Acessibilidade / Reportar erro

Processo regulatório da Estratégia Saúde da Família para a assistência especializada

RESUMO

Objetivou-se conhecer o processo regulatório da Estratégia Saúde da Família para a assistência especializada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Estudo descritivo, com 53 médicos, cuja coleta de dados utilizou um questionário estruturado e autoaplicável. Os profissionais (50,9%) consideraram que a regulação contribui para a coordenação do cuidado, que a devolução dos encaminhamentos deve-se à falta de clareza dos resultados dos exames (57,1%) e que a principal medida para melhoria do acesso à atenção especializada seria o aumento de vagas. Uma maior comunicação entre os profissionais envolvidos no processo regulatório deve ser incentivada, de modo a possibilitar o exercício pleno de suas funções.

PALAVRAS-CHAVE
Regulação e fiscalização em saúde; Estratégia Saúde da Família; Acesso aos serviços de saúde

ABSTRACT

It was aimed to know the regulatory process of the Family Health Strategy for specialized care in Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Descriptive study, with 53 physicians, whose data collection used a structured and self-administered questionnaire. The professionals (50.9%) considered that the regulation contributes to the coordination of the care, that the return of the referrals is due to the lack of clarity of the test results (57.1%) and that the main measure to improve the access to the specialized care would be the increase of positions. A greater communication among the professionals involved in the regulatory process should be encouraged, in order to provide the full exercise of their functions.

KEYWORDS
Health regulation and monitoring; Family Health Strategy; Health services accessibility

Introdução

Entre as atribuições específicas do profissional médico que atua na Estratégia Saúde da Família (ESF) está a realização de encaminhamentos a outros pontos da rede de atenção, a responsabilização pelo plano terapêutico de forma compartilhada, respeitando-se os fluxos assistenciais, o registro apropriado de informações e a comunicação entre os profissionais em tempo e lugar oportunos, de maneira a atender à necessidade do usuário11 Brasil. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 2011 Out. 21; Seção 1, p. 48-55.,22 Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção Primária à Saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadores. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 493-546..

A ESF é, portanto, o ponto de início de onde parte o fluxo do sistema de saúde, no qual o profissional deve agir com autonomia. Contudo, a resolutividade do cuidado depende não só da atuação dos profissionais da atenção primária, mas, também, dos profissionais dos outros níveis assistenciais33 Costa JP, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, et al. Resolubilidade do cuidado na atenção primária: articulação multiprofissional e rede de serviços. Saúde debate, 2014 Out-Dez; 38(103):733-43..

Em 2008, o Ministério da Saúde institui a Política Nacional de Regulação, que contempla três aspectos: regulação de sistemas de saúde; regulação da atenção à saúde; e regulação do acesso à assistência, sendo que esta última se constitui em um importante instrumento de gestão pública, permitindo às suas instâncias estaduais, municipais e federal regular o perfil assistencial mais adequado às necessidades de saúde44 Brasil. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.559, de 1 de agosto de 2008. Institui a Política Nacional de Regulação do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 2008 ago. 4; Seção 1, p. 48.,55 Vilarins GCM, Shimizu HE, Gutierrez MMU. A Regulação em Saúde: aspectos conceituais e operacionais. Saúde debate. 2012 Out-Dez.; 36(95): 640-647, 2012..

Por se tratar de um instrumento recente na prática médica, a regulação do acesso pode gerar dificuldades no seu manejo, em função do reduzido conhecimento ou da inabilidade do profissional, de modo a retardar ou mesmo impedir o acesso dos usuários aos serviços de saúde especializados, comprometendo a integralidade do cuidado.

Para o adequado funcionamento das redes de atenção, visando ao cuidado em tempo e lugar oportunos, é preciso que os diversos setores da saúde atuem de forma coordenada e integrada.

Neste sentido, dada a relevância dessa problemática e a necessidade de produções científicas que abordem o tema, especialmente, as associadas ao conhecimento e à boa prática regulatória realizada pelo profissional médico inserido na atenção primária, este estudo tem por objetivo conhecer o processo regulatório da ESF para a assistência especializada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo, transversal, realizado nas Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) urbanas e rurais de Campo Grande, estado do Mato Grosso do Sul.

A população foi composta por 89 médicos, de ambos os sexos, lotados nas 38 unidades de ESF, sendo três deles rurais, com, pelo menos, seis meses de atuação na ESF em atividade, pois é necessário um tempo mínimo de experiência para que se possa avaliar a sua inserção nos serviços.

Dessa forma, antes da coleta, os profissionais foram questionados individualmente pela pesquisadora quanto ao seu tempo de atuação, sendo excluídos, no total, 36 (40%) participantes, 10 deles (27,7%) por não atenderem a esse critério, 7 (19,4%) por estarem de férias e/ou licença médica, 18(50%) por recusa e 1(2,7%) por ser a própria pesquisadora. Ao final, compuseram a amostra 53 médicos, de 35 Unidades, que foram convidados a participar da pesquisa e que, depois do aceite, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A coleta de dados primários ocorreu durante os meses de junho e julho de 2015, previamente agendada com os profissionais, de acordo com a sua disponibilidade.

Para a coleta, utilizou-se de um questionário autoaplicável, elaborado pela pesquisadora, constituído de 18 questões fechadas, que abordaram as seguintes variáveis: quanto à caracterização do profissional médico (experiência profissional, tipo de vínculo empregatício, formação e capacitações para o exercício da função); com relação à regulação do acesso à atenção especializada (avaliação da regulação e sua prática, principais motivos de devolução dos encaminhamentos e estratégias de melhoria da regulação).

Os dados obtidos foram organizados em planilha eletrônica Excel(r), avaliados segundo a análise estatística descritiva e apresentados em forma de tabelas.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa vinculado à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, sob o parecer nº 1.045.233.

Resultados

Quanto à caracterização do profissional médico da ESF, verificou-se que o tempo médio de atuação foi de 6,2 anos, e desvio padrão de 4,9, com predomínio (49%) de experiência na área de até quatro (4) anos, com vínculo empregatício, em sua maioria, do regime estatutário, 47,2%.

Para atuação na atenção primária, 54,7% não possuíam qualquer formação. Os outros 45,3% participaram de cursos de especialização em Medicina de Família e Comunidade (MFC) e/ou em Saúde da Família (cursos lato e stricto sensu). Apenas 7,5% realizaram residência médica em MFC.

Para o curso introdutório, os resultados apresentaram-se próximos. 47,2% afirmaram participar, e 49,1% não. Quanto aos cursos de educação continuada e/ou permanente, a maioria (83%) relatou ter realizado, sendo a maior parte dos cursos (69,8%) oferecida pela gestão municipal.

Com relação à regulação do acesso ao serviço especializado pelo médico da ESF, 50,9% consideraram que tal processo contribui para a coordenação do cuidado, no entanto, 34% declararam interferir de maneira negativa (tabela 1).

Tabela 1
Taxa de pacientes com câncer em cuidados paliativos na atenção domiciliar por 100.000 habitantes, por ano, Unidade de residência da Federação. Brasil e Regiões, 2013 2015

Quanto à frequência de autorização dos encaminhamentos para a atenção especializada, 94,4% declararam que foram sempre, ou na maioria das vezes, autorizados, e, quanto ao acesso aos encaminhamentos devolvidos, 24,5% referiram recebê-los semanalmente, 22,6% foram informados pelo próprio paciente e 18,9% não souberam informar (tabela 1).

Para a maioria dos participantes, o tempo de espera para consultas especializadas foi considerado muito insatisfatório (43,4%) e insatisfatório para 34%, que, somados, representaram 77,4% (tabela 1).

Sobre o grau de dificuldade em obter vaga para um paciente que necessite de consulta especializada, 50,9% consideraram difícil, sendo atribuída como principal motivo (para 58,5%) a oferta reduzida de vagas para as especialidades (tabela 1).

Quanto à prática regulatória pelos médicos da ESF, os resultados podem ser observados na tabela 2.

Tabela 2
Prática regulatória pelo médico da ESF. Campo Grande, MS, 2015. (N=53)

Entre os entrevistados, 86,8% referiram conhecer o protocolo de encaminhamento da atenção básica para a atenção especializada, ter acesso a ele e utilizá-lo na maior parte das vezes. No entanto, quando indagados sobre o recebimento de treinamento para o manejo, a maioria (69,8%) declarou não o ter realizado e que seria importante fazê-lo.

Além do encaminhamento registrado no Sistema de Informação de Regulação (Sisreg), comunicação via telefone pela gerência da unidade de saúde representou 45,3%, e apenas dois profissionais (3,8%) referiram contato direto com a central, via telefone.

Nas situações em que o caso encaminhado tratava-se de uma prioridade em saúde, 64,2% referiram que, além de cumprirem os requisitos mínimos do protocolo, expressaram a necessidade de urgência e o justificaram informando com dados clínicos. Quanto ao uso de influência pessoal para conseguir acesso rápido sem passar pela regulação, apenas 5,7% relataram realizar.

Entre os motivos de devolução dos encaminhamentos pela Central de Regulação (CR) para adequações, houve predomínio para a melhoria da descrição dos resultados dos exames básicos obrigatórios nos protocolos de acesso (57,1%), seguido de melhor descrição do quadro clínico, por 31,4% (tabela 3).

Tabela 3
Principal motivo de devolução do encaminhamento, segundo opinião do médico da ESF. Campo Grande, MS, 2015. (N=53)

Quanto às estratégias para melhorar a regulação do acesso à atenção especializada, o aumento do número de vagas para especialistas foi a mais citada, 50%, seguida da revisão dos protocolos de acesso por médicos especialistas, reguladores e da atenção básica, 36,8%. Melhorar a gestão da clínica na ESF foi a estratégia menos relevante, 52,6% (tabela 4).

Tabela 4
Estratégia para melhorar a regulação do acesso à atenção especializada. Campo Grande, MS, 2015. (N=53)

Discussão

O tempo médio de atuação dos profissionais médicos deste estudo mostrou-se superior ao da média nacional (3,9) e da região Centro-Oeste (4,5), assim como para o vínculo empregatício do regime estatutário (47,2%)66 Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Medicina. Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Monitoramento da Qualidade do Emprego na Estratégia Saúde da Família. Relatório de Pesquisa, Belo Horizonte: UFMG; 2012..

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) considera a Residência em Medicina de Família e Comunidade (MFC) padrão-ouro para a formação do especialista em Atenção Primária à Saúde (APS). Contudo, em vista da necessidade de ampliação da qualificação desse profissional e do ainda reduzido acesso aos programas de residência médica, a SBMFC reconhece os cursos de Pós-graduação como uma alternativa provisória77 Castro Filho ED, Gusso GDF, Demarzo MMP, et al. A especialização em MFC e o desafio da qualificação médica para a Estratégia Saúde da Família: proposta de especialização, em larga escala, via educação à distância. RBMFC. 2007; 3(9):199-209..

A pouca procura pela especialidade, observada neste estudo, pode ser explicada, em parte, por baixa remuneração, carga excessiva de trabalho, precariedade de vínculos empregatícios, baixo status profissional e social88 Mello GA, Mattos ATR, Souto BGA, et al. Médico de família: ser ou não ser? Dilemas envolvidos na escolha desta carreira. Revista Brasileira De Educação Médica. 2009 Jul-Set; 33(3):464-71.. Também, para atuar na ESF, não é obrigatória a residência ou a especialização em MFC. Basta que seja médico generalista, não havendo diferenciação salarial entre aqueles com ou sem residência médica. Esses possivelmente são alguns dos fatores que contribuem para a não formação nessa área, inclusive em países com atenção primária mais estruturada, como Canadá, Cuba e Inglaterra88 Mello GA, Mattos ATR, Souto BGA, et al. Médico de família: ser ou não ser? Dilemas envolvidos na escolha desta carreira. Revista Brasileira De Educação Médica. 2009 Jul-Set; 33(3):464-71.,99 Ney MS, Rodrigues PHA. Fatores críticos para a fixação do médico na Estratégia Saúde da Família. Physis. 2012; 22(4):1293-311..

Para o curso introdutório, pode-se observar que houve maior adesão dos profissionais quando se compara com o estudo de Damno1010 Damno HS, Moriyama MC, Pícoli RP, et al. Perfil profissional dos médicos atuantes na estratégia Saúde da Família no Município de Campo Grande - MS. Encontro. 2013; 16(25):125-137., no qual 33% dos médicos da ESF informaram tê-lo realizado. Mesmo sendo um curso preconizado pelo Ministério da Saúde, o seu cumprimento ainda está aquém do desejado, tendo-se como um promissor colaborador o Telessaúde, com potencial para sua ampliação e das práticas profissionais, por meio de tele-educação1111 Piropo TGN, Amaral HOS. Telessaúde, contextos e implicações no cenário baiano. Saúde debate. 2015 Jan-Mar; 39(104):279-87..

Para o aprimoramento da atenção primária, faz-se necessário desenvolver no médico de família habilidades técnicas específicas com alto grau de qualificação1212 Anderson MIP, Rodrigues RD. Formação de especialistas em Medicina de Família e Comunidade no Brasil: dilemas e perspectivas. RBMFC, 2011 Jan-Mar; 6(18):19-20., preocupação evidenciada pela gestão de Campo Grande, que ofereceu cursos de capacitação aos seus profissionais, o que pode contribuir para equipes mais resolutivas e para a melhoria da coordenação do cuidado1313 Almeida PF, Fausto MCR, Giovanella L. Fortalecimento da atenção primária à saúde: estratégia para potencializar a coordenação dos cuidados. Rev. Panam. Salud Públ. 2011 Fev; 29(2):84-95..

Um aspecto positivo deve-se ao fato de que mais da metade dos médicos consideraram que a regulação contribui para a coordenação do cuidado. Coordenar o cuidado significa ser, entre outros, responsável pelo fluxo da assistência na Rede de Atenção à Saúde (RAS). Nesta perspectiva, a atenção primária tem o poder de interferir diretamente no desempenho da atenção especializada, uma vez que é a partir do primeiro nível de atenção que é gerada a maior parte da demanda para os demais níveis de assistência, dependendo do seu grau de resolutividade22 Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção Primária à Saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadores. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 493-546..

Contudo, cerca de 1/3 dos profissionais considerou que a regulação interfere negativamente na assistência. Isso pode significar dificuldades na compreensão dos princípios da Política Nacional de Regulação e de seu papel de colaboradora no processo de coordenação do cuidado44 Brasil. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.559, de 1 de agosto de 2008. Institui a Política Nacional de Regulação do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 2008 ago. 4; Seção 1, p. 48., ou, ainda, que a regulação não vem cumprindo seu papel no sentido de atuar em parceria, como apoiadora da ESF, visto que alguns médicos apontaram a pouca maleabilidade da regulação como obstáculo ao acesso à atenção especializada.

Constatou-se neste estudo elevado número de profissionais que referiram ter seus encaminhamentos autorizados, no entanto, foi observada, para esses mesmos profissionais, reduzida sistematização de seus encaminhamentos para a atenção especializada. Para garantir a integralidade do acesso, mudanças nas formas de produção do cuidado, utilizando todos os recursos disponíveis no sistema de saúde por meio de fluxos direcionados e guiados pelo projeto terapêutico do paciente, a fim de garantir o acesso seguro às tecnologias necessárias à sua assistência, fazem-se necessárias1414 Lima MRM, Silva MVS, Bezerra CJW, et al. Regulação em saúde: conhecimento dos profissionais da estratégia saúde da família. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste. 2013; 14(1):23-31..

O tempo de espera, associado à elevada dificuldade para as consultas especializadas, em especial, a reduzida oferta de vagas, são alguns dos fatores limitantes para a regulação do acesso. Entretanto, em países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com altos níveis de gastos, com leitos ou médicos, ainda assim, há prolongado tempo de espera1515 Borowitz M, Moran V, Siciliani, L. A reviewofwaiting times policies in Organization for Economic Cooperation and Development (OECD). In: Waiting Time Policies in the Health Sector: What Works? Paris: OECD Publishing; 2013. p. 49-68..

Porção considerável dos encaminhamentos realizados pela atenção primária para a especializada poderia ser resolvida com cuidados primários. A baixa resolutividade da APS suscita, entre outros fatores, aumento das filas de espera para a atenção especializada1616 Baduy RS, Feuerwerker LCM, Zucoli M, et al. A regulação assistencial e a produção do cuidado: um arranjo potente para qualificar a atenção. Cad. Saúde Pública. 2011 Fev; 27(2):295-304., o que pode dificultar e retardar o acesso de casos prioritários.

A utilização dos protocolos se constitui em importantes instrumentos tanto para a prática clínica quanto para a regulatória, visto que promove a continuidade e a integralidade do cuidado1717 Santos JS, Pereira Junior GA, Bliacheriene AC, et al. Organizadores. Protocolos Clínicos e de Regulação: Acesso à rede de saúde. Rio de Janeiro: Elsevier; 2012.. Neste estudo, pode-se verificar que o conhecimento e a utilização dos protocolos de acesso estão presentes na prática regulatória dos profissionais da ESF, apesar de não terem recebido treinamento para o seu manuseio e de considerarem que seria importante fazê-lo.

O fato de não haver comunicação direta entre os profissionais envolvidos no processo de regulação, limitando-se apenas ao preenchimento da ficha de encaminhamento, pode sugerir pouca integração entre os serviços, sendo a troca de informações condição essencial para o fortalecimento da atenção primária enquanto ordenadora do cuidado1818 Albuquerque MS, Fonseca SC, Alexandre GC. Acessibilidade aos serviços de saúde: uma análise a partir da Atenção Básica em Pernambuco. Saúde debate. Out 2014; 38(esp):182-94..

Nos casos prioritários, que necessitam de maior agilidade na autorização de consulta especializada, a maioria dos médicos declarou cumprir os requisitos mínimos e informar a necessidade de urgência, apresentando justificativa com dados clínicos. De acordo com Ferreira et al.1919 Ferreira JBB, Mishima SM, Santos JS, et al. O complexo regulador da assistência à saúde na perspectiva de seus sujeitos operadores. Interface (Botucatu). 2010 Abr-Jun; 14(33): 345-58., informações incompletas acerca da condição clínica do paciente referenciado foram apontadas como o problema mais prejudicial na ação regulatória, uma vez que dificultam o processo de análise do encaminhamento, bem como impedem a identificação de condições que poderiam ser resolvidas no nível primário, além de desfavorecerem avaliação do potencial resolutivo da RAS.

Poucos profissionais referiram uso de influência pessoal para conseguir acesso mais rápido, sem passar pela regulação. Cecílio2020 Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo"? Saúde Soc. 2012 Abr-Jun; 21(2): 280-289. considera esse modo de referenciar uma forma de regulação, denominada informal, que, apesar de gerar fluxos paralelos e parecer desordenar a regulação, tem seu valor quando se reconhece que, em situações especiais, mostra-se como um ato altamente cuidador.

Entretanto, considerando o modo preconizado para referenciar o usuário, quando um encaminhamento é regulado pela CR de Campo Grande, são observados diversos critérios para a autorização, entre eles, os dados clínicos, resultados de exames (alterados ou não) recomendados pelo protocolo e pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), compatíveis com a história clínica2121 Campo Grande (MS). Secretaria Municipal de Saúde. Resolução SESAU nº 206, de 27 de fevereiro de 2015. Aprova os protocolos de acesso às consultas e exames especializados de média e alta complexidade. Diário Oficial de Campo Grande - MS. [internet]. 2015 Mar. 4 [acesso em 2017 jan 2]; 1:1-66. Disponível em: http://portal.capital.ms.gov.br/egov/downloadFile.php?id=5481&fileField=arquivo_dia_ofi&table=diario_oficial&key=id_dia_ofi&sigla_sec=diogrande.
http://portal.capital.ms.gov.br/egov/dow...
.

Ainda que não tenham colaborado para a sua elaboração, a participação dos médicos de saúde da família na revisão dos protocolos foi considerada pelos participantes uma importante estratégia para melhorar a regulação do acesso à atenção especializada em Campo Grande, superada apenas pelo aumento da oferta de vagas para especialistas.

Na perspectiva de garantir a integralidade e a equidade na atenção à saúde, é essencial a participação dos profissionais da atenção básica na elaboração e na revisão dos protocolos de acesso, visto que estes se confundem com os protocolos clínicos, não considerando a posição do usuário nos distintos pontos da rede1717 Santos JS, Pereira Junior GA, Bliacheriene AC, et al. Organizadores. Protocolos Clínicos e de Regulação: Acesso à rede de saúde. Rio de Janeiro: Elsevier; 2012..

Contudo, o simples aumento do número de vagas para especialidades e procedimentos não diminui a dificuldade do acesso aos mesmos, uma vez que, com o tempo, os encaminhamentos tornam-se menos criteriosos, sem indicação precisa, não motivando melhora da qualidade do atendimento2222 Franco TB, Magalhães Júnior HM. Integralidade na assistência à saúde: a organização das linhas do cuidado. In: Merhy EE, Magalhães Júnior HM, Rimoli Josely, et al., organizadores. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 125-134.. Ao contrário, quando a utilização dos procedimentos por meio da regulação é acompanhada de remodelagem do sistema assistencial, com responsabilização do cuidado, evita-se o desperdício de recursos, melhora-se a resolutividade e diminuem-se as filas2323 Gawryszewski ARB, Oliveira DC, Gomes AMT. Acesso ao SUS: representações e práticas de profissionais desenvolvidas nas Centrais de Regulação. Physis. 2012; 22(1):119-40..

O estudo também revela que, para os profissionais, melhorar a gestão da clínica na ESF seria a última medida a ser tomada, o que evidencia as suas dificuldades em compreendê-la como um importante instrumento para a coordenação do cuidado. De acordo com Mendes2424 Mendes EV. Redes de atenção à saúde. 2 ed. Brasília, DF: OPAS; 2011., essa gestão pauta-se em tecnologias de microgestão, sendo a principal delas as diretrizes clínicas baseadas em evidências e assistência centrada nas pessoas, em tempo e local adequados, de forma humanizada, causando o menor dano aos usuários e profissionais, com menor custo possível.

Considerações finais

O estudo evidenciou que há fragilidades quanto à regulação do acesso pelo médico da ESF, que, apesar de contribuir para a coordenação do cuidado, ainda não tem sua utilização reconhecida como uma ferramenta de gestão da clínica. Investir em capacitação e qualificação do profissional no âmbito da APS e da regulação em saúde pode promover maior resolutividade com melhor gestão do cuidado, bem como o uso racional dos recursos disponíveis.

A regulação assistencial, por ser um componente da RAS com ampla e privilegiada visão dos recursos disponíveis e da dinâmica dos serviços, deve ser considerada como grande aliada para os profissionais inseridos nas unidades de ESF, pois irá contribuir para a coordenação do cuidado e, assim, possibilitar assistência mais acessível, equânime e integral. Para tanto, é necessária melhor comunicação entre os profissionais das centrais de regulação e da ESF.

Entretanto, descentralizar o processo regulatório, tornando o médico da ESF o responsável direto pelo agendamento de alguns procedimentos e consultas, uma vez que conhece as necessidades do usuário, seu contexto clínico, social e articula seu fluxo na rede de atenção, mostra-se como alternativa à otimização da regulação de vagas.

Como limitação deste estudo, investigar a contrarreferência poderia preencher lacunas quanto à regulação dos médicos da atenção especializada para a atenção primária, de maneira a identificar os nós críticos na resolução das demandas solicitadas.

Por fim, a ESF, como ordenadora e coordenadora do cuidado, tem que deixar de ser um discurso teórico das políticas públicas e passar a exercer, de fato, seu protagonismo na RAS.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Brasil. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 2011 Out. 21; Seção 1, p. 48-55.
  • 2
    Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção Primária à Saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al., organizadores. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 493-546.
  • 3
    Costa JP, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, et al. Resolubilidade do cuidado na atenção primária: articulação multiprofissional e rede de serviços. Saúde debate, 2014 Out-Dez; 38(103):733-43.
  • 4
    Brasil. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.559, de 1 de agosto de 2008. Institui a Política Nacional de Regulação do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. 2008 ago. 4; Seção 1, p. 48.
  • 5
    Vilarins GCM, Shimizu HE, Gutierrez MMU. A Regulação em Saúde: aspectos conceituais e operacionais. Saúde debate. 2012 Out-Dez.; 36(95): 640-647, 2012.
  • 6
    Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Medicina. Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Monitoramento da Qualidade do Emprego na Estratégia Saúde da Família. Relatório de Pesquisa, Belo Horizonte: UFMG; 2012.
  • 7
    Castro Filho ED, Gusso GDF, Demarzo MMP, et al. A especialização em MFC e o desafio da qualificação médica para a Estratégia Saúde da Família: proposta de especialização, em larga escala, via educação à distância. RBMFC. 2007; 3(9):199-209.
  • 8
    Mello GA, Mattos ATR, Souto BGA, et al. Médico de família: ser ou não ser? Dilemas envolvidos na escolha desta carreira. Revista Brasileira De Educação Médica. 2009 Jul-Set; 33(3):464-71.
  • 9
    Ney MS, Rodrigues PHA. Fatores críticos para a fixação do médico na Estratégia Saúde da Família. Physis. 2012; 22(4):1293-311.
  • 10
    Damno HS, Moriyama MC, Pícoli RP, et al. Perfil profissional dos médicos atuantes na estratégia Saúde da Família no Município de Campo Grande - MS. Encontro. 2013; 16(25):125-137.
  • 11
    Piropo TGN, Amaral HOS. Telessaúde, contextos e implicações no cenário baiano. Saúde debate. 2015 Jan-Mar; 39(104):279-87.
  • 12
    Anderson MIP, Rodrigues RD. Formação de especialistas em Medicina de Família e Comunidade no Brasil: dilemas e perspectivas. RBMFC, 2011 Jan-Mar; 6(18):19-20.
  • 13
    Almeida PF, Fausto MCR, Giovanella L. Fortalecimento da atenção primária à saúde: estratégia para potencializar a coordenação dos cuidados. Rev. Panam. Salud Públ. 2011 Fev; 29(2):84-95.
  • 14
    Lima MRM, Silva MVS, Bezerra CJW, et al. Regulação em saúde: conhecimento dos profissionais da estratégia saúde da família. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste. 2013; 14(1):23-31.
  • 15
    Borowitz M, Moran V, Siciliani, L. A reviewofwaiting times policies in Organization for Economic Cooperation and Development (OECD). In: Waiting Time Policies in the Health Sector: What Works? Paris: OECD Publishing; 2013. p. 49-68.
  • 16
    Baduy RS, Feuerwerker LCM, Zucoli M, et al. A regulação assistencial e a produção do cuidado: um arranjo potente para qualificar a atenção. Cad. Saúde Pública. 2011 Fev; 27(2):295-304.
  • 17
    Santos JS, Pereira Junior GA, Bliacheriene AC, et al. Organizadores. Protocolos Clínicos e de Regulação: Acesso à rede de saúde. Rio de Janeiro: Elsevier; 2012.
  • 18
    Albuquerque MS, Fonseca SC, Alexandre GC. Acessibilidade aos serviços de saúde: uma análise a partir da Atenção Básica em Pernambuco. Saúde debate. Out 2014; 38(esp):182-94.
  • 19
    Ferreira JBB, Mishima SM, Santos JS, et al. O complexo regulador da assistência à saúde na perspectiva de seus sujeitos operadores. Interface (Botucatu). 2010 Abr-Jun; 14(33): 345-58.
  • 20
    Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo"? Saúde Soc. 2012 Abr-Jun; 21(2): 280-289.
  • 21
    Campo Grande (MS). Secretaria Municipal de Saúde. Resolução SESAU nº 206, de 27 de fevereiro de 2015. Aprova os protocolos de acesso às consultas e exames especializados de média e alta complexidade. Diário Oficial de Campo Grande - MS. [internet]. 2015 Mar. 4 [acesso em 2017 jan 2]; 1:1-66. Disponível em: http://portal.capital.ms.gov.br/egov/downloadFile.php?id=5481&fileField=arquivo_dia_ofi&table=diario_oficial&key=id_dia_ofi&sigla_sec=diogrande
    » http://portal.capital.ms.gov.br/egov/downloadFile.php?id=5481&fileField=arquivo_dia_ofi&table=diario_oficial&key=id_dia_ofi&sigla_sec=diogrande
  • 22
    Franco TB, Magalhães Júnior HM. Integralidade na assistência à saúde: a organização das linhas do cuidado. In: Merhy EE, Magalhães Júnior HM, Rimoli Josely, et al., organizadores. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 125-134.
  • 23
    Gawryszewski ARB, Oliveira DC, Gomes AMT. Acesso ao SUS: representações e práticas de profissionais desenvolvidas nas Centrais de Regulação. Physis. 2012; 22(1):119-40.
  • 24
    Mendes EV. Redes de atenção à saúde. 2 ed. Brasília, DF: OPAS; 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2017
  • Aceito
    05 Jan 2018
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Av. Brasil, 4036, sala 802, 21040-361 Rio de Janeiro - RJ Brasil, Tel. 55 21-3882-9140, Fax.55 21-2260-3782 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br