Introdução
As primeiras notificações de casos de leptospirose humana no Brasil ocorreram em 1917, porém, indícios apontam a existência anterior, pois havia confusão dos sintomas com a febre amarela1. A doença já era conhecida desde o século XIX, quando foi estudada por Adolf Weil em humanos em 1886. Stimson, em 1907, deu o nome de Spirocheta interrogans ao microrganismo, depois de observá-lo no fígado de um paciente morto por suspeita de febre amarela. Em 1915, no Japão e depois na Alemanha, comprovou-se que a doença é de natureza contagiosa e microbiana2.
Acredita-se que a bactéria chegou ao Brasil com os roedores nos navios negreiros. No Rio de Janeiro, os primeiros surtos relatados aconteceram nos anos 1960 e sempre coincidiram com as tempestades de verão1. Mais recentemente, vem-se confirmando uma média anual de mais de 3.600 casos no País, sendo 375 óbitos, em média, a cada ano3.
A leptospirose é uma doença infecciosa febril de início abrupto resultante da infecção por bactérias do gênero Leptospira3, que são espiroquetas pertencentes à ordem Spirochaetales e à família Leptospiraceae, as quais compreendem três gêneros: Leptospira, Leptonema e Turneriella4. Do gênero Leptospira, são conhecidas dez espécies patogênicas, cinco espécies potencialmente patogênicas (também denominadas intermediárias) e sete espécies saprófitas5,6, com mais de 300 sorovares, que são definidos de acordo com a heterogeneidade estrutural no componente carboidrato de seus lipopolissacarídeo7. A Leptospira possui a capacidade de viver em ambientes variados, por tempo bem prolongado8,9.
O Rattus norvegicus é o principal portador da Leptospira interrogans sorovar Icterohaemorraghiae, uma das mais patogênicas para o homem, que é apenas hospedeiro acidental e terminal dentro da cadeia de transmissão3,10. Em áreas urbanas, os principais reservatórios são os roedores das espécies Rattus norvegicus (ratazana ou rato de esgoto), Rattus rattus (rato de telhado ou rato preto) e Mus musculus (camundongo ou catita)3,9,11. Esses animais, ao se infectarem, não desenvolvem a doença, sendo apenas portadores. A Leptospira se fixa nos rins desses animais e é eliminada viva no ambiente por meio da urina, contaminando água, solo e alimentos3,10.
Algumas ocupações facilitam o contato com a Leptospira, como trabalhadores em atividades de limpeza e desentupimento de esgotos, garis, catadores de recicláveis, agricultores, pescadores e bombeiros2,3. Contudo, a maior parte dos casos ainda ocorre em pessoas que habitam ou trabalham em locais com infraestrutura sanitária precária e expostos a urina de roedores3. Nas cidades, a principal via de contaminação ocorre por contato com água e lama contaminadas após alagamentos nos períodos de chuvas7,12,13.
A infecção humana resulta da exposição direta ou indireta à urina de animais infectados, na pele lesada ou íntegra quando imersa em água contaminada ou através de mucosas7,14. A transmissão também é possível pela ingestão de água ou alimentos contaminados. O contágio pessoa a pessoa é raro, mas pode ocorrer pelo contato com urina, sangue, secreções e tecidos de pessoas infectadas3.
As formas clínicas da doença podem ser: assintomática, anictérica e ictérica. Na primeira, o paciente é infectado, mas não manifesta sintomas ou sinais. Na forma anictérica, pode desenvolver meningite ou pneumonite intersticial ou hemorrágica. A doença em geral é bifásica, com período inicial de febre, mal-estar e sintomas similares a uma gripe, seguidos de breve período de defervescência e recrudescência da febre e sintomas. A forma ictérica ou Síndrome de Weil cursa com os mesmos sintomas e sinais da forma anictérica, porém com icterícia e falência de diversos sistemas orgânicos, como insuficiência renal aguda, pneumonite hemorrágica, coagulopatia, arritmias cardíacas e choque15,16.
No Brasil, não existe vacina humana contra a leptospirose. Para a prevenção da doença, além da educação em saúde, são necessárias medidas para redução da população de roedores8.
A análise temporal e espacial das doenças é um instrumento na gestão em saúde17. Por isso, ferramentas de geoprocessamento, por se constituir em um conjunto de técnicas de coleta, tratamento, manipulação e apresentação de dados espaciais, têm contribuído principalmente em estudos ecológicos das ciências da saúde13. Além disso, o uso de Sistema de Informações Geográficas (SIG) em estudos na área da saúde emerge como uma importante ferramenta na inferência espacial em doenças infecciosas. Entretanto, estudos voltados à análise da leptospirose ainda são restritos18-20, muitas vezes voltados a dados clínicos21-25.
Os trabalhos de espacialização da leptospirose no Brasil se limitam a escalas municipais2,9,10,12-14,18,26-31, e regionais19,32-35. Neste trabalho, o objetivo foi analisar a distribuição espacial e temporal da leptospirose no período entre 2007 e 2017 no Brasil.
Material e métodos
Área de estudo
O Brasil possui 5.570 municípios distribuídos em uma área territorial de 8,5 km² e uma população estimada em 201836 de 208.494.900 pessoas. A divisão regional do País organiza o espaço brasileiro em cinco regiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste), objeto deste estudo ecológico retrospectivo de cunho descritivo. Estudos ecológicos em pesquisa epidemiológica avaliam uma população ou um grupo de pessoas que geralmente pertencem a uma área definida17.
Fontes de dados
Os dados de população e leptospirose foram obtidos do Ministério da Saúde pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Esse sistema foi desenvolvido entre 1990 e 1993 e tem como objetivo coletar e processar dados sobre agravos de notificação em todo o território nacional das doenças que constam da lista nacional de doenças de notificação compulsória37, como, por exemplo, a leptospirose. O Sinan Net disponibiliza esses dados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde38.
Os dados de população foram obtidos a partir da estimativa da população residente por município e ano39. Os dados de leptospirose foram obtidos dos casos confirmados por município de residência para cada ano entre 2007 e 201740. Esses dados foram tabulados e relacionados à malha municipal digital do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em ambiente SIG. A base cartográfica do IBGE é disponibilizada em formato digital shapefile, tendo como datum o Sistema de Referência Geocêntrico para as Américas (Sirgas 2000)41.
A análise comparativa das regiões se deu por meio das taxas de prevalência, que são comumente utilizadas para comparar populações de diferentes tamanhos14. A equação para o cálculo da prevalência (P) é11,42,43:
Para tal, foram considerados o número total de casos confirmados e a população em cada município por ano respectivamente. Após, os dados foram agrupados no QGIS por região geográfica; e em planilha eletrônica da Microsoft Excel® 2007, calculadas as taxas de prevalência de forma gráfica.
Análise espacial
A análise espacial permite identificar padrões de fenômenos geográficos. Na análise de padrões pontuais (point patterns), a variável de interesse é a própria localização dos eventos. Nesse tipo de análise, o objetivo é saber se os eventos observados ocorreram aleatoriamente ou se existe algum padrão sistemático em determinada região17.
O Estimador Kernel é uma técnica de interpolação não paramétrica, em que uma distribuição de pontos é transformada em uma superfície de densidade para a identificação visual da ocorrência da concentração do evento, podendo indicar locais de aglomeração44. O Kernel possibilita estimar a intensidade, a densidade ou a razão do evento por unidade de área, para análises de cluster ou análises de pontos de calor (hotspot)45,46, e tem sido amplamente aplicada para análise global da situação epidemiológica da leptospirose2,9,26-28,31.
Os parâmetros considerados são um raio de influência (t) que define a vizinhança circular ao redor da cada ponto (núcleo) da amostra a ser interpolado e uma função de estimação k(.) com propriedades de suavização do fenômeno44,47,48.
O estimador de densidade Kernel, presente na extensão ‘Mapa de Calor’ do Sistema de Informação Geográfica QGIS, utiliza cinco funções: Quártica (biponderada), Triangular, Uniforme, Triponderada e Epanechnikov49. Nesta análise, foi utilizada a função Triponderada, que resulta em ‘pontos quentes mais nítidos’49 e que é dada pela equação48:
O raio utilizado (ou largura do Kernel)49 foi de 200 km. Para todas as interpolações, a resolução espacial foi padronizada com 2 mil células para o valor de linhas e, as colunas, ajustadas automaticamente pelo software.
Para a estimação da densidade Kernel da taxa de prevalência de leptospirose no Brasil por ano, foram considerados os totais de casos confirmados e a respectiva população por ano. Já para a estimação de densidade de Kernel para leptospirose no Brasil no período de 2007 a 2017, foram considerados o total de casos confirmados de toda a série temporal e a população de 2017. Além disso, foi interpolado o total de casos confirmados por município para efeito comparativo.
Resultados
Considerando o período de análise entre 2007 e 2017, o gráfico 1 corresponde ao total anual de casos confirmados de leptospirose por região brasileira.
Nas regiões Sudeste e Sul, o ano com maior número de casos confirmados foi 2011, com 1.839 e 1.728 respectivamente. No período de 11 anos, a média anual no Sudeste foi de 1.291 casos; e no Sul, de 1.256 casos.
Na região Norte, o ano com maior número de casos foi 2014, com 1.717 casos confirmados; e a média anual do período analisado foi de 654 casos. No Nordeste, 2009 se destacou com 927 casos confirmados, com média anual de 591 casos. Por sua vez, o Centro-Oeste apresentou uma média de 54 casos/ano.
Esse padrão de notificação inferior ao esperado no Centro-Oeste pode significar uma real redução de casos devido à menor densidade populacional, ao atraso no envio das informações, à subnotificação3 ou, ainda, possivelmente, devido ao quadro clínico semelhante a outras doenças, gerando subdiagnóstico2,50. Além disso, as condições hidrometeorológicas do Centro-Oeste podem ser favoráveis a não disseminação da leptospirose.
A média anual no Brasil de 2007 a 2017 foi de 3.846 casos, o que valida a informação da Secretaria de Vigilância em Saúde3,43 de que, nos últimos dez anos, vem-se confirmando uma média anual de mais de 3.600 casos no País. O total de casos confirmados no período analisado foi de 42.310.
A distribuição espaçotemporal dos municípios brasileiros que apresentaram pelo menos um caso confirmado de leptospirose entre 2007 e 2017 é representada na figura 1. Dos 5.570 municípios, 2.600 tiveram casos confirmados de leptospirose.

figura 1 Distribuição espaçotemporal dos municípios brasileiros com pelo menos um caso confirmado de leptospirose
Considerando as diferenças regionais de densidade demográfica no Brasil, além dos totais de casos de leptospirose, foram calculadas as taxas de prevalência anual por região (gráfico 2). Esses dados correspondem à estimativa de risco de contrair leptospirose e à intensidade com que a doença acomete a população.
As maiores prevalências estão nas regiões Sul e Norte. Por outro lado, Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste apresentaram, nos últimos 11 anos, uma taxa de prevalência menor que a taxa nacional. A prevalência anual no Brasil nesse período foi de 1,9 a cada 100 mil habitantes.
As regiões com maior taxa de prevalência da ocorrência de leptospirose no Brasil por ano são observadas na figura 2. As imagens anuais são representadas com níveis de densidade de acordo a tonalidade. Na faixa mais escura, existe uma concentração elevada da taxa de prevalência de leptospirose.
Com a estimação de densidade de Kernel para leptospirose no Brasil no período de 2007 a 2017 (figura 3), é possível comparar espacialmente a taxa de prevalência (que considera a população de referência a de 2017) e o total de casos de leptospirose por município (municípios localizados na figura 1, série 2007-2017).
Ao considerar o total de casos na região da capital paulista, o valor dos níveis Kernel é alto, relacionado com a alta quantidade de casos confirmados da doença. Porém, quando considera a população de cada município com caso confirmado (taxa da prevalência), esse valor é menor.
De 2007 a 2017, o município de São Paulo (SP) computou 2.411 casos de leptospirose em uma população de 12.106.920 habitantes em 201739. No mesmo período, o município de Rio Branco (AC) computou 2.598 casos em uma população de 383.443 habitantes em 201739,51. Considerando a escala regional, isso torna o Sul e o Norte as regiões com os maiores casos prevalentes.
Por outro lado, o Sudeste apresentou-se regionalmente com uma taxa de prevalência menor que a taxa nacional (gráfico 2). Esses dados diferem do que afirma o Boletim Epidemiológico que:
[...] no período 2007-2016, as regiões Sudeste e Sul foram responsáveis pelos maiores números de caso por ano, com exceção de 2014, quando a região Norte se destacou43(3).
O Boletim Epidemiológico considerou o total de casos, sem considerar a variável população.
Discussão
A maior parte dos estudos ecológicos em epidemiologia utiliza áreas geográficas como unidade de análise, que representam recortes do espaço geográfico32. No Brasil, apesar do avanço com o uso das ferramentas de geoprocessamento para fenômenos relacionados com a área da saúde, a espacialização da leptospirose é limitada em escalas municipais2,9,10,12-14,18,26-31 e regionais19,32-35.
Trabalhos realizados na cidade do Rio de Janeiro, entre 2000 e 20109 e entre 2007 e 201212, indicaram que áreas com ocorrência de inundações apresentam mais casos de leptospirose. Acrescido a essa relação, Gonçalves13 verificou em Belém variáveis demográficas e socioeconômicas como fatores potencializadores dos casos de leptospirose em áreas de baixas condições sanitárias.
Pesquisa realizada no Rio Grande do Sul32 sob diferentes recortes ecológicos identificou maiores taxas de incidência de leptospirose em áreas litorâneas, de baixa altitude e uso do solo predominantemente agrícola, associada à lavoura irrigada. Embora essas abordagens não sejam comparativas à escala proposta neste trabalho, elas permitem que suas análises se direcionem a instrumentos de gestão em saúde local e regional.
Nesse contexto, Londe et al.30 exploraram a temática voltada ao monitoramento e alerta de desastres naturais como apoio à gestão de saúde pública. Segundo os autores, embora as estratégias de redução de risco de desastres tenham sido aprimoradas nos últimos anos, os problemas de saúde geralmente são restritos à resposta de emergência no planejamento de desastres. Por isso, sugerem atribuir ao setor da saúde um papel na prevenção e na preparação para lidar com a redução do risco de desastres com monitoramento integrado dos riscos de desastres e de epidemias.
Apesar das limitações típicas de um estudo ecológico, como a qualidade e a disponibilidade dos dados, este estudo permitiu identificar a leptospirose no Brasil no período de 2007 a 2017 de forma a contemplar todas as regiões que apresentaram casos. Pretende-se associar, em trabalhos futuros, variáveis meteorológicas a essa escala de estudo.
Considerações finais
A utilização de SIG pode trazer novas abordagens à epidemiologia da leptospirose. O mapeamento dos totais de casos confirmados de leptospirose, sem considerar a população residente, embora muito utilizada nos trabalhos desta temática14,19,26,31,34, pode mascarar as análises quando se planeja alocar recursos de políticas públicas e identificação e intervenção em locais de situações risco à saúde.
O estimador de densidade Kernel trouxe resultados relevantes para subsidiar a análise espacial da leptospirose no Brasil. A espacialização demonstrou que mapear o total de casos pode ser interessante em termos de atendimento médico. No caso, como observado em São Paulo, o alto nível de densidade Kernel. A análise do total de casos contribui para medidas de atendimento médico; e as áreas com maiores taxas de prevalência permitem a tomada de ações, decisões e intervenções de vigilância em saúde pública sobre a saúde das populações.
A análise de padrões de distribuição de pontos pelo método Kernel se mostrou útil na obtenção de uma análise global da situação epidemiológica da leptospirose no Brasil, como também foi considerada em outras escalas de trabalhos26,27. No entanto, a forte dependência do raio e a excessiva suavização da superfície podem, em alguns casos, esconder variações locais importantes52 como foi observado durante a pesquisa.