Introdução
O Projeto de Formação e Melhoria da Qualidade da Rede de Atenção à Saúde (QualiSUS-Rede) configura-se como uma proposta de intervenção na realidade do sistema de atenção à saúde no Brasil. Originou-se de um acordo de empréstimo entre o governo brasileiro e o Banco Mundial (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento – Bird), com vistas a qualificar a gestão e o cuidado em saúde, por meio da organização das Redes de Atenção à Saúde (RAS)1. Logo, o QualiSUS-Rede é objeto desta análise, não só pelo grande montante de recursos públicos a ele destinados (US$ 235 milhões)1, mas porque se registra que as intervenções realizadas pelo Bird em países de baixa e média renda, inclusive no Brasil, reafirmam a centralidade de práticas de mercado, como sistema organizador e gestor mais eficiente das políticas públicas de saúde2.
A organização de RAS, escopo principal do QualiSUS-Rede, é reconhecida internacionalmente como alternativa para superar a fragmentação dos sistemas de atenção à saúde, conforme já demonstrado por alguns países que conseguiram consolidar sistemas integrados2-6. Os sistemas fragmentados são caracterizados, entre outras questões, por um conjunto de pontos de atenção isolados que não se comunicam, ou se comunicam de forma inadequada, e que não oferecem ação contínua, longitudinal e integral à população7. Ademais, a população nem sempre se encontra adstrita, e as autoridades sanitárias têm dificuldades para efetivar a coordenação do cuidado7,8.
As primeiras iniciativas de organização de redes de atenção ocorreram, desde os anos 1990, nos estados do Ceará, Espírito Santo e Minas Gerais, e nos municípios de Curitiba e do Rio de Janeiro9. Observadas as experiências exitosas em âmbito local e a necessidade de superar a fragmentação do sistema de atenção, em 2010, foi publicada a Portaria Ministerial GM nº 4.279, que normatiza a rede de atenção à saúde no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), ainda que estivesse estabelecida no marco legal constitucional desde 19886.
Concomitantemente, desde os anos 2000, as estratégias de regionalização da saúde vêm sendo implementadas visando à integração dos serviços de atenção organizados em redes de atenção à saúde10.
Em 2011, foram publicadas as portarias das redes temáticas: Rede Cegonha – Portaria nº 1.459, de 24 de junho; Rede de Urgência e Emergência – Portaria nº 1.600, de 07 de julho; Rede de Atenção Psicossocial – Portaria nº 3.008, de 23 de dezembro; em 2012, a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, de nº 793, de 24 de abril6.
Nesse contexto, o QualiSUS-Rede caracterizou-se como a primeira estratégia formalmente adotada pelo Ministério da Saúde (MS) com o explícito objetivo de fomentar a organização das RAS, num momento em que essas se encontravam circunscritas a poucas experiências no País.
O QualiSUS-Rede se constituiu com três componentes, sendo os dois primeiros finalísticos, e o terceiro voltado para a gestão administrativa e financeira. O componente 1 visou à qualificação da gestão e do cuidado por meio da organização de redes de atenção à saúde, a partir das necessidades locais, por meio da implementação de 15 subprojetos regionais, sob responsabilidade dos estados selecionados. Desses 15 subprojetos, 10 estavam vinculados às regiões metropolitanas: Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE), Belo Horizonte (MG), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Porto Alegre (RS), ABC (SP), Teresina (PI), Belém (PA), Região Integrada de Desenvolvimento – Ride (DF/GO/MG). Os outros cinco, vinculados às regiões que apresentam características sociais e geográficas singulares, denominadas Regiões Tipo. Essas incluíam: Alto Solimões (AM), região amazônica, com destacada presença indígena; Dourados/Ponta Porã (MS), região de fronteira internacional; Peba (PE/BA), região de fronteira de desenvolvimento agrícola; Topama (TO/PA/MA), região interestadual; e Cariri (CE), região com clima semiárido. As Regiões Tipo também são reconhecidas como regiões onde prevalecem as doenças negligenciadas, têm baixa cobertura de ações e de serviços, dificuldade de fixação de profissionais e baixo índice de desenvolvimento humano1.
O componente 2, operacionalizado de forma centralizada pelo MS, buscou implementar intervenções sistêmicas estratégicas, centradas em prioridades nacionais. O propósito foi o desenvolvimento de estratégias, instrumentos e sistemas de apoio que pudessem apoiar transversalmente a implantação ou o fortalecimento das RAS1.
O componente 3, de gestão, também de responsabilidade do MS, respondeu pelos processos políticos, técnicos e administrativos inerentes ao projeto QualiSUS-Rede como um todo1.
Acredita-se que entender os fatores intervenientes e as características que foram peculiares ao modelo de gestão adotado possa contribuir para o aprimoramento da gestão pública de políticas de saúde11 e de projetos de intervenção da mesma natureza.
A análise do processo de formulação e de implementação do QualiSUS-Rede é importante pelo seu potencial de esclarecer o caminho que a intervenção percorreu e orientar futuras decisões com vistas ao aprimoramento da gestão pública, levando-se em conta as prioridades existentes, os recursos disponíveis, os processos e os resultados a serem atingidos12,13.
De igual forma, é uma oportunidade para se identificar problemas existentes na estrutura de incentivos, os quais podem explicar grande parte das dificuldades dos gestores em alcançar os resultados pretendidos, mesmo que tenham atendido a todos os requisitos estabelecidos14.
Estudos de análise estratégica são escassos na literatura, embora tenham potencial para auxiliar os gestores na tomada de decisão15,16. São mais raros ainda aqueles que exploram, para além do significado da palavra ‘pertinência’ no senso comum, as suas relações com a Teoria da Mudança (TdM).
Este artigo tem como objetivo realizar a Análise Estratégica (AE) da formulação e da implementação do QualiSUS-Rede, com ênfase no componente de gestão. Com a AE, buscou-se analisar, a partir das 3 dimensões que a compõem, a pertinência do projeto em termos de: i) priorização do problema a ser enfrentado (AE1); ii) objetivos e soluções propostos para combater o problema priorizado (AE2); iii) parcerias estabelecidas para atingir os objetivos (AE3)11,15.
A articulação da análise estratégica com a teoria da mudança se deu por meio de três eixos analíticos, a cadeia de efeitos principais e aquelas relacionadas aos seus condicionantes: a de funcionamento e a das relações17-19. Por meio dessa hibridização, pretende-se desvendar a teoria subjacente ao QualiSUS-Rede e identificar o caminho percorrido para que as atividades levassem aos resultados esperados. Isto é, o caminho causal das atividades aos resultados planejados, que mostram por que e sob quais condições espera-se que os vários elos da via causal funcionem19. Além disso, a hibridização crítica com diferentes abordagens e modelos possibilita melhor apropriação das complexidades do real20.
Nesse contexto, foram metodologicamente construídas: i) a teoria da mudança, que permitiu compreender os elos de ligação causais existentes entre os principais efeitos esperados pelo QualiSUS-Rede; ii) a teoria do funcionamento, que identificou as diretrizes técnicas, os normativos e os instrumentos legais utilizados para viabilizar as mudanças pretendidas; e iii) a teoria das relações, que possibilitou identificar as parcerias estabelecidas por meio do arranjo de gestão instituído. Em cada eixo, foram identificados eventos críticos que, em alguma medida, afetaram a rota de mudança almejada pelo QualiSUS-Rede.
Métodos
Trata-se de um estudo de caso, do tipo ex post, de base documental, com uso de técnicas e de evidências qualitativas. Foram analisados dados do período de 2006 a 2016. Compreendeu quatro etapas: i) análise documental; ii) modelização do componente de gestão da intervenção, com caracterização da teoria de mudança que lhe é subjacente19; iii) elaboração de linha do tempo para identificação de eventos críticos21; e iv) elaboração da roda de análise estratégica15.
A análise documental contemplou a revisão dos documentos referentes ao projeto, publicados ou de circulação restrita, no acervo do Departamento de Economia da Saúde, Investimento e Desenvolvimento (Desid) da Secretaria Executiva (SE). Com relação aos documentos de circulação restrita – tais como termos de compromisso estabelecidos entre o MS e as secretarias estaduais de saúde e os relatórios de monitoramento e de prestação de contas produzidos pela unidade gestora do projeto e pelas secretarias estatuais de saúde –, foi solicitado acesso ao Desid, que o concedeu por meio de manifestação de concordância de uso. Entre os documentos oficiais publicados, foram analisados: i ) documento base de avaliação do projeto22; ii) o Contrato de Empréstimo nº 7.632/2009, estabelecido entre o governo brasileiro e o Banco Mundial23; iii) definição da instituição vinculada e termo de cooperação técnica com a Fiocruz; iv) Portarias, que instituíram as instâncias gestoras em nível nacional e local e as diretrizes técnicas e operacionais para execução do projeto24-27; vi) definição dos quinze subprojetos regionais e dos recursos financeiros correspondentes27; e vii) relatório de avaliação do Bird28.
A apreciação documental se deu por meio da análise de conteúdo29,30. Para a interpretação temática, apreenderam-se os núcleos de texto significantes neles contidos.
A análise documental possibilitou a identificação dos elementos que são inerentes ao QualiSUS-Rede, tais como a normatividade, o objetivo, o contexto, os componentes operacionais, o arranjo de gestão e os atores humanos, institucionais e tecnológicos. O produto dessa análise orientou a elaboração do modelo da teoria da mudança, da linha do tempo e da roda da análise estratégica.
A elaboração do modelo da teoria da mudança, a partir da cadeia de efeitos esperados, objetivou descrever a teoria subjacente ao QualiSUS-Rede. Buscou evidenciar os elos de conexão entre o problema que originou a intervenção, as estratégias, as tecnologias, as ações adotadas para superá-los e os atores envolvidos no processo, em contexto. A cadeia de efeitos esperados (TdM), usualmente expressa por diagramas, mostra o sequenciamento lógico das atividades ou dos processos da intervenção que presumidamente levariam a eles. Inclui as relações entre os processos descritos; os riscos de ruptura de cada ligação na cadeia; e a caracterização de outros fatores explicativos (explicações rivais) para a mudança esperada19. Embora representada linearmente, representa múltiplas interações entre eventos complexos, imbricados e dinâmicos31.
A elaboração da linha do tempo se deu numa perspectiva histórica, compreendendo o processo de formulação e de implementação, impresso pelo modelo de gestão adotado, desde o primeiro documento oficial de instituição do QualiSUS-Rede até os relatórios finais de prestação de contas. O objetivo desse movimento metodológico foi apreciar o contexto, identificar possíveis eventos críticos que resultaram em intensificação, atrasos e interrupções na implementação, para, com isso, evidenciar as lacunas ocorridas entre um efeito esperado e outro.
Qualificam-se como eventos críticos aqueles que por sua ocorrência geram consequências e levam à reconfiguração da intervenção21. Compreende-se como naturalmente presentes nesse processo controvérsias que surgem a partir de diferenças existentes entre as posições dos vários atores envolvidos, pontos de vista, projetos sociais e políticos de cada um ou qualquer outra questão que esteja conjunturalmente em jogo16,21,32. Pressupõe-se que os eventos críticos materializem controvérsias atinentes ao processo de formulação e de implementação.
O modelo da análise estratégica é expresso por meio da figura da roda da análise estratégica, onde estão contidas as 3 dimensões que a compõem e que movem a roda. A elaboração da roda se deu com base em elementos contextuais datados15, identificados nos documentos normativos da intervenção em análise. Desta forma, as respostas às questões centrais fundam-se na exploração concomitante de fatores contextuais, situados historicamente, que permitiram a síntese avaliativa. A síntese avaliativa (lições aprendidas) teve como objetivo sistematizar hipóteses explicativas plausíveis às questões colocadas e reúne a análise estratégica fundada na teoria da mudança.
Este estudo atendeu à Resolução nº 466/12, artigo XIII.3, e à Resolução nº 510, de 7/4/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Resultados
Os resultados são apresentados com base em três conjuntos de informações. O modelo da teoria da mudança, a linha do tempo, com identificação dos eventos críticos, e a roda da análise estratégica.
O modelo da teoria da mudança (figura 1) apresenta no eixo central da figura a cadeia de efeitos resultantes dos eventos sucessivos ocorridos no processo de formulação e de implementação do QualiSUS-Rede. As relações de condicionamento desses efeitos são representadas nos dois eixos laterais da figura, que, de forma sintetizada, descrevem as atividades que foram os requisitos condicionantes à sucessão dos resultados na cadeia de efeitos (necessários e suficientes).

Fonte: Elaboração própria, 2019.
Figura 1 Modelo de Teoria da Mudança do Projeto de Formação e Melhoria da Qualidade da Rede de Atenção à Saúde – QualiSUS-Rede, 2019
No eixo lateral direito, estão representados os pressupostos (a teoria de funcionamento), isto é, quais são, onde e quando os dispositivos e as ações técnicas da intervenção foram mobilizados para que o efeito subsequente na cadeia acontecesse.
No eixo lateral esquerdo estão representadas as interações entre os atores-chave que atuaram na intervenção e explicitam a teoria das relações formalizadas. Esses atores estão diretamente ligados aos dispositivos e às ações técnicas, citados na teoria de funcionamento, que, quando em interação convergente, conduzem à produção sucessiva de cada efeito.
Na etapa de formulação do QualiSUS-Rede, liderada pelo MS e pelo Bird, foi definido o problema a ser enfrentado e negociado com a Secretaria de Assuntos Internacionais (Seain), do Ministério da Economia, Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPOG), e a solicitação de empréstimo ao Bird, para prover os recursos necessários à execução do projeto.
A aprovação da proposta se deu de forma articulada com outras instituições federais, tais como o Senado Federal, para aprovação do acordo de empréstimo no Congresso. Após a assinatura do acordo de empréstimo, deliberou-se que o projeto seria desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição vinculada ao MS. Cerca de um ano depois, o MS, pós-eleições presidenciais e sob nova gestão, retomou para si a execução do projeto e propôs um novo arranjo de gestão para a implementação, tendo o Desid como coordenador do processo33.
O arranjo formalizou as seguintes instâncias gestoras: i) Comitê Geral de Implementação (CGI), composto por representantes de todas as secretarias do MS, do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), cuja atribuição foi estabelecer as prioridades de investimento, as normativas, as diretrizes técnicas e políticas e a seleção das regiões participantes; e ii) Unidade Gestora do Projeto (UGP), responsável pela coordenação geral (administrativa e financeira) do Projeto. A UGP foi composta por uma coordenação geral, um responsável por cada um dos componentes e por especialistas contratados. Para a implementação técnica das ações definidas no CGI, a UGP contava com o apoio técnico das demais secretarias do MS25,33.
O CGI e a UGP intensificaram a articulação com os estados, encarregados de propor os subprojetos regionais. Foram criados os Grupos Condutores (GC), que viabilizaram a identificação das demandas locais, a formulação, implementação e o monitoramento dos subprojetos regionais, sob aprovação das Comissões Intergestores Regionais (CIR). A composição dos GC deveria incluir, no mínimo, três representantes da SES, um dos municípios envolvidos, um do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de Goiás (Cosems), um apoiador local do MS e, quando necessário, instituições de ensino e pesquisa. Identificou-se que a composição do GC variou em número, de um para outro34.
O financiamento dos subprojetos regionais alinhou-se às diretrizes estratégicas estabelecidas pelo MS para o período de 2011 a 2014, no que diz respeito à qualificação do cuidado e da gestão em saúde. Cinco eixos de financiamento orientaram a elaboração dos subprojetos e dos respectivos planos de aquisições: 1 – Atenção Primária à Saúde; 2 – Redes Temáticas de Atenção à Saúde; 3 – Sistemas de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT); 4 – Sistema de Apoio Logístico; e 5 – Fortalecimento da Governança Regional. Os 3 últimos compõem a estrutura operacional da rede de atenção. Após aprovação dos subprojetos, pelo MS e pelo Bird, os grupos condutores deveriam elaborar os respectivos planos de aquisições, para manifestação de não objeção pelo Bird34. O processo de análise ocorreu entre os meses de março e dezembro de 2012.
Por meio do componente 1, foram financiados quinze subprojetos regionais. Identificou-se que todos os subprojetos contemplaram nos planos de trabalho pelo menos 3 dos 5 eixos de financiamento, sendo que a maioria investiu nos 5.
Com relação ao componente 2, o relatório final do projeto valorizou quatro intervenções sistêmicas: curso de formação de apoiadores temáticos em ambiência na saúde; qualificação da gestão de tecnologias médico-hospitalares nas RAS, com o objetivo de mapear a capacidade de gestão dos equipamentos médico-hospitalares com foco nas Redes Temáticas Cegonha e Urgência e Emergência; qualificação da gestão da assistência farmacêutica nas RAS e implementação tecnológica do e-SUS-AB. Havia uma previsão de financiamento de um conjunto de tipos de estudos para apoiar a implementação do projeto. Apesar da iniciativa de contratação de 5 estudos, nenhuma delas foi concluída28.
A figura 1 indica algumas influências externas e efeitos não intencionais que influenciaram o projeto, tais como a burocracia em torno das regras de licitação nacionais e do Bird e a limitada capacidade técnica local para lidar com os processos de aquisição; a descontinuidade nas equipes, a extinção do Departamento de Articulação das Redes de Atenção à Saúde (Daras/MS), a publicação da Portaria GM/MS nº 4.279/201035 e o Decreto Federal nº 7.508, de 28 de junho de 201136.
A linha do tempo do QualiSUS-Rede (figura 2) apresenta de forma destacada, sombreados, alguns eventos críticos que contribuíram para a alteração de rotas na gestão do projeto.

Fonte: Elaboração própria.
Figura 2 Linha do tempo do processo de formulação e implementação do Projeto de Formação e Melhoria da Qualidade da Rede de Atenção à Saúde – QualiSUS-Rede (Brasil, 2006-2016)
O primeiro evento crítico identificado foi o prazo para execução do projeto, o qual estava previsto para dez anos, contemplando duas fases. O recurso financeiro planejado para a primeira fase foi de US$ 235 milhões, e para a segunda, de US$ 265 milhões, oriundos de acordo de empréstimo com o Bird. A contrapartida do governo federal se daria por meio das políticas vigentes, sem incremento obrigatório de recursos financeiros novos. No entanto, após a assinatura do acordo de empréstimo, o prazo de execução foi limitado a quatro anos e seis meses, condensando-se as duas fases previstas em uma, com recursos financeiros totais no valor do estabelecido para a primeira fase. Outro evento crítico foi o fato de que a instituição vinculada designada para execução em 2010 não movimentou o projeto em 2010. Esse fato atrasou a execução do projeto em pelo menos um ano.
Houve mudança na rota da gestão do QualiSUS-Rede quando o CGI definiu os parâmetros técnicos para a seleção das regiões e recursos para os subprojetos em 2011. Observou-se nesse momento que o documento de avaliação do projeto previu que a seleção dos subprojetos contemplaria até quinze unidades federadas e que se dariam por livre concorrência, sendo qualquer estado elegível para submeter projetos a apreciação. No entanto, o CGI optou por estabelecer parâmetros de inclusão que por si definiram os estados que seriam convidados a apresentar os subprojetos regionais34. Ainda que se reconheça que os critérios foram abrangentes, isso reduziu o escopo da concorrência. Destaque-se que o tempo decorrido para a formulação da intervenção, entre a elaboração da carta consulta e a assinatura do acordo, foi de 3 anos e 10 meses.
Pode-se afirmar que a implementação do QualiSUS-Rede deriva de um processo longo de negociação entre o governo brasileiro e o Bird. Em 2014, registrava-se baixa execução financeira dos orçamentos disponíveis para os dois componentes do projeto. Diante desse cenário crítico, houve consenso entre o MS e o Bird sobre a necessidade de se prorrogar o prazo de execução do QualiSUS-Rede. Assim, o projeto foi prorrogado em 16 meses, redefinindo-se o encerramento para dezembro de 201528.
A roda da análise estratégica (figura 3) descreve os elementos que a compõem, considerando-se as três dimensões que lhe são inerentes. A primeira dimensão de análise (AE1) verificou a pertinência do problema selecionado, frente ao conjunto de problemas listados, pelos gestores. Os principais problemas foram: uso incipiente de mecanismos e instrumentos de gestão (planejamento, monitoramento e avaliação); financiamento público insuficiente e fragmentado; redes de atenção à saúde desorganizadas e cuidado e gestão em saúde desqualificados; e reduzida capacidade da gestão em prover conhecimento técnico para melhoria da qualidade da atenção. Entre os problemas listados, os gestores federais optaram por intervir na qualificação do cuidado e da gestão em saúde, por meio da organização de redes de atenção à saúde, tornando-o o objetivo da intervenção.

Fonte: Adaptado de Champagne F, et al.11.
Figura 3 Roda da Análise Estratégica da implementação do Projeto de Formação e Melhoria da Qualidade da Rede de Atenção à Saúde – QualiSUS-Rede, 2019
A segunda dimensão de análise (AE2) verificou se os objetivos estratégicos (soluções) propostos estariam adequados para responder às situações-problema, sendo elas: fortalecer e incorporar o uso dos mecanismos e instrumentos de gestão governamental e organizacional; financiar experiências de organização de redes e arranjos de gestão; estabelecer diretrizes técnicas e operacionais para implementação das redes e para a qualificação do cuidado; identificar atores estratégicos, problemas e prioridades locais; e produzir conhecimento para melhoria da qualidade da atenção. Sua importância está relacionada à possiblidade de se verificar a racionalidade causal da intervenção no contexto.
A terceira dimensão (AE3) verificou a pertinência dos atores envolvidos e as relações e conexões existente entre eles, assim como aprofundou a discussão sobre as respectivas atuações para lidar com as limitações administrativas e políticas inerentes ao processo de implementação. Percebeu-se que, teoricamente, a participação se deu de forma ampla, seja no nível federal, nos níveis estadual e local, conforme apresentado no modelo de teoria de mudança, descrito na teoria de funcionamento e na linha do tempo, mas não se identificou na documentação a participação de instituições da sociedade civil.
Discussões
A teoria de mudança e a identificação dos eventos críticos por meio da organização cronológica das ações do QualiSUS-Rede, registradas na linha do tempo, desvelaram o modelo de gestão adotado e iluminaram o processo de formulação, favorecendo o conhecimento das ações implementadas. Essas duas abordagens permitiram a identificação dos condicionantes da estratégia QualiSUS-Rede de forma a embasar a exploração empírica das dimensões da AE. Os três eixos não devem e não foram interpretados como paralelos, pois são conjuntos de pressupostos a serem compreendidos de forma interativa19,31,37. Em outras palavras, os eixos laterais são condições para a ocorrência dos efeitos do eixo central, expressam as condições ‘se’ e ‘então’, do inglês ‘if’ and ‘then’. Neste artigo, esse é o norteador da discussão.
Observou-se que a formulação do projeto QualiSUS-Rede contou com a participação de gestores que atuavam no MS e no Banco Mundial, cujas relações geraram um modelo de gestão que não incluiu outros atores estratégicos, na fase de formulação do projeto.
A análise estratégica evidenciou que a escolha do problema foi bem-sucedida (AE1). Primeiro, a necessidade de organização das RAS não é tema novo no Brasil, e as evidências sugerem que a organização das RAS é problemática no contexto do SUS. As estratégias de organização das RAS adotadas no Brasil se apoiam em experiências de outros países que construíram sistemas universais de saúde38. O desenho da federação brasileira e as dificuldades de articulação com as quais os vários municípios de uma mesma região se defrontam quando procuram promover a integração e a hierarquização dos serviços de saúde, em especial, da rede de atenção básica com os níveis mais altos de complexidade, são alguns desses problemas39-41.
A inclusão de atores dos três níveis de gestão só ocorreu no processo de implementação quando todas as diretrizes técnicas, de financiamento e normativas já estavam definidas pelo nível central, e não inclui atores do controle social. Revisões sistemáticas realizadas sobre a transformação de grandes sistemas de saúde advogam que a participação de todos os atores interessados é condição essencial quando se propõem a modelar o sistema de saúde, em torno de objetivos comuns10,42.
Quanto à apreciação de adequação e conformidade das escolhas de ações e estratégias adotadas (AE2), pode-se afirmar que investir na estrutura operacional da rede, por meio dos subprojetos regionais, configurou-se como uma opção alinhada à perspectiva de sustentabilidade da implementação da RAS e accountability mútua43, portanto, uma escolha adequada. Afirma-se que a falta de entendimento sobre a totalidade da estrutura operacional (dispositivos de funcionamento) tem sido responsável por problemas de implantação das redes, justificada pela pouca atenção dada à organização dos sistemas de apoio, logísticos e de governança44.
Os subprojetos elaborados, compostos por muitos dos eixos temáticos disponibilizados para financiamento, mostraram que o processo de priorização técnica para definir-se o investimento necessário para atender às diversas necessidades inerentes à organização das redes de atenção levou os gestores a não observarem a existência de suficiência e a otimização dos recursos financeiros com base nos objetivos comuns, mas nas necessidades individuais dos municípios. Deve-se considerar que a implementação de uma política se dá com muitas incertezas, uma vez que o envolvimento de múltiplos atores, geralmente com concepções e interesses próprios, e não necessariamente coincidentes, pode levar a ambientes de disputas e dificuldades de centralidade em torno de objetivos comuns14.
Além disso, dar operacionalidade e concretude à execução dos subprojetos regionais num contexto de desmobilização dos grupos de trabalho locais, causados pelos diferentes períodos eleitorais e de mudanças governamentais, imprimiu morosidade na execução do projeto, ainda que os grupos condutores, com apoio dos apoiadores locais que atuaram como interlocutores entre os estados e o MS, tenham feito seu papel de dinamizar as agendas e se dedicado a manter regularidade na execução45,46.
A necessidade de fazer convergirem as regras de licitação existentes no Brasil com as regras estabelecidas pelo Bird para aquisição de bens e serviços foi um fator de dificuldade e agregou demora na consecução das aquisições. A administração pública tem problemas nesse setor. Ainda há carência de profissionais para atuarem nessa área, e a instrumentalização desses processos é precária, comprometendo-se a fase mais importante da licitação, que é a de planejamento do certame, que se relaciona com: especificação, quantificação, pesquisa de mercado, estimativa de preço, elaboração do projeto básico ou do termo de referência47,48.
Identificaram-se múltiplas tentativas de contratação dos estudos sistêmicos catalizadores da implementação referente ao componente 2. Atender à modalidade de contratação praticada pelo Bird para essa ação, em função do tempo disponível para realizá-la, mostrou-se inadequado. A duração, em torno de 24 meses do início à conclusão do processo, inviabilizou a realização dos estudos previstos.
Com relação à terceira dimensão que compõe a Análise Estratégica (AE3), exceto na formulação, verificou-se a pertinência das parcerias estabelecidas. No nível federal, todas as secretarias do MS compuseram o arranjo de gestão. Já no nível estatual, os grupos condutores foram compostos por representantes das secretarias estaduais e municipais de saúde, dos Cosems e de universidades1.
Percebeu-se, ao analisar as atas de reunião da UGP, que houve desmobilização do CGI no decorrer do terceiro ano de execução. Isso não se explica apenas pelo esvaziamento de suas competências político-estratégicas, à medida que o projeto progredia no processo de sua execução, mas pelo fato de que a execução incipiente tornou invisível a necessidade de acompanhamento por parte desses atores. A adoção de uma política não necessariamente garante a sua implementação, que pode encontrar resistência, ser cooptada ou transformada, muitas vezes tornando-se sem significado em face dos muitos atores e interesses que a compõem14.
Toda indução financeira gera ritos formais e não formais. O rito formal está explícito no modelo normativo operacional adotado, que por si só engendra arranjos contextuais que se corporificam como arranjos não formais ou tácitos, através dos mecanismos e processos de implementação. A indução catalizadora não se implementa linearmente, mas ocorre submersa em contextos nos quais fatores complicadores constantemente requerem negociações, ajustes internos e mesmo desvios do objetivo proposto.
Considerações finais
Este estudo viabilizou o conhecimento do caminho percorrido pelo Qualisus-Rede, da formulação à implementação, com seus resultados esperados, expressos nos modelos elaborados. Ao desvelar a cadeia de causalidade explicitada nos normativos que orientaram a implementação da intervenção, identificaram-se as hipóteses de mudança esperadas pelo QualiSUS-Rede. Os modelos se mostraram potentes para identificar todos os atores envolvidos e suas respectivas ligações com a teoria de funcionamento para produção dos efeitos de causalidade.
As evidências apontaram três aspectos fundamentais para o aprimoramento da gestão do QualiSUS-Rede: i) a agilização dos tempos institucionais; ii) a fragilidade do modelo institucional de monitoramento e avaliação da estratégia; e iii) dificuldade das instâncias internas do projeto com a gestão de riscos, especialmente daqueles originários dos períodos de transição de governo. Todos se relacionam à prospecção de contexto, análise dos riscos e pactuação da hierarquia de valor agregado, inerentes à apreciação ex ante da estratégia e relacionados à sua modelização.
A análise estratégica evidenciou que os arranjos de gestão não se formam apenas em espaços formais de negociação, principalmente no âmbito regional/local. O fato incontestável é que, nesse âmbito, os arranjos não se sustentam e se descontinuam. Assim, parece recomendável a exploração desses, por estudos que utilizem a teoria de mudança, esquadrinhem de maneira explícita a racionalidade causal da estratégia adotada. Mais significativa ainda parece ser a necessidade de, no momento de formulação, desenhar não só o modo de funcionamento técnico, mas antecipar as relações entre os atores e seus interesses coletivos e/ou privados que tenham prevalecido nas negociações e nos acordos. Da mesma forma, são requeridos estudos sobre modelos de monitoramento capazes de informar a ação, prática ainda incipiente na implementação de políticas públicas no Brasil.
No processo de mobilização de teorias que tornassem explícitos os pressupostos que informaram o QualiSUS-Rede, a utilização da teoria da mudança e de seus componentes lógicos (racionalidade causal, teoria de funcionamento e teoria das relações) para a modelização das etapas da análise estratégica tornou a construção de evidências transparente, possibilitando a validação por pares e viabilizando devolutivas úteis para o aprimoramento institucional.
O estudo demonstrou potência de se trabalhar com múltiplas estratégias metodológicas, com base na teoria da intervenção, considerando a cadeia de efeitos e causalidades que compuseram a intervenção. O estudo aqui apresentado, aplicado ao QualiSUS-Rede, configura-se, no entendimento dos autores, um caminho para teorização de outras intervenções de mesma natureza, considerando naturalmente as especificidades e os contextos em que cada um se insere.