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Judicialização da saúde: as teses do STF

RESUMO

O presente artigo sistematiza e analisa teses firmadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à judicialização da saúde. O STF vem se pronunciando a respeito do tema, tendo firmado teses de repercussão geral, ou seja, que obriga a todos. A judicialização da saúde tem sido crescente e polêmica pelas decisões dos magistrados e pela intensidade, afetando a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), em especial os municípios. O presente estudo visa a sistematização dos julgados do STF para a melhor compreensão dos agentes públicos e do cidadão quanto ao entendimento jurídico- constitucional da Corte Superior para a melhor orientação quanto às defesas dos entes públicos e às demandas do cidadão que se sente ao desamparo em suas necessidades de saúde. Essa sistematização se faz acompanhar de análise crítica quando às decisões que ora pendem a balança para um ou outro lado, quando o melhor julgamento é o que mantém o fiel da balança. Mas nem sempre, na visão da sociedade e dos gestores do SUS, a balança é mantida em seu almejado equilíbrio. E o presente trabalho consiste nesses apontamentos.

PALAVRAS-CHAVE
Judicialização da saúde; Sistema Único de Saúde; Direito à; saúde

ABSTRACT

This article intends to systematize and analyze the legal theses signed by the Supreme Federal Court (STF) in relation to the judicialization of health. The STF has been pronouncing on the subject quite frequently, having in the set of its decisions, signed six theses of general repercussion, that is, which obliges all magistrates. The judicialization of health has been growing and controversial, both because of the decisions of the magistrates and because of its intensity, affecting the management of the Unified Health System (SUS) by its leaders, especially Brazilian municipalities. The present study aims to systematize the judges of the Supreme Court for a better understanding of public agents and the citizen regarding the constitutional legal understanding of the Superior Court for better guidance regarding the defenses of public entities and the demands of citizens who feel helpless in their health needs. This systematization is accompanied by critical analysis when the decisions that now hang the balance to one side or the other, when the best judgment is what keeps the balance. But not always, in the view of society and SUS managers, the balance is maintained in its desired balance. And the present work consists of these notes.

KEYWORDS
Health’s judicialization; Unified Health System; Right to health

Introdução

O presente artigo pretende analisar a judicialização da saúde pela ótica das teses jurídicas firmadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com repercussão geral, sistematizando-as por temas isolados, uma vez que uma mesma decisão (acórdão) pode conter mais de uma tese que merece ser destacada em comentários específicos. A cada tese destacada comentários serão feitos quanto ao acerto da decisão ou possíveis ambiguidades à luz da organização e funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), seus princípios e diretrizes constitucionais e legais.

A judicialização da saúde tem sido crescente e polêmica, tanto pelas inúmeras decisões dos magistrados concessivas de medidas liminares, como pela sua intensidade, afetando a gestão do SUS, em especial a dos municípios brasileiros, que se veem premidos entre o subfinanciamento crônico da saúde e as demandas do Poder Judiciário que, muitas vezes, afetam o seu orçamento e o planejamento sanitário.

As teses firmadas pelo STF têm o condão de uniformizar a jurisprudência sobre determinados aspectos, como o fornecimento de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); medicamentos experimentais; a solidariedade quanto à responsabilidade dos entes federativos, entre outros.

As análises dos julgados do STF contribuem para a melhor compreensão do pensamento jurídico da Corte Superior sobre o direito à saúde e firmar entendimentos do que compreende a integralidade da atenção à saúde - conceito jurídico impreciso - que deve contar com balizas, contornos jurídicos para a sua contenção. Norma aberta requer contornos, moldura para precisar o seu conteúdo e orientar o planejamento e financiamento necessários. Importante ainda que o gestor público tenha a exata compreensão das decisões judiciais com repercussão geral para auxilia-los em suas defesas em demandas judiciais, bem como melhorar os serviços de saúde no âmbito de sua competência, contribuindo ainda com o cidadão no conhecimento de seus direitos na saúde.

A sistematização das teses neste ensaio se faz acompanhar de análises quando as decisões pendem a balança mais para o lado, afastando-se de seu almejado equilíbrio. Este trabalho adota metodologia crítico-analítica sobre jurisprudência do STF em relação ao direito à saúde à luz da legislação sanitária e da realidade fática.

O fenômeno da judicialização no País e as audiências públicas

A judicialização da saúde tem sido crescente, passando de dois milhões o número de ações judiciais (Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, 201911 Schulze CJ. Números de 2019 da Judicialização da saúde no Brasil. 2019 [acesso em 2021 jun 14]. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/numeros-de-2019-da-judicializacao-da-saude-no-brasil
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), de modo geral - de erro médico à garantia de medicamentos e demais insumos, produtos e tecnologias em saúde. Desde seu nascedouro, nos anos 90, e de seu incremento, a partir de 2003, a judicialização tem sido palco de inúmeros debates, discussões, seminários, teses acadêmicas, publicações, sem que suas causas tenham sido enfrentadas pelo Executivo e pelo Legislativo, como o baixo financiamento das políticas de saúde e aspectos da gestão pública. Entrementes, tem-se optado mais pela melhoria da qualidade das decisões judiciais do que pela sua diminuição dado que o enfrentamento de suas causas não tem ocorrido. Sem cuidar das causas, não haverá melhoria nesses números pelo fato de o direito continuar a não ser efetivo, o que leva o cidadão à justiça, de modo excessivo, provocando todo tipo de distorção, desde a do Judiciário em suas sentenças que demonstram muitas vezes desconhecimento do direito sanitário, do SUS, como a de seus demandantes (autor, advogado, profissional de saúde, terceiros interessados, laboratórios).

Em razão desse fenômeno, o STF já convocou duas audiências públicas para ouvir a sociedade: a primeira em 2009, pelo Ministro Gilmar Mendes, no âmbito da Suspensão de Tutela Antecipada (STA) nº 17522 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada 175. Relator Ministro Gilmar Mendes. 2010. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2570693
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, com decisão final em 2010; a segunda, em 2017, pelo Ministro Dias Toffoli, no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) nº 581488/20/201533 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 581488. Relator Ministro Dias Toffoli. 2016. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2604151
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, para discutir a possibilidade de haver diferença de classe em internação hospitalar no SUS. Na primeira, foi negado provimento ao agravo interposto pela União, fixa ndo-se o entendimento de que, na saúde, a responsabilidade dos entes federativos é marcada pela solidariedade e, na segunda, o STF considerou inconstitucional a possibilidade de um paciente do SUS pagar para ter acomodações superiores ou ser atendido por médico de sua preferência (diferença de classe assistencial). A fundamentação para negar o pedido no RE é a de que esse tipo de pagamento contraria o artigo 196 da Constituição Federal44 Brasil. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. que garante, a todos os cidadãos, acesso universal e igualitário às ações e aos serviços de saúde.

O RE referido foi interposto pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que manteve sentença em ação civil pública no sentido de vedar esse tipo de pagamento. O TRF-4 entendeu que, mesmo sem ônus para o Estado, possibilitar a diferença de classes representaria dar tratamento diferenciado aos pacientes dentro de um sistema que prevê o acesso universal e igualitário da população às ações e aos serviços do SUS, conforme estabelece a Constituição Federal.

As duas audiências afirmaram que: a) as ações e os serviços de saúde são responsabilidade solidária dos entes federativos que devem, quanto ao desenvolvimento prático desse tipo de responsabilidade, definir um modelo de cooperação e de coordenação de ações conjuntas; e b) não pode haver no SUS acomodações diferenciadas nem escolha de médico.

A tese da responsabilidade solidária foi objeto de rediscussão no RE 85517855 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 855178. Relator Ministro Luiz Fux. 2019. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4678356
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, relator Ministro Luiz Fux, quando ficou assentado novamente, com votos divergentes dos Ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, no julgamento em 2019, de que há responsabilidade solidária entre os entes federativos no dever de prestar assistência à saúde:

O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isolada ou conjuntamente55 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 855178. Relator Ministro Luiz Fux. 2019. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4678356
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.

Outros temas foram também objeto de julgamento no STF nos últimos anos, como: a) há ou não dever estatal no fornecimento de medicamento sem registro na Anvisa; b) medicamento não incorporado ao SUS obriga ou não o Estado; c) medicamento de alto custo não incorporado ao SUS se constitui ou não como dever estatal. Lembramos que medicamento para doenças raras continua pendente de decisão, com julgamento previsto para o ano de 2020, mas ainda não realizado.

O RE 56647166 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 566471. Relator Ministro Marco Aurélio. Brasília, 11 de março de 2020. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2565078
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com julgamento ocorrido em 11 de março de 2020, decidiu que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não estiverem previstos na relação do SUS do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional. Situações excepcionais ainda serão definidas na formulação da tese de repercussão geral. Abaixo sistematizamos as decisões do STF sobre esses temas tecendo comentários à luz da legislação sanitária.

Sistematização das teses do STF, de repercussão geral

1 - Há responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde. Decisão na STA nº 175, de 2009, reiterada no julgamento do RE 855178.

Essa decisão, modulada pelo STF, encerra algumas complexidades quanto à sua aplicação. Na decisão exarada em 2009, já se previa a necessidade de ‘os entes federativos solidários definirem, na prática, um modelo de cooperação e de coordenação de ações conjuntas’, que já existia, na realidade, nas pactuações oriundas das comissões intergestores de âmbito nacional, estadual e regional e pelo contrato organizativo de ação pública da saúde, previsto no Decreto nº 7.50877 Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 Jun 2011. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7508.htm
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, de 2011. Importante trazer breves comentários a respeito do contrato de ação pública da saúde. Esses contratos foram celebrados nos anos 2012, somente nos estados do Ceará e Mato Grosso do Sul, com duração de 4 anos, não tendo sido renovados. Ainda que o Decreto nº 7.508, de 2011, esteja em vigor, há um descaso quanto à sua observância obrigatória e que poderia ser um aprimoramento dos acordos que se firmam nas comissões intergestores, conferindo segurança jurídica a essas decisões consensuais. Os pactos são firmados nas comissões, mas nem sempre são cumpridos ou exigidos administrativa ou judicialmente por lhe faltar maior lastro jurídico. Esses acordos devem disciplinar as responsabilidades federativas, de cunho sistêmico, pela execução das ações e serviços de saúde que cada ente federativo deve assumir perante a população, de modo individual ou compartilhado regionalmente. Contudo, raramente têm sido respeitados esses acordos nas decisões judiciais e os contratos não têm sido firmados no âmbito do Executivo, o que poderia garantir maior segurança jurídica quanto ao seu cumprimento. Pela Lei nº 12.466, de 2011, os entes federativos por terem que integrar seus serviços de saúde na forma do artigo 198 da Constituição, devem pactuar as responsabilidades federativas nas comissões correspondentes, que são, a Comissão Intergestores Tripartite; a Comissão Intergestores Bipartite; e a Comissão Intergestores Regional.

No RE de 2019, ficou assentado também que compete à autoridade judicial, em razão da diretriz da descentralização e hierarquização, direcionar o cumprimento em conformidade com regras de competência e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. Isso traz grande complexidade para a autoridade judicial e dependerá muito da defesa feita pelo ente público no tocante à demonstração das responsabilidades do demandado, mesmo sem a celebração do contrato de ação pública, com o chamamento à lide em litisconsórcio.

A questão do ressarcimento também é um problema porque pressupõe que alguém arcou com a responsabilidade e depois terá que obter o seu ressarcimento do outro ente jurídico. As consequências são complexas para a autoridade judicial e também para a autoridade demandada e precisará ser muito bem argumentada e demonstrada pela defesa. Um excelente artigo é o das juízas federais Luciana Veiga e Ana Carolina Morozowski88 Veiga L, Morozowski AC. Da responsabilidade solidária na assistência à saúde no SUS. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/305311/da-responsabilidade-solidaria-na-assistencia-a-saude-no-sus
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que bem demonstram as suas complexidades. Isso sem falar que, quando a União é envolvida, prevalece o foro federal, que não há em todas as comarcas, diga-se, trazendo dificuldades para o cidadão quando vê descumprido o dever estatal de prover a sua saúde.

2 - É vedado tratamento diferenciado a título de acomodação hospitalar ou escolha de médico no SUS. RE nº 581488.

Tese fixada na decisão do julgado que ensejou a audiência pública mencionada no item II deste trabalho de iniciativa do Ministro Dias Toffoli. Em nome do princípio da igualdade de atendimento, conforme previsto no artigo 196 da Constituição, não pode haver diferenciação quanto ao conforto e à escolha de médico no âmbito do SUS. A igualdade de atendimento é princípio do SUS, assim como o seu acesso universal. Foi negado provimento exatamente pelo fato de não poder haver no SUS tratamento desigual, conforme mencionado no item II deste trabalho com mais detalhes.

Tal decisão está em absoluta consonância com os princípios constitucionais do direito à saúde do artigo 196, quais sejam, universalidade do acesso, igualdade de atendimento e segurança sanitária, bem como com as diretrizes constitucionais do SUS, expressas no artigo 198. Decisão acertada em relação à legislação regente do SUS.

Entretanto, não poderíamos deixar de comentar que o acórdão se refere a garantia do direito à saúde à população ‘carente’. Ao fazer tal destaque, o STF comete o equívoco ou ignora que no SUS o acesso é universal e igualitário, não se podendo fazer distinção alguma entre as pessoas, como a sua condição econômica, para ter atendimento. Isso tem sido recorrente em decisões judiciais.

3 - O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. RE 657718.

Essa decisão dispensa maiores comentários pelo fato de o ordenamento jurídico brasileiro não admitir obrigação estatal no fornecimento de medicamentos experimentais por contrariar normas específicas, as quais somente admitem circulação de medicamento registrado no órgão competente, ou seja, aquele que não tem caráter experimental. Medicamentos experimentais dependem de estudos em suas diversas fases e devem, após sua comprovada eficácia e segurança, obter registro na Anvisa, nos termos da Lei nº 6.36099 Brasil. Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976. Dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as Drogas, os Insumos Farmacêuticos e Correlatos, Cosméticos, Saneantes e Outros Produtos, e dá outras Providências. Diário Oficial da União. 23 Set 1976. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6360.htm
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, de 1976, e da Lei nº 9.7821010 Brasil. Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 26 Jan 1999. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9782.htm
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, de 1999. O registro de medicamento visa à necessária análise de sua segurança, boas práticas de fabricação, efetividade, eficácia, acurácia, nos termos da lei. Somente um medicamento que foi submetido a essas análises na Anvisa, e que obteve o seu registro, está autorizado a circular livremente no País. Não seria admissível entendimento diferente do aplicador da lei.

4 - A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. RE 657718.

Esta decisão como regra geral não impede totalmente o fornecimento de medicamento sem registro por criar exceções, analisadas no item 5. Mas a regra geral é que somente medicamento com registro na Anvisa pode ser fornecido ao demandante por decisão judicial. O próprio STF assim já havia decidido no julgamento (Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 55011111 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5501. Relator Ministro Marco Aurélio Mello. 2016. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4966501
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, de 2016) que suspendeu a eficácia da Lei nº 13.2691212 Brasil. Lei nº 13.269, de 13 de abril de 2016. Autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Diário Oficial da União. 13 Abr 2016. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13269.htm
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, de 2016, que obrigava o Estado a fornecer a fosfoetanolamina, por não ser admissível a circulação livre no País e o fornecimento pelo SUS de medicamentos sem registro na Anvisa, como medida de segurança sanitária, por força do disposto na Lei nº 6.360, de 1976, artigo 12. Se somente medicamentos com registro na Anvisa podem circular livremente, não poderia uma lei impor a circulação de determinado medicamento sem submetê-lo às análises do órgão competente como medida de segurança sanitária.

Por outro lado, há algumas decisões exaradas nos votos dos Ministros que merecem ser destacadas, como é o caso do Ministro Barroso, propondo requisitos cumulativos a serem observados pelo judiciário quando do deferimento de determinada prestação de serviços de saúde, como a decisão de que ‘medicamentos de alto custo não incorporados no SUS ficam sob a responsabilidade da União’. Importante esse voto por demonstrar uma mudança no entendimento do STF quanto à necessidade de equilíbrio na tese da responsabilidade solidária, assentada no acórdão aqui mencionado, conforme análise no item 1. Releva ainda destacar o fato de que o Ministro Barroso se referiu a medicamento ‘não incorporado no SUS’ e não medicamento ‘sem registro na Anvisa’. Se a competência de incorporação de medicamento registrado na Anvisa é da União, entende o Ministro que se o Judiciário decidir pelo seu cabimento, caberá à União arcar com o seu custo por ser dela a competência de incorporação. Voltaremos a esse tema mais adiante neste trabalho. Essa decisão modula a responsabilidade solidária entre os entes federativos no dever de garantia da saúde.

5 - É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos os requisitos da existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras; da existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e da inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

Esta é a exceção à regra geral mencionada no inciso 4, destacada neste item dada a sua relevância. Ela possibilita ao juiz obrigar o Estado a fornecer medicamento ‘sem registro na Anvisa’. Trata-se, exclusivamente, de situação de ‘mora irrazoável’ na apreciação de pedido de registro do medicamento no Brasil, e em que há registro em renomadas agências sanitárias internacionais e não há substituto terapêutico com registro no País. A mora irrazoável está vinculada ao previsto na Lei nº 13.4111313 Brasil. Lei nº 13.411, de 28 de dezembro de 2016. Altera a Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes e outros produtos, e dá outras providências, e a Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências, para dar transparência e previsibilidade ao processo de concessão e renovação de registro de medicamento e de alteração pós-registro. Diário Oficial da União. 28 Dez 2016. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13411.htm
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, de 2016. Desse modo, a regra é o ‘não fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa’, exceto na situação acima prevista, preenchidos de modo concomitante os requisitos fixados. Os itens acima estão assim expressos no RE 6577181414 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 657718. Relator Ministro Marco Aurélio Mello. 2019. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342892719&ext=.pdf
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  1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamento experimental. 2. A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.

Essa decisão do STF, uma exceção à regra geral de que somente medicamentos com registro no País podem ser fornecidos por decisão judicial, tem na mora irrazoável o móvel para a quebra da regra e que deve observar os critérios fixados pelo STF, conforme mencionado acima. Essa exceção causa problema ao dirigente nacional do SUS, uma vez que, se a Anvisa atrasar a análise de um pedido de registro de medicamento, quem deve arcar com a responsabilidade dessa mora será o Ministério da Saúde, uma vez que essas demandas devem ser propostas contra a União.

Em 18 de junho de 2021, o STF, em sessão virtual, decidiu como medida excepcional, no RE 1165959, ser o Estado obrigado a fornecer medicamento que,

Embora não possua registro na Anvisa, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS1515 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1165959. Ministro Relator Alexandre de Moraes. 2021. [acesso em 2021 jun 18]. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=468002&ori=1
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Com o SUS sendo subfinanciado, como é do conhecimento de todos, tendo o próprio Tribunal de Contas da União (TCU)1616 Brasil. Tribunal de Contas da União. Aumentam os gastos públicos com judicialização da saúde. Brasília, DF: Secom TCU, 2017. [acesso em 2021 jun 14]. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/aumentam-os-gastos-publicos-com-judicializacao-da-saude.htm
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mencionado o custo crescente da judicialização nas despesas com saúde, acrescer valores de medicamentos sem registro no País, que nem mesmo passaram pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (Conitec), (Lei n° 12.4011717 Brasil. Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. 28 Abr 2011. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12401.htm
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, de 2011), a qual tem o dever de analisar custo-benefício, entre outros aspectos, impõe-lhe ônus excessivo ao SUS. Pois essa despesa que deveria onerar o órgão em mora, ou seja, a Anvisa, irá agravar as despesas ao fundo da saúde destinados às programações anuais de saúde. Melhor seria impor multa à própria Anvisa, onerando seu próprio orçamento, pela mora, sem gerar novas obrigações financeiras ao dirigente nacional do SUS premido pelo teto de gasto da saúde. Essa é uma decisão complexa para o SUS.

6 - O Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo pleiteados judicialmente quando não constarem das relações oficiais de medicamentos do SUS. RE 566471.

O RE 566471616 Brasil. Tribunal de Contas da União. Aumentam os gastos públicos com judicialização da saúde. Brasília, DF: Secom TCU, 2017. [acesso em 2021 jun 14]. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/aumentam-os-gastos-publicos-com-judicializacao-da-saude.htm
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, cujo julgamento ocorreu em 11 de março de 2020, decidiu que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não estiverem previstos na relação do SUS do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional. Situações excepcionais serão definidas na formulação da tese de repercussão geral. A não concessão como regra geral faz todo o sentido por respeitar as relações oficiais de medicamentos do SUS, conforme previsto em portarias e no Decreto nº 7.50877 Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 Jun 2011. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7508.htm
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, de 2011. Ocorre que serão definidas ainda as situações excepcionais e são essas que acabam por criar embaraços ao SUS, como vimos no item 5. As excepcionalidades nem sempre são conformes às necessidades coletivas da saúde, às pactuações interfederativas que ocorrem nas comissões intergestores, à legislação do SUS, como é o caso das análises na Conitec, sempre prejudicadas nas exceções.

Essas obrigatoriedades impostas judicialmente à saúde sem que se acresçam, ao financiamento do SUS, recursos suficientes para arcar com todas as suas responsabilidades, aprofundam as desigualdades na garantia do direito à saúde dado o caráter individual e não coletivo das demandas judiciais. As demandas em saúde são infinitas e, os recursos, cada vez mais restritos e insuficientes, ainda mais em razão do teto do gasto pela EC 95. A microjustiça na saúde coloca em risco a macrojustiça, que fica postergada pelo atendimento às demandas individuais, maior objeto da judicialização da saúde, em detrimento de um sistema universal e igualitário. Lembramos que as exceções ainda não foram formuladas na tese de repercussão geral.

O complexo olhar da judicialização sobre o SUS

São inúmeras as demandas por medicamentos, produtos, insumos, tecnologias e serviços em relação ao SUS. A judicialização olha para o SUS muitas vezes de modo inadequado, enviesado, sem atentar para determinadas normas, para as pactuações interfederativas e para o seu baixo financiamento que é uma realidade e uma das principais causas das inadequações dos serviços de saúde que acabam sendo judicializados.

A própria integralidade assistencial encontra alguns limites na própria lei, como a exigência de parecer da Conitec para incorporação de produtos, medicamentos, tecnologias no SUS; as relações oficiais de medicamentos; o orçamento. Por isso, advoga-se que há que se ter parâmetros, balizas para a interpretação do que o conceito de integralidade da atenção à saúde compreende, conforme definido no artigo 7º, II, da Lei nº 8.0801818 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm
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, de 1990, por se tratar de um conceito jurídico-administrativo e sanitário impreciso1919 Santos L, Carvalho GI. Comentários à Lei Orgânica da Saúde. 5. ed. Campinas: Saberes; 2018., em razão da amplitude e da fluidez do conceito do que seja ‘saúde’, conforme se vê na definição da própria Organização Mundial da Saúde (OMS).

Essa indefinição sobre o que compreende a integralidade exige do aplicador da norma, do administrador, a adoção de parâmetros, de balizas, que a modulem, que contenham tal fluidez e possibilitem, observados os princípios, as diretrizes do SUS, gerir um sistema público que possa atender a todos de modo sóbrio, racional, solidário e com qualidade, sem excesso e sem asfixiar o direito.

Para tanto, as reais causas da insuficiência de serviços precisam ser enfrentadas pelo Legislativo e pelo Executivo, sendo a principal delas, o subfinanciamento da saúde, de conhecimento público e notório, agravado, como se disse aqui, pela EC 95 e suas nefastas consequências para a garantia do direito. Sem atuar nas causas, continuar-se-á a discutir a judicialização da saúde sem a intenção de resolvê-la, verdadeiramente.

Importante externar que o federalismo cooperativo no nosso país tem sido marcado pelo desequilíbrio em relação ao ente federativo prestador do serviço (estadual e municipal), que está à frente dos serviços, que na vida real tem que atender a população, garantindo-lhe serviços suficientes, de qualidade e no tempo oportuno, ressaltando a responsabilidade do ente federal em relação à obrigação constitucional da garantia do direito à saúde que lhe exige cofinanciar o sistema de modo equilibrado. O pêndulo da balança não tem tido o necessário equilíbrio, sobrecarregando sobremodo os entes subnacionais.

A decisão de ser da União a responsabilidade pela incorporação de medicamento no SUS em âmbito nacional, após as análises técnicas, científicas e econômicas realizadas pela Conitec, recompõe minimamente o percurso que deveria ter sido adotado a respeito do tema. Sempre foi competência da União a incorporação, em âmbito nacional, de medicamentos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e nas demais listas oficiais, facultado aos estados e municípios a incorporação em listas próprias complementares, às suas expensas. É sempre da União a competência principal para a incorporação de qualquer medicamento e não tão somente os de alto custo.

Em artigo publicado ‘O financiamento da saúde na Constituição de 1988: um estudo em busca da efetividade do direito fundamental por meio da equalização federativa do dever do seu custeio mínimo’2020 Graziane E, Bahia AMF, Santos L. O financiamento da saúde na Constituição de 1988: um estudo em busca da efetividade do direito fundamental por meio da equalização federativa do dever do seu custeio mínimo. A&C Revista de Direito Adm. Const. 2016; 16(66):1-290. Disponível em: http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/366/652
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, defendemos essa posição quanto à responsabilidade da União pela incorporação de medicamentos.

De outra banda, somente medicamento de alto custo ‘não incorporado’ no SUS pode ser fornecido ao paciente por decisão judicial e, lembre-se, para aqueles que não podem pagar, em acordo ao voto do Ministro Marco Aurélio Mello, no RE 566471. Assim sendo é imposto um dever ao Estado de fornecer medicamento ‘de alto custo a portador de doença grave, não incorporado no SUS, que não possui condições financeiras para comprá-lo’. Com o julgamento de março de 2020 do RE 5664712121 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 566471. Ministro Relator Marco Aurélio Mello. 2020. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE566471.pdf
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, de o Estado não ser obrigado judicialmente a fornecer medicamento que não esteja incorporado no SUS em suas listas oficiais, essa proposição do Ministro Relator, expressada em seu voto com novo texto:

reconhecimento do direito individual ao fornecimento, pelo Estado, de medicamento de alto custo, não incluído em Política Nacional de Medicamentos ou em Programa de Medicamentos de Dispensação de caráter Excepcional, constante de rol dos aprovados, depende de demonstração da imprescindibilidade - adequação e necessidade -, da impossibilidade de substituição do fármaco e da incapacidade financeira do enfermo e da falta de espontaneidade dos membros da família solidária em custeá-lo, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil, e assegurado o direito de regresso.

É bastante complexa por ferir a regra da gratuidade das ações e serviços de saúde. Se nas exceções a serem formuladas na tese de não concessão de medicamentos não assegurados pelo SUS, prevalecer a decisão acima, será certamente, como foi até agora, a decisão mais polêmica do STF por ferir os princípios constitucionais da igualdade de atendimento e universalidade de acesso ressaltados na própria audiência pública mencionada neste trabalho que tratou da ‘diferença de classe’.

O STF, naquele acórdão, fundamentou sua decisão nos princípios da universalidade do acesso e atendimento igualitário do artigo 196 da Constituição. Sendo o acesso às ações e aos serviços de saúde universal, igualitário, integral e gratuito, conforme expresso no artigo 2º, I, da Lei Complementar nº 1412222 Brasil. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3o do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13 Jan 2012. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp141.htm
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, de 2011 - que não permite computar no gasto mínimo constitucional com saúde, ações e serviços que não sejam gratuitos - impor a condição financeira como um elemento necessário para a satisfação do direito fundamental à saúde, é repelir a igualdade de atendimento e a gratuidade dos serviços prestados no âmbito do SUS.

Ainda que se possa argumentar tratar-se de ‘medicamento de alto custo não incorporado ao SUS’, o precedente é grave por permitir a priori que medicamentos de alto custo ‘não incorporados ao SUS’ sejam garantidos a todos que não possam arcar com seus custos, esbarrando nas normas de incorporação no rol de serviços do SUS, que requerem análises técnico-científicas, custo-efetividade em comparação a medicamentos já incorporados, realizadas pela Conitec.

Ao introduzir no SUS a situação econômica do seu usuário para que possa ou não fazer jus ao direito, cria grave precedente às regras de incorporação no rol de ações e serviços de saúde do SUS e a quebra da gratuidade e igualdade. Isso sem falar no conceito de integralidade que deve ser para todos, sem exceção; no da universalidade de acesso, restrito nesse conceito àqueles que não podem pagar. Aqui saltam vários elementos conflituosos, como: o SUS não está obrigado a fornecer medicamentos não registrados na Anvisa e não incorporados ao SUS. Doravante, se o medicamento for de alto custo e não estiver incorporado poderá ser fornecido por decisão judicial. Todos eles? E como definir quem tem ou não condições financeiras para a sua aquisição? A quem cabe essa incumbência?

Esse aspecto da decisão do RE prejulgou parte da decisão que ainda pende de julgamento sobre medicamentos para doenças raras - todos de alto custo, sempre - sem incorporação pelo SUS. De todo modo, a decisão de tornar obrigatório o fornecimento de medicamentos de alto custo não incorporados para aqueles que não puderem arcar com seus custos pode levar ao paradoxo de a União preferir não incorporar porque, assim, somente será obrigada a fornecer àqueles que não têm poder de compra e demandar em juízo e, sem dúvida, encerra refutável rompimento ao princípio da igualdade de atendimento no SUS, como mencionado acima. Despesas com medicamentos fornecidos somente para aqueles que não puderem arcar com seus custos, não poderão, por sua vez, ser contabilizados para o gasto mínimo com saúde pela quebra na universalidade do acesso e gratuidade, nos termos da Lei Complementar 1412222 Brasil. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3o do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial da União. 13 Jan 2012. [acesso em 2020 out 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp141.htm
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, aqui citada. A decisão do Ministro Alexandre de Moraes no RE 1165959 aqui mencionado segue esta linha.

Conclusões

A judicialização da saúde tem um lado positivo - que é a consciência do cidadão sobre os seus direitos na saúde - e tem seu lado negativo que é o seu excesso, decisões judiciais polêmicas, incompreensões do SUS, entre outros aspectos. Vimos nessas decisões do STF acertos e equívocos. Outro aspecto a ser ressaltado, é que a judicialização da saúde tem sempre caráter individual, agravando o alcance da macrojustiça, do atendimento coletivo em benefício do individual. Isso agrava as dificuldades estruturais do SUS, como o seu subfinanciamento. Ao se garantir medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS, de modo individual, certamente os recursos serão retirados do orçamento da saúde impactando as prestações sanitárias coletivas ou igualitárias.

Na maioria dos casos, excluídos os abusos que ocorrem na judicialização, pode até haver justeza no pedido do demandante, contudo, sem enfrentar as causas da inadequação das ações e dos serviços de saúde às necessidades das pessoas, a maioria delas afetas à falta de recursos financeiros, continuar-se-á a tergiversar sobre o cumprimento adequado do direito à saúde. Dizer que há problemas com a gestão e com a corrupção não resolve a real questão do baixo financiamento; agrava-o, mas não o salva nem o mitiga.

Há que se enfrentar cada uma delas, como a fragilidade dos controles públicos que mais zelam pela forma do que pelo conteúdo; a teia burocrática diária, que para evitar a corrupção - que não evita - inviabiliza a ação pública. É preciso, pois, ter mais recursos para a saúde; enfrentar a má gestão combatendo regramentos insignificantes, meramente burocráticos e insensíveis à realidade do mundo, que para nada servem, exceto para infantilizar o gestor. É preciso remodelar o sistema de controle público que deve focar mais nas entregas qualitativas dos serviços de saúde à população e punir de fato a má conduta administrativa. Haver má gestão não supre a falta de recursos.

Por fim, a judicialização da saúde quando corrige falhas da Administração Pública é necessária e importante; por outro lado, pode ser ruim, do ponto de vista do excesso de concessão de liminares, da justiça individualizada, a microjustiça, que não resolve o sistema de saúde como um todo, em sua visão macro. É preciso lutar para a melhoria dos serviços de saúde de maneira coletiva, o que certamente contribuiria para a diminuição da judicialização e para a maior satisfação dos usuários dos serviços públicos de saúde, com o fortalecimento do SUS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2020
  • Aceito
    22 Jun 2021
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