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O acesso aos serviços de saúde pela População em Situação de Rua: uma revisão integrativa

Access to health services by the Homeless Population: an integrative review

RESUMO

Objetivamos analisar o acesso da População em Situação de Rua (PSR) à atenção básica, ambulatorial e hospitalar. O estudo foi realizado por meio de uma revisão integrativa (2009 a 2020) com dados retirados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), nos idiomas português, espanhol e inglês, originados no Brasil e disponíveis em texto completo. Os descritores foram: PSR; morador de rua; acesso aos serviços de saúde; e os termos livres consultório na rua e consultório de rua. Os resultados indicam como barreiras para o acesso à atenção básica os preconceitos e estigmas produzidos sobre a PSR. Na atenção ambulatorial e hospitalar, os artigos revelam que não há acolhimento de pacientes PSR que possuem Transtorno Mental Grave (TMG). A exigência de documentos de identificação para o atendimento, somada à ausência de produção de vínculo e acolhimento, são barreiras presentes da atenção básica à hospitalar. Os estudos indicam o Consultório na Rua e a articulação com as Redes de Assistência Social e Atenção Psicossocial como potencializadores do acesso da PSR aos serviços de saúde. Conclui-se que a PSR requer um processo de trabalho em saúde pautado na equidade como princípio de atuação no Sistema Único de Saúde.

PALAVRAS-CHAVE
Pessoas em Situação de Rua; Acesso aos serviços de saúde; Literatura de revisão

ABSTRACT

We aim to analyze the access of the Homeless Population (PSR) to primary, outpatient and hospital care. The study was conducted through an integrative review (2009 to 2020), by Virtual Health Library (VHL), in Portuguese, Spanish and English, originating in Brazil, and available with full text. The descriptors were: PSR; homeless; access to health services; and the free term street office. The results indicate the prejudices and stigmas produced about PSR as barriers to accessing primary care. The results indicate the prejudices and stigmas produced about PSR as barriers to accessing primary care. In outpatient and hospital care, the articles point to the non-acceptance of PSR patients who have Severe Mental Disorder (SMD). The requirement of identification documents for the service, added to the lack of bonding and reception, are barriers present in primary care to hospital care. The studies indicate the Street Office, and the articulation with Social Assistance Networks and psychosocial care as enhancers of PSR’s access to health services. It is concluded that the PSR requires a health work process based on equity as a principle of action in the Unified Health System.

KEYWORDS
Homeless persons; Health services accessibility; Review literature as topic

Introdução

A Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) instituída pelo Decreto Presidencial nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, representa importante avanço na garantia do acesso à saúde para essa população no Brasil. Essa política compreende tal população como:

O grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. (art. 1°)11 Brasil. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 24 Dez 2009. [acesso em 2019 jul 25]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
.

Nessa direção, objetiva assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas, incluindo a saúde11 Brasil. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 24 Dez 2009. [acesso em 2019 jul 25]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
. No ano de 2013, foi criado o Plano Operativo de Saúde para a População em Situação de Rua com fins de garantir o acesso aos serviços de saúde por meio do Consultório na Rua (CnaR), estratégia de efetivação da entrada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo não sendo a única maneira de garantir o acesso aos serviços de saúde, o CnaR se estabelece vislumbrando dar cobertura, assistência e o acolhimento preciso22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Saúde da população em situação de rua: um direito humano. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. [acesso em 2019 jul 25]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_populacao_situacao_rua.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
, se caracterizando como:

Um serviço multiprofissional de atenção primária às PSR. Inclui o cuidado ao uso problemático de álcool e outras drogas por meio da busca ativa e do compartilhamento de ações com demais pontos da rede e outros setores. Sua implantação é obrigatória conforme o número de PSR identificadas nos municípios33 Borysow IC, Conill EM, Furtado JP. Atenção à saúde de pessoas em situação de rua: estudo comparado de unidades móveis em Portugal, Estados Unidos e Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(3):879-890.(884).

Apesar dos avanços representados pela instituição de tal política, Abreu e Oliveira44 Abreu D, Oliveira WF. Atenção à saúde da população em situação de rua: um desafio para o Consultório na Rua e para o Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(2):e00196916. informam que a população em situação de rua vivencia limites no acesso a direitos sociais básicos e constitucionais. Nessa direção, para Hallaise Barros55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504., por mais que exista a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) e outras políticas setoriais e intersetoriais, elas não garantem, por si só, o cuidado integral em saúde a essa população, tendo em vista que “o imaginário social sobre a população em situação de rua influencia significativamente a prática dos profissionais que atuam nos serviços de saúde”55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504.(1499).

Os autores evidenciam a existência de um olhar negativo sociocultural sobre a população em situação de rua que reflete na relação entre profissionais de saúde e essa população, acarretando o não cumprimento do princípio da integralidade do SUS e da Política Nacional de Humanização (PNH) e impactando severamente a saúde desse grupo que vivencia diversas vulnerabilidades55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504.. Tal olhar se traduz em

características estigmatizantes como a sujeira, o mau cheiro e o efeito de drogas lícitas e ilícitas são, muitas vezes, determinantes para a precariedade no acolhimento ao morador de rua nos serviços de saúde55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504.(1499).

Nesse sentido, a PSR enfrenta dificuldades para conseguir internação, mesmo com a mediação realizada pelos CnaR, além dos processos burocráticos que reforçam a exclusão dessa população com as exigências de agendamento para atendimento, horários inflexíveis para consulta, exigência de documentos de identificação e comprovação de endereço residencial55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504..

Hino, Santos e Rosa66 Hino P, Santos OJ, Rosa AS. Pessoas que vivenciam situação de rua sob o olhar da saúde. Rev Bras Enferm. 2018; 71(supl1):732-740. afirmam que, apesar dos avanços conquistados no cuidado e atenção à saúde para a PSR, em especial diante da instituição do CnaR pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), ainda se observam impasses no cuidado voltado a essa população, como a resistência de certos profissionais de saúde em atendê-los devido a estigmas, preconceitos, discriminações e atitudes higienistas.

Diante do exposto, este artigo tem como objetivo analisar o acesso da população em situação de rua na atenção básica, ambulatorial e hospitalar a partir de uma revisão integrativa da literatura.

Metodologia

A Revisão Integrativa de Literatura (RIL) consiste numa abordagem metodológica que objetiva a integração de estudos experimentais e não-experimentais com base na produção de um panorama sobre uma determinada temática em estudo77 Souza MT, Silva MD, Carvalho R. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein. 2010; 8(1):102-106.. Por meio da RIL, é realizada a identificação, análise e sistematização de resultados de estudos científicos existentes sobre um determinado tema, utilizando critérios pré-estabelecidos e uma questão norteadora.

Neste estudo, elegemos como questão norteadora as dificuldades evidenciadas pela literatura para que a população em situação de rua acesse a saúde.

A busca bibliográfica foi realizada durante os meses de setembro e outubro de 2020 na base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Usamos os seguintes descritores: população em situação de rua; morador de rua; acesso aos serviços de saúde; e os termos livres consultório na rua e consultório de rua.

Para a busca na base de dados, os descritores e termos livres foram combinados utilizando o operador booleano AND: 1. População em situação de rua and acesso à saúde and Brasil; 2. População de rua and acesso à saúde and Brasil; 3. Morador de rua and acesso à saúde and Brasil; 4. Homeless people and access to health services and Brazil; 5. Homeless and access to health services and Brazil; 6. Consultório na rua and acesso à saúde and Brasil; 7. Street Clinic and access to health services and Brazil; 8. Consultório de rua and acesso à saúde and Brasil; 9. Street Outreach Office and access to health services and Brazil; 10. Street office and access to health services and Brazil; 11. Personas sin hogar and acceso a la salud and Brasil; 12. Práctica de calle and acceso a la salud and Brasil; 13. Consultorio de calle and acceso a la salud and Brasil; 14. Población de calle and servicios de salud and Brasil.

Utilizamos os seguintes filtros: 1. Texto completo; 2. País, Região e Origem: Brasil; 3. Idioma: Inglês, Português e Espanhol; 4. Tipo de publicação: Artigo; Ano da publicação: 2009 a setembro/2020. O período foi definido respeitando a criação da PNPSR em 2009.

Os critérios de inclusão estabelecidos para o levantamento bibliográfico foram: ser artigo que versasse sobre a realidade brasileira e respondesse à questão de pesquisa. Excluímos artigos não enquadrados no tema e que fossem de revisão.

Para obtenção dos dados, usamos um instrumento de coleta com os seguintes itens: ano; autores; periódico; objetivo; enfoque metodológico e desafios no acesso à saúde pela população em situação de rua. Este estudo seguiu a estratégia proposta por Souza, Silva e Carvalho77 Souza MT, Silva MD, Carvalho R. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein. 2010; 8(1):102-106. para revisão integrativa.

O 1° Filtro consistiu na leitura dos títulos e resumos e seleção a partir da adequação ao tema, eliminando as repetições. Aqui, foram encontrados 151 artigos, e selecionados 41 artigos após eliminação das repetições. O 2° Filtro consistiu da leitura de títulos e resumos, utilizando como critérios a adequação ao tema e que ofereçam respostas à questão norteadora do estudo. Foram selecionados nove artigos. O 3° Filtro consistiu da leitura do texto completo, com base no critério utilizado no filtro 2. Permaneceram selecionados os nove artigos. A busca foi realizada pelo primeiro pesquisador e repetida pelo segundo, que, em reunião, chegaram aos mesmos textos selecionados ao final dos três filtros.

Os artigos selecionados foram caracterizados quanto a ano de publicação, periódico, objetivo, metodologia e procedimento metodológico de estudo, amostra e localização geográfica no país. Realizamos análise de conteúdo a partir das respostas oferecidas pelos artigos selecionados.

Resultados

Dos nove artigos selecionados para compor esta pesquisa55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504.,88 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(1):115-124.,99 Borysow IC, Furtado JP. Acesso, equidade e coesão social: avaliação de estratégias intersetoriais para a população em situação de rua. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(6):1069-1076.,1010 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848.,1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515.,1212 Oliveira DM, Expedito AC, Aleixo MT, et al. Necessidades, produção do cuidado e expectativas de pessoas em situação de rua. Rev Bras Enferm. 2018; 71(supl6):2849-2857.,1313 Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis. 2018; 28(2):e280205.,1414 Neves-Silva P, Martins GI, Heller L. “A gente tem acesso de favores, né?”. A percepção de pessoas em situação de rua sobre os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Cad. Saúde Pública. 2018; 34(3):e00024017.,1515 Granja MCLM, Lima FLT. Barreiras à Prevenção do Câncer e Tratamento Oncológico para a População em Situação de Rua. Rev Bras. Cancerologia. 2020; 66(2):e-09816., quatro pesquisaram acesso a serviços de saúde pela perspectiva da população em situação de rua, quatro pesquisaram sobre práticas dos serviços na perspectiva dos profissionais de saúde, e um deles usou dados coletados com usuários, profissionais de saúde e de prontuários e sistemas de informação. Os artigos selecionados estão descritos no quadro 1.

Quadro 1.
Caracterização dos artigos selecionados

Evidencia-se pequena produção sobre a temática, aferindo ausência de estudos no período de 2009 a 2011 e nos anos 2013, 2017 e 2019. Foi encontrado um estudo em 201288 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(1):115-124.; um em 201499 Borysow IC, Furtado JP. Acesso, equidade e coesão social: avaliação de estratégias intersetoriais para a população em situação de rua. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(6):1069-1076.; um em 201555 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504.; dois em 20161010 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848.,1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515.; três em 20181212 Oliveira DM, Expedito AC, Aleixo MT, et al. Necessidades, produção do cuidado e expectativas de pessoas em situação de rua. Rev Bras Enferm. 2018; 71(supl6):2849-2857.,1313 Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis. 2018; 28(2):e280205.,1414 Neves-Silva P, Martins GI, Heller L. “A gente tem acesso de favores, né?”. A percepção de pessoas em situação de rua sobre os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Cad. Saúde Pública. 2018; 34(3):e00024017. e um em 20201515 Granja MCLM, Lima FLT. Barreiras à Prevenção do Câncer e Tratamento Oncológico para a População em Situação de Rua. Rev Bras. Cancerologia. 2020; 66(2):e-09816..

Os nove artigos selecionados por este estudo são de abordagem qualitativa, sendo a técnica mais utilizada a de entrevista. Já as abordagens teóricas hegemônicas, foram a fenomenologia e hermenêutica dialética. Um estudo envolveu análise documental. Em relação à origem dos estudos, dois artigos são do estado de Minas Gerais, dois do estado de São Paulo, três do estado do Rio de Janeiro, um do estado de Alagoas e um do estado da Bahia.

Os dados foram organizados conforme as categorias Atenção Básica e Consultório na Rua; Atenção Ambulatorial e Atenção Hospitalar, e estão apresentados no quadro 2.

Quadro 2.
Categorização dos artigos por nível de atenção à saúde

Nos nove artigos analisados, a categoria Atenção Básica foi mencionada 44 vezes, em oito estudos; a Atenção Ambulatorial foi mencionada cinco vezes, em três artigos; a Atenção

Hospitalar foi mencionada em oito estudos, aparecendo 32 vezes; o ‘Consultório na Rua’ ou ‘Consultório de Rua’ foi encontrado em sete estudos, num total de 117 menções.

Discussão

Os dados desta pesquisa indicam para a invisibilidade da temática entre pesquisadores. O fato foi corroborado por Hallais e Barros55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504., que evidenciam a quase inexistência de produções científicas sobre o cuidado em saúde com a PSR. Os autores justificam tal escassez pela PNPSR ser recente. Neves-Silva, Martins e Heller1414 Neves-Silva P, Martins GI, Heller L. “A gente tem acesso de favores, né?”. A percepção de pessoas em situação de rua sobre os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Cad. Saúde Pública. 2018; 34(3):e00024017. informam que a PSR diariamente sofre na sociedade atos discriminatórios e é cercada com a violência, em especial por parte do poder público.

Diante disso, o acesso aos serviços de saúde da população em situação de rua apresenta barreiras estruturais similares nos diversos pontos da rede de atenção à saúde, como a exigência de documentação, endereço, entre outros. Em alguns casos, a atuação da atenção primária por intermédio das equipes de consultório de rua ou de equipes especializadas, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e serviços de assistência social, age facilitando o acesso dessas pessoas aos serviços de saúde.

Atenção básica e Consultório na Rua

Oito artigos selecionados para esta pesquisa integrativa discorrem sobre atenção básica e sete, sobre o Consultório na Rua ou de Rua. A análise de tais categorias é realizada conjuntamente, tendo em vista que ambas compõem a Atenção Primária à Saúde (APS) para a PSR. Granja e Lima1515 Granja MCLM, Lima FLT. Barreiras à Prevenção do Câncer e Tratamento Oncológico para a População em Situação de Rua. Rev Bras. Cancerologia. 2020; 66(2):e-09816. destacam que o cuidado à população de rua no plano do SUS é de incumbência da atenção básica, sendo essa uma população singular. As equipes de Consultório na Rua (eCR), preditas na PNAB, são essenciais para o cuidado dessa população, pois a eCR faz a articulação dos serviços de saúde que precisam ser demandados, contribuindo, assim, para a produção de uma atenção integral à saúde dessa população.

Oliveira et al.1212 Oliveira DM, Expedito AC, Aleixo MT, et al. Necessidades, produção do cuidado e expectativas de pessoas em situação de rua. Rev Bras Enferm. 2018; 71(supl6):2849-2857. afirmam que o Programa Consultório na Rua trouxe mudanças positivas ao sistema de saúde quanto à organização da assistência que as pessoas em situação de rua necessitam, indicando a importância da estruturação da rede de atenção à saúde. Oliveira et al.1212 Oliveira DM, Expedito AC, Aleixo MT, et al. Necessidades, produção do cuidado e expectativas de pessoas em situação de rua. Rev Bras Enferm. 2018; 71(supl6):2849-2857. enfatizam, entretanto, que o fato de a grande maioria da PSR habitar em localidades onde não há cobertura de atenção básica, a priva do acesso a cuidados em saúde. Além disso, os autores discutem a falta de documentos de identificação como barreira de acesso à atenção básica em saúde pela PSR, o que contradiz os princípios do SUS e a própria constitucionalidade do direito de acesso à saúde.

Engstrom e Teixeira1010 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848. afirmam ser contraditório aos princípios do SUS e à organização da porta de entrada dos serviços públicos de saúde pela APS a realidade de dificuldades vividas por essa população ao acesso aos serviços de saúde. Segundo os autores:

A APS, implementada em seus atributos de primeiro contato, vínculo longitudinal, integralidade e coordenação da atenção, deveria estar apta a prestar o cuidado integral a populações vulneráveis, como a dos moradores de rua. Sistemas de Saúde com forte referencial na APS são mais efetivos, mais satisfatórios para a população, têm custos menores e são mais equitativos, mesmo em contextos de grande iniquidade social1010 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848.(1840).

Ferreira, Rozendo e Melo1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515. concluem que as ações das eCR não atendem somente às demandas de saúde-doença dessa população em vulnerabilidade. Pelo contrário, as eCR ganham força no propósito de ampliar o acesso aos serviços de saúde e assistência social a esse grupo. Alguns participantes desta pesquisa relataram que conseguiram solicitar o cartão do SUS, que auxiliou o agendamento de consultas de pré-natal e a vacinação dos filhos. Além disso, um participante relata que o CnaR foi determinante para que conseguisse atendimento em nível hospitalar1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515..

Ferreira, Rozendo e Melo1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515. destacaram como habilidades fortes do Consultório na Rua o acolhimento e o vínculo, bem como as ações que elaboram na rua e as conexões intersetoriais que traçam. Identificaram que as tecnologias leves estão presentes no dia a dia dos profissionais de saúde que atendem no consultório de rua para a geração de segurança, confiança e diálogo entre usuários e profissionais da saúde.

Hallais e Barros55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504. também destacam que os CnaR têm como foco a geração de vínculo com a PSR, servindo como técnica para a ampliação do acesso aos serviços de saúde pela PSR e obtendo como consequência a “[...] redução de danos e o olhar humanizador por meio da promoção, prevenção e cuidados primários em saúde fora dos espaços institucionais”55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504.(1501).

Engstrom e Teixeira1010 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848. enfatizam que a equipe de Consultório na Rua precisa ser caracterizada como a porta de entrada fundamental da PSR nas Redes de Atenção à Saúde (RAS) e nas redes intersetoriais. Para as autoras, a eCR deve desenvolver a mesma proposta do modelo de APS, com

ações de saúde individuais e coletivas, promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e manutenção da saúde1010 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848.(1840).

Ferreira, Rozendo e Melo1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515. informam que, para melhor atendimento da PSR, é preciso que o profissional de saúde do CnaR saiba quais são as particularidades desse grupo, compreendendo o perfil do território que habitam, assim como o cenário num todo.

Há desafios para que o Consultório na Rua consiga desenvolver o seu papel com êxito na vida da PSR, dois deles abordados por Ferreira, Rozendo e Melo1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515.(5): a “estrutura organizacional do Consultório na Rua e a articulação com a Rede de Atenção à Saúde (RAS)”. Quando a população de rua não está acompanhada da equipe de Consultório na Rua nas RAS, sofre preconceitos por parte dos profissionais de saúde que compõem as RAS, excluindo essa população dos serviços de saúde como efeito de práticas discriminatórias. Quanto à estrutura organizacional, os CnaR sofrem com a falta “de sede e/ou espaço físico para atendimento dos usuários, ausência de veículo próprio e de recursos humanos insuficientes para a demanda”1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515.(5) que possuem. Tal situação foi apresentada pelo relato dos usuários atendidos pelo CnaR, como vemos:

O que precisa melhorar é um espaço para eles exercer o trabalho deles aqui, porque tiraram eles daqui e ficou ruim pra gente, porque quando eles tinham um espaço aqui eles vinham direto e agora só vêm quando pode, porque eles não têm aqui só para atender e ajudar (E7). Se tivesse um local certo que o pessoal soubesse, não precisava nem eles andar, que eu mesmo procuraria que tivesse um ponto ou posto deles mesmo [...] pra mim seria melhor (E12)1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515.(5).

Granja e Lima1515 Granja MCLM, Lima FLT. Barreiras à Prevenção do Câncer e Tratamento Oncológico para a População em Situação de Rua. Rev Bras. Cancerologia. 2020; 66(2):e-09816. analisam que um dos problemas que geram negligência no acesso à saúde pela PSR é o fato de os profissionais das unidades de saúde acreditarem que a população de rua receba todo cuidado de atenção à saúde a que tem direito nos consultórios de rua, criando ideias equivocadas de que esse grupo não precisaria ir até às unidades de saúde. Tal entendimento equivocado sobre essa população gera empecilho ao fluxo de atendimento às outras populações. Ou seja, apesar de a eCR possibilitar que a população de rua tenha a garantia do direito ao cuidado e atenção à saúde, por vezes, emergem incompreensões sobre essa população em suas singularidades que a impedem de buscar atendimentos nas unidades básicas de saúde. Segundo Granja e Lima1515 Granja MCLM, Lima FLT. Barreiras à Prevenção do Câncer e Tratamento Oncológico para a População em Situação de Rua. Rev Bras. Cancerologia. 2020; 66(2):e-09816., o preconceito predominante sobre essa população é histórico.

Granja e Lima1515 Granja MCLM, Lima FLT. Barreiras à Prevenção do Câncer e Tratamento Oncológico para a População em Situação de Rua. Rev Bras. Cancerologia. 2020; 66(2):e-09816. mencionam que, mesmo diante da PNPR criada em 2009, os profissionais de saúde que não integram a equipe do Consultório na Rua agem de forma preconceituosa com a população de rua. Os estigmas que esses profissionais possuem por esse grupo estão fixamente instalados no processo de trabalho, de modo que suas ações produzem exclusões1515 Granja MCLM, Lima FLT. Barreiras à Prevenção do Câncer e Tratamento Oncológico para a População em Situação de Rua. Rev Bras. Cancerologia. 2020; 66(2):e-09816..

Nessa direção, as ações dos profissionais da saúde vão criando a primeira barreira de acesso da PSR aos serviços de saúde na atenção básica. Em contrapartida, nos consultórios de rua, Granja e Lima1515 Granja MCLM, Lima FLT. Barreiras à Prevenção do Câncer e Tratamento Oncológico para a População em Situação de Rua. Rev Bras. Cancerologia. 2020; 66(2):e-09816. especificam que as equipes que ali atuam, em meio a grandes desafios que enfrentam no atendimento dessa população, propiciam acolhimento com princípios na humanização da atenção e um olhar para as especificidades.

Engstrom e Teixeira1010 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848. ressaltam que a eCR representa, no SUS, uma ‘reorientação dos serviços de saúde’ para a população de rua, fazendo com que a demanda de saúde desse grupo alcance a integralidade das ações de saúde, operando na prevenção, promoção e ampliação nas redes de atenção, dado o contexto sociopolítico ao qual estão inseridos.

Portanto, apesar de o CnaR ter potencial na ampliação do acesso aos serviços de saúde pela PSR, a literatura aborda a falta de recursos para as equipes do Consultório na Rua como ausência de espaço adequado para atendimento, falta de veículo para transportar a PSR, recursos humanos insuficientes para atender à demanda, os quais podem enfraquecer os avanços do cuidado e atenção à saúde direcionadas a essa população.

Atenção ambulatorial e atenção hospitalar

Segundo Oliveira et al.1212 Oliveira DM, Expedito AC, Aleixo MT, et al. Necessidades, produção do cuidado e expectativas de pessoas em situação de rua. Rev Bras Enferm. 2018; 71(supl6):2849-2857. e Zuim e Trajman1313 Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis. 2018; 28(2):e280205., a população de rua recebe atendimento quando se encontra em estado grave, se dirigindo a serviços de atendimento de emergência e de internação hospitalar. Oliveira et al.1212 Oliveira DM, Expedito AC, Aleixo MT, et al. Necessidades, produção do cuidado e expectativas de pessoas em situação de rua. Rev Bras Enferm. 2018; 71(supl6):2849-2857. afirmam que esse modelo se faz presente independentemente de serem países que possuem um sistema universal de saúde ou não.

Aguiar e Iriart88 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(1):115-124. afirmam que o fato de as pessoas em situação de rua recorrerem aos serviços de saúde somente quando o estado de saúde é grave e urgente é resultado das barreiras estruturais. Sobre os empecilhos enfrentados pela população de rua na busca por um acesso amplo aos serviços de saúde, podem ser citados a exigência de documentação para agendamento de consulta tais como comprovante de residência, identidade e cartão do SUS88 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(1):115-124..

Corroborando Aguiar e Iriart88 Aguiar MM, Iriart JAB. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2012; 28(1):115-124., Hallais e Barros55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504. analisam que:

A restrição de acesso imposta pelos próprios regulamentos das instituições públicas aos atores sociais marginalizados denuncia a necessidade de criação e efetivação de políticas e práticas institucionais sensíveis à pluralidade e pautadas na justiça e no reconhecimento social55 Hallais JAS, Barros NF. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cad. Saúde Pública. 2015; 31(7):1497-1504.(1501).

Borysow e Furtado99 Borysow IC, Furtado JP. Acesso, equidade e coesão social: avaliação de estratégias intersetoriais para a população em situação de rua. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(6):1069-1076., em estudo de caso realizado em um município do interior do estado de São Paulo, concluem que a abordagem de rua se torna estratégia para que a PSR tenha acesso aos serviços de saúde. Os autores99 Borysow IC, Furtado JP. Acesso, equidade e coesão social: avaliação de estratégias intersetoriais para a população em situação de rua. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(6):1069-1076. alegam que os profissionais de saúde do pronto-socorro e hospitais, quando percebem que a PSR presente no estabelecimento possui Transtorno Mental Grave (TMG), não acolhem a demanda sob alegação de que, antes, a PSR deveria passar pelo atendimento social para realização de cadastro, higiene pessoal etc. Nessa direção, Neves-Silva, Martins e Heller1414 Neves-Silva P, Martins GI, Heller L. “A gente tem acesso de favores, né?”. A percepção de pessoas em situação de rua sobre os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Cad. Saúde Pública. 2018; 34(3):e00024017. evidenciaram narrativas como:

Porque se o morador de rua adoecer aqui, ele vai no hospital, eles não aceitam porque o cara chegou sujo, aí você tem que caçar um lugar pra tomar banho, aonde você vai tomar banho? [...] Se você for tomar banho em algum outro canto, até você retornar ao hospital, o médico vai falar, a sua ficha já foi cancelada. Você fica com aquela doença, então é assim1414 Neves-Silva P, Martins GI, Heller L. “A gente tem acesso de favores, né?”. A percepção de pessoas em situação de rua sobre os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário. Cad. Saúde Pública. 2018; 34(3):e00024017.(6).

Borysow e Furtado99 Borysow IC, Furtado JP. Acesso, equidade e coesão social: avaliação de estratégias intersetoriais para a população em situação de rua. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(6):1069-1076. atestam que o acolhimento à PSR só acontece de maneira mais tranquila quando ocorre por meio de intervenção de profissionais do Caps ou da assistência social. Diante da dificuldade constatada no atendimento à PSR, incluindo a população com TMG, inferiram que é indispensável “legitimar a atuação intersetorial e interserviços com fluxos estáveis”99 Borysow IC, Furtado JP. Acesso, equidade e coesão social: avaliação de estratégias intersetoriais para a população em situação de rua. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(6):1069-1076.(1073).

Ferreira, Rozendo e Melo1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515. destacaram que o uso de tecnologias leves nos CnaR, sendo essas as tecnologias de relações como o acolhimento, vínculo, tem capacidade de fazer com que a PSR crie laços com os profissionais de saúde, resultando, assim, na melhoria do acesso aos serviços de saúde pela população em situação de rua, pois gera compromisso e responsabilização por parte de ambos. Nesta pesquisa, constatou-se:

Me ajuda em tudo, com remédio, com exame, conselho (E2). Foi uma boa vinda aqui pra Alagoas porque, quando não tinha ele, era pior, com certeza, eles levam a gente pra fazer exame, negócio de HIV, mama, cuida muito da saúde daqueles que querem ir, mas não obriga, mas tenta, insiste (E4). Pra prevenir de doença, ajudar a gente, traz preservativo, água, eles conversam (E7)1111 Ferreira CPS, Rozendo CA, Melo GB. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(8):e00070515.(4).

Em pesquisa de Engstrom e Teixeira1010 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848., conforme a complexidade de saúde em que a PSR se encontra, a eCR vem a ser a porta de acesso aos demais níveis de atenção à saúde. Exemplos de acesso aos serviços de emergência e hospitais são os casos da PSR com tuberculose em estado bem grave. Zuim e Trajman1313 Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis. 2018; 28(2):e280205. relatam que quando a PSR consegue o atendimento para sua necessidade, encontra nos serviços de saúde tratamento não vinculador por parte dos profissionais de saúde que lhes atendem. Dentre um dos relatos, as autoras apresentaram:

[...] Eu entrei pra bater a chapa e ela disse que não precisava bater chapa, não: ‘você já tomou soro’. Isso era duas horas da manhã. – Pode ir embora [fala da médica]. – Mas eu tenho que bater a chapa, doutora. – Não precisa, não [fala da médica]. Aí eu vim embora, já tinha tomado o soro. Aí, voltei da outra vez, bateu a chapa e falou assim: ‘é pneumonia’. Eu estava tomando esse tal de ‘avrolin’, um negócio assim (E16)1313 Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis. 2018; 28(2):e280205.(9).

As autoras1313 Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis. 2018; 28(2):e280205. também condenam a falta de informação oferecida ao paciente PSR sobre seu estado de saúde, resultando na permanência do sofrimento. O texto possibilita aferir a falta de diálogo e acolhimento ao paciente PSR. Diante dessa questão, Zuim e Trajman1313 Zuim RCB, Trajman A. Itinerário terapêutico de doentes com tuberculose vivendo em situação de rua no Rio de Janeiro. Physis. 2018; 28(2):e280205. atestaram que, quando a porta de entrada aos serviços de urgência se dá pela atenção primária, o acolhimento por parte dos profissionais da saúde se caracteriza como receptivo.

Considerações finais

Os resultados indicam como barreiras para o acesso da PSR aos serviços de saúde: na atenção básica, os preconceitos e estigmas produzidos se configuram em importante barreira, que, todavia, são minimizados com a atuação dos CnaR; que a falta de recursos prejudica a atuação dos CnaR. As dificuldades de acesso à atenção primária podem reverberar na piora do quadro dos pacientes, o que faz a PSR procurar os serviços de saúde nos níveis ambulatorial e hospitalar em estágios de adoecimentos mais avançados.

Em relação aos níveis de média e alta complexidade, identificaram-se maiores dificuldades enfrentadas pela PSR para acessá-los, além do fato que, geralmente, chegam à alta complexidade com seus estados de saúde agravados por demora no atendimento ou acolhimento inadequado. Os profissionais de saúde do pronto-socorro e hospitais, quando percebem que a PSR presente no estabelecimento possui TMG, não acolhem a demanda sob a alegação que, antes, a PSR deveria passar pelo atendimento social para realização de cadastro, higiene pessoal.

Da atenção básica à hospitalar, a falta de documentos de identificação dos usuários se configura em importante barreira para o acesso na medida em que passa a ser exigida como condição para agendamento de consultas, contribuindo, assim, para o agravamento dos processos de sofrimento e adoecimento da PSR. Destaca-se, também, a produção de um serviço de saúde não acolhedor ou vinculador por parte dos profissionais da saúde para a PSR, em especial, na atenção ambulatorial e hospitalar.

Todavia, apesar dos nós críticos nas RAS, os estudos sugerem a presença de pontos de rede que possibilitam o acolhimento das demandas da PSR, produção de vínculo e laços entre profissionais da saúde e usuários PSR a partir dos CnaR. Além disso, numa perspectiva intersetorial, a articulação entre RAS e Rede de Atenção Psicossocial a partir dos Caps e da Assistência Social possibilita melhor atendimento e acolhimento da PSR que vivencia o TMG. Pela literatura, torna-se evidente que o CnaR contribui para o acesso à saúde da PSR, configurando-se como porta de entrada fundamental dessa população nas RAS, porque tem como uma das características essenciais o acolhimento criador de vínculo com esse grupo. Permite, assim, que a PSR sinta segurança e confiança nos profissionais da saúde que lhe atende.

Os dados apresentados pelos artigos que compõe esta revisão integrativa esboçam os desafios para efetivação do SUS de maneira universal e integral a populações que compõe minorias sociais. Desafio que induz à tarefa de conceber um processo de trabalho pautado na equidade como princípio norteador da atenção e cuidado em saúde. Segundo Barros e Sousa1616 Barros FPC, Sousa MF. Equidade: seus conceitos, significações e implicações para o SUS. Saúde Soc. 2016; 25(1):9-18.:

[...] equidade como sendo a estratégia para se atingir a igualdade de oportunidades no tocante ao usufruto de boas condições de saúde e de acesso aos serviços de promoção, prevenção e recuperação, levando-se em conta as disparidades de ordem social, étnica, econômica e cultural1616 Barros FPC, Sousa MF. Equidade: seus conceitos, significações e implicações para o SUS. Saúde Soc. 2016; 25(1):9-18.(16).

A partir das autoras1616 Barros FPC, Sousa MF. Equidade: seus conceitos, significações e implicações para o SUS. Saúde Soc. 2016; 25(1):9-18., percebemos que a geração de iniquidades no acesso da população de rua à atenção básica, ambulatorial e hospitalar é reflexo dos desafios de promoção da equidade no acesso ao atendimento. Desafios tais como a ausência de maior articulação entre RAS, Redes de Atenção Psicossocial (Raps) e Redes de Assistência Social com o Sistema Único de Assistência Social (Suas) refletem na criação de iniquidades em saúde para a PSR. Do mesmo modo, a ausência do financiamento necessário para a efetivação do processo de trabalho das eCR e de sua estruturação física com recursos humanos do CnaR reflete nas dificuldades no provimento de igualdades de oportunidades para que a PSR acesse os serviços de saúde.

Assim, em diálogo com Barros e Sousa1616 Barros FPC, Sousa MF. Equidade: seus conceitos, significações e implicações para o SUS. Saúde Soc. 2016; 25(1):9-18., concluímos que avançar com a equidade é ponto fulcral para a garantia do acesso da PSR aos serviços de saúde de maneira universal e integral. Para tal, é necessário articular as dimensões: 1. formação de profissionais da saúde; 2. garantia de financiamento para a Política Nacional para a População em Situação de Rua com seu conjunto de equipamentos e serviços (eCR, CnaR); e 3. articulação intersetorial com as Raps e o Suas. Tal articulação em direção ao combate aos estereótipos e discriminação, a garantia de condições de trabalho para as eCR e a potencialização e fortalecimento dos pontos de rede que os estudos revelam como importantes para garantia do acesso da população de rua, como os Consultórios na Rua.

Conclui-se que a população em situação de rua requer um olhar interseccional sobre suas necessidades em saúde, entendendo que elas são atravessadas por questões de gênero, raça, classe, sexualidade1717 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021., cultura, entre outros, que convergem para a expansão de sua marginalização social e dos processos saúde-doença. A interseccionalidade exige a produção de um ethos da justiça social1717 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021., contribuindo para o debate sobre as necessidades de se aprofundar um processo de trabalho em saúde que norteie a equidade como princípio ético e político de atuação no SUS.

Nessa direção, a análise das dificuldades enfrentadas pela PSR no acesso aos diferentes níveis de saúde requer a percepção de como os processos de marginalização, criminalização e discriminação vivenciados por essa população se materializa nos cotidianos da saúde em não acolhimento, processos discriminatórios e exclusão dos serviços de saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2021
  • Aceito
    12 Out 2021
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