tipos de poder em saúde e à construção de viabilidade das intervenções desenhadas.

Os modelos hegemônicos de gestão do sistema de saúde são organizados de forma centralizada por normas, protocolos e programas, com sujeitos operando em uma lógica normativa. Esse aspecto traz um grande desafio à gestão, já que a intervenção em saúde depende do estabelecimento de relações, das tecnologias leves (MERHY, 2005MARTINEZ, M. C.; PARAGUAY, A.I.B.B. Satisfação e saúde no trabalho - aspectos conceituais e metodológicos. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, v. 6, p. 59-78, dez. 2003.) e da configuração de redes cooperativas, o que não pode ser respondido com a estrita normalização do processo de trabalho. Mesmo porque a ação é, por definição, normativa, residindo nisso a sua dimensão política, a qual não pode ser, de forma alguma, isolada das implicações nas quais se tecem as relações humanas.

Cecílio (1999) destaca o fato de que, na atualidade, há uma valorização de modelos de gestão em saúde com recorte democrático, descentralizado, com ênfase na autonomia e na direção colegiada em todos os níveis da organização. Dessa maneira, as principais características das propostas de gestão em saúde são: organização, no sentido do compromisso e da direcionalidade, na linha dos contratos de gestão; organogramas horizontalizados; trabalho em equipe; profissionalização da gerência; grupos de apoio à gestão; gestão colegiada em todos os níveis; área de desenvolvimento institucional ou de planejamento estratégico; adoção de 'caixa de ferramentas'; e adoção de tecnologias leves.

Para o setor saúde, entretanto - apesar da política de saúde ter historicamente se construído nas bases filosóficas da democracia -, tal modelo de gestão representa um enorme desafio, pois significa romper com o autoritarismo e o patrimonialismo presentes no Estado brasileiro, com as implicações normativas da divisão social do trabalho, heranças do modelo da administração científica taylorista; e implantar a gestão feita pelo coletivo, ou a cogestão, cuja mudança se configura como responsabilidade ética na consolidação do SUS.

A cogestão colocar-se-ia, assim, como dispositivo de redistribuição do poder nas relações sociais, afirmando, definitivamente, a participação política como estratégia de democratização das instituições. Nesse sentido, trata-se de um dispositivo democrático para transformar os espaços institucionais não mais em lócus de aprisionamento do virtual, mas em rede cooperativa, onde ocorre a modulação ética das forças que o constituem, já que a vida social nos solicita permanências e territórios institucionais (GUIZARDI; CAVALCANTI, 2010GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. v. 3.).

Campos (2010B) defende a necessidade de repor o sujeito no centro da vida para pensar a gestão em saúde por meio do Método de Cogestão de Coletivos. Ele aponta para uma reflexão profunda sobre a sociedade e propõe agir na contramão de forças hegemônicas, pressupondo novos fluxos de poder e valores constitutivos da existência comum.

A proposta de cogestão de coletivos, também denominada Método da Roda ou Método Paidéia, é a fundamentação de um novo modo de fazer a cogestão de instituições, o que implica formação de sujeitos com capacidade de analisar e intervir no campo do trabalho, rompendo com a racionalidade gerencial hegemônica, da cisão entre a formulação e a execução. Esse método advém de uma postura metodológica que busca a reformulação dos tradicionais mecanismos de gestão. Traz como pressuposto a ideia de que as funções de gestão partem de sujeitos com distintos graus de poder e saber, porém, com potencial para o trabalho compartilhado, que permite aumento da autonomia e implicação dos sujeitos, produzindo um efeito Paidéia, num processo subjetivo e social no qual as pessoas ampliam suas capacidades de compreensão dos outros, de si mesmas e de contextos, aumentando a capacidade de agir (CAMPOS, 2003).

Dessa maneira, a gestão do setor saúde tem como grande desafio o fortalecimento dos sujeitos e o avanço de uma práxis de libertação. Para Boff (1980BOFF, L. Teologia do cativeiro e da libertação. São Paulo: Circulo do Livro S.A.: Vozes, 1980., P. 37),

libertação, como a própria semântica sugere, constitui-se como ação criadora de liberdade. É uma palavra processo [...] palavra-ação intencionalmente orientada a uma práxis que liberta de e para.

Não é a liberdade do individualismo, mas do aprofundamento da consciência e do compromisso com a mudança pessoal e social.

Nessa perspectiva, autonomia pode ser referida pelo grau de iniciativa e pelo exercício do poder de decisão, relacionado à descentralização e à formação de equipes, influenciada pelas estruturas formais e relações informais no interior do sistema de saúde. É uma categoria síntese do sujeito e indispensável para compreender como as relações na gestão fortalecem ou não a construção de sujeitos. Assim, autonomia, na gestão, está interligada ao saber e ao sentir a corresponsabilidade e o compromisso com a criação de novos modos coletivos de produzir saúde.

O conceito de participação social fortalece a ideia de sujeitos como pessoas que se apropriam e transformam a realidade da saúde, tornando-se corresponsáveis. Remete, então, à construção coletiva, haja vista a conscientização dar-se através da presença do outro, da interação social (FREIRE, 1979FARIA, J.H. Gestão Participativa: relações de poder e de trabalho nas organizações. São Paulo: Atlas, 2009.).

Essa participação é uma ação consciente em favor da pessoa e da coletividade, na perspectiva da cidadania que gera compromissos, estando vinculada ao engajamento solidário de atores com a mudança social. Freire (1979) ensina que compromisso exige o complemento 'de quem' e 'com o quê'. No caso deste texto, pensa-se o compromisso das pessoas que participam de uma gestão com princípios democráticos com um projeto de inspiração socialista, que é o SUS.

Para Campos (2010B, P. 79), as Rodas são

espaços coletivos e concretos - de lugar e tempo - destinados à comunicação - escuta e circulação de informações sobre desejos, interesses e aspectos da realidade -, à elaboração - análise da escuta e das informações - e tomada de decisão - prioridades, projetos e contratos.

Neles, os atores sociais expressam seus desejos e interesses, confrontando-os entre si e com a realidade, para que desses processos de luta/negociação surjam contratos potentes para orientar a produção de bens ou serviços.

Um desenho metodológico de operacionalização do Método da Roda, proposto por Campos (2010b) para efetivação de colegiados, propõe quatro dispositivos que tentam indicar um novo horizonte na maneira de pensar os coletivos, as pessoas, os sujeitos ativos no processo da vida. Trata do sujeito e do objeto como inseparáveis, conforme a teoria do construtivismo social.

Na sua operacionalização, o Método da Roda produz efeitos em quatro planos dependentes: um político-social, subjetivo-terapêutico, pedagógico e outro estritamente gerencial.

A dimensão política do método trabalha a categoria de cogestão, com a ideia de poder compartilhado, não exercido de forma solitária e isolado; há um forte componente do poder, da ciência política, na perspectiva do conjunto dos participantes e não somente por uma elite. Portanto, os colegiados devem ser compostos por diversos representantes: governantes, usuários, trabalhadores e outras organizações.

Para gerir ou governar, sempre há disputas de poder, bem como a existência legítima de vários agrupamentos de interesses, diversos projetos e diferentes sujeitos. Nesse sentido, os sujeitos estariam obrigados a negociar os conflitos, aprender a compor 'blocos' de interesses e, principalmente, aprender a acumular poder sem destruir a democracia.

Campos (2010B) propõe instituir uma nova racionalidade na Gestão de Coletivos, reconhecendo essa multiplicidade de lógicas e procurando lidar com a polarização de efeitos decorrentes, o que é inerente aos colegiados organizados, sempre tomando os trabalhadores como sujeitos sociais em processo permanente de constituição.

A cogestão propõe arranjos voltados a ampliar a capacidade de direção dos trabalhadores e construir uma nova dialética entre autonomia e controle social nos coletivos organizados. Em uma prática de aprender a ter poder, ela é necessária para a construção da liberdade e da justiça, para além da função pedagógica. É protagonista dos processos de trabalho de forma implicada, proporcionando satisfação e desenvolvimento de uma personalidade humana, constituindo, em si, um processo terapêutico.

A função administrativa dos espaços coletivos cabe aos colegiados e/ou às unidades de produção comprometidas com a operação concreta no cotidiano, a gestão do processo do trabalho, correção de problemas e redefinição de rumos. Embora se opere na perspectiva da gestão participativa, faz-se necessário ao papel do coordenador algo entre um analista e um líder, um misto de racionalidade e capacidade de liderança (CAMPOS, 2010B).

A definição 'espaço coletivo' é como um conceito, ou melhor, um arranjo organizacional montado para estimular a produção de coletivos organizados, que podem tomar a forma de equipes de trabalho, conselhos de cogestão, assembleias, colegiados de gestão, reuniões e unidades de produção. Independentemente da forma adotada, corresponde a espaços concretos de lugar e tempo, destinados à escuta e à circulação de informações, bem como à elaboração e à tomada de decisões, onde se possa analisar fatos, participar do governo, educar-se e reconstruir-se como sujeito.

Em 2001, com base nessa teoria, a Secretaria da Saúde de Sobral (CE) implantou o Método da Roda como o novo modelo de gerenciamento e gestão da rede pública, instituindo dois colegiados organizativos: as reuniões semanais de gerentes dos Centros de Saúde da Família (CSF), com a Coordenação da Atenção Básica, que ocorrem toda quarta-feira, para discutir, deliberar e formular políticas públicas, denominadas 'reunião dos gerentes' por caracterizarem um momento administrativo e de planejamento; e as Rodas dos CSF, também semanais, nas quintas-feiras, as quais ocorrem simultaneamente em todas as unidades de saúde, com a obrigatoriedade de participação de todos os trabalhadores.

Decorridos 12 anos desde a institucionalização das Rodas nos CSF de Sobral (CE), este se apresenta como um cenário fértil para aprofundar os desafios da práxis democrática dentro da gestão, tendo como objetivos: discorrer sobre os desafios e limites do Método da Roda no município de Sobral; identificar as mudanças ao longo do tempo; e descrever a participação dos trabalhadores na construção de autonomia e produção de cogestão do serviço de saúde.

Trilhas metodológicas

A pesquisa é caracterizada como estudo descritivo, de natureza qualitativa, utilizando como técnicas para produção de dados o grupo focal (GF), as entrevistas e a observação sistemática.

Foram cenários do estudo dois CSF de Sobral (CE), classificados como CSF 1 (zona urbana) e CSF 2 (zona rural), onde ocorrem as Rodas dos CSF, possuindo, respectivamente, quatro e duas Equipes de Saúde da Família. Os CSF foram escolhidos por terem sido as primeiras unidades a implantar a Estratégia Saúde da Família (ESF) e por serem as unidades com maior número de equipes tanto da zona urbana quanto da zona rural.

O estudo contou com 40 informantes pertencentes às seguintes categorias: dez gerentes dos CSF, oito Agentes Comunitários de Saúde (ACS), cinco enfermeiros, um médico, um dentista, um fonoaudiólogo, um terapeuta ocupacional, quatro agentes administrativos, quatro técnicos de Enfermagem, quatro auxiliares de serviços gerais e um gestor da Atenção Básica.

A decisão de incluir os gerentes como informantes ocorreu em virtude das dimensões estratégicas que esses profissionais têm perante o serviço, sendo o elo entre a gestão municipal e os trabalhadores de saúde. Com este segmento foi realizado um grupo focal. Com os demais trabalhadores, a metodologia foi adaptada a cada realidade e interesse em contribuir, sendo organizada em Entrevista Coletiva (EC) e Entrevista Individual (EI), com representação de cada categoria profissional das unidades que foram campo de observação sistemática. Objetivou-se escutar cada categoria profissional do CSF, como, por exemplo, categorias numerosas como ACS, auxiliar administrativo, técnicos de enfermagem. Para esse propósito, realizou-se um sorteio a partir da lista de profissionais do serviço.

A observação sistemática foi realizada em um período de dois meses, em cada CSF, e ocorria semanalmente nos momentos das Rodas. Cabe esclarecer que no dia de realização da Roda não há atendimento na unidade naquele horário, sendo facultado a todos os trabalhadores estarem presentes, pois representa um momento de socialização e integração, bem como espaço de trocas de informações provenientes da reunião de gerentes.

Toda a observação foi registrada no diário de campo, instrumento no qual o investigador anota todas as informações sobre conversas informais, comportamentos, gestos, expressões a respeito do tema pesquisado (MINAYO, 2010MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2005.).

Na análise dos resultados, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo proposta por Laurence Bardin, em que o pesquisador procura estabelecer uma

correspondência entre as estruturas semânticas ou lingüísticas e as estruturas psicológicas ou sociológicas (por exemplo: condutas, ideologias e atitudes) dos enunciados. (BARDIN, 2010BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977., P. 40).

A pesquisa cumpriu os requisitos da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e recebeu o parecer favorável do Comitê de Ética da Universidade Estadual do Ceará, nº 00916512.0.0000.5534.

O Método da Roda: entre a teoria e a realidade

O Método da Roda ou Paidéia propõe a produção de saúde com as pessoas e não sobre elas, sendo de fundamental importância aumentar a capacidade de análise e de intervenção dos grupamentos humanos (CAMPOS, 2010B). Assim, analisar os efeitos e a percepção dos trabalhadores sobre o Método da Roda para a democracia institucional é mais do que apontar estratégia de gestão democrática, pois aprofunda suas reflexões sobre os desafios presentes dentro de instituições que ainda não conseguem superar os modelos hegemônicos da administração.

A Roda tem uma potencialidade pelo seu próprio método e, principalmente, por ter/ser um dispositivo que propicia ativação de subjetividade, potencializa a autonomia e o protagonismo dos indivíduos e amplia a capacidade de análise e de intervenção das pessoas e dos coletivos. Acrescido a isso, a Roda parte do pressuposto de que a produção de uma obra é o trabalho de um coletivo e que as pessoas são construídas em virtude da interação dos sujeitos com o mundo e dos sujeitos entre si. Desse modo, não se pode analisar as Rodas em si, pois é necessário fazer uma reflexão sobre como os trabalhadores estão potencializando esse espaço e quais são os desafios para a construção da autonomia dentro das instituições.

O efeito Paidéia seria o processo subjetivo e social no qual as pessoas ampliam suas capacidades de compreensão de outros, de si mesmas e de contextos, aumentando a capacidade de agir. Isso advém de uma postura metodológica que compreende o método e ativa a função Paidéia, na busca da reformulação dos tradicionais mecanismos de gestão. Tem como pressuposto que as funções de gestão partem de sujeitos com distintos graus de poder e saber, porém, com potencial para o trabalho compartilhado, o que permite aumento da autonomia e implicação dos sujeitos (CAMPOS, 2003).

Portanto, os atores sociais implicados com a experiência de cogestão no município de Sobral compreendem a Roda como espaço propício para a construção coletiva do sistema de saúde, no qual os trabalhadores opinam, planejam e discutem os problemas da comunidade.

É um momento de cogestão onde realiza as discussões coletivas [...] toda equipe apresenta as dificuldades e, assim, podemos realizar um planejamento e a Educação Permanente. É um momento de socialização de outros serviços do município aos trabalhadores. (EC - nível superior do CSF 1).

A Roda "... é para se discutir os problemas da comunidade e da unidade de saúde, já que ela é voltada para os profissionais na área da saúde" (EC - ACS, CSF 1).

Inicialmente, as Rodas significavam espaços para uma gestão democrática e participativa, palavras-chave para a construção do sujeito, pois, como já referido, a democracia e a participação se associam nesse trabalho diretamente com a possibilidade de maior aprofundamento da consciência e da capacidade de comprometimento.

Em pesquisa realizada no município de Sobral, intitulada 'Um novo agir em gestão de saúde pública: a implantação do método de cogestão de coletivos na Secretaria de Desenvolvimento Social e Saúde de Sobral', Assis (2004)ASSIS, A.S. Um novo agir em gestão de saúde pública: a implantação do método de co-gestão de coletivos na secretaria de desenvolvimento social e saúde de Sobral. 2004. Dissertação (Especialização) - Universidade Estadual Vale do Acaraú, Sobral, 2004. identificou que o componente administrativo, na visão da equipe, foi o componente que mais enriqueceu o processo de trabalho. A tomada de decisões tornou-se menos complexa devido ao caráter participativo adotado, de forma que passou a atender aos anseios dos profissionais e usuários.

Todavia, há um contrassenso, pois, ao mesmo tempo que ressaltam as potencialidades da Roda como espaço de gestão democrática, indicam que houve transformações ao longo do tempo em sua organização, condução e ocupação, que a distanciaram da proposta ideológica do 'Método de Cogestão de Coletivos', como é descrito no relato a seguir:

A Roda é um espaço de discussão da unidade, de avaliar, mas hoje a Roda se resume de repasse de informações da reunião de gerente. Não há planejamento na Roda, tornando-as sempre com pautas extensas diretivas que tomam espaços das pautas locais, ficando inviável a gerente fazer os dois momentos (pauta externa e interna). (EC - Nível Superior, CSF 2).

As mudanças de configuração das Rodas contribuíram para a percepção das mesmas como espaço administrativo e de cobrança, gerando, assim, o desestímulo entre alguns trabalhadores:

Na verdade, serve para dar os informes e informativos das demandas da gerência, na qual são passada as demandas para executarmos. (EC-ACS, CSF 2). A gente vai para a Roda achando que é mais uma demanda, cobrança, sobrecarga de função. Tornou-se espaço de cobrança e de maior demanda! (EC - Nível superior, 4, CSF 2).

O preenchimento da Roda com as demandas, tarefas e informações advindas da reunião de gerentes, todas tratadas como indispensáveis, traz acúmulo de atividades e suplanta pautas das unidades; contribui significantemente para o desvio da sua principal função - a de reflexão sobre o processo de trabalho na perspectiva da cogestão; e reproduz o modelo da alienação do trabalho através da divisão técnica e social do trabalho entre o pensar e o fazer, entre o planejar e o executar.

As pautas são sobrecarregadas com temas que vêm da reunião de gerente, como PMAQ [Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade], PSE [Programa Saúde na Escola], Sisvan [Sistema de Vigilância Alimentar Nutricional]. O tempo à tarde é curto para a quantidade de assunto. Como não há atendimento, os profissionais desejam que a Roda termine logo, para irem embora cedo. A reunião fica resumida em informes. (EC - Agente Administrativo 1, CSF 2).

Assim, fica evidente que, ao longo desses 14 anos, o projeto foi se modificando. E, como as Rodas acontecem um dia após a reunião de gerentes, estes trazem pautas/repasses que simbolizam a demanda municipal, denotando sua organicidade unidirecional, da gestão municipal para os CSF. Há uma descaracterização da função dos espaços coletivos do seu real papel - a decisão compartilhada -, prevalecendo a lógica administrativa do controle, ou seja, a cisão entre execução e decisão, contrariando os princípios do método. Como Campos (2007) critica

As relações da gestão muitas vezes também escamoteiam a produção de autonomia e escondem certo autoritarismo heteronímico. Decisões políticas e técnicas são dadas como verdades, e impostas, baixadas sobre equipes e gestores de serviço como se fossem regras divinas e não resolução de certa administração. (CAMPOS, 2007, P. 682).

Na percepção dos trabalhadores, a Roda foi evidenciada como espaço propício para formação coletiva dos trabalhadores e da política do SUS. No entanto, percebem entraves no âmbito de sua implementação em virtude do predomínio da dimensão administrativa, em detrimento da pedagógica, política e da terapêutica. 'As Rodas dos CSF tornaram-se espelho das reuniões de gerentes', o que imprimiu à iniciativa uma característica de reunião administrativa, semelhante ao modelo tradicional, pois desconhecem o Método da Roda em sua teoria e filosofia, aliado a uma incipiente conduta de democracia institucional. Essa constatação fora muitas vezes expressa pelos trabalhadores. As Rodas 'são espelho da reunião de gerente'. Essa afirmativa é menção às reuniões que as gerentes têm com a coordenação da atenção primária no dia anterior às Rodas do CSF, quando são demandadas muitas atribuições para os territórios. No grupo focal com as gerentes, elas afirmaram.

Hoje, nossa Roda é um espelho da Roda de gerentes [...]. Nas reuniões, a gente recebe muitas demandas do município e do estado [...]. Acaba a gente repassando na Roda... e tenho percebido que as Rodas têm sido uma tarde cansativa de trabalho, com muitas decisões e informações. (GF-Gerente).

Na experiência estudada, a organicidade das Rodas era modelada pela reunião de gerente, como já visto, ou seja, havia a reprodução de um modelo vivenciado. Observamos, então, um contrassenso na organização da gestão da saúde no município, com duas propostas distintas para o mesmo grupo. As reuniões de gerentes não eram caracterizadas como 'Roda', mas eles eram orientados a promover as Rodas nas unidades. Se não havia canais de escuta dentro do sistema municipal de saúde, nos níveis hierárquicos superiores, como poderiam se reproduzir em outros níveis? Como fazer uma Roda de cogestão nos CSF se não havia cogestão dentro do sistema municipal? Dessa forma, a cogestão tendia a se restringir a processos incipientes e sem dimensões de transformações das políticas de saúde.

Essa constatação também parte do gestor da Atenção Básica, quando afirma que 'as Rodas estão muito longe da teoria de gestão, que se tornaram hoje exemplos e espelhos da reunião de gerente'. Percebemos que há um processo de insatisfação (gerentes-gestão e trabalhadores-gestão), principalmente pelo baixo poder de escuta por parte da gestão das contribuições e demandas provenientes dos territórios. O problema é verbalizado como um sofrimento pelo gerente (o momento em que cada reunião ocorre) e reverbera nas Rodas dos CSF, como foi expresso no depoimento a seguir:

Falta na reunião de gerente um espaço de escuta. Nós precisamos ser escutados. Quando tem espaço para manifestarmos, somos atropelados [...]. Tem uma crítica que a gente recebe bem, que é a falta de comportamento das gerentes na reunião, porque a gente chega carregada, e como não tem um momento... (GF-Gerente).

Tal verticalização da gestão é reconhecida e esclarecida, na opinião do gestor da Atenção Básica, pela capilaridade que a ESF tem nos territórios de Sobral, reconhecendo que surgem pautas inevitáveis que a gestão tem que socializar e demandar para os territórios, além dos imprevistos, quando é solicitada por diversos órgãos e/ou políticas intersetoriais que desejam apoio da equipe de saúde para as suas campanhas específicas, a exemplo da vacinação da febre aftosa, do Bolsa Família etc. A própria dinamicidade das políticas de saúde exige readequação constante do processo de trabalho por novos protocolos, fluxos e organizações, tais como o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), o Cartão Nacional do SUS (CADSUS), entre outros, que não podem ser suprimidos da agenda dos serviços de saúde.

Outro aspecto que merece reflexão é o engajamento político e afetivo dos trabalhadores na realização de muitos programas/projetos, o que tem sido realizado em uma relação demanda-execução que reprime a criação coletiva e o espaço para que os trabalhadores possam refletir e avaliar as atividades que já faziam parte de suas atribuições, dando uma sensação de acúmulo de atividades e atraso das metas e ações, anteriormente programadas com a equipe e com a comunidade.

Uma consequência imediata disso é a sobrecarga de atribuições dos profissionais da ESF, que só aumenta e tem ocasionado a destituição do sentido do trabalho. Enquanto outro modo de gerir e produzir não é hegemonizado, os trabalhadores têm atuado de forma mecânica, repetitiva e desconectada de um processo global de produção. A fragmentação do processo mantém os trabalhadores em posição sempre defasada com relação à sua totalidade, ocasionando alienação, renúncia, trabalho como repetição, e não como espaço de criação. Portanto, quando o trabalho se torna um constrangimento à vontade humano e fica destituído de sua potência instituinte, ele é, portanto, um trabalho mortífero! (BRASIL, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de humanização da atenção e gestão do SUS. Brasília, DF, 2009.).

Aliada a essa discussão, há também uma ligação entre 'satisfação e saúde mental' percebida nos depoimentos dos gerentes e dos trabalhadores, para quem os momentos das Rodas se tornaram um espaço sem criatividade, de cobrança e desmotivação. Em alguns discursos, houve a declaração de que participam porque 'são obrigados' e que, nesses momentos, suspendem suas atividades para estarem em Roda com os demais. Para Martinez e Paraguay (2003)GUIZARDI, F. L.; CAVALCANTI, F.O. A gestão em saúde: nexos entre o cotidiano institucional e a participação política no SUS. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 14, n. 34, p. 633-645, set. 2010., a satisfação com o trabalho está diretamente ligada à saúde mental. O trabalho torna-se perigoso para o aparelho psíquico quando se opõe à livre atividade, quando a liberdade para organização do trabalho é limitada, opondo-se aos desejos do trabalhador, gerando aumento da carga psíquica e abrindo espaço para o sofrimento no trabalho.

Se um trabalho é livremente escolhido e organizado, oferece vias de descarga psíquica, sendo um trabalho equilibrante e estruturante. Se não permite essa liberação, a energia psíquica acumulada torna-se fonte de tensão e desprazer; a carga psíquica origina a fadiga e, a partir daí, a patologia, gerando um trabalho fatigante (DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYET, 1994CECILIO, L.C.O. Autonomia versus controle dos trabalhadores: a gestão do poder no hospital. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 315-329, 1999.). Em outras palavras, quando o trabalho permite o alívio da carga psíquica, é um instrumento de equilíbrio e fonte de prazer para o trabalhador. Quando não permite, dá origem ao sofrimento e à patologia. Esse sofrimento psíquico, embora de forma velada, apareceu em vários depoimentos.

A ausência da cultura de participação, as metodologias utilizadas na condução das Rodas e a restrição de espaços de escuta levaram ao absenteísmo de algumas categorias de trabalhadores, como médicos, dentistas, vigias, auxiliares de serviços gerais e motoristas. Isso fica expresso nos depoimentos a seguir:

Seria interessante que tivesse a participação de 100% dos funcionários, mas nem sempre tem. A maioria dos que participam são os ACS, auxiliares de enfermagem e os enfermeiros, deixando a desejar a participação dos demais, como: vigias, auxiliar de serviços gerais e motoristas. (EC-ACS, CSF 2).

As Rodas estão tão, assim, tão desmotivantes, que você vai por obrigação. Eu preferia estar atendendo. Você pode perceber que nem mais o motorista e o vigia participam das Rodas. (EC-Nível superior, CSF 2). [...] No dia da reunião de Roda, eu preferiria ir para casa ou, então, estar organizando o Same [Serviço Ambulatorial Médico e Estatístico]. [...] Às vezes, a gente fica entediado. (Agente Administrativa 1, CSF1).

As Rodas tinham uma predominância de assuntos voltados para a organização de rotinas concentradas em alguns trabalhadores (médicos, enfermeiros, dentistas e agentes comunitários de saúde), os quais conseguiam descrever esse espaço como uma democracia institucional e atuavam com maior liberdade pelo caráter do trabalho, que lhes conferia relativa autonomia. Apesar de presentes, no entanto, a participação das demais categorias profissionais era reduzida, uma vez que seus processos de trabalho não eram discutidos. "A gente que trabalha no Same não tem participação, já que a reunião é toda voltada para os médicos, enfermeiros e agentes de saúde" (Agente Administrativa 1, CSF1).

Segundo Campos (2010A), o propósito ambicioso desse método é construir novas correlações de forças que diminuam as diferenças de poder entre os atores sociais e sugerir dispositivos que consolidem situações mais equilibradas de poder.

Na Roda, fala muita coisa que a gente não entende. Eu acho que a nossa opinião dentro da Roda não é aceita, pois quando falamos notamos que as pessoas não estão dando muita importância. Eu já observei que, quando estamos falando, a gerente, os médicos e os demais profissionais nem prestam atenção. (Auxiliar de Serviços Gerais, CSF 1).

Buscou-se, junto aos gerentes, compreender os motivos da não participação com base na pergunta: 'Por que alguns trabalhadores não participam mais das Rodas?'. Segundo uma das participantes, 'os profissionais que atuam na ESF não compreendem a sua essência; eles (médicos) não têm perfil! Estão ali para atender e pronto!', ou seja, há, ainda, um predomínio da formação voltada ao modelo biomédico.

Há duas reflexões sobre a ausência dessas categorias. Uma se refere aos médicos e dentistas, por uma flexibilidade da gestão por causa da dificuldade de interiorização desses profissionais, bem como por um direito garantido à categoria médica pela Portaria 2.488/2011 de atuarem 32 horas na ESF, que os permite optar por se ausentar no dia da Roda. Já com relação aos trabalhadores dos níveis fundamental e médio, pela divisão técnica do trabalho, eles não atuam diretamente no processo saúde-doença, e, com o passar dos anos, as pautas foram concentradas em rotinas, protocolos de saúde direcionados aos enfermeiros e ACS. Assim, as outras categorias passaram a se perceber desnecessárias durante a Roda, como demonstra o trecho abaixo:

Os profissionais não querem participar da Roda, principalmente os dentistas e médicos. Eles acham que é besteira e que não tem nada direcionado a eles. Quando precisamos da participação deles na Roda, fazemos um convite formal. [...]. Alguns profissionais dizem que preferem estar trabalhando a estar na Roda. (GF- Gerente).

Compreende-se que a participação não se reduz a estar presente em um encontro. Esses trabalhadores podem, no cotidiano, estar produzindo gestão participativa, mas acredita-se que a presença é uma das condições que potencializam uma participação plena de sentido, advinda da consciência em favor de si e do coletivo, e que possibilita o sentimento de pertencimento a um projeto coletivo e o fortalecimento do valor pessoal, a ser traduzido na capacidade de compartilhamento do trabalho. E, quando isso ocorre, é sinal de democracia. De acordo com Campos (2007), ter acesso às informações e tomar parte em discussões e na tomada de decisões permitem o exercício compartilhado do poder, trabalhando o sujeito e as instituições, pois um interfere no outro.

A proposta das Rodas é a construção de mudanças nos modos de gerência e nas práticas de saúde, contribuindo para tornar o atendimento mais eficaz/efetivo e motivador para as equipes de trabalho. A cogestão é um modo de administrar que inclui o pensar e o fazer coletivos, sendo, portanto, uma diretriz ético-política que visa a democratizar as relações no campo da saúde. Se essa essência não for encontrada, ela não alcançou o seu potencial e o valor de uso pelo coletivo organizado.

Durante a observação dos participantes nas Rodas e as entrevistas com os diversos trabalhadores, concluiu-se que as Rodas estão mais próximas de uma gestão participativa restrita e consultiva do que do colegiado de cogestão. Conforme descreve Faria (2009)DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994., a gestão participativa restrita e consultiva caracteriza-se por ser restrita ao local do trabalho, onde se reduz à apropriação do saber do trabalhador na operacionalização de tarefas, em muitos momentos, chamado a dar sugestões de melhoria do trabalho. É um modelo de gestão participativa construída ideologicamente pelo capital como estratégia de dominação e controle, e não como iniciativa e autonomia do trabalhador.

Foi constatado que poucos trabalhadores da saúde conheciam o Método da Roda em sua concepção teórica e filosófica. Em nossa compreensão, esse fato, associado a uma incipiente cultura democrática nas instituições de trabalho e decisões da gestão compartilhada, instabilizou a proposta do método. Como cita essa entrevista:

Nunca teve momentos de informação sobre o Método da Roda, mas, às vezes, quando a gerente quer reclamar porque alguém está faltando a Roda, ela explica o que é a Roda para valorizar. Mas, infelizmente, quem deveria ouvir nem está lá! (EC - Nível superior, CSF 2).

O desconhecimento sobre o método era reconhecido pelos gerentes, os quais sugeriram que sua apropriação poderia ser temática da Educação Permanente (EP) para os trabalhadores do sistema municipal de saúde de Sobral, inclusive para eles, que são facilitadores das Rodas nos territórios.

Está faltando mesmo todos conhecerem sobre o Método da Roda, principalmente os gerentes, onde a grande maioria são novatos. Estão precisando conhecer, literalmente! Seja em um momento de fazer uma oficina, com todos os gerentes e trabalhadores, em todas as EP de todas as categorias, que sejam discutidos sobre a Roda. (GF- Gerente).

Um pressuposto da EP, segundo Roschke, Brito e Palacios (2002)PAIM, J.S. Reforma sanitária e os modelos assistenciais. In: ROUQUAYROL, M. Z.; ALMEIDA FILHO, N. (Org.). Epidemiologia & saúde. Rio de Janeiro: Medsi, 2003. p. 455-466., é a aprendizagem significativa, que promove e produz sentidos. Ela deve acontecer no trabalho, onde o aprender e o ensinar se incorporam ao cotidiano das organizações e ao trabalho, de modo descentralizado, ascendente e transdisciplinar.

Um exemplo da indissociabilidade do Método da Roda com a EP foi como as 'Rodas de Educação Permanente' foram aplicadas na rede de Atenção Básica pela Secretaria Municipal de Saúde de Vitória/ES. Essas Rodas tinham como princípios norteadores a Política Nacional de Educação Permanente, na vertente da educação; o Método da Roda, na vertente da gestão; e a Política Nacional de Humanização, na vertente do cuidado (CARDOSO, 2012_______. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003.).

As Rodas dos CSF de Sobral têm organicidade instituída como instrumento de gestão, com local, hora e calendário fixos. Na sua implantação, em 2001, houve vários momentos de discussão teórica para sua implantação nos CSF. Entretanto, com o passar do tempo, novos trabalhadores foram se inserindo para participar dos momentos de Roda dos CSF nas quintas-feiras, porém, sem a devida compreensão filosófica do Método de Cogestão de Coletivos.

Sales (2005)RUIZ, E. O fetiche da Roda. [Internet], 2010. Disponível em: <http://www.redehumanizasus.net/10193-o-fetiche-da-roda>. Acesso em: 13 set. 2015.
http://www.redehumanizasus.net/10193-o-f...
, ao estudar 'Os desafios da gestão democrática da sociedade', diz que não se pode pensar nem vivenciar a participação se as pessoas e os grupos não se reúnem para definir, conjuntamente, o que pretendem conseguir. As reuniões, em uma analogia com as Rodas, são uma estratégia de participação, se momentos de reflexão e decisão estiverem ocorrendo; caso contrário, são estratégias de negar a participação, quando passam a ser algo imposto ou um pretexto para chantagem institucional.

Para Gramsci (2000)FREIRE, P. Educação e mudança. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1979., a democracia começa a existir quando os grupos subalternos estão saindo da condição de dirigidos e assumindo a função de dirigentes, ou seja, a democracia diz respeito ao compartilhamento real ou exercício real do poder efetivado por distintos grupos sociais, o que se denomina gestão democrática. Na realidade brasileira, os grupos subalternos sempre foram mantidos pela tutela e/ou repressão, distantes do exercício do poder, o que revela uma cultura tradicional autoritária que continua disputando a hegemonia com uma cultura democrática, constituída há pouco mais de 20 anos, após longos períodos de ditadura (OLIVEIRA; PINHEIRO, 2010MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.).

A cidadania se faz lutando por ela. O sujeito se constitui na vida real e, particularmente, em gestão participativa. Não se produzem somente efeitos políticos ou administrativos, mas efeitos pedagógicos e subjetivos. Campos (2010B) argumenta que toda decisão, obrigatoriamente, passe pela discussão nos colegiados, no entanto, é observada nas Rodas outra lógica administrativa.

Qualquer mudança que se institui nos processos de trabalho determina mudanças não só na forma como trabalhamos, mas, também, nas maneiras de como pensamos o trabalho e, em muitas circunstâncias, a nossa própria vida. Talvez o primeiro grande impacto da Roda seja o vislumbre da possibilidade de mudança do trabalho e, por decorrência, da própria vida. Isso não é pouca coisa, mas, infelizmente, é sempre um primeiro passo. O problema é confundir o vislumbre da mudança com a própria mudança. Talvez seja isso que alimente o desalento de algumas pessoas, mergulhadas no equívoco do 'fetiche da Roda', de avaliarem que a mudança se tornou impossível, na medida em que a Roda não produziu, na prática, a mudança necessária (RUIZ, 2010ROSCHKE, M. A.; BRITO, P.; PALACIOS, M.A. Gestão de projetos de educação permanente nos serviços de saúde: manual do educador. Washington: OPS/OMS, 2002. (Paltex, n. 44). ).

Considerações finais

As Rodas são dispositivos de cogestão que apontam para uma nova prática democrática. No entanto, no contexto em que foram estudadas, tiveram como ponto de partida a concessão da gestão para os trabalhadores. Essa gestão foi instituída em uma ordem burocrática, aliada a uma obrigatoriedade, com distanciamento teórico e político do processo de cogestão, ausência de momentos de reflexão e avaliação, predomínio do componente administrativo, falta de organicidade política e autonomia do seu gerenciamento pela gestão municipal e a verticalização das decisões.

As evidências da predominância do componente administrativo revelaram as deficiências na implantação do método, que se transformou em mais uma ferramenta burocrática e não contribuiu para romper com o modelo gerencial hegemônico.

Em uma organização tradicional de trabalho, não há espaço nem tempo para escuta ou construção coletiva. Em geral, o lugar de tomada de decisão se restringe à cúpula da direção, na qual imperam os modelos autoritários e verticalizados. Constatamos que o modelo de cogestão, por meio das Rodas, não propiciou mudanças no modelo tradicional, da forma como ele foi implantado. Em Sobral (CE), continuou imperando a lógica taylorista, onde as decisões vêm do nível central da gestão, da Secretaria da Saúde e/ou de outras instituições parceiras da prefeitura, para serem implementadas pelas Equipes de Saúde, ou seja, em uma lógica não-espontânea, com base em estímulo moral.

A consequência imediata disso foi a diminuição/destituição do sentido do trabalho, que tende a ser realizado de forma mecânica, repetitiva e desconectada de um processo global de produção, perpetuando um modelo de alienação e não de criação.

Ainda há um paradoxo a ser superado, pois as Rodas são espaços coletivos de lugar e tempo onde os sujeitos possam construir uma singularidade. No entanto, o empoderamento dos trabalhadores ainda é tímido, pois poderiam ocupar esses espaços para a construção de novos fluxos de gestão, fortalecimento político, para tencionar novos modelos de organização do sistema, avaliação e monitoramento de indicadores locais de saúde, além de avançar nas discussões de efetivação de seus vínculos trabalhistas. Contudo, o ritmo imposto pela gestão é tão engenhoso que sobrecarrega a Roda, cerceando veladamente o tempo 'livre' para produção de novos processos de trabalho.

Pode-se inferir que o método da Roda teve uma implantação inicial, na realidade estudada, mas não houve uma continuidade para dinamizá-lo e renová-lo, assim como socializá-lo com os novos trabalhadores que foram sendo contratados. Isso provocou a institucionalização de uma rotina na qual a essência do método não foi vitalizada nem defendida, sem ter alguém que queira reconstruí-la. Com o passar do tempo, as reuniões se tornaram um espaço burocrático.

Para o real efeito Paidéia dentro de um sistema de saúde, são necessárias transformações estruturais e políticas. Desse modo, todo sistema de saúde teria que assumir uma postura democrática em sua concepção filosófica e prática, e não somente nas Rodas das Unidades Básicas de Saúde, como também deveria haver uma congruência de esforços no âmbito político para a desprecarização de vínculos, ampliação da EP e o exercício de nova práxis no campo do trabalho em saúde, rompendo, assim, com o atual modelo caracterizado pela submissão e pela dependência política.

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  • Suporte financeiro: não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    Abr 2015
  • Aceito
    Nov 2015
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