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Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha

RESUMO

O objetivo do presente trabalho é contribuir para uma melhor compreensão das percepções sobre descriminalização e legalização da maconha. Para isso, foi realizada pesquisa de opinião nacional, entre 07 de outubro e 26 de novembro de 2014, mediante 3.007 entrevistas telefônicas. Os resultados apontam que o debate sobre o tema não é bem feito no Brasil; os entrevistados consideram-se mal informados e parte significativa deles não quer informação; TV e internet são as principais fontes de informação; serviços de educação e saúde não são vistos como fonte de informação; mulheres acima de 45 anos com baixa escolaridade e renda têm percepções mais negativas em relação à descriminalização e à legalização, se comparadas a homens jovens com maior escolaridade e renda.

PALAVRAS-CHAVE:
Democracia; Crime; Cannabis

ABSTRACT

The objective of the present work is to contribute to a better understanding of perceptions about marijuana decriminalization and legalization. For this, a national opinion survey was conducted, between October 07 and November 26, 2014, by means of 3.007 telephone interviews. The results point that the debate on the subject is not well done in Brazil; the interviewees consider themselves poorly informed and a significant part of them does not want information; TV and the internet are the main sources of information; education and health services are not seen as a source of information; women over 45 with low schooling and income have more negative perceptions regarding decriminalization and legalization, if compared to young men with higher schooling and income.

KEYWORDS:
Democracy; Crime; Cannabis

Introdução

A crise política que o Brasil atravessa desde 2013 traz ameaças concretas à sua já incipiente democracia. O conflito aberto entre os poderes da república neste final de 2016, corolário do golpe que destituiu a Presidenta Dilma Roussef, ilustra a radicalização da polarização política que se instaurou na sociedade.

Desde as chamadas 'manifestações de junho de 2013', ações de intolerância, violência, preconceito, racismo e fascismo têm disputado o espaço público com aquelas que buscam promover a liberdade, a convivência entre os diferentes, o avanço dos direitos individuais e sociais, e a intensificação da democratização.

Esse conflito tende a acompanhar o espectro político contemporâneo dos alinhamentos à direita e à esquerda. Cabe àqueles que se alinham à esquerda, em suas diferentes maneiras e concepções, construírem novas agendas democráticas capazes, por um lado, de impedir o desmonte das políticas sociais e de proteção construídas no País desde 2003, e, por outro, avançar nas lutas identitárias.

Nesse contexto, a questão das drogas assume destaque, pois envolve tanto a necessidade de políticas de proteção social quanto do respeito às identidades. Constitui-se, portanto, em uma agenda fundamental na busca pela radicalização democrática, nesta segunda década do século XXI.

A agenda até aqui hegemônica, nesse campo, tem sido a da 'guerra às drogas', que, pertencente ao universo político de coalizões de direita, comumente acompanha proposições contra o aborto, a imigração e políticas de discriminação positiva. É contra ela que o presente artigo se manifesta.

A 'guerra às drogas' fracassou. Sob qualquer ponto de vista que leve em conta a paz, a justiça social, a saúde pública e até mesmo a eficiência do enfrentamento, seus executores não são capazes de apontar nenhum ganho significativo, que possa ser utilizado como argumento a seu favor.

Ao contrário, seus principais resultados articulam fortes impactos negativos, tanto no âmbito do indivíduo quanto no da sociedade. De tão deletérios, conseguiram transformar os danos causados pelas tentativas de acesso e compra das drogas - pela maneira como estas são utilizadas e pela repressão social e política aos consumidores - em danos muito mais pesados do que os causados pelo efeito das drogas propriamente dito (TRANSFORM DRUG POLICY FOUNDATION, 2009TRANSFORM DRUG POLICY FOUNDATION. After the War on Drugs: Blueprint for Regulation. Transform Drug Policy Foundation. 2009. Disponível em: <http://www.tdpf.org.uk>. Acesso em: 1 dez. 2016.
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).

Se o objetivo é produzir um cenário social em que a repressão iniba o consumo, está longe de lograr êxito, e convive diariamente com a dor e o sofrimento. No Brasil, os danos manifestam-se mais incisivamente na morbimortalidade das populações mais vulneráveis, notadamente jovens pobres, do sexo masculino, negros e mulatos, moradores de favelas e periferias (NEVES; GARCIA, 2015NEVES, A. C. M.; GARCIA, L. P. Mortalidade de jovens brasileiros: perfil e tendências no período 2000-2012. Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília, DF, v. 24, n. 4, p. 595-606, out. /dez. 2015.; ASSIS; DESLADES; SANTOS, 2005ASSIS, S. G.; DESLANDES, S. F.; SANTOS, N. C. Violência na adolescência: sementes e frutos de uma sociedade desigual. In: BRASIL, Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Violência na adolescência: sementes e frutos de uma sociedade desigual. Brasília, DF, 2005. p. 79-115.); na superlotação dos sistemas carcerários e socioeducativos, que produzem condições de vida absolutamente degradantes (FERNANDES; RIBEIRO; MOREIRA, 2015FERNANDES, F. M. B.; RIBEIRO, J. M.; MOREIRA, M. R. A saúde do adolescente privado de liberdade: um olhar sobre políticas, legislações, normatizações e seus efeitos na atuação institucional. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. esp., p. 120-131, dez. 2015.; SCISLESKI et al., 2014SCISLESKI, A. C. C. et al. Medida Socioeducativa de Internação: dos Corpos Dóceis às Vidas Nuas. Psicol. Ciênc. Prof. , Brasília, DF, v. 34, n. 3, p. 660-675, 2014.; FERNANDES ET AL. , 2014FERNANDES, L. H. et al. Necessidade de aprimoramento do atendimento à saúde no sistema carcerário. Rev. Saúde Públ., São Paulo, v. 48, n. 2, p. 275-283, 2014.); no reforço da repressão e da corrupção policial (MUNIZ; PROENÇA JR., 2007MUNIZ, J. O.; PROENÇA JR., D. Muita politicagem, pouca política os problemas da polícia são. Estud. Av., São Paulo, v. 21, n. 61, p. 159-172, 2007.); na multiplicação desenfreada da demanda por serviços de saúde mental (RIBEIRO ET AL., 2016RIBEIRO, J. M. et al. Acesso aos serviços de atenção em álcool, crack e outras drogas - o caso do município do Rio de Janeiro, Brasil. Ciênc. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 71-81, 2016.; SILVA; CRUZ; VARGAS, 2015SILVA, C. C.; CRUZ, M. M.; VARGAS, E. P. Práticas de cuidado e população em situação de rua: o caso do Consultório na Rua. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. esp., p. 246-256. dez. 2015.); e na organização do tráfico de drogas em uma dinâmica econômica que integra mercado legal, informal e ilegal, tornando-se uma atividade extremamente rendosa, que procura se infiltrar na política partidária e eleitoral (CRUZ NETO; MOREIRA; SUCENA, 2001CRUZ NETO, O.; MOREIRA, M. R.; SUCENA, L. F. M. Nem Soldados Nem Inocentes: juventude e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.).

Diante desses resultados, o debate sobre a legalização e a descriminalização das drogas tem crescido em vários países e despertado o interesse de diferentes segmentos organizados da sociedade, desde grupos militantes de usuários de drogas até a mídia, passando por think tanks, partidos políticos e franjas dos poderes judiciários.

Como qualquer debate social importante, esse também possui um amplo espectro de posições, das mais radicais, que, compreendendo o consumo de qualquer droga - até das mais moderadas - como modelo de negócios, defendem a legalização, focam sua atuação em drogas de maior aceitação social e advogam o aperfeiçoamento incremental do aparato legal voltado para as socialmente mais aceitas.

É nesse contexto que o debate sobre a legalização e a descriminalização da maconha tornou-se o mais ativo em diferentes sociedades, em um movimento que foi reforçado pela descoberta de suas propriedades terapêuticas e possibilidades de uso médico. Nos últimos anos, vários países fizeram alterações importantes em suas legislações sobre a maconha. Merecem destaque determinados estados dos EUA, que fizeram a opção pelo livre mercado; e o Uruguai, que, seguindo caminho contrário, estatizou o processo de produção e distribuição.

No Brasil, foi intensa a repercussão dessas medidas nos setores organizados da sociedade. Organizações Não Governamentais (ONGs) e instituições civis ganharam novo alento e mais espaço para avançarem no tema; projetos de lei foram apresentados ao congresso nacional; criou-se a Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), com ampla representação social; e, como tem se tornado cada vez mais comum no processo político brasileiro, o Judiciário entrou no debate, que hoje está em suspenso, aguardando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar uma ação cujo resultado pode produzir uma evidente mudança legal, abrir precedentes e tornar o mais alto tribunal do País a principal arena desse debate, em nível nacional.

A despeito da importância da mobilização dos setores organizados e do valor da causa, há uma incógnita: E os brasileiros, o que pensam? Este é o objetivo do artigo: contribuir para a compreensão sobre o que pensam brasileiros e brasileiras acerca da descriminalização e da legalização da maconha, apoiando caminhos para uma mudança social que, caso haja, seja fruto de um processo que incorpore a participação dos cidadãos, e não só de um pacto entre elites mais ativas e organizadas.

Aspectos metodológicos

O presente artigo é fruto do estudo 'A percepção dos brasileiros sobre temas relacionados à descriminalização da maconha', desenvolvido pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (CEE-Fiocruz), que, entre 07 de outubro e 26 de novembro de 2014, realizou uma pesquisa de opinião de caráter nacional, mediante 3.007 entrevistas telefônicas com pessoas acima dos 18 anos, em todos os estados do País. A margem de erro é de mais ou menos 1, 4%, com intervalo de confiança de 95%.

Buscando levantar informações e percepções dos entrevistados sobre o tema, em si, e suas relações com saúde, violência e segurança pública, esta pesquisa contou com um instrumento composto por 32 questões - 3 abertas, 26 fechadas (13 com escalas de concordância/discordância) e 3 mistas.

Por seu caráter telefônico, pela abrangência nacional e pelo tamanho da amostra, os pesquisadores que realizaram as entrevistas telefônicas contaram com um roteiro que se iniciava com a seguinte fala:

Bom dia/boa tarde, meu nome é [...] e no momento estamos fazendo uma pesquisa para a Fiocruz sobre a opinião das pessoas acerca de temas de saúde pública, em especial, a questão das drogas. O(a) Sr. (a) poderia participar?

A fim de garantir os princípios da bioética na pesquisa, os entrevistadores foram treinados para esclarecer dúvidas quanto ao instrumento e, acima de tudo, aceitar imediatamente, sem negociar, uma negativa de participação. As pessoas que aceitavam eram informadas de que seus nomes, endereços e quaisquer possíveis dados que pudessem identificá-las seriam mantidos sob sigilo. Foi-lhes reforçada, ainda, a ideia de que suas respostas seriam utilizadas exclusivamente no âmbito da pesquisa, que envolveria a publicação de relatórios, artigos e livros. Além disso, foi-lhes garantido que, mesmo nessas publicações, os dados jamais seriam divulgados de maneira individual, reforçando-lhes o sigilo e o anonimato prometidos, e preservando-lhes o princípio da não maleficência.

Os dados desta pesquisa mostraram-se extremamente ricos e abrangentes. Para o presente artigo, adotou-se como recorte o foco na percepção dos entrevistados sobre o 'grau de informação' acerca do debate sobre descriminalização/legalização da maconha; as 'repercussões na saúde' e a 'violência' advindas de uma possível descriminalização/legalização da maconha; e as 'expectativas' em relação ao uso/consumo, caso a maconha fosse descriminalizada/legalizada.

Os resultados foram trabalhados, como se verá a partir do próximo tópico, por meio de uma estratégia que privilegiou a apresentação percentual do resultado geral e o distribuiu, também percentualmente, nos seguintes estratos populacionais: região de moradia, gênero, faixa etária, renda mensal e grau de escolaridade. Para que a leitura ficasse fluida e compreensível, optou-se por apresentar as distribuições percentuais por estrato, nas situações em que elas apresentassem contrastes com o resultado geral ou entre si, permitindo, assim, um melhor conhecimento das convergências e divergências encontradas.

Diante disso, como consequência do trabalho desenvolvido, entende-se que a divulgação do conhecimento construído com os entrevistados em torno do tema melhora as possibilidades explicativas dos pesquisadores e contribui para a superação do senso comum, promovendo o princípio da beneficência.

Resultados e discussões: o que pensam os brasileiros sobre a descriminalização e a legalização da maconha?

Para uma melhor compreensão dos resultados da pesquisa, optou-se por dividir esta seção nos seguintes tópicos: 'grau de informação', 'percepção sobre uso/consumo de maconha e suas repercussões na saúde', 'percepção sobre a descriminação/legalização da maconha e suas repercussões na violência', e 'expectativas e experiências com relação ao uso/consumo de maconha'. Desta forma, torna-se mais fácil fazer tanto uma leitura de cada tópico como uma articulação entre eles.

Percepções sobre o 'grau de informação da sociedade' e o 'grau de informação do próprio indivíduo' acerca do debate sobre descriminalização e legalização da maconha

Conforme ilustra a tabela 1, para 74% dos entrevistados, o debate sobre a descriminalização da maconha não está sendo bem feito no Brasil. Distribuindo-se as respostas pelos estratos populacionais trabalhados na pesquisa, aqueles que consideram mais incisivamente que esse debate não está sendo bem feito são: (i) pessoas do sexo masculino; (ii) jovens entre 18 e 24 anos; (iii) moradores da Região Sudeste; (iv) pessoas com renda acima de dez salários mínimos; e (v) pessoas que têm ensino superior completo ou grau de instrução ainda maior.

Tabela 1
O debate sobre a maconha está sendo bem feito no País? Distribuição por região, sexo, faixa etária, renda e escolaridade. Brasil, 2014

Referindo-se a si mesma, a maioria absoluta dos entrevistados, 57, 8%, não se considera bem informada para participar do debate, sendo que 46, 6% deles disseram estar 'mal informados' e 11, 2%, 'muito mal informados'. Por outro lado, 37, 9% declararam-se, de alguma maneira, informados, sendo 2, 9% 'muito bem informados' e 33% 'bem informados'.

Entre os que se declaram desinformados, destacam-se: pessoas do sexo feminino (65, 1%); aqueles que têm 60 anos ou mais (63, 2%); os que possuem renda de até um salário mínimo (65%); os que não chegaram a completar o ensino fundamental (77%); e os residentes na Região Centro-Oeste (62, 5%).

É interessante apontar que 53% dos entrevistados responderam que sabem que "descriminalizar a maconha significa uma mudança na lei, pela qual quem fuma maconha deixa de cometer um crime", enquanto 67, 8% sabem que

legalizar a maconha significa que a compra e a venda de maconha em estabelecimentos oficiais passam a ser legais, e que as bocas de fumo continuam sendo crime.

Isso parece indicar que o grau de desinformação relatado pelos entrevistados está mais relacionado às repercussões que a descriminalização/legalização podem trazer para a sociedade e para o indivíduo, do que ao conhecimento de seu significado.

Nos tópicos seguintes, há dados que reforçam essa hipótese. Por enquanto, tal cenário de desinformação pode ser mais compreensível na medida em que são conhecidas as principais fontes de informação dos entrevistados: 22, 5% declaram que não consultam nenhuma fonte de informação, percentual que se eleva na Região Sudeste (24, 6%), entre pessoas do sexo feminino (25%), os que têm 60 anos ou mais (28, 1%), os que ganham até um salário mínimo (32, 3%) e os que não chegaram a completar o ensino fundamental (35, 3%).

Entre as fontes de informação (questão de respostas múltiplas), as mais citadas foram a TV (37, 9%), a internet (31, 5%), os jornais (14, 1%) e as revistas (4, 7%). Somando-se a estes os que citaram rádio (1, 7%) e 'mídia em geral' (0, 9%), constata-se que, entre aqueles que procuram informação, as mídias são sua grande fonte.

Há uma inversão desse quadro entre os jovens de 18 a 24 anos: a internet torna-se a fonte mais procurada para 50, 9% deles, seguida pela TV, com 25, 7%. A mesma situação, embora em menores proporções, desponta para aqueles que têm entre 25 e 34 anos: 41, 5%, internet e 34, 4%, TV.

Já nas faixas etárias acima dos 34 anos, a TV reassume a posição de fonte mais procurada, seguida pela internet, com exceção dada na faixa de 60 anos ou mais, na qual as revistas assumem a segunda posição (18, 2%), tornando-se a internet a terceira fonte (8, 2%). É importante destacar que esta última também é a faixa etária em que a TV tem sua maior percentagem, 47, 7%.

Enfocando-se a renda dos entrevistados, a TV é a fonte mais importante para os que recebem até cinco salários mínimos. Nas faixas entre '5 a 10' e 'mais de 10' salários mínimos, a internet assume a primeira posição, sendo que, nesta segunda faixa, as revistas superam a TV na segunda posição.

As redes familiares e de amizades surgem como as instituições tradicionais mais utilizadas como fontes de informação pelos entrevistados, mas em uma proporção bem inferior às já referidas: 5, 4%.

O apoio religioso parece também não ser uma fonte de informação procurada, no que se refere ao debate sobre a descriminalização da maconha, visto que apenas 0, 4% citou 'igreja'.

As políticas públicas e suas instituições são vistas como fontes de informação para pouquíssimos entrevistados: enquanto a escola/universidade foi citada por 4, 1% (pode-se acrescentar 0, 3% que citou professor/educador), os serviços de saúde tiveram uma participação pífia, com irrisório 0, 3%. Mesmo que a ele se acrescentasse o 0, 4% que citou 'médico', o setor saúde sequer chegaria a 1%.

Conclui esse cenário um dado impactante: 45, 8% dos entrevistados, quando perguntados sobre que informações gostariam de ter a respeito do tema, responderam "nenhuma/não quer informação", item que foi o mais citado.

Percepções sobre o uso/consumo da maconha e suas repercussões na saúde

Quando apresentados à frase "Se as pessoas têm o direito à bebida alcoólica, também devem ter o direito de usar maconha", 46, 9% dos entrevistados dela discordaram totalmente. Acrescentando-se a estes os que 'mais discordam do que concordam' (15, 3%), tem-se que 62, 2% revelaram algum nível de discordância da frase.

Esses níveis de discordância permanecem nas estratificações trabalhadas pela pesquisa, porém com nítidas diferenças, havendo mais intensidade (i) entre as mulheres (67, 7%, sendo 51, 6% com discordância total e 16, 1%, parcial) do que entre os homens (56, 4%, dos quais 41, 9% discordam totalmente e 14, 5%, parcialmente); (ii) entre as pessoas de 60 anos ou mais (72, 1% com discordância total, 58, 1% mais discordam do que concordam e 14% com discordância parcial) e na faixa entre 45 e 59 anos (65, 8%, 51, 4% e 14, 4%, respectivamente) do que entre os jovens de 18 a 24 anos (52, 3%, 37, 1% e 15, 2%); (iii) entre as pessoas com renda de até 1 salário mínimo (78, 5%, 63, 9%, 14, 6%) do que nas com renda acima de 10 salários mínimos (50, 4%, 41, 5%, 8, 9%); e (iv) entre as pessoas com ensino fundamental incompleto (73, 8%, 63, 9%, 14, 6%) do que entre as que possuem superior completo ou grau de instrução ainda maior (57, 2%, 43, 6% e 13, 6%).

Indagados sobre o grau de concordância/discordância acerca da frase "Bebida alcoólica faz mais mal à saúde do que maconha", 44, 1% apresentaram algum nível de concordância (24, 7% concordaram totalmente, enquanto 19, 4% mais concordaram do que discordaram). Acrescentando-se a estes os 27, 3% que 'não concordam nem discordam', constata-se que 27, 7% apresentaram discordância da frase, sendo que apenas 16, 1% discordam totalmente.

Abrindo uma sequência de percepções negativas acerca do uso/consumo da maconha, 71% apresentaram algum nível de concordância com a frase "A maconha acaba com a vida das pessoas". A tabela 2 ilustra estas repostas, indicando divergências importantes nas estratificações dos entrevistados, que apontam, sobretudo, para percepções mais negativas entre mulheres, pessoas que têm mais de 60 anos, que recebem até 1 salário mínimo e que não chegaram a completar o ensino fundamental.

Tabela 2
Grau de concordância/discordância com a frase “A maconha acaba com a vida das pessoas”: distribuição por região, sexo, faixa etária, nível de escolaridade e renda. Brasil, 2014

Diante da frase "A maconha é a porta de entrada para outras drogas", 86, 5% apresentaram algum nível de concordância com ela, sendo que 74, 4% concordaram totalmente e 12, 1% concordaram parcialmente. As distribuições entre os estratos populacionais estudados seguem perfis semelhantes às já referidas.

Finalizando este tópico, a tabela 3, que enfoca a concordância dos entrevistados (somatório das respostas 'concorda totalmente' e 'mais concorda do que discorda') com as frases acima apresentadas, distribui as respostas pela variável na qual as pessoas consideraram-se 'bem informadas' ou não, ilustrando que as percepções negativas são sempre e consideravelmente mais intensas entre os que se consideraram 'mal' ou 'muito mal' informados.

Tabela 3
Percepção dos entrevistados sobre perguntas referentes às repercussões da descriminalização da maconha na saúde dos indivíduos. Distribuição das respostas concordantes por grau de informação sobre o debate. Brasil, 2014

Percepções sobre descriminalização/legalização da maconha e suas repercussões sobre a violência

A maioria absoluta dos entrevistados (55, 6%) considerou que "não comete crime quem apenas usa maconha, e não é traficante". Esse percentual ultrapassa os 60% nos estratos, nas faixas etárias entre '18 e 24 anos' (67, 4%) e '25 a 34 anos' (60, 4%); entre os que recebem de '5 a 10' salários mínimos e acima de 10 (61, 7% e 60, 7%, respectivamente); e os que têm ensino superior completo ou grau de instrução ainda maior (62, 5%).

Em relação à ideia de que "Descriminalizar a maconha reduziria o tráfico de drogas", 39% dos entrevistados apontaram algum nível de concordância, sendo que 20, 5% concordam totalmente e 18, 5% mais concordam do que discordam. E há diferenças importantes nesses percentuais, quando se enfocam os estratos populacionais investigados: 42, 9% dos homens têm alguma concordância, o que se reduz para 35, 1% das mulheres; 51% dos jovens entre 18 e 24 anos, contra 31, 5% dos que têm mais de 60 anos. Contudo, a concordância pouco oscila entre os estratos de renda (39, 8% dos que recebem entre '5 e 10' salários mínimos, enquanto 34, 5% dos que obtêm menos de um salário mínimo) e a escolaridade, variando entre 35, 5% e 41%.

Já em relação à frase "Descriminalizar a maconha reduziria a violência", 28, 9% dos entrevistados apresentaram alguma concordância com ela, sendo que 14, 5% concordaram totalmente e 14, 4% tiveram somente alguma concordância. Especialmente em relação a esta frase, os índices de variação foram de baixa amplitude, mantendo as correlações já descritas neste artigo, mas com percentuais próximos ao total.

Também evocando percepções sobre a relação entre a descriminalização da maconha e a violência, a frase "Descriminalizar a maconha vai diminuir a violência policial" obteve a concordância de 27, 8% dos entrevistados.

A tabela 4, que enfoca a concordância dos entrevistados (somatório das respostas 'concorda totalmente' e 'mais concorda do que discorda') com as frases acima apresentadas, distribui as respostas pela variável na qual as pessoas consideraram-se 'bem informadas' ou não, ilustrando que o grau de concordância varia entre 1/4 e L dos entrevistados, sendo sempre menor entre os que se consideraram 'mal' ou 'muito mal' informados.

Tabela 4
Percepção dos entrevistados sobre perguntas referentes às repercussões da descriminalização da maconha no cenário de violência. Distribuição das respostas concordantes por grau de informação sobre o debate. Brasil, 2014

Expectativas e experiências com relação ao uso da maconha

Em relação à pergunta "Se comprar maconha no Brasil fosse legal, você compraria?", 91, 4% dos entrevistados responderam que não. Embora existam as diferenças dos estratos populacionais, a proporção de 'não' é inferior a 90% entre os homens (85%); jovens entre 18 e 24 anos (85%) e 25 a 34 anos (89, 1%); com renda de 5 a 10 salários mínimos (87, 6%) e de mais de 10 salários mínimos (88, 1%).

Curiosamente, diante da frase "Se a maconha for descriminalizada, seu uso vai aumentar", 70, 9% apresentaram níveis de concordância, sendo que 54, 8% concordaram totalmente e 16, 1% mais concordaram do que discordaram.

Conforme ilustra a tabela 5, esse nível de concordância acima dos 70% mantém-se em quase todas as estratificações, sendo que as que ficam abaixo deste patamar não apresentam menos de 60%. As mais elevadas percentagens de concordância ocorrem na Região Centro-Oeste (77, 5%), entre as mulheres (71, 7%), as pessoas acima de 60 anos (74, 1%), entre os que têm renda de 1 a 2 salários mínimos (74, 1%) e os com ensino fundamental completo e médio incompleto (72, 3%).

Tabela 5
Grau de concordância/discordância com a frase “Se a maconha for descriminalizada, seu uso vai aumentar?”: distribuição por região, sexo, faixa etária, nível de escolaridade e renda. Brasil, 2014

Considerações finais

Os resultados da pesquisa permitem delinear rumos e ações para a construção de uma agenda democratizante, no que se refere à descriminalização e à legalização da maconha.

O primeiro e mais relevante diz respeito à necessidade de se desenvolverem diálogos diretos com a população, que admite estar mal informada. Logicamente, isto tem relação direta com o fato de os serviços públicos de educação e saúde não representarem, nem de longe, o papel de fonte de informação. Se a TV e as redes sociais continuarem a ocupar esse papel, dificilmente será superada uma série de percepções negativas, que, como foi visto, prevalecem entre os que se declaram mal informados.

Ora, se o século XXI é o da 'sociedade da informação'; se as tecnologias de informação e comunicação permitem o desenvolvimento de redes sociais que, em torno do mundo, têm produzido mobilizações sociais poderosas; e se, em alguns países - como a Finlândia, por exemplo -, o processo constituinte foi conduzido via web, parece ser claro que, para que as novas agendas democratizantes obtenham sucesso, elas devem ser capazes de valorizar e qualificar a participação e a deliberação social, por meio de uma política de comunicação.

Esta pesquisa fornece pistas, também, para os segmentos que precisam ser focalizados por essa política de comunicação: mulheres, acima de 45 anos, com baixa escolaridade e renda. Perceba-se que, nesse grupo, estão as mães que sofrem com a violência que envolve o tráfico de drogas e atinge seus filhos. Nesta pesquisa, não se buscou identificar a etnia dos entrevistados (outras devem fazê-lo), mas alguns estudos mostram que essas mães são, em sua grande maioria, negras e mulatas.

Aqui, ficam nítidas outras duas necessidades das agendas democratizantes: a de ouvir e de dar voz às mulheres, em geral, já tão agredidas pelo machismo que domina a sociedade brasileira: e às negras e mulatas, especialmente, violentadas pelo racismo que teima em se manter no País. Ser mulher, mãe e negra é ter um acúmulo de características extremamente bonitas e importantes para o indivíduo e para a construção de uma sociedade mais justa. Uma agenda democratizante tem de incorporar estas pessoas como protagonistas.

Ter o foco nesses segmentos não significa descuidar dos outros, mas, sobretudo, é também saber trazer a força dos jovens para o processo de construção das agendas. Foram eles que apresentaram as respostas mais sensíveis à descriminalização e à legalização da maconha, e são eles que facilmente serão vistos pelos defensores da 'guerra às drogas' como alvos da repressão.

Outro ponto essencial a ser destacado é que o debate deve ser ambientado no campo da saúde pública e no da superação da violência que envolve o tráfico de drogas, este que todos os dias deixa vítimas nas grandes cidades do País. Fortalecer as políticas de saúde e superar a violência demandam agendas articuladas, capazes de trazer melhorias vigorosas às condições de vida da população.

Por fim, ressalta-se que esta pesquisa não se preocupou em perguntar se os entrevistados são 'contra ou a favor' da descriminalização e da legalização das drogas. O que se queria efetivamente compreender era, e é, o que pensam as pessoas sobre os fatores e as relações que fazem parte desse processo, e que tornam-se completamente obscurecidos quando se faz uma pergunta do tipo 'contra ou a favor'.

O paradoxo entre as respostas que refletem o fato de que a quase totalidade dos entrevistados diz que não consumiria maconha, caso ela fosse legalizada no Brasil, e as respostas que revelam que um percentual também muito grande considera que o consumo de maconha vai aumentar, demonstram que, para identificar e compreender o que as pessoas pensam sobre um assunto complexo e melindroso como este, os pesquisadores devem percorrer caminhos conturbados de esquinas, cruzamentos, bifurcações e atalhos, antes de chegarem a um local onde possivelmente uma resposta direta e objetiva represente uma tradução do que o entrevistado pense sobre o tema.

Esta foi uma opção da presente pesquisa, tendo como intenção contribuir para a construção de agendas democratizantes para o século XXI: oportunizar um primeiro contato direto com determinados sujeitos e suas percepções. Tal opção pode, logicamente, também ser encarada como uma limitação da pesquisa, que, desejamos, seja suprida por mais e melhores estudos.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    Dez 2016
  • Aceito
    Dez 2016
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