Introdução
Estudos sobre a trajetória da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) apontam para sua fragilidade em função da ausência, ao longo do processo, da ampliação da base social, por priorizar uma atuação a partir do interior do Aparelho de Estado em uma perspectiva de ‘quebra do Estado’, configurando o que se caracterizou, conforme Oliveira1, como Reforma Sanitária ‘pelo alto’. Mais recentemente, Dantas2 retoma essa abordagem com maior profundidade ao discutir o afastamento do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) da perspectiva emancipatória de caráter socialista.
Cabe ressaltar também a quase ausência, durante seu desenrolar, da discussão do processo de acumulação de forças e de formulação teórico-prática encetado pelo Movimento Sindical Brasileiro (MSB)3,4; o que Cohn5, quando analisava, nos anos 1990, a literatura sobre o MRSB, considerou também uma deficiência já que
[...] ainda continua a imperar o desconhecimento desses atores sociais, […] qualificados pelos marcos teóricos de nível macro de análise, e não por suas práticas concretas5(99).
Acontece que, no final dos anos 1970, o MRSB, de maneira explícita, assume como campo de luta as relações trabalho e saúde6,7, conforme duas estratégias: articulando-se, internamente, suprapartidária e intersindicalmente e, externamente, em aliança com setores intelectuais médios, criando um organismo que desenvolve papel de verdadeiro ‘intelectual orgânico’8, o Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat), projeto resgatado da experiência histórica do próprio MRSB, com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Mesmo sob ditadura empresarial-militar, o MRSB reivindicava saúde no trabalho, negociando com o empresariado sem a intervenção do Estado7. De modo autônomo, construía convenções e acordos coletivos de trabalho, mediante a negociação de cláusulas relativas à organização nos locais de trabalho visando ao controle da nocividade, e em defesa da saúde, ou criando assessorias técnicas sindicais para credenciar-se nos embates com o capital6,7. Com tais práticas, questionava a postura patronal manipuladora no que se refere às informações relativas às condições e ambientes de trabalho insalubres e sua repercussão na saúde dos trabalhadores, mediante avaliações públicas dessas condições/ambientes, tornando público aquilo que era privado4.
Ademais, a luta pela defesa da saúde no trabalho evolui para a criação de uma proposta de Política de Saúde do Trabalhador consubstanciada nos então chamados Programas de Saúde do Trabalhador (PST) por meio do desenvolvimento de ações programáticas voltadas à saúde dos trabalhadores na rede básica, ainda durante a vigência das Ações Integradas de Saúde, ou seja, antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da municipalização da saúde9-11.
Uma destas experiências, O PST do Trabalhador Químico do ABCD, que funcionou de 1984 a 1988 nas cidades de Diadema, Mauá, Santo André, incorporou aspectos que se pode chamar de revolucionários. Eram eles: gestão compartilhada com Sindicato dos Trabalhadores Químicos do ABCD; horário de funcionamento das 17 horas às 21 horas; entrega do prontuário médico para o trabalhador; atuação do agente sindical de saúde que compunha a equipe de saúde e era capacitado para colher a história de trabalho de seus pares, sendo o primeiro contato do trabalhador quando adentrava aos centros de saúde, ligados à Secretaria de Estado da Saúde, para posterior consulta médica; não definição de tempo para duração da consulta médica. Posteriormente, o programa foi estendido para atender aos trabalhadores da construção civil de São Caetano do Sul12.
Aqui é pertinente apontar que o Grupo de Trabalho sobre Saúde do Trabalhador criado para assessorar a Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS) apontava esse avanço das experiências em serviço no campo Saúde do Trabalhador (ST) quando apresentou seu texto final submetido à Comissão13,14, a qual forneceu importantes subsídios políticos e técnicos para a instituição, mesmo retardatária de direitos sociais no Brasil, incluído o direito à saúde, inscrito pela primeira vez na Constituição Federal de 1988 (CF/1988)15.
Para além dos inegáveis efeitos positivos, sociais e políticos que a Carta Maior representou, ao mesmo tempo, foram sendo criados obstáculos para a efetivação daqueles direitos. Frise-se que, do ponto de vista sócio-econômico-político, a CF/1988 foi sendo desfigurada já a partir do início dos anos 1990, quando passa a configurar-se o projeto de Estado, calcado no neoliberalismo, projeto de poder político-ideológico16 que acabou por inverter o significado real das conquistas, ou seja, o Brasil teve, enfim, uma Constituição avançada socialmente, mas, na realidade, sua concretização esbarrou na reestruturação do papel do Estado, de cunho neoliberal17.
Ademais, com efeito pós-CF/1988, o acesso aos direitos ocorre de forma fragmentada. Assim, desde meados de 1990, a gestão de serviços públicos é repassada para ‘entidades parceiras’, na perspectiva da privatização do espaço público18. Dessa forma, as políticas sociais foram transformadas em um nicho de mercado, pois deixam de ser papel do Estado, passando a sê-lo de entidades privadas, mediante repasse de recursos financeiros públicos, sem assumir as responsabilidades ou normas da administração pública19.
Não obstante, em âmbito nacional e internacional, debate-se acerca do real papel do Estado a partir da crise econômica de 2008; e, em resposta, medidas vêm sendo tomadas para superar barreiras das taxas de acumulação e, ao mesmo tempo, ampliar a dominância do Capital em âmbito mundial. Essas medidas estão alinhadas ao aprofundamento da exploração do trabalho e da retirada de direitos, impactando profundamente a vida social20.
Tendo como referência o olhar do campo ST7 - e considerando a origem contemporânea do MRSB e do MSST - objetiva-se, no presente artigo, discutir se o que foi entendido como a estreita base social da Reforma Sanitária1,2 poderia ter sido superada e enfrentada com uma maior aproximação entre ambos os movimentos, em uma espécie de sinergia político-programática.
Aspectos metodológicos
Ao buscar discutir pelo olhar da ST a Reforma Sanitária, partimos da análise bibliográfica e documental, com especial atenção na fragilidade da base social da Reforma Sanitária.
Considerando-se a problemática acima discutida, e o fato de que o MRSB tem como marco institucional a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), consultou-se a coletânea da revista ‘Saúde em Debate’, no período de 1976 a 1998, identificando os números 321, 922, 1123 e 1224 que trataram da temática ST. Registre-se que, em 1976, foi publicado o primeiro número do periódico, mas foi somente no número 11, em 1981, que se detecta uma maior aproximação com a temática trabalho e saúde, mediante ampla pauta a ela dedicada, inclusive com um artigo de Laurell25, uma das principais pesquisadoras sobre as relações trabalho-saúde em uma perspectiva progressista e que teve grande influência no Brasil.
A essa ‘garimpagem’, somou-se consulta aos documentos elaborados pela Comissão Nacional da Reforma Sanitária13,14, além de artigos, livros26 e capítulos de livros, especialmente do livro que relata a história da Reforma Sanitária27.
Além disso, foram consultadas publicações produzidas pelo Diesat3,4, bem como relatório de pesquisa na qual foram analisados aspectos importantes da experiência do PST do ABCD12, já referido, ao que se aliou o resgate de livros de autores fundamentais da Reforma Sanitária26,27 e do Modelo Operário Italiano7.
A origem comum e a deficiente base social da Reforma Sanitária
Quanto à origem da RSB, estudiosos têm apontado o importante papel desempenhado pela Academia, nos anos 1970-80, particularmente a partir de formulações teórico-metodológicas desenvolvidas pelos Departamentos de Medicina Preventiva e Social (DMPS)28 que funcionaram como polos irradiadores de propostas sobre a reforma do sistema nacional de saúde29; pela criação do Cebes (e da revista ‘Saúde em Debate’) e pela fundação da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) em 1979.
Ademais, é assinalada a capacidade dos atores do MRSB em atuar na conjuntura do final da década de 1970, marcada pela luta da anistia, pela redemocratização e denúncia dos impactos da política econômica e social sobre a saúde e as condições de vida das classes trabalhadoras, buscando, em particular, propor ‘soluções inovadoras’ que, dentro ou fora das universidades, propiciaram a criação, conforme assinala Teixeira29
[...] de centros de pesquisa em saúde coletiva […] de uma entidade nacional, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde [...] a publicação de uma revista ‘Saúde em Debate’ e de vários livros, as inúmeras conferências e debates respondiam às necessidades de difusão ideológica198.
De acordo com Sato, Lacaz e Bernardo30 e Tambellini31, percurso semelhante cursou o MSST, que, em um momento contemporâneo ao do surgimento do Cebes, criou a Comissão Intersindical de Saúde do Trabalhador (Cisat), em 1978, a qual passou a promover, desde 1979, as Semanas de Saúde do Trabalhador (Semsat)3,32, além de criar a revista Trabalho & Saúde3,6,7.
Ao lado disso, o MSST promoveu intenso debate mediante fóruns, seminários e encontros que visaram desmascarar e denunciar a política de higiene e segurança do trabalho adotada pelo Estado, por meio do Ministério do Trabalho, a qual, segundo propaganda oficial, teria levado à melhoria das condições de trabalho, expressa na queda dos acidentes de trabalho no País, a partir de meados/final dos 19703, época das grandes greves em todo território nacional, muitas delas de notório caráter político-contestador4.
Para corroborar o divórcio das questões relacionadas com a saúde no trabalho, durante a Constituinte, assim coloca-se Fleury:
E aí eu identifico no deputado Eduardo Jorge [PT] a tentativa de colocar mais claramente na constituição federal os direitos em relação à saúde do trabalhador, dos quais não entrou quase nada [...]27(233).
Aceitando o que é apontado como o principal aspecto criticável do MRSB, ou seja, sua estreita base social2,26,28, cabe perguntar: tal realidade seria explicada pela trajetória e origem assumidas pelo MRSB?
Essa é uma possível explicação, na medida em que poderia ter como importante aliado o MSST em sua luta pela defesa da incorporação de ações em ST8 na rede pública9, contemporânea ao MRSB e também voltada para a luta pela implantação de um Sistema Nacional de Saúde33,34.
Tal aliança seria benéfica, mesmo considerando-se a diferença quanto ao objetivo imediato buscado, ou seja, a principal proposição do MSST seria compartilhada com um ator social que, pelo menos no discurso, também era privilegiado pelo MRSB um “[...] aliado potencial: o trabalhador adoecido no processo de produção”29(198), conforme o discurso do MRSB na busca de aliados na sociedade civil.
Ocorre que a categoria trabalho era (e ainda é) desconsiderada enquanto determinante para o desenvolvimento de doenças, embora as estatísticas recém-criadas pela estatização do seguro acidente de trabalho a denunciasse8,9.
Ademais, aquela trajetória e origem comum também eram sustentadas, segundo Mendes35, pelas formulações teórico-metodológicas, acrescida da formação de quadros provenientes dos DMPS, o que já havia sido assinalado por Tambellini31, ao considerá-los espaços privilegiados de produção das principais contribuições do estudo das relações saúde-trabalho e processo saúde/doença.
As formulações das ‘medicinas preventivas’28,31, subsidiaram a incorporação pela rede pública de saúde das ações programáticas em ST, as quais foram ‘interlocutoras’ do movimento sindical9 em sua aproximação com as questões relativas à saúde-trabalho, ao caminhar rumo ao rompimento com o assistencialismo médico sindical, teimosa herança do Estado Novo getulista8.
Tal transformação ocorre a partir do início dos 1980, o que também passou desapercebido pelos teóricos do MRSB. Tal fato é intrigante por si só, particularmente quando se constata que o Movimento Sindical assumiu a defesa de um modelo não privatista e de boa qualidade como bandeira - especialmente categorias como químicos, bancários e metalúrgicos3 -, apesar de continuarem garantindo, contraditoriamente, nos acordos coletivos firmados com os empresários “[...] a assistência médica supletiva, oferecida pelo setor privado e principalmente pelas empresas de medicina de grupo”36(10).
Nessa ‘aproximação’ com a saúde pública37, o MSST atuou politicamente denunciando serviços médicos de empresa caracterizados pela baixa cobertura e cujas práticas antiéticas, visando rígido controle da força de trabalho38, foram desnudadas pela ação/denúncia dos PST8.
Existem claros exemplos de enfrentamento por parte dos sindicatos de trabalhadores, que passaram a atuar na gestão dos PST, amplamente relatados em livro publicado em 1989 resultante de pesquisas empreendidas pelo Diesat por demanda dos sindicatos filiados4.
Assim, parece não ter sido apenas a origem acadêmica o elemento único a influenciar a base social das experiências dos PST, quando tiveram como razão de sua existência o movimento social dos trabalhadores e por terem surgido no bojo da mesma conjuntura política em que se originou o MRSB.
Na época, vicejam as formulações teórico-metodológicas da saúde coletiva que recuperaram a categoria trabalho na determinação do processo saúde-doença. Apontavam o papel determinante do trabalho, indicaram-no como espaço concreto de exploração e deram relevo à defesa da saúde no trabalho operário como expressão concreta dessa exploração7,38.
Concomitantemente, sindicatos em várias partes do mundo inscrevem a saúde como uma de suas pautas de reivindicação, passando a questionar o modelo da medicina do trabalho, centrado no saber médico, o que subsidiará estudos sobre saúde dos trabalhadores7,36.
Também é preciso considerar as práticas em ST, expressas hoje na ação dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), englobados na Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast)39, como parte da Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho40 e da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora41, propostas pelo Ministério da Saúde, temas caros ao MSST.
Trata-se da introdução de novas formas de organização e gestão do trabalho em saúde, procurando romper com a hegemonia médica, ao enfatizar a atuação em equipe e a educação em saúde como elemento de busca da ‘consciência sanitária’42.
Paralelamente, prioriza a troca de saberes entre: ‘coletivo-médico-sanitário’ e ‘clientela-usuária/trabalhadora-cidadã’, apreendida pelo serviço mediante sua inserção social na produção, não pelo consumo, como é costumeiro nos serviços de saúde, ao lado de coletivizar as experiências particulares, dinamizando as tarefas das equipes de saúde43, aliando o atendimento individual à intervenção sobre os ambientes de trabalho pelas ações de vigilância em ST8,9 de caráter multiprofissional e dando consequência preventiva às informações colhidas no momento da história profissional.
Essa prática evidencia elemento importante salientado no ‘revisionismo’ sobre o MRSB, conforme Fleury44, prócer da Reforma Sanitária, corroborando nossa avaliação:
[...] ao não questionar o modelo médico de atenção à saúde, o projeto reformador acaba por perder o seu conteúdo de radicalidade democrática, de desalienação, para enquadrar-se como razão administrativa que, destematizando a potencialidade política e conflitiva deste processo, acaba por acarretar a passividade consumista dos ‘cidadãos’44(10).
Assim, é necessário pautar a reflexão sobre o modelo assistencial já que, entendemos, seu não questionamento relaciona-se com o esgotamento do MRSB, como já apontaram Oliveira1, Cohn5, Fleury44,45, Lacaz33 e Dantas2.
Frise-se que, na conjuntura analisada, a influência da Reforma Sanitária Italiana (RSI)46 é marcante no Brasil, tanto como espelho para a RSB como referência para a luta do MSST, o qual espelhava-se na trajetória do Movimento Operário Italiano, que foi amplamente divulgado e compartilhado entre nós22,46.
Tal lembrança remete à necessidade de a RSB precisar construir uma base social de apoio, como ocorreu na RSI , cujas características mais importantes foram: ter contado com uma ampla base social, coroando processo de acumulação de forças hegemonizado por partidos políticos de esquerda, tendo à frente o extinto Partido Comunista Italiano que traçou como seu eixo condutor principal a luta pela saúde nas fábricas, através do controle da nocividade do trabalho visando superação da ‘monetização do risco’, conforme acontecia no período fascista e no imediato pós-guerra dentro da lógica capitalista de relações capital-trabalho42,46.
Por isso, causa espanto como foi muito pouco estudada, na análise da fragilidade da RSB, a luta empreendida pelo MSB na consolidação de um projeto que dura quase 40 anos11. É algo de estranhar já que, saliente-se, foi originado contemporaneamente ao MRSB, tendo durante algum tempo contado com o envolvimento de intelectuais engajados no trabalho de consolidação da proposta do Cebes, organismo este que ocupou de forma destacada espaço privilegiado de articulação da sociedade civil no debate e discussão dos pressupostos da nossa Reforma Sanitária26,44,45.
Cabe-nos, aqui, realçar essa lacuna observada nos estudos sobre a RSB e levantar questões que contribuam para iluminar o caminho trilhado pelo movimento sindical desde 1978 quando, ao engendrar aliança política com intelectuais oriundos do movimento sanitário, traçou a estratégia de se aparelhar para a luta pela saúde nos locais de trabalho7, criou a Cisat3. Outrossim, como já apontamos anteriormente, passou a realizar e protagonizar encontros, debates, seminários e as Semsats, marcos históricos da articulação entre o movimento sindical e setores médios representados por intelectuais, técnicos e acadêmicos.
Entendemos que, de certa forma, tal estratégia mimetiza o papel desempenhado pelo bloco de partidos de esquerda por ocasião da RSI46-48 colocando na cena política, bem como nas páginas dos principais jornais da grande imprensa, para o conhecimento da opinião pública, ainda durante os ‘anos de chumbo’, a discussão das reais condições de exploração do trabalho durante o regime militar, o ‘milagre brasileiro’ e seus reflexos sobre a vida e a saúde das classes trabalhadoras3,49.
Diante disso, cabe indagar: por que a luta contemporânea pela saúde no trabalho ficou ‘esquecida’ nas análises sobre a RSB? Ainda mais sabendo-se que o movimento empreendido pelos sindicatos de trabalhadores inspirava-se claramente na experiência italiana, instigado pelo relato do livro ‘Medicina e Política’42 de grande influência sobre intelectuais e sindicalistas engajados naquele projeto.
Frise-se que, como resultado dessa influência, o Brasil firmou convênio com a Itália, nos anos 1980, pelo qual médicos brasileiros participaram de intercâmbio para conhecer a experiência italiana. Maeno e Carmo50 explicitam que, por meio do convênio Brasil-Itália, “[...] dezesseis médicos brasileiros receberam bolsas de institutos italianos dedicados exclusivamente à Saúde do Trabalhador”63.
Por outro lado, como elemento complicador, afirmamos que o SUS não incorporou em suas práticas na atenção básica a relação trabalho-saúde/doença, pois, com seu foco sobre a família, nem mesmo o trabalho domiciliar é objeto de sua ação, a ponto de ser pertinente questionar se é possível um diálogo entre ações em ST e a Estratégia Saúde da Família51, já que há um evidente descolamento entre o ideal de funcionamento da Política de Atenção Básica considerando o mundo real das equipes de saúde e produção do cuidado52.
Uma das explicações para aquele ‘esquecimento’ pode ser buscada na observação - ao comentar a estratégia reformista -, de Fleury44(10):
Ao remeter a questão do poder ao nível do Estado, da sua institucionalidade legal e burocrática, acabou-se esquecendo que sua origem está na sociedade, na correlação de forças que fundamenta e reproduz o pacto de dominação.
Nesse sentido, os PST configuraram um modelo de relação dialética entre a reprodução social e a produção já que articularam assistência e vigilância, buscando romper com uma limitação ‘cultural-estrutural’ do setor saúde que é o seu alheamento do mundo do trabalho e da produção, ao não transpor os muros da fábrica, em uma perspectiva de tornar público o que é privado7. Tal prática contribuiu, inclusive, para uma mudança no padrão das estatísticas de doenças do trabalho em São Paulo e mesmo do perfil epidemiológico das doenças relacionadas com o trabalho4,53,54.
Parece-nos cada vez mais claro que não se pode abstrair desses aspectos em qualquer avaliação que se pretenda fazer das relações entre Reforma Sanitária e movimentos sociais quanto ao seu potencial de ‘alavancar’ o acesso a direitos como a saúde, já que, em um processo de transição democrática e de possibilidade de superação do atual bloco de poder, é
[...] bastante improvável que o avanço da cidadania tenha ocorrido sem que a classe trabalhadora trouxesse para seu campo de ideias a compreensão de questões tópicas ou ‘técnicas’ ligadas […] às leis de proteção ao trabalho [...]55(62).
O que aconteceu, por exemplo, na luta dos trabalhadores italianos pela saúde no trabalho, a qual trouxe uma apreensão totalmente renovadora da relação entre leis sociais, trabalho, ambiente e saúde47,48.
No Brasil, começou a ter expressão quando da estratégia desenvolvida pelas entidades de assessoria intersindical, como o Diesat, e de sindicatos, na medida em que passaram a valorizar e associar a luta pela saúde no trabalho7 com a luta por condições e ambientes de trabalho também salubres4,53,56,57
Salientamos que tal temática foi pouco explorada nas publicações sobre RSB, particularmente quando se constata a relativa abundância de estudos sobre a importância dos Movimentos Populares de Saúde (Mops) na pressão por conquistas no campo da saúde pública, e se considera sua fragilidade estrutural58,59.
Considerações finais
Com o que foi anteriormente assinalado, buscamos apontar que existe um divórcio entre o caminhar do MRSB e o do MSST, veio riquíssimo de estudos ainda a ser mais explorado.
Não se pode afirmar que a ‘teoria’ da Reforma Sanitária negue o papel do movimento sindical na luta pela saúde no trabalho, mas a pequena ênfase temática dada a ela nos estudos mais importantes já referidos coloca esse desafio à nossa frente e permite refletir sobre os atores sociais que são necessários ter como parceiros na superação dos limites dados ao projeto do MRSB.
Para nós, o projeto de Reforma ‘pelo alto’ desconsiderou a relevância política da atuação sindical pela saúde no trabalho, já que ela existe e se expressou no avanço das cláusulas dos contratos de trabalho, no intersindicalismo do Diesat, nas assessorias técnicas intrassindicais e nas experiências de participação gestora dos PST/Cerest, muitas vezes complexa e conflitiva, como forma de interlocução com o saber instituído e o Aparelho de Estado8,57.
Tais experiências abriram a possibilidade de ousar reverter o modelo médico centrado mediante gestão/controle social da atuação técnica, diferentemente do estímulo ao consumo medicalizante exigido pelas massas/maiorias silenciosas60.
As experiências programáticas e a formulação teórico-metodológica do campo ST61 que lhe dá sustentação vis-à-vis a abordagem hegemônica da medicina do trabalho-saúde ocupacional permitiriam pensar na possibilidade de seu desdobramento como um dos pilares da Reforma Sanitária em algumas regiões brasileiras, como o estado de São Paulo, o que, dialeticamente, também envolve suas dificuldades estruturais, na perspectiva de se vislumbrar a continuidade do avanço da ação sindical em saúde no trabalho entre nós.
Tal assertiva é particularmente importante considerando-se nos dias que correm a ausência de propostas orgânicas mais acabadas das Centrais Sindicais e dos partidos políticos de esquerda que configurassem um ‘programa mínimo’ para a área neste ‘bloco histórico’, superando a reforma ‘pelo alto’.
Salientamos, mais uma vez, que essa questão está a comportar análises e estudos mais específicos, os quais, uma vez desenvolvidos, viriam a preencher uma lacuna importante que poderia contribuir para retomar uma maior interlocução entre MRSB e MSST ou outros movimentos sociais pela saúde.
Toda a formulação ora desenvolvida e sua potencial contribuição para pensar em uma retomada do MRSB esbarra, hoje, na fragilidade do movimento sindical e nas grandes transformações do mundo do trabalho aprofundadas a partir do final da década de 1980, com a reestruturação produtiva, a relocalização das fábricas, a automação e o aumento do chamado desemprego estrutural20.
Ao lado de tecer considerações ora indicadas, cabe problematizar os desafios contemporâneos para pensar a efetividade dos ideais da Reforma Sanitária e a defesa do direito à saúde, incluindo a especificidade do trabalho, em tempos de agudização da contradição Capital e Trabalho no atual estágio do capitalismo altamente informatizado, informalizado (sem regras), rentista e globalizado20,62.
A isso, soma-se, quanto à defesa das políticas públicas, a ausência de reflexões e propostas orgânicas dos ‘setores populares’ que advoguem posições e linhas de condução política claras e nitidamente definidas, mesmo que conflitantes, dentro do espaço de debate político sobre a consolidação do SUS. Além disso, como elemento para aprofundar a discussão dos entraves e dificuldades identificados ao nível dos órgãos de Estado que atuam no campo da saúde e do trabalho, é mister considerar que alguns deles foram extintos pelo atual governo, como o Ministério do Trabalho e o da Previdência Social, sem que houvesse efetiva mobilização sindical para barrar tais iniciativas.
Tal preocupação torna-se especialmente importante e verdadeira ao se tomar conhecimento das propostas de reformas conservadoras de cunho neoliberal, como o Novo Regime Fiscal, instituído pela Emenda Constitucional 95/2017, que congela os gastos com políticas públicas por 20 anos63, a já aprovada (contra) Reforma Trabalhista63 e outras, hoje em curso, que levarão a sérias mudanças nos direitos constitucionais como os da previdência social64.
A isso, soma-se a forma de condução do processo de descentralização da saúde, que atribuiu aos estados e, em particular, aos municípios a responsabilidade pela implantação e operacionalização das políticas e ações de saúde sem o aporte de recursos necessários, fruto de um subfinanciamento histórico do SUS convertido, a partir do golpe de 2016, em desfinanciamento das ações e serviços de saúde65,66.
Destaque-se, ainda, que se vive uma realidade em que além de não estar garantida a existência do modelo calcado nos serviços públicos, ora substituídos pela Organizações Sociais e outras modalidades de gestão indireta, subsiste uma brutal crise fiscal que há anos engessa a atuação do Estado brasileiro, o que projeta a privatização/terceirização da rede pública de saúde como a ‘saída’ para a superação crônica de sua deficiência financeira e técnico-administrativa19.
Mais ainda, a participação do movimento social nas instâncias de controle social do SUS, em que ocorre, tende a se dar, muitas vezes, por indicação de sindicatos de trabalhadores ou federações/centrais que reivindicam, na maioria das vezes, demandas pontuais sobre problemas ocorridos no processo de trabalho, de caráter fiscalizador, ou médico-assistencial.
Por outro lado, como uma teimosa contradição, os sindicatos continuam a priorizar a negociação e os convênios e planos de saúde aos seus associados67. Tal tendência aponta para a necessidade de reestabelecer uma articulação mais ampla na sociedade civil organizada, na medida em que a perspectiva é buscar arregimentar forças sociais visando elaborar propostas relativas a uma Política de Saúde que defenda e garanta o resgate da existência do SUS em seu todo, incluindo aquela relacionada com a ST11.
Para nós, defensores de propostas emancipatórias, trata-se, então, de encetar uma luta anticapitalista, para além da democracia liberal e as pretensas propostas de superação de sua débâcle62.