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Vacina contra Covid-19: arena da disputa federativa brasileira

RESUMO

Este ensaio teve como objetivo demonstrar como a questão da vacina, no contexto atual da pandemia de Covid-19, transformou-se em centro de disputa política nacional no Brasil, o que levou o federalismo de cooperação a transformar-se em um federalismo de confrontação. Essa disputa provocou uma tragédia sanitária que colapsou os sistemas públicos e privados de saúde. Embora o País tenha um programa nacional de imunização com uma trajetória consolidada, associado a um sistema de vigilância epidemiológica bem estruturado, isso não foi capaz de evitar o atraso na imunização da população e os problemas na distribuição de doses da vacina, o que contribuiu para recrudescimento da pandemia. A análise do discurso do Presidente Bolsonaro em relação à pandemia, às medidas preventivas e à vacinação contra a Covid-19 mostra que ele privilegiou as interações que se estabeleceram com seus seguidores, buscando deslegitimar a oposição e minar as instituições democráticas. As consequências para o federa- lismo foram demolidoras em relação aos antigos mecanismos de coordenação federativa, mas também inovadoras por propiciar o fortalecimento de mecanismos de coordenação horizontal. O debate sobre o combate à pandemia, portanto, tornou a vacina a principal arena política de disputa por poder.

PALAVRAS-CHAVE
Federalismo; Covid-19; Vacinação; Discurso; Política

ABSTRACT

This essay aims to demonstrate how the Covid-19 vaccine became a center of national politi- cal dispute in Brazil, transforming the country’s cooperative federalism into confrontational federalism. This dispute triggered a health tragedy that collapsed public and private health systems. The country’s consolidated nationwide immunization program and well-structured epidemiological surveillance system could not avoid vaccine distribution problems and delays in protecting the population, which worsened the pandemic. The analysis of President Bolsonaro’s speech regarding the Covid-19 pandemic, including preventive measures and vaccination, shows that he privileged the interactions with his followers and sought to delegitimize the opposition and undermine democratic institutions. The consequences for federalism were devastating in relation to the old federative coordination mechanisms, but they also fostered innovation by strengthening horizontal coordination mechanisms. Therefore, the debate over combating the pandemic made vaccines the main political arena for power disputes.

KEYWORDS
Federalism; Covid-19; Vaccination; Address; Politics

Introdução

Desde a Revolta da Vacina, em 1904, no Rio de Janeiro, a vacinação não estivera no centro dos debates político-ideológicos, envolvendo disputas de poder. Naquela oportunidade, a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola provocou levante popular e militar contra o governo de Rodrigues Alves. Foram espalhadas notícias falsas sobre o que a vacina poderia provocar - como ficar com cara de boi - em uma grande campanha de apelo às liberdades individuais e defesa da propriedade, que seriam violadas pelos vacinadores. Esse levante popular, contudo, também foi consequência do processo de modernização urbana autoritária, que removeu cortiços do centro da cidade, dando origem às favelas cariocas. Já a revolta militar foi parte da disputa pelo poder de grupos que queriam a derrubada do governo11 Gagliard J, Castro C. Revolta da Vacina: Atlas Histórico do Brasil. Rio de Janeiro: FGV; 2016.. A nomeação do sanitarista Oswaldo Cruz como diretor-geral de saúde pública atravessou o período da revolta e consolidou o domínio da ciência e da medicina como parte da estrutura estatal de poder, uma combinação de polícia médica alemã com a medicina urbana inglesa22 Rosen G. Uma História da Saúde Pública. São Paulo: Hucitec; 1994.. Uma década depois, a população acorria aos postos de saúde em busca da vacina.

Segundo Temporão33 Temporão JG. O Programa Nacional de Imunizações: origens e desenvolvimento. Hist. Ciênc. Saúde-Manguinhos. 2003; 10(2):601-617., a história recente da vacinação tem como marcos a formulação do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e a erradicação da varíola em 1973, como parte da racionalização e do planejamento nas políticas públicas e da estruturação do complexo médico industrial na década de 1970. O enfrentamento da epidemia de meningite provocou debate no interior do Ministério da Saúde (MS) e no meio acadêmico, que terminou definindo a estratégia de vacinação em massa em campanhas nacionais. O êxito na vacinação da poliomielite em 1980 foi atribuído à existência da Central de Medicamentos (Ceme) e ao esforço anterior para montar uma rede de refrigeração, condições de armazenamento, meios de transporte, e uma eficiente campanha de comunicação, iniciando uma trajetória nacional exemplar no campo das campanhas de vacinação.

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) fortaleceu essa experiência ao estabelecer condições de pactuação entre os entes federados por meio das Comissões Intergestores - Tripartite e Bipartite -, permitindo que as competências concorrentes, explicitadas no art. 23 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), pudessem viabilizar o federalismo de cooperação, por intermédio de uma arquitetura institucional e de um modelo de governança próprios. Poderosos atores políticos foram consolidados como parte desse processo, como o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e o Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Como explicar os motivos que transformaram a questão da vacina contra a Covid-19 (Sars-CoV-2) em centro de disputa política nacional que levou o federalismo de cooperação a transformar-se em um federalismo de confrontação44 Fleury S. Políticas de isolamento na pandemia: confrontação federativa, disputas discursivas e consequências político-sanitárias. In: Santos AO, Lopes, LT, organizadores. Principais Elementos, Coleção Covid-19. Brasília, DF: Conass; 2021. p. 110-125. v. 1., com drásticas consequências para a democracia, provocando uma tragédia sanitária que colapsou os sistemas públicos e privados de saúde e acarretou um número dramático de mortes?

Para analisar políticas públicas, o Institucionalismo Histórico55 Pierson P. Increasing returns, path dependence, and the study of politics. American Political Science Review. 2000; 94(2):251-268. e o Instituciona-lismo Sociológico66 Hall P, Taylor R. Political science and the three new institutionalisms. Political Studies. 1996; 44(5):952-973. colocam ênfase na continuidade da trajetória histórica bem-sucedida (path dependence) que consolida padrões de interação e práticas rotinizadas. Também tratam do conjunto de agentes que atuam de acordo com uma lógica de adequação às instituições, definidas como um contexto de normas e regras que enquadram, molduram e constrangem suas ações. Consequentemente, explicam melhor a continuidade do que as mudanças, que se dariam por rupturas em conjunturas críticas, movidas por fatores externos a essa institucionalidade. Para compreender as mudanças, a proposta do Institucionalismo Discursivo77 Schmidt V. Taking ideas and discourse seriously: explaining change through discursive institutionalism as the fourth ‘new institutionalism’. European Political Science Review. 2010; 2(1):1-25. introduz a análise das ideias como um instrumental que vai além da política tradicional, entendendo as disputas simbólicas como parte constitutiva da ação coletiva, do poder de persuasão e de deliberação.

Neste ensaio, trataremos da trajetória institucional da política de imunização na segunda seção; da conjuntura crítica representada pelo enfrentamento da Presidência da República (PR) em relação à pandemia às medidas preventivas propugnadas pelos governadores e à vacinação contra a Covid-19 na terceira seção; e as observações finais na quarta seção.

A institucionalização da política de imunização no Brasil

O conceito de trajetória dependente tem sido utilizado para compreender a institucionalização de processos decisórios governamentais e o estabelecimento de trajetórias de políticas públicas. Assim, a probabilidade de seguir por uma trajetória estabelecida aumenta cada vez que se move naquela direção específica, devido ao aumento relativo dos benefícios dessa trajetória em comparação com as outras opções disponíveis55 Pierson P. Increasing returns, path dependence, and the study of politics. American Political Science Review. 2000; 94(2):251-268..

Para a implantação de uma nova trajetória, é preciso ocorrer uma conjuntura crítica, composta por dois tipos de condições causais: condições permissivas e condições produtivas. As condições permissivas alteram o contexto, de modo a aumentar a probabilidade de introduzir novos elementos ou alterar elementos existentes na política estabelecida. Já as condições produtivas modelam os resultados produzidos pelas mudanças implantadas a partir das condições permissivas, de modo a institucionalizar uma nova trajetória na política88 Soifer HD. The causal logical of critical conjunctures. Comparative Political Studies. 2012; 45(12):1572-1597..

A implantação da ‘cultura da imunização’ no Brasil, caracterizada pela introdução de vacinas e campanhas de vacinação em massa pelo Estado, a partir do final do século XIX, foi resultado de eventos históricos que se constituíram em condições permissivas e produtivas, alterando a trajetória das políticas de saúde e estruturando as bases para o PNI. Esses antecedentes são apresentados por Hochman99 Hochman G. Vacinação, varíola e uma cultura da imunização no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2011; 16(2):375-386., durante a instauração da República, em 1889, incluindo a frustração das expectativas de modernização em decorrência das epidemias de febre amarela e de varíola, que frequentemente prejudicavam o comércio internacional, e, portanto, a vida econômica e social do País. Por esse motivo, diversas campanhas sanitárias foram lideradas pelo sanitarista Oswaldo Cruz, culminando na aprovação da lei da obrigatoriedade da vacinação em 1904.

Embora esses eventos tenham caracterizado um momento com condições permissivas para a implantação de uma política de imunização, essas ações deixaram de ser prioridade a partir de 1930, na Era Vargas. As campanhas de vacinação, até a década de 1950, buscaram o enfrentamento de surtos epidêmicos, mas sem o estabelecimento de instituições permanentes. Portanto, na ausência de condições produtivas, a institucionalização dessa política foi prejudicada.

No final da década de 1950, contudo, o cenário internacional colocou em evidência a necessidade de erradicação da varíola na resolução da XI Assembleia Mundial da Saúde. Novas condições permissivas para institucionalização da imunização decorreram da pressão internacional, da possibilidade de obter recursos internacionais para a saúde e das posições políticas e ideológicas do governo militar, instaurado em 1964.

Em 1965, foi criada a Campanha de Erradicação da Varíola, organizada no âmbito do MS, cuja execução foi realizada em parceria com os serviços estaduais e municipais de saúde. A campanha foi instituída com orçamento próprio e recebeu recursos financeiros e apoio técnico de diversas instituições internacionais, como o Center for Diseases Control (CDC), a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os acordos com a Opas/OMS contribuíram também para a modernização e a produção em larga escala de vacinas. Além disso, a Campanha impulsionou a instalação de um sistema de vigilância a partir de 1969, em parceria com os governos estaduais, responsáveis por Unidades de Vigilância Epidemiológica e pelos Postos de Notificações. Tais foram as condições produtivas para a institucionalização da política de imunização, culminando com a promulgação da Lei no 6.259, de 19751010 Brasil. Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975. Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 30 Out 1975. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6259.htm
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, que dispunha sobre a organização das ações de vigilância epidemiológica e de notificação compulsória de doenças, e sobre a regulamentação do PNI.

Encerrada em 1973, a Campanha de Erradicação da Varíola teve sua estrutura e capacidade institucional voltadas para a organização da Divisão Nacional de Epidemiologia e Estatística em Saúde (DNEES), do MS. Essa divisão era responsável pelo desenvolvimento de estratégias para a implementação de ações de vacinação em massa para o controle de diversas doenças, como a varíola, a tuberculose e a febre amarela (que já estavam no escopo do Ministério), mas também o sarampo e a poliomielite, anteriormente sob responsabilidade das secretarias estaduais de saúde33 Temporão JG. O Programa Nacional de Imunizações: origens e desenvolvimento. Hist. Ciênc. Saúde-Manguinhos. 2003; 10(2):601-617.. A estruturação do DNEES e da Central de Medicamentos, responsável pela aquisição e suprimento de vacinas, e a promulgação da Lei no 6.259 marcaram a criação de processos institucionais e políticos que perpetuaram os resultados das campanhas de vacinação implementadas desde o início do século XX. Assim, foram importantes mecanismos de reprodução do legado, conforme definido por Collier e Collier1111 Collier RB, Collier D. Shaping the political arena: critical junctures, the labor movement, and regime dynamics in Latin America. Indiana: University of Notre Dame Press; 2002..

A trajetória do PNI foi se consolidando desde então, com a publicação do primeiro Cartão Nacional de Vacinação, em 1977, que incluía quatro vacinas obrigatórias para o primeiro ano de vida, e suas posteriores atualizações com inclusão de novos imunizantes. Em 2003, foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância em Saúde, o que conferiu maior articulação entre o PNI e a área de vigilância epidemiológica, contribuindo para a notificação de doenças e das ações de imunização. Em 2019, o Brasil era um dos países com maior número de vacinas ofertadas de forma gratuita. No âmbito do PNI, são fomentados ainda estudos de custo-efetividade para a introdução de novas vacinas, além de estudos epidemiológicos para avaliar o impacto das vacinas no perfil de morbimortalidade de doenças imunopreveníveis1212 Domingues CMAS, Maranhão AGK, Teixeira AM, et al. 46 anos do Programa Nacional de Imunizações: uma história repleta de conquistas e desafios a serem superados. Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2021 mar 22]; 36(2):e00222919. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/XxZCT7tKQjP3V6pCyywtXMx/?lang=pt
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. Como resultado desse conjunto de ações, estudos mostram o aumento na cobertura vacinal desde o início da década de 1990, mas com redução a partir de 20151212 Domingues CMAS, Maranhão AGK, Teixeira AM, et al. 46 anos do Programa Nacional de Imunizações: uma história repleta de conquistas e desafios a serem superados. Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2021 mar 22]; 36(2):e00222919. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/XxZCT7tKQjP3V6pCyywtXMx/?lang=pt
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,1313 Nóvoa TA, Cordovil VR, Pantoja GM, et al. Cobertura vacinal do programa nacional de imunizações (PNI). Brazilian J Health Review. 2020; 3(4):7863-7873.
. Um elemento que contribuiu para o alcance de amplas coberturas vacinais foi a estratégia descentralizada de operacionalização do PNI, com responsabilidades definidas entre as esferas federal, estadual e municipal, o que exige a cooperação entre os entes federados. Contribuiu também a execução descentralizada das ações de vacinação, seja de rotina ou durante campanhas, por meio dos estabelecimentos de saúde no âmbito da atenção primária, que apresentava uma cobertura populacional de aproximadamente 76% em 20201414 Brasil. Ministério da Saúde. E-Gestor AB: Cobertura da Atenção Básica. Brasília, DF: MS; 2021..

Um exemplo de sucesso no PNI e dessa cooperação federativa para o controle de doenças imunopreviníveis foi o rápido controle da pandemia de H1N1, que atingiu o Brasil em 2009 e 2010. Em resposta à declaração da pandemia pela OMS e à identificação de casos da doença no Brasil, o MS implementou uma estratégia que envolveu a ampliação da rede de laboratórios para diagnóstico, a compra e produção de medicamentos, a negociação com diversos laboratórios para a aquisição de vacinas com transferência de tecnologia, a distribuição de medicamentos e vacinas pelos estados para administração pelos municípios e o lançamento de campanhas informativas em diversos meios de comunicação1515 Bertollo M. O circuito espacial produtivo da vacina no território brasileiro e a pandemia de Influenza A H1N1. [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2013. 266 p.. A vacina foi disponibilizada em novembro de 2009, e foram vacinadas 88% das pessoas nos grupos prioritários, superando a meta de 80%, o que representava 42% da população brasileira, percentual maior que o realizado em outros países. Como resultado, o número de óbitos por H1N1 caiu de 2.146 em 2009 para cerca de 100 em 20101616 Fundação Oswaldo Cruz. Centro de Estudos Estratégicos. Rio de Janeiro: MS; 2021. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1314
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Apesar dessa trajetória exitosa do programa de imunização e da existência de centros de pesquisa universitários e de produção de vacinas reconhecidos mundialmente, como o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Brasil teve reduzida sua capacidade produtiva de insumos farmacêuticos. Fatores ligados à política de abertura comercial e ao baixo investimento em ciência e tecnologia provocaram redução da produção nacional de insumos de 55% em 1980 para 5% em 20201717 Santos S. Em quatro décadas, Brasil reduz de 55% para 5% capacidade de produção de insumos farmacêuticos. Folha de São Paulo. 2021 jan 29. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/01/em-quatro-decadas-brasil-reduz-de-55-para-5-capacidade-de-producao-de-insumos-farmaceuticos.shtml
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No Brasil, a vacinação contra a Covid-19 foi iniciada em 17 de janeiro de 2021, em São Paulo, logo após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovar o uso emergencial das vacinas CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan com o laboratório chinês Sinovac, e AstraZeneca, desenvolvida pela Universidade de Oxford com a Fiocruz. Nos dois dias seguintes, os demais estados e o Distrito Federal começaram a imunização de suas populações1818 Venaglia G, Bronze G, Ferrari M. Distrito Federal e todos os 26 estados começam a vacinar contra Covid-19. CNN Brasil. 2021 jan 18. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/01/18/estados-iniciam-vacinacao-contra-covid-19
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. Outros 38 países, contudo, começaram a imunizar suas populações ainda em 2020, entre eles, grandes potências como os Estados Unidos, Alemanha, França e Rússia, mas também países do leste europeu como Croácia, Lituânia e Eslovênia; e latino-americanos, como México, Chile e Argentina1919 Coronavirus (Covid-19) Vaccinations. Our world in data. Oxford: University of Oxford; 2021. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://ourworldindata.org/covid-vaccinations
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Ao atraso no início da vacinação somou-se à escassez de doses disponíveis, devido à aposta inicial do governo federal em apenas uma vacina: a AstraZeneca/Oxford, produzida e envasada pela Fiocruz, mas ainda dependente da importação do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA). A escassez poderia ser maior se não fosse pela iniciativa do governo do Estado de São Paulo para a produção da CoronaVac, incorporada ao Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 somente após muita pressão de governadores2020 Gaspar M. O sabotador. Folha de São Paulo. 2021 fev. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-sabotador/
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. Porém, não impediu paralisações na distribuição de vacinas em fevereiro2121 Barbon J. Falta de doses atrasou vacinação de 400 mil pessoas na semana passada. Folha de São Paulo. 2021 mar 4. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/falta-de-doses-atrasou-vacinacao-de-400-mil-pessoas-na-semana-passada.shtml
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, reduções relevantes nas quantidades de doses a serem entregues em março e em abril de 20212222 No mês mais mortal da pandeia, governo entregou menos da metade das vacinas prometidas. Época Negócios. 2021 abr 2. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2021/04/no-mes-mais-mortal-da-pandemia-governo-entregou-menos-da-metade-das-vacinas-prometidas.html
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e suspensão temporária da produção de vacinas pelo Butantan devido ao adiamento da chegada de um carregamento de IFA da China2323 Landim R. Butantan suspende produção da Coronavac por falta de insumos. CNN Brasil. 2021 abr 7. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/07/butantan-suspende-producao-da-coronavac-por-falta-de-insumos
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. A escassez de doses dificultou a logística e aumentou os custos da distribuição das vacinas por todo o País2424 Escassez de doses das vacinas contra Covid dificulta logística de imunização. G1. 2021 abr 1. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/04/01/escassez-de-doses-das-vacinas-contra-covid-dificulta-logistica-de-imunizacao.ghtml
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. Consequentemente, até o dia 13 de abril, quase 32 milhões de doses haviam sido administradas em quase três meses2525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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, valor muito inferior às 80 milhões administradas na pandemia de H1N1 em período similar.

Outros fatores que impactaram negativamente as possibilidades de êxito em relação à vacinação para enfrentamento da pandemia da Covid-19 foram consequência do subfinanciamento crônico do setor saúde, agravado pela aplicação da Emenda Constitucional nº 95, resultando em uma redução de R$ 20 bilhões no orçamento da saúde somente em 2019 segundo o CNS2626 Brasil. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019 por causa da EC 95/2016. Brasília, DF: CNS; 2020.. O impacto no orçamento voltado somente ao PNI foi de quase R$ 400 milhões quando comparados os valores aprovados no orçamento para 2020 (R$ 4,9 bilhões) e para 2019 (R$ 5,3 bilhões). Apesar da aprovação de recursos excepcionais para o enfrentamento da pandemia, no valor de R$ 604 bilhões para o ano de 2020, o governo federal deixou de gastar R$ 80,7 bilhões, ou 15%, que, no ano de 2021, já entram no cálculo do teto de gastos2727 Instituto de Estudos Socioeconômicos. Um país sufocado: Balanço do Orçamento Geral da União 2020. Brasília, DF: INESC; 2021..

Considerando a existência de um programa de imunização tão bem estruturado no Brasil, o que poderia explicar o atraso no início da imunização da população brasileira contra a Covid-19 e os problemas na distribuição e administração das vacinas?

Conjuntura crítica: pandemia e pandemônio

Se as análises institucionalistas tendem a privilegiar estudos das políticas públicas em períodos longos, nos quais as instituições se desenvolvem em sequências padronizadas e mudanças incrementais, o PNI seria um exemplo ideal. Além de possibilitar a identificação de efeitos causais de longo prazo, prevê-se que as estratégias que se consolidaram tendem a se tornar irreversíveis ou mais resilientes, até mesmo por construírem uma resistente teia de atores e estruturas de governança ao seu redor2828 Pierson P, Skocpol T. Historical Institutionalism in Contemporary Political Science. In: Katznelson I, Milner H, editores. Political Science: State of the Discipline. New York: W.W. Norton; 2002. p. 693-721.,2929 Pierson P. Coping with permanent austerity: welfare state restructuring in affluent democracies. Revue Française de Sociologie. 2002; 43(2):369-406.. Porém, não é isso que estamos assistindo.

Se as instituições definem enquadramentos e modelam a estrutura de incentivos e as possibilidades de desenvolvimento das estratégias dos diferentes atores, é a ação dos atores que redefine os resultados dos conflitos de poder3030 Immergut E. Health Politics: Interests and Institutions in Western Europe. Cambridge: Cambridge University Press; 1992.. É a capacidade destes de atuar criticamente que permite construir coalizões discursivas ou comunidades epistêmicas, que apontem no sentido do reenquadramento institucional77 Schmidt V. Taking ideas and discourse seriously: explaining change through discursive institutionalism as the fourth ‘new institutionalism’. European Political Science Review. 2010; 2(1):1-25.. Mais além das disputas simbólicas, a luta pelo poder se realiza materialmente, envolvendo recursos e posições de poder.

Diante de uma conjuntura sanitária que demanda toda a capacidade institucional para o enfrentamento da pandemia, assistimos a uma ruptura política, institucional e técnica com os padrões estabelecidos durante a trajetória do PNI, cujas escolhas estratégicas, aprendizagem e mudanças incrementais levaram ao sucesso das campanhas de vacinação. Entretanto, em uma conjuntura crítica, aumenta o grau de autonomia da política, por meio de um relaxamento estrutural ou aumento das probabilidades de que decisões sejam tomadas no sentido de alterar as instituições existentes3131 Ouverney AM. Federalismo e Descentralização do SUS: A Formação de um Regime Polarizado de Relações Intergovernamentais na Década de 1990. [tese]. Rio de Janeiro: FGV; 2015. 445 p..

Evidentemente, uma pandemia representa uma conjuntura crítica na medida em que gera um elevado grau de insegurança em relação aos padrões institucionalizados de ações, relações e exercício de poder. A história nos dá inúmeros exemplos de como eventos que fogem ao controle, como pandemias e guerras, aumentam os graus de autonomia para criação de enquadramentos e desenvolvimentos científicos e institucionais. Além de provocarem mortes, inseguranças, aumento das desigualdades, as pandemias proporcionam o desenvolvimento científico e institucional.

Na conjuntura sanitária crítica atual, abriram-se possibilidades para inovações científicas e tecnológicas, como foi o caso do grande investimento internacional no desenvolvimento de várias vacinas em prazo recorde, na colaboração científica inusitada entre empresas concorrentes e na valorização do papel da OMS na condução de processos colaborativos entre os países e produtores.

No caso brasileiro, a pandemia foi antecedida por grandes mudanças políticas a partir do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, por meio de uma manobra jurídico-mediática-parlamentar em meio a uma crise econômica e de legitimidade das lideranças no governo3232 Fleury S, Pinho CE. Authoritarian Governments and the Corrosion of the Social Protection Network in Brazil. Rev. Katálysis. 2018; 21(1):29-42.. Já no governo Michel Temer, algumas alterações foram feitas na estrutura do MS com consequências no processo de compra de vacinas e distribuição, como a substituição da central de distribuição de medicamentos por uma empresa privada. Outra medida que fragiliza a estratégia de vacinação foi tomada, posteriormente, pelo Ministro Luiz Henrique Mandetta, em janeiro de 2020, que baixou portaria acabando com a obrigatoriedade das equipes multidisciplinares da atenção básica estarem vinculadas ao modelo do Núcleo Ampliado de Saúde da Família.

A proibição da candidatura e o posterior encarceramento de Lula permitiram a eleição do Presidente Jair Bolsonaro em 2018, fruto de uma aliança antipetista formada por setores conservadores, representados pelas lideranças neopentecostais, banqueiros, agronegócio e grandes empresários, policiais, milicianos e militares, com apoio de parte da classe média e populares. A noção de conjuntura crítica na política de saúde deve ser vista, portanto, como parte de um processo político externo à institucionalidade do SUS, mas que o afetará profundamente, já que a crise sanitária transformará a política e as instituições de saúde na principal arena na qual os interesses políticos e econômicos se confrontarão.

A crise na política de vacinação deve ser compreendida no interior da geopolítica adotada pelo governo Bolsonaro, de alinhamento incondicional ao governo de Donald Trump, reproduzindo as críticas aos organismos internacionais, como a OMS, e as teorias conspiratórias contra a China, acusada de disseminar o vírus - além da negação da gravidade da pandemia e da eficácia das medidas não farmacêuticas de combate à disseminação do vírus. O Ministro de Relações Exteriores, passou a chamar de VaChina o imunizante desenvolvido pelo Instituto Butantan, gerando problema diplomático com consequências para o fornecimento dos insumos oriundos da China. Além disso, indispôs-se com a Índia, outro fornecedor, ao alinhar-se aos países desenvolvidos na Organização Mundial do Comércio para votar contra a proposta de suspensão temporária, durante a pandemia, de patentes de vacinas e medicamentos2020 Gaspar M. O sabotador. Folha de São Paulo. 2021 fev. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-sabotador/
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A altercação política entre o governo federal, cientistas e autoridades subnacionais se deu em torno de disputas simbólicas e medidas efetivas de ação e inação do MS, envolvendo, inicialmente, questões relativas à gravidade da enfermidade, ao isolamento e medidas profiláticas, à autoridade sanitária e ao sistema de informações. Posteriormente, a questão da produção e aquisição de vacinas passa a ser central na disputa, juntamente com as medidas restritivas das atividades decretadas pelos governos subnacionais.

Desde quando foi constatada a transmissão comunitária no País, em março de 2020, todos os estados passaram a adotar medidas de isolamento social3333 Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde. A gestão de riscos e governança na pandemia por COVID-19 no Brasil: análise dos decretos estaduais no primeiro mês. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020., que, embora assimétricas em relação ao grau de restrição3434 Pereira AK, Oliveira MS, Sampaio TS. Heterogeneidades das políticas estaduais de distanciamento social diante da COVID-19: aspectos políticos e técnico-administrativos. Rev Adm Pública. 2020; 54(4):678-696., basearam-se em critérios técnicos e na autonomia dos estados. Já a reação presidencial foi de negação da gravidade da enfermidade, contrariando as recomendações da OMS, dos cientistas nacionais e das autoridades públicas. A disputa simbólica se expressou na afirmação do Presidente, em março de 2020: “Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”3535 Uribe G, Chaib J, Colleta R. Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, diz Bolsonaro sobre coronavírus. Folha de São Paulo. 2020 mar 20. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/nao-vai-ser-uma-gripezinha-que-vai-me-derrubar-diz-bolsonaro-sobre-coronavirus.shtml
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. E afirmou que brasileiro pula no esgoto e não pega nada, para justificar que o novo coronavírus não se disseminaria no País3636 Gomes PH. Brasileiro pula em esgoto e não acontece nada, diz Bolsonaro em alusão a infecção pelo coronavírus. G1. 2020 mar 26.. No final desse mês, a pandemia registrava mais de 5,7 mil casos e 200 óbitos2525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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Associando as medidas preventivas à fraqueza, passou a defender um ‘isolamento vertical’, apenas para pessoas em situação de risco, como os idosos e pacientes com comorbidades, enquanto incitava os demais a voltarem à normalidade. Tais declarações foram sempre seguidas por aglomerações e pela ausência do uso de máscara por parte do Presidente e sua comitiva. Ao invés das medidas preventivas não farmacológicas, passou a recomendar, em suas aparições públicas, o uso do que ficou conhecido como ‘kit preventivo’, um conjunto de medicamentos sem eficácia cientificamente comprovada no combate ao coronavírus. Usou recursos públicos para importar, produzir e distribuir cloroquina pelo Exército, recebeu doação desse medicamento, disseminando a automedicação e influenciando prescrições médicas. Com o crescimento dos casos e dos óbitos, o tom que passou a ser adotado foi fatalista e irresponsável, deslocando o centro da questão para uma falsa oposição entre saúde e economia, com afirmações como: “E daí? Quer que eu faça o quê? Eu não sou coveiro. Não faço milagres”3737 Gomes PH. ‘Não sou coveiro, tá?’, diz Bolsonaro ao responder sobre mortos por coronavírus. G1. 2020 abr 20. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-por-coronavirus.ghtml
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. “Está morrendo gente? Mas vai morrer muito mais se a economia continuar sendo destroçada”3838 Maia G. ‘Está morrendo gente? Tá. Lamento. Mas vai morrer muito mais se a economia continuar sendo destroçada’, diz Bolsonaro. O Globo. 2020 maio 14. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/esta-morrendo-gente-ta-lamento-mas-vai-morrer-muito-mais-se-economia-continuar-sendo-destrocada-diz-bolsonaro-1-24426281
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Acrescentou que o vírus estava indo embora e que seria imprescindível retomar a atividade econômica, colocando a população e os empresários contra os governadores que decretaram medidas restritivas. O governo federal tentou ainda concentrar o poder para adoção de medidas de restrição do transporte de bens, movimentação de pessoas e manutenção dos serviços durante a pandemia3939 Amato F. Coronavírus: MP concentra no governo federal poder para restringir circulação de pessoas. G1. 2020 mar 21. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/21/coronavirus-mp-concentra-no-governo-federal-poder-para-restringir-circulacao-de-pessoas.ghtml
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. Porém, o Superior Tribunal Federal (STF), interpelado sobre a constitucionalidade da medida, decidiu por reafirmar a autonomia dos entes subnacionais em decisões relativas às competências concorrentes. Bolsonaro mobilizou empresários e manifestantes para pressionar os ministros do STF e para enfrentar a autoridade dos governadores, declarando: “É Guerra! Tem que jogar pesado com os governadores”4040 Colleta R, Caram B, Uribe G. ‘É guerra, tem que jogar pesado com governadores’, diz Bolsonaro a empresários. Folha de São Paulo. 2020 maio 14. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/e-guerra-tem-que-jogar-pesado-com-governadores-diz-bolsonaro-a-empresarios.shtml
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. Essa afirmação foi dita em 14 de maio de 2020, quando o Brasil já contava com mais de 200 mil infectados e quase 14 mil mortes por Covid-192525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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Posicionando-se contrariamente ao uso da cloroquina, o Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta foi demitido, e seu substituto, Nelson Teich, pediu demissão, enquanto o Presidente proclamava que “Quem manda sou eu”4141 “O presidente sou eu”, diz Bolsonaro sobre fala de Mourão em defesa do isolamento. Gazeta do Povo. 2020 mar 26. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/o-presidente-sou-eu-diz-bolsonaro-sobre-fala-de-mourao-em-defesa-do-isolamento/
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, reafirmando sua suposta autoridade na prescrição de medicamentos e na definição, à revelia do MS, da lista de atividades essenciais. O MS foi progressivamente militarizado: empossado o general Eduardo Pazuello, levou consigo quase três dezenas de militares que assumiram postos de comando, com total desconhecimento do SUS, do PNI e das políticas de saúde.

O apagão dos dados do MS fez parte de um conjunto de fatores que desqualificaram a autoridade sanitária, gerando desconfiança sobre os dados da pandemia que poderiam estar sendo manipulados pelos governadores e prefeitos, como parte da disputa política. Em junho de 2020, Bolsonaro chegou a conclamar seus seguidores a invadirem os hospitais para filmarem leitos vagos e desmentirem a superlotação4242 Uribe G. Bolsonaro estimula população a invadir hospitais para filmar oferta de leitos. Folha de São Paulo. 2020 jun 11. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/bolsonaro-estimula-populacao-a-invadir-hospitais-para-filmar-oferta-de-leitos.shtml
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. A falta de credibilidade dos dados apresentados pelo MS levou à criação de um consórcio de órgãos da imprensa, recebendo informações diretamente das secretarias estaduais de saúde. Assim, uma das bases de sustentação institucional da autoridade sanitária, o sistema de informações em saúde, construído ao longo da trajetória do SUS, passou a ser desmoralizado. No final desse mês, já haviam sido registrados 1,4 milhão de casos e quase 60 mil óbitos por Covid-192525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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Além das disputas simbólicas, a política também é feita de ações e inações, que demonstraram, na questão da produção e compra da vacina, a adoção de uma necropolítica, conforme definido por Mbembe4343 Mbembe A. Necropolítica. Arte Ensaios. 2016; 32:123-151., como aquela na qual o exercício do poder consiste na exposição da população ao risco de morrer. A necropolítica da vacina mostra o desprezo pela vida da população por parte de uma autoridade que usa seu poder para abater adversários políticos e sabotar iniciativas de produção e compra de vacinas. Em queixa-crime contra as autoridades do governo nacional em resposta à Covid-19, o sanitarista Gonzalo Vecina e outros demonstram que houve “insuficiente e tardia alocação orçamentária para a aquisição de vacina” em 2020; “ritmo lento e insuficiente de execução orçamentária no âmbito do Fundo Nacional de Saúde ao longo do exercício financeiro de 2020”; e “falta de previsão de recursos no projeto de lei orçamentária anual de 2021 para o enfrentamento da Covid-19”4444 Haidar D. Fundador da Anvisa faz queixa-crime contra autoridades por resposta à Covid-19. Jota. 2021 abr 10. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www.jota.info/justica/fundador-da-anvisa-faz-queixa-crime-contra-autoridades-por-resposta-a-covid-19-10042021
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Nos meses de julho, setembro e outubro de 2020, o Instituto Butantan enviou ao MS ofícios com a oferta de milhões de vacinas que poderiam ser entregues até o final do ano se a compra fosse efetivada. A ausência de respostas por parte do Ministério levou o Butantan a buscar outras estratégias de venda, reunindo-se com parlamentares, governadores, prefeitos, juízes e membros do Tribunal de Contas da União (TCU).

Ainda assim, o Presidente Bolsonaro afirmou, no dia 19 de outubro de 2020:

O meu Ministro da Saúde já disse que não será obrigatória esta vacina e ponto final... Hoje em dia, pelo menos metade da população diz que não quer tomar essa vacina4545 Silva R. De jacaré a vacina do Doria: relembre frases de Bolsonaro sobre vacinação. A Gazeta. 2021 jan 19. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/es/politica/de-jacare-a-vacina-do-doria-relembre-frases-de-bolsonaro-sobre-vacinacao-0121
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Nesse dia, o Brasil já contava com 5,25 milhões de infectados e quase 155 mil mortes causadas pela Covid-192525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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As pressões sobre o MS por parte do Fórum de Governadores e da Frente Nacional de Prefeitos para a compra das vacinas produzidas pelo Instituto Butantan aumentaram, o que levou o Ministro Eduardo Pazuello a estabelecer um contrato de compra. Ao ser noticiado, Bolsonaro avisou na sua rede: “Não será comprada”. Cancelada a compra, o Ministro com Covid-19 recebeu a visita do Presidente, subordinando-se à sua decisão com uma frase exemplar de obediência hierárquica: “Um manda e outro obedece, simples assim”4646 Carvalho D, Cancian N. ‘Um manda, o outro obedece’, diz Pazuello ao receber Bolsonaro após crise da vacina. Folha de São Paulo. 2020 out 22. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/um-manda-o-outro-obedece-diz-pazuello-ao-receber-bolsonaro-apos-crise-da-vacina.shtml
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. O fracasso do general na direção do MS ficou patente com o crescimento descontrolado da pandemia e a ausência de vacinas suficientes para impedir o desenvolvimento de novas cepas do vírus, levando à sua substituição pelo quarto Ministro da Saúde no período de um ano de pandemia. O Ministro Marcelo Queiroga atendeu aos clamores por mudança ao defender a vacinação, porém, opõe-se ao lockdown, em conformidade com a orientação presidencial.

A disputa política em torno da vacina teve como cenário a próxima eleição presidencial, com o enfrentamento dos postulantes: o Governador João Doria de São Paulo e o próprio Presidente da República. O Governador João Doria ganhou projeção política com a inversão de recursos no desenvolvimento da vacina do Instituto Butantan/Sinovac. Em 10 de novembro de 2020, o Presidente Bolsonaro comemorou a suspensão dos testes decretada pela Anvisa diante da morte, por suicídio, de um voluntário. “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar os paulistanos a tomar”2525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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. Nesse dia, já haviam sido notificados 5,7 milhões de casos e quase 163 mil mortes por Covid-192525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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Quando João Doria anunciou que poderia iniciar a vacinação até janeiro de 2021, o governo federal anunciou a construção de uma nova fábrica da Fiocruz, para o aumento da capacidade de produção de vacina desenvolvida em parceria com Oxford/AstraZeneca4747 Platonow V. Governo federal investe em nova fábrica de vacinas da Fiocruz. Brasília, DF: Agência Brasil; 2020., que se encontrava em situação similar ao desenvolvimento da CoronaVac. As declarações do Ministro Eduardo Pazuello sobre a vacina ignoraram a CoronaVac, apostando todas as fichas apenas na Oxford/AstraZeneca, o que provocou manifestação dos secretários estaduais de saúde, em carta do Conass, exigindo que o programa de imunizações fosse composto com todas as vacinas aprovadas4848 Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Nota conjunta Conass-Conasems: Campanha nacional de vacinação contra covid-19. Brasília, DF: Conass; 2020..

A oferta de outras 70 milhões de doses feita ao MS, em agosto de 2020, pela empresa Pfizer, também não obteve qualquer resposta até dezembro de 2020, quando o governo veio a público explicar que não aceitava os termos do contrato que desresponsabilizavam a empresa por consequências imprevistas. O comentário do Presidente, em 18 de dezembro de 2020 sobre a vacina da Pfizer/BioNTech foi que ele não se vacinaria, acrescentando: “Se você virar jacaré, o problema é seu”4949 Bolsonaro sobre vacina da Pfizer: ‘se você virar um jacaré, é problema seu’. Isto é. 2020 dez 18. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://istoe.com.br/bolsonaro-sobre-vacina-de-pfizer-se-voce-virar-um-jacare-e-problema-de-voce/
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. O País já apresentava quase 7,2 milhões de infectados e mais de 185,7 mil mortos por causa da pandemia2525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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Com a iminência da produção das primeiras doses pelo Butantan, o MS finalmente anunciou a compra de 100 milhões de doses em 07 de janeiro de 2021. Porém, exigiu que o governo paulista entregasse ao MS todas as seringas em estoque, retirando assim a possiblidade do efeito midiático da aplicação da primeira dose da vacina no País. Foi necessária uma liminar do Ministro Lewandowski para garantir que o estado de São Paulo retivesse as seringas necessárias para vacinar sua população2020 Gaspar M. O sabotador. Folha de São Paulo. 2021 fev. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-sabotador/
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Por não ter apresentado um cronograma de vacinação, o MS foi chamado ao Congresso, intimado pelo STF e demandado pelos governadores. Depois de idas e vindas no cronograma, o Ministro Eduardo Pazuello finalmente proferiu frase lapidar, revelando total falta de planejamento: “A vacina vai começar no dia D, na hora H no Brasil”5050 Maziero G, Regula F, Carvalho R. ‘Vacinas chegarão aos estados três ou quatro dias após aval da Anvisa’, diz Pazuello. Folha de São Paulo. 2021 jan 11. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/vacinas-chegarao-aos-estados-tres-ou-quatro-dias-apos-aval-da-anvisa-diz-pazuello.shtml
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Mesmo após a provação do registro emergencial pela Anvisa, Bolsonaro questionou a eficácia da vacina CoronaVac, defendendo o tratamento precoce:

Não desisto do tratamento precoce, não desisto. A vacina é para quem não pegou ainda. Essa vacina tem 50% de eficácia, ou seja, se jogar uma moedinha pra cima, é 50% de eficácia5151 Carvalho D. Bolsonaro insiste em tratamento precoce e volta a lançar desconfiança sobre Coronavac. Folha de São Paulo. 2020 jan 18. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/bolsonaro-insiste-em-tratamento-precoce-e-volta-a-lancar-desconfianca-sobre-coronavac.shtml
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Nessa data, 18 de janeiro de 2021, já era possível observar a segunda onda da pandemia em Manaus, e o País contava com mais de 8,5 milhões de infectados e 210 mil óbitos causados pela pandemia2525 Fundação Oswaldo Cruz. Monitora Covid-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; c2021. Disponível em: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/
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O início da vacinação mostrou que a população guarda uma memória do êxito das campanhas de vacinação anteriores e concorreu imediatamente aos postos para se vacinar. O atraso no início da imunização da população e as dificuldades na compra, produção e distribuição de vacinas, entretanto, colocaram o Brasil na 64ª posição, em um ranking com outros 164 países, com apenas 11,1% de pessoas que receberam ao menos uma dose até o dia 13 de abril1919 Coronavirus (Covid-19) Vaccinations. Our world in data. Oxford: University of Oxford; 2021. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://ourworldindata.org/covid-vaccinations
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. Ao mesmo tempo, a popularidade do Presidente entrou em declínio, demonstrando a insatisfação da opinião pública com a condução governamental em relação à pandemia e à vacinação.

Considerações finais

Segundo Fukuyama5252 Fukuyama F. The pandemic and political order: it takes a state. Foreign Affairs. 2020 jul. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/world/2020-06-09/pandemic-and-political-order
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, alguns países lidaram melhor que outros no combate à pandemia, não havendo correlação com o regime político. O autor identifica como fatores responsáveis pelo sucesso as capacidades estatais, a confiança social e a liderança. Ao contrário, estados disfuncionais, sociedades polarizadas e liderança pobre são responsáveis pela má condução do combate à pandemia.

No caso brasileiro, a existência de capacidades estatais relativas à existência consolidada da política pública e institucionalidade do PNI e da rede capilar de atenção básica do SUS, responsável pela vacinação, não foram suficientes para assegurar o efetivo enfrentamento da pandemia e a vacinação em tempo hábil para evitar o aumento exponencial da disseminação e dos óbitos. A forma de lidar com a pandemia pela maior liderança do País, representada pelo Presidente Jair Bolsonaro, minou as capacidades institucionais e a confiança social, tanto por disputas simbólicas quanto por medidas de ação, como a militarização do MS e a inação na compra de vacinas ofertadas pelos produtores. Fundamentalmente, o MS omitiu-se na coordenação federativa, eximindo-se quanto à utilização do poder de compra do MS para redução dos preços na importação de insumos e vacinas, à participação efetiva na demanda nacional ao consórcio criado pela OMS, às campanhas de esclarecimentos para a população, à agilidade na compra de diferentes vacinas oferecidas no mercado nacional, à coordenação da logística e definição de protocolos, à definição de um cronograma nacional de vacinação.

A disputa simbólica incluiu: afirmações e demonstrações públicas, além de medidas legais envolvendo a negação da gravidade da enfermidade e das consequências para o sistema de saúde; divulgação de medicamentos comprovadamente ineficazes; desautorização dos governadores e prefeitos que criaram medidas restritivas; desqualificação das medidas não farmacológicas; deslegitimação da autoridade sanitária; desmontagem do sistema de informações e das práticas organizacionais do MS em relação ao combate à pandemias e ao PNI; desautorização da OMS; e geração de tensões diplomáticas com países produtores de insumos essenciais para o desenvolvimento das vacinas. Essas tendências se estenderam ao desenvolvimento e compra de vacinas, desde a contenda político-eleitoral com o governador de São Paulo, disseminando suspeitas sobre eficácia e risco de tomar a vacina, até as medidas que impediram a compra dessa e de outras vacinas em 2020, quando outros países já contratavam os imunizantes.

Qual o papel dessas ideias e medidas na constituição da política? Os discursos devem ser analisados não apenas em relação às ideias que comunicam, mas também no que concerne aos contextos, ou interações discursivas nos quais ocorrem5353 Schmidt VA. Discursive institutionalism: the explanatory power of ideas and discourse. Annu Rev Political Sci. 2008; 11:303-326.. Considerando os contextos discursivos, observa-se que o Presidente privilegiou as interações que se estabeleceram com seus seguidores no Twitter e nas aglomerações na porta do Palácio. Estabeleceu-se um ambiente de informalidade propício à identificação entre emissor e receptor, reificando a imagem de uma pessoa comum, que emite julgamentos honestos, até mesmo prosaicos, porém destituídos de cálculo político racional, visando obter vantagem. As tecnologias de informação facilitaram a criação não só de canais pessoais entre as autoridades e seus seguidores como a produção de fake news, que passaram a ser importantes componentes das disputas políticas e eleitorais.

Se a eleição de líderes populistas autoritários é baseada em uma retórica que privilegia a crítica à política, criando um ‘nós’ - povo - contra o ‘eles’ - elites políticas e econômicas -, o populismo autoritário no poder vai muito além dessa retórica, buscando minar as instituições democráticas e se perpetuar no poder. Governando para seus seguidores, o líder populista busca deslegitimar a oposição, em constante mobilização de seus apoiadores com uma narrativa que identifica o líder como o representante do povo verdadeiro. A identificação da verdade com a fé tem como efeito o fato de que mudanças de discurso e atitudes reduzem os riscos à credibilidade do líder5454 Urbinati N. Political theory of populism. Annu Rev Political Sci. 2019; 22:111-127.. Assim, se antes o Presidente era contrário à compra de vacinas, depois busca se apresentar como responsável pelos esforços para compra dos imunizantes, sem maiores consequências para os que têm fé no mito.

Para além do processo comunicativo, as disputas simbólicas representam importantes recursos de poder que, no caso de uma pandemia, têm consequências tanto sanitárias quanto políticas, relativas às instituições democráticas. Diferentes estudos procuraram identificar o impacto das manifestações do Presidente em termos da destruição da confiança social nas medidas propugnadas pela OMS e por cientistas nacionais para combater a pandemia, sejam elas não farmacológicas, sejam medidas de compra e produção de vacinas que viabilizassem a rápida vacinação. As pesquisas, conforme apresentamos a seguir, concluem que a pandemia foi tratada em termos ideológicos e partidários, sendo que o alinhamento dos governos subnacionais ao Presidente da República determinou o padrão de atuação em termos do tipo de ação, do timing e do rigor das medidas adotadas.

O alinhamento ideológico ao Presidente da República foi relacionado com consequências sanitárias no nível municipal. Pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria com Instituto Francês IRD, constatou que os municípios nos quais o Presidente Bolsonaro obteve maior votação no primeiro turno das eleições apresentaram maior incidência da doença. Essa correlação positiva foi denominada ‘efeito Bolsonaro’ na propagação da pandemia: para cada 10 pontos percentuais a mais de voto para Bolsonaro, houve um acréscimo de 11% no número de casos e 12% no número de mortos5555 Rebello A. Governo deixou de gastar 80,7 bilhões de reais destinados à pandemia em 2020, diz estudo. El Pais. 2021 abr 7. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-07/governo-deixou-de-gastar-807-bilhoes-de-reais-destinados-a-pandemia-em-2020-diz-estudo.html
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Pesquisas sobre o impacto sanitário das declarações presidenciais contrárias ao isolamento apontaram que o efeito de tais declarações não se restringe aos seus apoiadores5656 Lupion B. Bolsonaristas violam mais a quarentena, mostra estudo. [Local desconhecido]: DW; 2020., ainda que as mortes evitáveis possam ser em maior número entre estes5757 Canzian F. Falas de Bolsonaro contra isolamento podem ter matado mais seus eleitores, aponta estudo. Folha de São Paulo. 2020 jun 30. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/falas-de-bolsonaro-contra-isolamento-podem-ter-matado-mais-seus-eleitores-aponta-estudo.shtml
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. Outro estudo, utilizando um índice de distanciamento social por meio de telefones celulares, corrobora a afirmativa de que as falas presidenciais expuseram a população a situações de risco, especialmente nos municípios com mais altos níveis de penetração da mídia, presença de contas ativas no Twitter e grande proporção de evangélicos. A conclusão dos autores é que as declarações de líderes são mais que palavras, provocando ações e comportamentos5858 Ajzenman N, Cavalcanti T, Mata D. More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic. London: Centre for Economic Policy Research; 2020..

As consequências em relação às instituições democráticas responsáveis pela política de saúde e ao arranjo federativo também foram estudadas. Constatou-se que:

[...] o modelo de governança construído ao longo da institucionalização do SUS, em consonância com o modelo constitucional de um federalismo compartilhado com finalidade social, não resistiu à conjuntura crítica que juntou a pandemia ao estilo autoritário da liderança populista no poder, dando origem a um modelo de federalismo de confrontação, com sérias consequências para a democracia e para a saúde pública44 Fleury S. Políticas de isolamento na pandemia: confrontação federativa, disputas discursivas e consequências político-sanitárias. In: Santos AO, Lopes, LT, organizadores. Principais Elementos, Coleção Covid-19. Brasília, DF: Conass; 2021. p. 110-125. v. 1.(112).

Para que isso ocorresse, houve uma ocupação militar dos cargos de direção do MS, com demissões e perseguições políticas de técnicos. Os mecanismos democráticos de governança como o CNS e a Comissão Tripartite foram desconsiderados, sendo o processo decisório encapsulado em torno dos militares ocupantes das direções e de profissionais, médicos e empresários estranhos à burocracia pública.

Em estudo sobre as consequências do combate à pandemia para o federalismo nos Estados Unidos, Kettl5959 Kettl DF. States Divided: The implications of American federalism for Covid-19. Public Administration Review. 2020; 80:595-602. aponta que a ausência de condução e liderança por parte do governo nacional abriu espaço para que as lideranças dos estados ganhassem proeminência. No entanto, mais do que a verificação da tese dos estados como laboratórios de políticas públicas, e, também, para além das meras diferenças partidárias, o que se observou foi a ampliação da fragmentação, um estado dividido.

No caso brasileiro, as consequências para o federalismo foram tanto demolidoras da inteligência e mecanismos de coordenação federativa quanto inovadoras, já que a ausência de coordenação por parte do MS e as atitudes sabotadoras da Presidência levou-os a busca e ao fortalecimento de mecanismos de coordenação horizontal, como o Fórum de Governadores, os Consócios regionais, além do papel de destaque assumido pelo Conass. Diferentemente do caso norte-americano, a existência do SUS pressupõe competências concorrentes constitucionalizadas e atribuições legais definidas pela Lei Orgânica da Saúde para a articulação nacional das políticas de saúde, além de uma longa tradição de campanhas de vacinação nacionais, coordenadas pelo MS. O arranjo federativo brasileiro chegou a ser questionado pelo Presidente da República, que recorreu ao STF para impedir que os governos subnacionais adotassem medidas de lockdown. O STF, no entanto, resguardou a autonomia dos Estados e Municípios para tomarem as medidas necessárias ao combate à pandemia. Com essa decisão, o STF rompeu sua trajetória de decisões favoráveis à União em todos os conflitos federativos que ocorreram desde a CF/886060 Souza C, Fontanelli F. Antídotos institucionais do federalismo brasileiro: a covid-19 mudou a dinâmica federativa? In: Avritzer L, Kerche F, Marona M, organizadores. Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica; 2021. p. 135-150..

Diante dessa decisão e das críticas de falta de coordenação do governo federal no combate à pandemia, o Presidente Jair Bolsonaro criou o discurso de que o STF o impediu de realizar tal coordenação e que, portanto, a culpa pela crise sanitária e econômica seria de governadores e prefeitos. Com base no Institucionalismo Discursivo77 Schmidt V. Taking ideas and discourse seriously: explaining change through discursive institutionalism as the fourth ‘new institutionalism’. European Political Science Review. 2010; 2(1):1-25., essa forma de enquadrar essa questão política pode ser analisada enquanto uma tentativa de o Presidente manter seu apoio político e enfraquecer os atores políticos das esferas subnacionais, e ainda como um recurso na tentativa de alterar a decisão do STF e aumentar seu poder de decisão sobre as ações de combate à pandemia.

Adicionalmente, em abril de 2021, o STF determinou a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado, em resposta a um mandado de segurança apresentado por parlamentares, que apurou as ações e as omissões do governo federal no combate à pandemia. Depoimentos do especialista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas, e de Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional à CPI da Covid-19, em 24 de junho 2021, confirmaram que pelo menos 400 mil mortes de um total, à época, de 507.240 óbitos poderiam ter sido evitadas se o MS tivesse assumido a coordenação tempestiva da compra e aplicação das vacinas oferecidas no mercado internacional e nacional6161 Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia: Relatório Final. Brasília, DF: Senado Federal; 2021..

A inação do MS no processo de aquisição de vacinas contra a Covid-19 levou os governos subnacionais à busca de compra por meio de negociação direta com o Instituto Butantan e com laboratórios privados, o que poderia resultar em uma situação de tensão federativa e competição desregulada, aumentando as desigualdades regionais: estados integrantes do Consórcio de Desenvolvimento do Brasil Central se articularam para a compra conjunta de vacinas6262 Chaves B. Estados do Brasil Central articulam compra conjunta de vacinas conta covid-19. Campo Grande, MS: Governo do Estado; 2021., assim como já fizeram os estados que fazem parte do Fórum dos Governadores do Nordeste, que já contrataram 37 milhões de doses da vacina Sputnik V, da Rússia6363 Mariz R, Ferreira P. Governadores do Nordeste anunciam compra de 37 milhões de doses da Sputnik. O Globo. 2021 mar 17. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/vacina/governadores-do-nordeste-anunciam-compra-de-37-milhoes-de-doses-da-sputnik-v-24929156
https://oglobo.globo.com/sociedade/vacin...
. Outras tentativas diretas de negociações com o Instituto Butantan foram realizadas, como feita pelo Governador do Rio Grande do Sul6464 Oliveira R. Leite discutirá com o Butantan possibilidade da compra direta de vacinas para o Rio Grande do Sul. GZH. 2021 abr 8. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/rosane-de-oliveira/noticia/2021/04/leite-discutira-com-o-butantan-possibilidade-da-compra-direta-de-vacinas-para-o-rio-grande-do-sul-ckn9esvun006h016ust9gt85r.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunist...
. Foi criado também um consórcio de municípios, por meio da Frente Nacional de Prefeitos, para aquisição de vacinas no mercado internacional6565 Valente J. Prefeituras criam consórcio para compra de vacinas conta covid-19. Agência Brasil. 2021 mar 22. [acesso em 2021 mar 22]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-03/prefeituras-criam-consorcio-para-compra-de-vacinas-contra-covid-19
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/n...
. No entanto, tais inciativas terminaram não tendo resultados práticos, já que o governo federal, a partir do momento em que o governo de São Paulo iniciou a vacinação, decidiu assumir o comando da compra e distribuição de vacinas.

A virada do governo a favor da vacinação se deu com a queda da popularidade do Presidente, a pressão de empresários pela compra da vacina e a entrada do novo Ministro da Saúde, que defende a vacinação, as medidas não farmacológicas, como o uso de máscaras, higiene das mãos e isolamento controlado, mas condena o lockdown dos prefeitos e governadores, em concordância com o Presidente. No entanto, a incapacidade de prover a quantidade de vacinas adequadas, fruto da política negacionista que impediu a compra no momento oportuno, juntamente com o incentivo às aglomerações da população em festas, a necessidade de uso de transportes urbanos e a busca de meios de sobrevivência têm sido vistas como propiciadoras do surgimento de novas cepas, que comprometem a eficácia das vacinas e a popularidade do governo.

Nosso estudo procurou demonstrar a importância crescente da análise dos discursos como recursos nas disputas pelo poder, sem deixar de considerar que sua eficácia em desmantelar trajetórias institucionais bem-sucedidas precisa ser acompanhada de outros instrumentos de poder, tanto em termos de ações quanto de omissões, aptos para assegurar que os discursos e práticas sejam capazes de desmontar trajetórias de políticas públicas exitosas. A militarização do MS deve ser vista como um sintoma da resiliência da política pública de saúde a um projeto negacionista arbitrário, eivado de interesses políticos e econômicos, mesmo que não tenha sido capaz de enfrentá-lo plenamente.

A existência de atores políticos com poder de veto, como o STF, de vocalização de denúncias, como o Conass e organizações científicas e da sociedade civil, com autonomia, como a Anvisa, e de ação coletiva, como parlamentares e governadores, teve capacidade de impedir que a tragédia fosse ainda maior. No entanto, formou-se uma coalizão que impulsionou o negacionismo e apoiou a PR, composta por blogueiros que difundiram fake news nas redes sociais, empresários que financiaram tais atividades e lucraram com a venda de remédios inefetivos como tratamento preventivo, médicos, associações médias e o próprio Conselho Federal de Medicina que se omitiram ou apoiaram abertamente uso desses medicamentos, setores da burocracia civil e militar que também apoiaram o Presidente e desprezaram as recomendações científicas, além de lideranças do parlamento que buscaram impedir a criação de uma investigação sobre o processo.

A vacinação contra a Covid-19, como na Revolta da Vacina no início do século XX, demonstrou ser um excepcional analisador da economia política e da sociabilidade brasileira. Enquanto, na Revolta da Vacina, o Presidente impulsionou a vacinação obrigatória, o que provocou a rebelião militar e popular; no caso atual, o Presidente foi o principal obstáculo para o País conseguir definir uma política de isolamento e de desenvolvimento e compra de vacinas, compatível com o enfrentamento da pandemia. Nos dois casos, no entanto, o debate acerca do combate ao vírus tornou a vacina a principal arena política na qual as disputas por poder ocorreram. No primeiro caso, a disputa abriu espaço para uma trajetória exitosa da política de vacinação. No segundo caso, a conjuntura crítica criou possibilidades de uma tragédia sanitária sem precedentes, o esgarçamento do pacto federativo e a perda de capacidades institucionais construídas ao longo de anos.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2021
  • Aceito
    04 Nov 2021
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