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Perfil dos processos de internação compulsória decorrentes do uso de drogas: uma pesquisa documental

Profile of compulsory hospitalization processes due to drug use: a documentary research

RESUMO

A internação compulsória, regulamentada pela Lei nº 10.216/2001, é um fenômeno que envolve duas importantes áreas: saúde e justiça. Sua utilização para enfrentar os problemas decorrentes do uso de drogas deflagra a complexidade da questão e as divergências acerca da forma mais eficaz de tratar o usuário. O objetivo deste estudo foi identificar o perfil dos pedidos de internações compulsórias decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Trata-se de uma pesquisa documental que utilizou acórdãos do site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Por meio da aplicação das palavras-chave, foram encontrados 334 acórdãos, dos quais, 92 foram analisados após avaliação segundo critérios de inclusão e exclusão. As principais variáveis coletadas foram: identificação de recorrentes e recorridos, justificativa para o pedido de internação, legislações, existência de laudo médico circunstanciado e outros aspectos considerados importantes para caracterizar o julgamento dos pedidos. Este estudo evidenciou que a justiça e a psiquiatria vêm respondendo à urgência de normalizar as condutas e os comportamentos desviantes havendo uma ampliação do biopoder e justificando intervenções coercitivas. O estigma acerca dos usuários contribui para potencializar essas estratégias, e a legislação, criada para evitar medidas arbitrárias, é utilizada para fortalecer a segregação.

PALAVRAS-CHAVE
Tratamento psiquiátrico involuntário; Judicialização da saúde; Saúde mental

ABSTRACT

Compulsory hospitalization, regulated by Law No 10.216/2001, is a phenomenon that involves two important areas: health and justice. Its use to face problems arising from drug use triggers the complexity of the issue and disagreements about the most effective way to treat the user. The objective of this study was to identify the profile of requests for compulsory hospitalizations resulting from the use of alcohol and other drugs. This is a documentary research that used judgments from the website of the Santa Catarina Court of Justice. Through the application of the keywords, 334 judgments were found and, of these, 92 were analyzed after evaluation criteria. The main variables collected were: identification of appellants and respondents, justification for the hospitalization request, legislation, existence of a detailed medical report and other aspects considered important to characterize the granting or rejection of requests. This study showed that justice and psychiatry have been responding to the urgency of normalizing deviant behaviors and conducts, with an expansion of biopower and justifying coercive interventions. Stigma about users contributes to enhancing these strategies, and legislation, created to avoid arbitrary measures, is used to strengthen segregation.

KEYWORDS
Involuntary treatment; psychiatric; Health’s judicialization; Mental health

Introdução

O uso de álcool e outras drogas traz à tona diversas discussões acerca das políticas públicas e de como a sociedade enfrenta questões que envolvem saúde, segurança, justiça e preconceito.

A partir de 2019, importantes alterações nas políticas relacionadas ao uso de álcool e outras drogas no Brasil começaram a ocorrer com a criação da Nova Lei de Drogas (Lei nº 13.840/2019) e da Nova Política Nacional Sobre Drogas (Decreto nº 9.761/2019)11 Brasil. Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019. Aprova a Política Nacional sobre Drogas. Diário Oficial da União. 11 Abr 2019.,22 Brasil. Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019. Altera Leis e Decretos, para dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas. Diário Oficial da União. 5 Jun 2019.. Essas mudanças foram um retrocesso diante do movimento de Reforma Psiquiátrica (RP) ao colocarem a abstinência como meta principal e visarem a uma sociedade livre de substâncias psicoativas, além de fortalecerem os hospitais, as Comunidades Terapêuticas (CTs) e as internações como alternativas para o tratamento.

A Lei nº 10.216/2001, que marcou as conquistas da RP, aponta que a internação psiquiátrica é permitida somente quando os dispositivos extra-hospitalares se mostrarem ineficazes, e define a Internação Compulsória (IC) como aquela que é determinada pela justiça33 Brasil. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. 6 Abr 2001., a qual vem sendo amplamente divulgada como estratégia utilizada para enfrentar a questão das drogas, principalmente após a reformulação das políticas públicas.

O problema é que as ICs isolam o indivíduo da sociedade, interferem na sua autonomia e no seu direito de escolha. E, quando utilizadas de forma leviana, representam a contramão da reestruturação da assistência psiquiátrica. Entende-se que, nos moldes em que vêm sendo requeridas, violam os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da saúde, os quais também são considerados direitos humanos e fundamentais44 Coelho I, Oliveira MHB. Internação compulsória e crack: um desserviço à saúde pública. Saúde debate. 2014 [acesso em 2021 maio 28]; 38(101):359-67. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/rpggZzTqr6CPQDZ5PmBcP4f/abstract/?lang=pt.
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Nessa direção, destacam-se a relevância e a pertinência deste estudo, que envolve duas grandes áreas e sua complexidade particular: a justiça e a saúde. A proposta é aproximá-las, tendo em vista que são utilizadas para proteção das pessoas e para beneficiar a sociedade em geral. Dessa forma, é primordial estreitar o laço entre o judiciário e as políticas de saúde para facilitar o diálogo e evitar decisões equivocadas.

O Judiciário brasileiro recebe, em média, 30 milhões de novos processos ao ano e possui quase 100 milhões em tramitação. Em grande parte, os processos tratam de saúde pública, saúde suplementar e de biodireito55 Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Número. Brasília, DF: CNJ; 2013.. Diante disso, é notório que cada vez mais o Poder Judiciário está intervindo nos assuntos relativos à garantia do direito à saúde, porém, muitas vezes, não há profissionais habilitados, com conhecimento técnico e científico devido no que diz respeito à saúde mental, por isso, corre-se o risco de o Judiciário se tornar um canal para internações psiquiátricas desnecessárias66 Fortes HM. Tratamento compulsório e internações psiquiátricas. Rev. bras. saúde mater. infant. 2010 [acesso em 2021 maio 28]; 10(2)321-30. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbsmi/a/5yNzSt6mBPWYvfDznLk9GMP/?lang=pt.
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O debate acerca das circunstâncias nas quais devem ser aplicadas as ICs é intenso e divide opiniões. Na esfera jurídica, há textos normativos, muitas vezes, vagos e aliados a uma visão tradicional punitiva herdada de legislações antigas77 Musse LB. Internações forçadas de usuários e dependentes de drogas: controvérsias jurídicas e institucionais. In: Santos MPG. Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA; 2018. p. 187-228..

Essa discussão envolve um fenômeno chamado de judicialização da saúde, caracterizado pela intervenção do Judiciário em instâncias políticas e legislativas responsáveis pela elaboração das políticas de saúde88 Souza MHSC, Vianna MLW, Scheffer M, et al. A intervenção do poder judiciário no setor de saúde suplementar - tutelas antecipadas como instrumento de garantia da assistência à saúde no Brasil. Divulg. saúde debate. 2007; (37):44-60..

Para melhor compreender esse contexto, optou-se por pesquisar as decisões do Judiciário referentes aos pedidos de internação compulsória e suas justificativas para deferi-los ou indeferi-los. Buscaram-se as decisões proferidas em segundo grau, chamadas de acórdãos, que estão disponíveis nos sites dos Tribunais de Justiça (TJ).

Optou-se por dar ênfase ao estado de Santa Catarina (SC) devido à sua experiência pioneira em direção às mudanças na assistência psiquiátrica nos anos 1970, inserindo-se no contexto nacional e internacional no que se refere à reestruturação da saúde mental. SC implantou os princípios da saúde preventivo-comunitária antes do restante do Brasil, que experienciou essa nova forma de atenção somente nos anos 1980 e 199099 Schneider DR, Budde C, Flores, KC, et al. Políticas de saúde mental em Santa Catarina nos anos 1970: vanguarda na psiquiatria brasileira? Hist. Cienc. Saude Manguinhos. 2013 [acesso em 2021 maio 28]; 20(2)553-70. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/fCxWxkXPqQCHvLThbVgNngP/?lang=pt&format=pdf.
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, o que justifica a escolha do local da pesquisa.

É claro que são diversos os atores envoltos nessa trama. Aqui, tomaram-se os discursos dos juízes, por serem eles os responsáveis pela aplicação das leis e pela decisão sobre determinado direito, que, neste caso, refere-se ao direito à saúde de um cidadão.

Diante do exposto, elencou-se como objetivo identificar o perfil dos pedidos de internações compulsórias decorrentes do uso de álcool e outras drogas submetidos ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).

Material e métodos

Trata-se de um estudo descritivo e documental que coletou dados no site do TJSC (www.tjsc.jus.br), mais precisamente, no espaço de ‘jurisprudência’, com acesso público.

No campo de busca avançada, foram utilizadas as seguintes palavras-chave em pesquisas individuais: “internação psiquiátrica”, “internação compulsória”, “internação não voluntária”, “internação involuntária”, “internação forçosa”, “internação obrigatória”, “hospitalização psiquiátrica”, “hospitalização compulsória”, “hospitalização não voluntária”, “hospitalização involuntária”, “hospitalização forçosa”, “hospitalização obrigatória”.

Não foi delimitada data inicial para a busca dos acórdãos, e a final foi 31 de dezembro de 2020. A busca das palavras-chave totalizou 334 resultados, os quais foram tabulados usando o Excel, disponível no pacote Microsoft Office.

Foram incluídos para análise os acórdãos que tratavam de demandas referentes à internação psiquiátrica por uso de álcool e outras drogas; e excluídos aqueles que se repetiram, os relativos à internação devido a transtorno mental, os que tramitavam em segredo de justiça e, por fim, os acórdãos que decidiram acerca de conflito de competência e os que perderam o objeto.

Dos 334 acórdãos encontrados na primeira busca, restaram 92 após serem aplicados os critérios de inclusão e exclusão.

Utilizou-se um Protocolo de Registro de Dados com base em Salvatori1010 Salvatori RT. O direito à internação psiquiátrica no Sistema Único de Saúde e no Sistema de Saúde Suplementar: as representações sociais do Tribunal de Justiça de São Paulo. [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo, 2013. 218 p. para coletar as informações necessárias para análise estatística, a fim de quantificar e caracterizar as seguintes variáveis: Comarcas, Ano de Julgamento, Interessados, Antecipação de tutela, Sexo, Idade, Drogas, Julgamento, Laudo médico, Motivação para internação.

Foi realizada estatística descritiva das variáveis por meio de frequências absoluta e relativa no programa Excel.

Resultados e discussão

Nesta etapa, serão apresentados os resultados do estudo da jurisprudência de 92 decisões do TJSC acerca dos pedidos relativos à internação compulsória decorrente de álcool e outras drogas que chegaram à 2ª Instância, de 2010 a dezembro de 2020.

Distribuição das ações no tempo e legislação utilizada nos acórdãos

No que se refere ao ano de julgamento, foram identificadas decisões somente a partir do ano de 2010. De maneira geral, é perceptível o aumento da quantidade de acórdãos ao longo do tempo, conforme demonstrado na tabela 1.

Tabela 1
Distribuição das ações judiciais no tempo e legislações que fundamentaram as decisões nos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, relativos à internação decorrente do uso de álcool e outras drogas, 2010-2020

Os anos que tiveram quedas mais significativas foram seguidos de posterior aumento das ocorrências. O ano com mais documentos analisados foi 2014, seguido por 2015, 2016 e 2020.

Uma ressalva importante é que a data informada nos acórdãos se refere ao julgamento em 2a Instância, ou seja, a internação foi solicitada em data anterior, especialmente se considerarmos a morosidade do Judiciário. Por esse motivo, as datas informadas são posteriores à solicitação, à insatisfação do recorrente com a decisão e ao julgamento realizado pelo TJ.

O aumento da quantidade de processos nos últimos seis anos condiz com as intensas transformações nas políticas públicas relacionadas à saúde mental e ao uso de drogas, que, especialmente após 2019, caminharam para o fortalecimento das internações e da exigência da abstinência como forma de tratamento.

A criação da Nova Política Nacional Sobre Drogas, em 2019, apresentou a defesa de uma sociedade livre de drogas e, para tanto, trouxe como foco a promoção e a manutenção da abstinência. Além disso, reforçou as CTs como locais para tratamento e acolhimento dos usuários, além de ampliar o número de leitos nos dispositivos hospitalares, reduzindo a quase nada as estratégias de redução de danos11 Brasil. Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019. Aprova a Política Nacional sobre Drogas. Diário Oficial da União. 11 Abr 2019.. Junto com a Nova Lei de Drogas, a Nova Política desconstrói e enfraquece as inúmeras conquistas do movimento de RP e retoma práticas asilares segregadoras, como ocorre nas CTs, já alvo de denúncias por violações de direitos humanos1111 Conselho Federal de Psicologia. Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. Brasília, DF: CFP; 2011..

Também na tabela 1 estão as principais legislações citadas pelos juízes para justificar suas decisões. Importante apontar que, em diversos acórdãos, foi utilizada mais de uma legislação, e, em menor número, não foi mencionada nenhuma.

O artigo 6 da Lei nº 10.216/2001, que menciona a imprescindibilidade do laudo médico circunstanciado, foi utilizado em mais da metade dos acórdãos pesquisados, embora nem sempre tenha sido respeitado, pois, mesmo com a ausência do documento, foram deferidas as internações com base nos relatos de familiares.

Já o artigo 4 da mesma Lei, que determina que a internação só é indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem ineficazes e que o tratamento deve oferecer assistência integral, apareceu em 26,6%. Da mesma forma, na grande maioria dos documentos, não se discorre a respeito dos tratamentos extra-hospitalares tentados anteriormente.

Interessante apontar que o artigo 9 da Lei nº 10.216/2001, o qual ressalta que o juiz competente levará em consideração as condições de segurança do estabelecimento, não foi mencionado em nenhum acórdão. Não há detalhamento sobre as condições das instituições às quais os usuários foram encaminhados, o que demonstra uma preocupação em internar, porém, um desconhecimento acerca dos locais.

A segunda legislação mais citada para fundamentar as decisões foi o artigo 196 da Constituição Federal (36,9%), que enfatiza a saúde como direito de todos e dever do Estado; seguida da Lei nº 8.080/1990, a qual consolida o Sistema Único de Saúde e dispõe sobre as condições para promover, proteger e recuperar a saúde.

Em 5º lugar, aparece o Decreto-lei nº 891/1938, o qual aprova a lei de fiscalização de entorpecentes, em 10,64% dos acórdãos. Dispõe sobre a internação de usuários de drogas, chamados de ‘toxicômanos’ e ‘psicopatas’, e, apesar de bastante antigo, ainda está em vigor. O dependente de substâncias psicoativas é considerado doente, e proíbe-se seu tratamento em domicílio. Além disso, o Decreto permite a internação forçada, quando provada sua necessidade ou quando for conveniente à ordem pública (artigos 27, 28 e 29).

Percebe-se que as Leis e os Decretos mais citados visam ao bem-estar do usuário e da sociedade, apresentando a intenção de proteger os envolvidos das consequências do uso de drogas. Aqui, cabe mencionar a discussão sobre biopoder e biopolítica de Foucault1212 Foucault M. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes; 2008. - que explica como a IC ou mesmo as legislações podem ser mecanismos de controle populacional -, que contribui para a compreensão de práticas políticas e de saúde.

O biopoder consiste em uma anátomo-política do corpo e também em uma biopolítica da população. A primeira refere-se aos dispositivos disciplinares que se encarregam de extrair do corpo a força produtiva por meio do controle do tempo e do espaço dentro das instituições. Já a segunda volta-se à regulação da população utilizando saberes e práticas relacionados ao corpo e à espécie humana1212 Foucault M. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes; 2008.,1313 Furtado RN, Camilo JAO. O Conceito de Biopoder no Pensamento de Michel Foucault. Rev. Subjetividades. 2016. [acesso em 2021 maio 28]; 16(3)34-44. Disponível em: https://docplayer.com.br/87402968-O-conceito-de-biopoder-no-pensamento-de-michel-foucault.html.
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Numa sociedade de normalização, o biopoder é ampliado e intensificado, e o direito e a psiquiatria, por sua vez, respondem à urgência de normalizar as condutas. Os ditos comportamentos desviantes - que aqui correspondem ao uso de drogas - são analisados por uma “verdade científica” e acabam por ser alvos de condenação moral e jurídica - que é a IC1414 Azevedo AO, Souza TP. Internação compulsória de pessoas em uso de drogas e a Contrarreforma Psiquiátrica Brasileira. Physis. 2017 [acesso em 2021 maio 28]; 27(3) 491-510. Disponível em https://www.scielo.br/j/physis/a/T78xrxYK8j4bBYXDPSZWXvR/?lang=pt.
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A psiquiatria se coloca como ciência dos “anormais” e utiliza estratégia de governo das populações via intervenção médica e jurídica, as quais são repressivas e disciplinares, como se coloca a IC1414 Azevedo AO, Souza TP. Internação compulsória de pessoas em uso de drogas e a Contrarreforma Psiquiátrica Brasileira. Physis. 2017 [acesso em 2021 maio 28]; 27(3) 491-510. Disponível em https://www.scielo.br/j/physis/a/T78xrxYK8j4bBYXDPSZWXvR/?lang=pt.
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Posição das partes interessadas

Foram identificadas, também, as partes interessadas em cada acórdão como recorrentes ou recorridos, conforme tabela 2.

Tabela 2
Posição das partes interessadas nos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, relativos à internação compulsória decorrente do uso de álcool e outras drogas, 2010-2020

Entre os principais recorrentes, em ordem de ocorrência, estavam: o estado de Santa Catarina, as Prefeituras Municipais, a mãe do usuário, o próprio usuário, o Ministério Público. Já os principais recorridos foram: as Prefeituras Municipais, o usuário, estado de Santa Catarina, o Ministério Público e a mãe do usuário, sendo que os três últimos tiveram praticamente a mesma quantidade. Percebe-se que as partes se repetiram em ambas as posições, com algumas modificações na quantidade de ocorrências.

Somando os familiares envolvidos como recorrentes, eles ocuparam quase a metade dos processos de 2ª instância (41,49%), o que indica que são os principais requerentes da internação compulsória dos usuários de álcool e outras drogas, sejam eles avós, cônjuges, filhos, irmãos, genitores etc.

O estado de Santa Catarina e as Prefeituras Municipais apresentaram participação importante, já que, sendo determinada a internação na 1ª instância, recorrem da decisão para não arcarem com os custos e a responsabilidade sobre ela. Essa questão revela uma contradição importante: de um lado, está ocorrendo um fortalecimento das ações repressivas relacionadas ao uso de drogas, a abstinência e a internação como soluções; e, de outro, o Poder Público se nega a custear tais intervenções, já que são altos os custos com as internações.

Sexo e tipo de droga

Na tabela 3, apresenta-se que 87,5% dos usuários para quem a internação foi solicitada eram do sexo masculino. Esse dado vai ao encontro de outras pesquisas realizadas no Brasil, que apontam que o uso drogas é mais prevalente entre homens e que essa população é mais vulnerável no que se refere ao consumo de substâncias psicoativas e a tornar-se dependente1515 Carlini EA, Galduroz JC. II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país. Brasília, DF: Secretaria Nacional Antidrogas; 2007.,1616 Laranjeira R. II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas - Consumo de Álcool no Brasil: Tendências entre 2006/2012. São Paulo: INPAD; 2013..

Tabela 3
Dados de sexo e tipo de droga utilizada pela pessoa para a qual foi solicitada a internação compulsória constantes nos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, 2010-2020

A sociedade conservadora cria uma expectativa sobre a masculinidade heterossexual, cuja imagem do homem se configura como de um sujeito que supera riscos e limites. Tal exigência social talvez possa influenciar o uso de drogas, uma vez que esse comportamento possa ser equiparado a uma afirmação do que é ‘ser homem’1717 Moraes M, Castro R, Petuco D. Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI; 2011..

Nesse sentido, o processo de socialização dos homens pode influenciar em como alguns deles cuidam da sua saúde e acabam buscando ajuda apenas quando se deparam com situações de maior gravidade, as quais não podem ser solucionadas tão facilmente. Isso mostra o quanto algumas questões relacionadas às masculinidades podem ser associadas a fatores como independência, autonomia e autoconfiança de forma equivocada, no que diz respeito ao cuidado com a saúde1717 Moraes M, Castro R, Petuco D. Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI; 2011.,1818 Jablonski B. A difícil extinção do Boçalossauro. In: Nolasco S. A desconstrução do Masculino. Rio de Janeiro: Rocco; 1995. p. 156-65..

Com relação à idade, 72,2% dos acórdãos não forneceram esse dado, porém, subentende-se que a maioria consistiu em adultos, já que, quando eram adolescentes ou menores de idade, essa informação era enfatizada como algo relevante para a situação da internação devido às peculiaridades relacionadas aos direitos da criança e do adolescente (22,2% forneceram essa especificação). Cabe pontuar que os processos que tramitavam em segredo de justiça (e que não foram incluídos), em sua maioria, dizem respeito à IC de adolescentes, o que aponta um número subestimado com relação a essa população na presente pesquisa.

Assim como foi descrito no caso dos homens, é comum que os jovens também tenham dificuldade de pedir auxílio diante de alguma dificuldade, por terem medo de parecer vulneráveis. A repressão dessas emoções, algumas vezes, faz com que também seja favorecido o consumo de drogas. E esse uso, especialmente de álcool, acaba sendo um elemento facilitador da interação nos espaços sociais e, também, um instrumento de afirmação e reconhecimento social desses indivíduos1919 Mendoza AZ. Uso de álcool entre adolescentes, uma expressão de masculinidade. [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo; 2004. 168 p..

Outros dados importantes apontados na tabela 3 se referem à droga consumida pelo usuário encaminhado à internação. Mais da metade dos acórdãos não especificou a substância, e alguns deles referiram mais de um tipo.

O álcool apareceu em primeiro lugar (31,52%), com distância considerável da segunda droga mais citada (cocaína, com 15,22%). Já o crack empatou com a maconha em quarto lugar, o que contraria o alerta nacional dos últimos anos, que, inclusive, justificou o uso das internações compulsórias para resolver o problema da suposta epidemia. Essa ideia foi fortemente reforçada pelos meios de comunicação e contrariou, também, a pesquisa realizada pela Secretaria Nacional Sobre Drogas (Senad) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a qual apontou que somente 0,8% da população das capitais do Brasil faz uso regular de crack2020 Bastos FI, Bertoni N. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014..

O dado aqui apresentado se assemelha ao da pesquisa de Musse77 Musse LB. Internações forçadas de usuários e dependentes de drogas: controvérsias jurídicas e institucionais. In: Santos MPG. Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA; 2018. p. 187-228., que analisou 92 decisões de segunda instância do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) que versavam sobre internações compulsórias relacionadas ao uso e à dependência de drogas. A autora apontou que, entre todas as drogas explicitamente mencionadas, lícitas e ilícitas, o álcool foi também a que mais se destacou, aparecendo como causa exclusiva da IC em 25 (26%) das decisões; ou associada, em três (3%).

Ainda assim, atualmente, os danos do álcool são comumente minimizados e, inclusive, muitas vezes, estimulados pelos meios de comunicação, não sendo seu uso considerado ‘anormal’, como ocorre com as drogas ilícitas como o crack e até a maconha.

A Pesquisa Nacional de Saúde, ao analisar o consumo abusivo dessa droga no Brasil, mostrou que, nos últimos 30 dias anteriores à entrevista, houve uma prevalência de 26,0% para os homens e 9,2% para as mulheres2121 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional de saúde 2019: percepção do estado de saúde, estilos de vida, doenças crônicas e saúde bucal - Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.. Já os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade apontam que, no período de 2012 a 2016, foram registrados 33.168 óbitos atribuíveis ao uso de álcool no país, sendo sua maioria entre homens. Essas informações indicam que a população masculina tanto ingere mais bebidas alcoólicas quanto apresenta mais problemas em decorrência desse hábito2222 Marques MV, Junior DNS, Santos EGO, et al. Distribuição espacial das mortes atribuíveis ao uso de álcool no Brasil. J. Health Biol Sci. 2019 [acesso em 2021 maio 28]; 8(1):1-11. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/06/1100084/2934-publicado.pdf#:~:text=Os%20munic%C3%ADpios%20que%20apresentaram%20as,MG%20(32%2C71).
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Esses dados corroboram os achados da presente pesquisa que demonstram que o álcool tem sido a principal droga causadora de internação compulsória, e os homens a principal população, segundo os acórdãos pesquisados no TJSC.

Antecipação de tutela, existência de laudo médico circunstanciado e julgamento

Buscou-se, também, levantar os dados referentes aos pedidos de tutela antecipada e acerca da existência de laudos médicos que atestaram a necessidade da internação, a fim de verificar se eles influenciaram as decisões, conforme tabela 4.

Tabela 4
Antecipação de tutela, existência de laudo médico circunstanciado e julgamento dos pedidos de internação compulsória proferidos pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, 2010-2020

No que se refere à tutela antecipada, esta foi concedida em mais da metade das situações com o objetivo de tornar mais rápidas as internações dos usuários antes da decisão definitiva (sentença). A justificativa utilizada foi de que a saúde deve ser aplicada direta e imediatamente, já que é um direito fundamental de todos os cidadãos a ser garantido pelo Estado, segundo a Constituição Federal.

Segundo o artigo 300 da Lei nº 13.105/2015, do novo Código de Processo Civil, a tutela de urgência “será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”2323 Brasil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF. 16 mar 2015. [acesso em 2022 jul 13]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
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. Nos casos em que foi apurado que havia perigo eminente ao usuário ou à sociedade, foi concedida, então, a tutela antecipada, entendimento que é comum diante das pessoas que fazem uso de drogas.

O medo do ‘louco’ e do ‘doente mental’ sustenta a ideia de que ele é perigoso e deve ser internado, o que garante a legitimidade da sua exclusão social em prol da segurança do próprio paciente, da família e da sociedade. O estigma é justamente essa marca ou característica indesejável que atribui desvalorização e discriminação de uma pessoa em relação a outros membros da sociedade, tidos como normais2424 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988..

Percebe-se, então, que a urgência está sempre relacionada ao impacto dos comportamentos do indivíduo nas pessoas ao seu redor e à avaliação destas. São percebidos como inabilitados para a aceitação social plena, estigmatizados, e essa é, também, uma forma de controlar aqueles que são diferentes, de tentar adequar e conter o perigo que essas pessoas representam2424 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988..

Os laudos médicos indicando a internação estavam presentes em menos de 30% dos pedidos realizados. A maioria não continha o documento, e outra parte não informou sua existência. Apesar da importância da avaliação e da indicação médica e de estar determinada sua imprescindibilidade no artigo 6 da Lei nº 10.216, segundo os dados, o laudo não apresentou centralidade nos pedidos que chegaram à 2a instância.

Esse importante achado indica que os pedidos chegam com os relatos de familiares, profissionais de saúde, porém, muitas vezes sem avaliação direta do paciente, de suas necessidades e perspectivas. O processo de estigmatização é justamente este: um movimento externo, a partir do olhar da sociedade, que enquadra um indivíduo e ressalta uma de suas características acima de todas as outras como se fosse essa a que melhor lhe define - o indivíduo é aprisionado sob a fixidez do olhar do outro2424 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1988..

Isso ocorre com os usuários de drogas, que são tomados como inferiores e marginalizados num processo produzido socialmente por meio de conotações moralizantes e mistificadoras2525 Pacheco AL, Scisleski A. Vivências em uma comunidade terapêutica. Rev. Psicol. Saúde. 2013 [acesso em 2021 maio 28]; 5(2):165-73. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpsaude/v5n2/v5n2a12.pdf.
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Os efeitos prejudiciais desse processo vão desde a perda da autoestima até a restrição das interações sociais. É importante compreender que o estigma existe em um círculo vicioso: o estigma encoraja o preconceito e a discriminação, que, por sua vez, reforçam a ocorrência do estigma2626 Ronzani TM, Furtado EF. Estigma social sobre o uso de álcool. J. Bras. Psiquiatr. 2010 [acesso em 2021 maio 28]; 59(4):326-32. Disponível em: https://www.scielo.br/j/jbpsiq/a/G4C8v9mqySmQRgNdy8QZbjf/abstract/?lang=pt.
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A desconfiança, os estereótipos negativos, preconceitos e a discriminação por parte da sociedade causam forte impacto à pessoa estigmatizada e envolvem distanciamento e isolamento social, que dificultam o acesso a cuidados em saúde, educação, emprego, moradia etc.2626 Ronzani TM, Furtado EF. Estigma social sobre o uso de álcool. J. Bras. Psiquiatr. 2010 [acesso em 2021 maio 28]; 59(4):326-32. Disponível em: https://www.scielo.br/j/jbpsiq/a/G4C8v9mqySmQRgNdy8QZbjf/abstract/?lang=pt.
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. Esse apontamento também pode nortear a reflexão acerca das dificuldades do usuário em aderir ou buscar tratamentos.

É possível observar que a maioria dos acórdãos foi favorável à internação, e que comumente não há cumprimento do artigo 6 da Lei nº 10.216/2001 no momento de ingressar com a ação. Isso pode ter ocorrido devido à desinformação ou, também, pela dificuldade de levar o usuário para avaliação médica, o que foi relatado em alguns casos. De qualquer maneira, não há nos pedidos a presença massiva de laudo médico circunstanciado.

Na 2ª instância, foram deferidos 12 pedidos de internação, mesmo sem apresentação de laudo médico atestando sua necessidade. E 8 acórdãos não trouxeram essa informação, a qual deveria ser central no relato da situação, já que é o que garante tanto os direitos do usuário quanto a sua segurança no que se refere aos aspectos clínicos. Além disso, o documento deve trazer minuciosamente a situação mental do paciente, os exames e tratamentos já realizados, a elaboração de diagnóstico, prognóstico e conclusão sobre a necessidade de internação2727 Monteiro FH. A internação psiquiátrica compulsória na perspectiva dos direitos humanos e fundamentais. Curitiba: Prismas; 2016..

Musse77 Musse LB. Internações forçadas de usuários e dependentes de drogas: controvérsias jurídicas e institucionais. In: Santos MPG. Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA; 2018. p. 187-228. aponta que, na sua pesquisa, 21% dos pedidos de internação não foram acompanhados do laudo médico e chama atenção para o fato de que não é possível afirmar que aqueles que anexaram o documento aos autos do processo cumpriram as exigências da Lei nº 10.216/2001, no que se refere às suas fundamentações.

Motivação para a internação

Para justificar o pedido de internação, foram utilizados diversos argumentos que se referiram ao comportamento e às condições psíquicas do usuário, descritos na tabela 5. De maneira geral, no mesmo acórdão, é mencionado mais de um aspecto relevante

Tabela 5
Motivação para a solicitação da internação compulsória decorrentes do uso de álcool e outras drogas contida nos acórdãos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, 2010-2020

A agressividade e os comportamentos de risco contra si mesmo e contra terceiros foram os maiores motivadores para se solicitar a internação, somando 85,1%.

Esse dado, aliado aos anteriores que indicaram que o álcool foi a droga mais prevalente na população masculina, corrobora outras pesquisas2828 Rabello PM, Caldas Júnior AF. Violência contra a mulher, coesão familiar e drogas. Rev. Saúde Públ. 2007 [acesso em 2021 maio 28]; 41(6):970-78. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/QdVxHbxQwLGCXmGtDTzvvFb/abstract/?lang=pt.
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, que afirmam que essa droga pode representar um fator gerador de violência, tanto entre os consumidores regulares quanto entre os moderados e eventuais. Além disso, os comportamentos violentos entre os homens podem estar relacionados à expressão das masculinidades, tendo em vista que algumas crenças construídas socialmente valorizam a exposição e a superação de riscos, bem como a força física1717 Moraes M, Castro R, Petuco D. Gênero e drogas: contribuições para uma atenção integral à saúde. Recife: Instituto PAPAI; 2011..

Os sintomas psicóticos (delírios, alucinações e surtos) também estiveram presentes, bem como os não psicóticos (dificuldade de se alimentar, baixo peso, deterioração da saúde física e desânimo).

Ainda foram apresentadas motivações bastante vagas que não explicitaram aspectos relevantes para o juiz tomar a decisão conforme a legislação prevê (quais tratamentos foram propostos e por que não obtiveram êxito; informações constantes no laudo médico relacionadas aos aspectos biopsicossociais etc.). Os acórdãos apresentaram informações que não justificariam, por si só, uma internação contra a vontade do indivíduo.

Algumas delas, que apareceram em 01 acórdão cada: ‘dificuldade de assimilar expectativas’; ‘usuário permanece na rua com amigos’; ‘apresenta comportamentos estranhos’; ‘apresenta comportamento errático e inconstante’; ‘usuário não cumpre as prescrições médicas’; ‘usuário causa transtorno à sociedade’ ‘usuário não possui controle sobre sua vida’; ‘usuário apresenta comportamento reprovável’; ‘não tem discernimento’; ‘não tem limites’.

Esses comportamentos considerados ‘anormais’ ou que devem ser objeto de intervenção, apesar de vagos, explicitam a correlação entre a loucura e a periculosidade, alvos dos saberes médico e jurídico1414 Azevedo AO, Souza TP. Internação compulsória de pessoas em uso de drogas e a Contrarreforma Psiquiátrica Brasileira. Physis. 2017 [acesso em 2021 maio 28]; 27(3) 491-510. Disponível em https://www.scielo.br/j/physis/a/T78xrxYK8j4bBYXDPSZWXvR/?lang=pt.
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Considerações finais

Foram encontrados acórdãos a partir do ano de 2010, com um aumento ao longo do tempo e, de maneira geral, com distribuição proporcional entre as comarcas que abrangem os municípios mais populosos do estado de SC. Nenhuma se destacou por ter grande ocorrência em comparação às demais.

Os familiares foram os principais recorrentes, e as Prefeituras Municipais, os recorridos; já os usuários de drogas eram majoritariamente adultos, do sexo masculino. Mais da metade dos acórdãos não especificou a droga consumida, porém, entre aqueles que trouxeram a informação, o álcool apareceu em primeiro lugar.

A maioria das decisões foi favorável à internação, e não se observou diferença significativa entre aquelas que foram deferidas sem e com laudo médico. Em contrapartida, praticamente todas as decisões desfavoráveis e extintas, bem como a maioria que retornou para primeira instância, não continham o laudo médico circunstanciado. Esses dados parecem indicar que a ausência de indicação médica para IC é determinante para as decisões desfavoráveis, porém, não é impeditivo para internar alguém, ou seja, para o juiz deferir a solicitação.

O artigo 6 da Lei nº 10.216/2001 foi o mais citado, seguido do artigo 196 da Constituição Federal. A agressividade e os comportamentos de risco, contra si mesmo e contra terceiros, foram os maiores motivadores para se solicitar a internação. A escolha das legislações e também os problemas elencados para justificar a necessidade da internação demonstram que a IC é utilizada como mecanismo para proteger a sociedade e o próprio usuário dos problemas decorrentes do consumo de drogas. E, além disso, que o Estado é apontado como o responsável por salvaguardar o direito à saúde, mesmo que isso signifique ferir o direito de escolha individual com a indicação de um tratamento involuntário.

Aqui, é pertinente apontar que a Lei nº 10.216/2001, embora seja o marco da RP, está sendo utilizada para embasar as IC. Ou seja, utiliza-se uma legislação que marca a resistência a um poder normalizador e reforça o atendimento em meio comunitário para respaldar ações higienistas e excludentes que desvalorizam a assistência psicossocial. Nota-se, ainda, que os juízes ora autorizam as internações com base nessa lei, ora referem que ela pode ser relativizada ao aceitarem requerimentos na ausência do laudo médico. De qualquer modo, os critérios utilizados variam, com casos similares sendo decididos de forma distinta.

É evidente que não se trata aqui de invalidar as conquistas que a referida legislação possibilitou, mas de problematizar sua utilização para fins contrários à sua verdadeira proposta e aliados a esse poder regulador que envolve a saúde e a justiça nos pedidos e na avaliação das internações compulsórias. O laudo médico, por sua vez, é o dispositivo articulador entre esses saberes, e o juiz, em conjunto com o médico, é quem determina a inabilidade do sujeito de se adaptar à sociedade, precisando ser isolado.

Essa inabilidade parece, então, ser resolvida com o alcance da abstinência, condição que caracterizaria um tratamento bem-sucedido. Isso faz com que não haja muitas outras possibilidades para aqueles sujeitos que não conseguem ou não desejam interromper o uso de substâncias, restando a eles a IC. Com as mudanças na Política Nacional Sobre Drogas, esse movimento ficou ainda mais marcado, representado pelo fortalecimento do modelo de tratamento das CTs: em regime fechado, de longa duração e sem utilizar as estratégias de redução de danos. O indivíduo é, então, excluído da sociedade, retira-se dele o direito e a liberdade de ir e vir, e é estigmatizado, rotulado como ‘louco’.

A partir deste estudo, compreendeu-se que a IC pode ser considerada um dispositivo normalizador, exercido sob a justificativa da saúde e da preservação da vida, ou seja, como biopoder. Os ‘anormais’ são retirados de circulação em nome da sociedade e de si próprios, com base em legislações que servem à proteção e à saúde e também devido a comportamentos desviantes que não se adequam à vida social. Ou seja, dotados de um estigma social que, além de dificultar o acesso ao tratamento e às relações, ainda fortalece a necessidade de excluir os usuários.

  • Suporte financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes) - Cód. de financiamento 001
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    06 Abr 2022
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