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Das lutas contra a ditadura às lutas pela democracia: o pensamento de Antônio Ivo de Carvalho

Introdução

Bem Unidos façamos Nessa luta final Uma terra sem amos A Internacional!

(‘A Internacional’ – Pierre de Geyter e Éugene Pottier)

O PRESENTE ARTIGO É UM TRIBUTO A ANTÔNIO IVO DE CARVALHO, militante social, partisan, membro ativo do Movimento pela Reforma Sanitária (MRS), gestor que conduziu a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) ao patamar de excelência internacional e um dos criadores do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

As homenagens por sua inesperada morte continuam se multiplicando (http://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/51571 e https://youtu.be/7kFyvhwM-Bs, por exemplo) e, sob tal contexto, o objetivo deste trabalho é o de evidenciar seu papel de intelectual orgânico do setor saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS).

O texto a seguir é uma compilação de extratos selecionados de 11 de suas principais obras que foram articulados a fim de produzir um sentido geral que oriente e permita aos leitores terem contato com a riqueza de suas reflexões e propostas. Logicamente, a leitura de cada uma das obras de referência produzirá as chaves necessárias para o avanço nos temas e questões doravante enunciadas.

Há, também, um desejo utópico e amoroso de sempre ouvir sua voz, de rever seus gestos e de revisitar sua performance argumentativa, parceiros que fomos nestes últimos 15 anos. Quem o conheceu, saberá que cada palavra aqui reproduzida tinha um tom de entusiasmo, de vontade de mudar o mundo, de irritação com a desigualdade e a injustiça social. Quem não o conheceu, leia sabendo que ele acreditava de verdade nas lutas do povo, dedicou-se a elas, foi preso, torturado pela ditadura militar e nunca se sentiu um herói, mas um igual, com seus limites, equívocos e finitude.

As lutas por saúde e contra a ditadura militar

No final dos anos 1970, havia uma efervescência generalizada [...] em torno do tema saúde. Era, basicamente, uma luta por acesso aos serviços de saúde, então controlados pelo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) que, nessa época, já estava muito deteriorado11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Essa efervescência estava presente ‘na massa’, na população [...] aqui no Rio de Janeiro, antes mesmo da Famerj (Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro), já havia essa luta. Em Nova Iguaçu, onde a gente estava, se organizou como movimento pela saúde. Depois, se ampliou como movimento de bairro. Na zona sul e na zona leste de São Paulo também havia um movimento forte, muito apoiado pela esquerda que militava na igreja católica11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Não era uma luta politicamente elaborada, com um ideal de saúde por trás. Era uma luta para ser atendido no serviço de saúde! As pessoas não eram atendidas e reagiam, por vezes, com ‘quebra-quebra’11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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A igreja [católica] teve um papel muito importante na mobilização e organização dessas pessoas. Os movimentos sociais urbanos foram muito mais presentes que os sindicatos nessas lutas. Os sindicatos estavam reivindicando ampliação de direitos via planos de saúde. Os movimentos sociais urbanos pediam acesso a um sistema que não existia11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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O PCB (Partido Comunista Brasileiro), dentro do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), tinha um movimento pela saúde forte [...] que se alimentou do processo de medicina comunitária, do pessoal de Montes Claros, Paulínea, Niterói [...] que tinha como base Alma-Ata e a universalização das ações primárias de saúde. Essa era a chamada esquerda sanitária. Era aí que estava o Arouca11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Havia, também, uma outra linha no Partido não diretamente ligada ao setor saúde, que tinha como foco a ‘agitação popular’, a formação de quadros para a luta popular. E eu estava nessa linha. Eu estava, nessa época, na Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), em Nova Iguaçu. [...] Fui para o movimento social pela igreja católica e acabei ficando muito mais perto do movimento associativo no fim dos anos 1970 do que do movimento da saúde11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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[...] Na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), estavam Hésio, Noronha, Reinaldo... criando a medicina social. Na Ensp (Escola Nacional de Saúde Pública), tinha o Pesis (Programa de Estudos Socioeconômicos em Saúde), que era onde estava o Davizinho [Davi Capistrano Filho]11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Fui para Nova Iguaçu associado às comunidades eclesiais de base. D. Adriano Hipólito era o Bispo de lá. Eu dizia para ele “sou comunista”, e ele respondia “tem comunista que é muito mais cristão do que os meus cristãos!”. E D. Adriano era um liberal. De esquerda mesmo era D. Valdir Calheiros, da diocese de Volta Redonda11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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A gente chamava o movimento popular para pressionar! Eu lembro que, na crise da dengue, a gente articulava com as pessoas para ir para as ruas, fechar a [rodovia] Dutra! Nessa época, escrevi um artigo para o terceiro número da ‘Saúde em Debate’: ‘Saúde e Educação de Base: algumas notas’, que via a saúde não como um fim em si, mas como um meio de produzir consciência de classe11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Que as pessoas envolvidas [nos processos educativos] possam adquirir elementos que permitam [...] compreensão mais crítica da realidade e [...] fortalecimento da confiança na sua possibilidade de transformá-la22 Carvalho AI. Saúde e educação de base: algumas notas. Saúde debate. 1978 [acesso em 2022 set 20]; (7):61-65. Disponível em: https://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=saudedebate&pagfis=3079.
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O Movimento pela Reforma Sanitária: da universalização branca à autorreforma do sistema de saúde e à criação do SUS.

Conceitualmente, a Reforma Sanitária nasce de dentro do partidão [PCB]. A crítica ao sistema hospitalocêntrico, perdulário, que estava entrando em falência com o Inamps, vem [...] do contato de integrantes e simpatizantes do partido com [...] as lutas da população para ter acesso ao sistema11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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E foi na relação com os movimentos sociais urbanos que a Reforma Sanitária foi se construindo. [...]. Não foi um movimento de massas, mas se apoiou e se inspirou nessa movimentação espontânea, sobretudo na periferia de São Paulo, em que as pessoas chegavam, não eram atendidas e reagiam, protestavam11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Não havia uma direção do partido que pegava o pessoal da área de saúde e discutia. O partido tinha sensibilidade para ouvir seus membros e simpatizantes e produzir suas alianças. [...]. E o partido soube dar oportunidade para essas pessoas organizarem as lutas sociais de acordo com as possibilidades que tinham. Isso permitiu que quadros do partido entrassem, por exemplo, na gestão do Inamps11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Na falta de profissionais competentes, o governo teve de absorver os especialistas que eram quadros do Partidão [...] Aloísio Salles, Temporão, Eleutério, Noronha... Não foi uma orientação do partido que seus especialistas entrassem no Estado para tomá-lo, mas o partido teve a sensibilidade de viabilizar que a luta fosse feita por dentro do Inamps [...]11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Nos serviços do Inamps, você só era atendido se apresentasse carteira de trabalho, mas nos serviços municipais e estaduais, não. E estes tinham capacidade ociosa, enquanto o Inamps estava assoberbado [...] e gastava muito credenciando e pagando prestadores privados, num processo nefasto que ajudou a proliferar as ‘trambiclínicas’, que recebiam recursos públicos por serviços de baixíssima qualidade ou inexistentes11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Em 1979, num simpósio realizado pela Câmara dos Deputados, ‘Saúde e Democracia’, Arouca e toda uma ‘elite’ da Reforma Sanitária, que era basicamente do partidão, defendia um sistema único, embora não o chamasse assim, baseado numa concepção de saúde inspirada em Alma-Ata e na participação11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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O plano do Conasp (Conselho Nacional de Saúde Previdenciária), nos anos 1980, previa uma integração entre o que se chamava na época de ‘diversos sistemas de saúde’, das diferentes esferas de governo. Era um princípio de rede. Para essa integração, eram realizados convênios, que eram manipulados pelos quadros de esquerda que trabalhavam no Inamps, a fim de assinar convênios com municípios de pensamento mais avançado. Era um processo rápido, que, inclusive, passava por cima do Estado se esse não quisesse fazer o convênio! E aí, o Inamps começou a pagar os municípios pelo atendimento. Isso funcionou como uma ‘universalização branca’11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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[Em 1982, foram criadas] as AIS (Ações Integradas de Saúde) [que] tinham a finalidade de ocupar a capacidade ociosa nos estados e municípios, aumentando o atendimento público. Já no governo Sarney [...] foram sucedidas [em 1987] pelo Suds (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde)11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Isso foi uma autorreforma11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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. [...] Houve [uma] disputa significativa dentro do movimento sanitário: qual a estratégia de construção do sistema único? A unificação seria feita pelo Ministério da Saúde ou pelo Inamps11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Isso separou as duas principais lideranças, Arouca e Hésio. Quem estava no Inamps, junto com Hésio, Temporão, Noronha..., defendia que a descentralização fosse feita por meio da extinção do Inamps para os estados e municípios, num processo incremental em que o Instituto descentralizaria sua rede e seus recursos11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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E tinha uma parte da esquerda comunista que estava na Fiocruz, no Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), liderada pelo Arouca, que defendia que a descentralização fosse feita pelo Ministério da Saúde que, nessa época, não tinha poder, mas tinha os programas de saúde e uma concepção sanitária11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Foi uma coisa interna, sem expressão para fora, mas pesada. Só que isso foi se resolvendo no processo político. O Inamps perdeu o poder de pagar as AIHs (Autorizações de Internação Hospitalar), ou seja, de ser comprador do prestador privado. Com o SUS, a SAS/MS (Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde) passou a emitir as AIHs, assumindo protagonismo antes mesmo da extinção do Inamps, que ocorreu, até de forma súbita, no governo Itamar Franco (1992-1994)11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Reforma Sanitária como Reforma Política e de Estado: democracia, participação social e conselhos de saúde

Postulando a democratização do acesso a bens e serviços propiciadores de saúde, mas também a democratização do acesso ao poder, a agenda da reforma sanitária sempre teve nas propostas participativas a marca de sua preocupação com os ‘mecanismos de funcionamento’ do Estado e não só com os ‘resultados redistributivos’ de suas políticas33 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S, organizadora. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 93-111..

Daí, o emprego simultâneo das consignas ‘Democracia é saúde’ e ‘Saúde é democracia’, emblema da Reforma Sanitária enquanto reforma também da política, no sentido de que o direito universal à saúde deveria ser acompanhado, garantido mesmo, pelo direito à participação no poder. Saúde como estratégia para a democracia e democracia como estratégia para a saúde33 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S, organizadora. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 93-111..

As AIS [...] preconizavam que, na assinatura dos convênios entre União, estados e municípios, tinha que ter conselhos de saúde. [...] Aí, foi sendo criada uma cultura de participação, de presença de representantes da população nas estruturas de cogestão do Estado11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Isso vem do sistema local de saúde cubano, em que você tem de integrar uma rede, juntando representantes das diversas redes – federal, estadual e municipal – e da população. Assim, constituiu-se, em Niterói, [...] o ‘Projeto Niterói’ [com] Gilson Cantarino. [...]. No Rio de Janeiro, [...] tinha um colegiado por área programática que era só dos dirigentes e, em torno dela, a participação. Já em Nova Iguaçu, o conselho era externo ao poder público.

[...] [Isso] mostra que foram experimentadas formas diferentes e, para a época, inovadoras no que diz respeito à participação11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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[...], tema constantemente presente na retórica e na prática do movimento sanitário [...]33 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S, organizadora. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 93-111..

[...] Tanto a noção de participação quanto a de controle social podem ser discutidas a partir de diversos ângulos [...], os dois termos têm origens e tradições distintas no campo da saúde [...], são historicamente referidos e dizem respeito a distintos contextos socioeconômico-culturais. Correspondem [...] a uma variedade de enfoques político-ideológicos, envolvendo diversas formas de compreensão do Estado, dos grupos sociais, das relações Estado-sociedade, do processo saúde-doença e das maneiras de nele intervir44 Carvalho AI. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro: IBAM/ FASE; 1995..

Na Oitava [Conferência Nacional de Saúde, 1986], o Estado era o comitê decisório da burguesia! A [proposta de] participação na Oitava também era uma forma de traduzir o Estado que vinha da ditadura, que não seria capaz de garantir o SUS como universal. A participação externa [nos conselhos] é quase uma salvaguarda concebida para trazer a população para a luta política. [...] Isso foi sendo amainado pela redemocratização11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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O processo de democratização traz à cena novos atores e coloca em pauta novas questões na esfera das relações Estado-sociedade. [...] Desenha-se um novo referencial [...] requalificando a participação. [...] A categoria central deixa de ser a ‘comunidade’ ou o ‘povo’ e passa a ser a sociedade. A participação pretendida não é mais a de grupos excluídos por disfunção dos sistemas (comunidades) nem a de grupos excluídos pela lógica do sistema (povo marginalizado), e sim o conjunto de indivíduos e grupos sociais, cuja diversidade de interesses e projetos integra a cidadania e disputa com igual legitimidade espaço e atendimento pelo aparelho estatal44 Carvalho AI. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro: IBAM/ FASE; 1995..

Uma das características desse padrão de participação [...] que aqui se denomina de participação social [...] é a sua tendência à institucionalização [...], o processo de inclusão no arcabouço jurídico-institucional do Estado de estruturas de representação direta da sociedade investidas de algum nível de responsabilidades de governo [...], a presença explícita e formal no interior do aparato estatal dos vários segmentos sociais de modo a tornar visível e legítima a diversidade de interesses e projetos44 Carvalho AI. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro: IBAM/ FASE; 1995..

Os Conselhos de Saúde [na Lei nº 8.142/90] são expressões institucionais [desse] processo de reordenamento das relações Estado-sociedade, [...] novos arranjos institucionais destinados a dotar o Estado de ânimo institucional e estrutura organizacional para implementar as políticas sociais universalistas, tal como preconizadas na Constituição de 198855 Carvalho AI. Os Conselhos de Saúde, Participação Social e Reforma do Estado. Ciênc. Saúde Colet. 1998 [acesso em 2021 jul 5]; 3(1):23-25. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231998000100023&lng=pt&nrm=iso.
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[...] Podem ser [consideradas] inovações institucionais [...] uma reforma adaptativa do desenho institucional do Estado [...] para alterar o padrão de recepção e processamento de demandas na área de saúde [...], [instituindo] uma agenda setorial ‘de interesse público’, capaz então de parametrizar a ação do Estado. Seu papel no sistema estatal de formulação e implementação de políticas seria o de [...] estabelecer ou discriminar aquilo que é do interesse público [...], [representando] para os diversos grupos de interesse uma arena de tematização e publicização de seus interesses específicos33 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S, organizadora. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 93-111..

Seu impacto modernizante consiste no veto [...] à cultura patrimonialista típica do Estado brasileiro. No lugar dos arranjos hierárquicos próprios do patrimonialismo, onde a política destituída de alteridade fundava-se na circulação não regulada de favores e lealdades, sob o império [...] dos interesses privados, os Conselhos introduzem um padrão de racionalidade tecno-burocrática que [marca] a implantação do SUS33 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S, organizadora. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 93-111..

[...] Estruturas permanentes, de caráter público, [são capazes de] contribuir para uma reforma do Estado. [...] Não sendo provenientes nem de uma ocupação do Estado pela sociedade, nem de uma benevolência ou concessão do Estado [...], seu desempenho [...] deve ser discutido no contexto de sua efetividade democrática, ou seja, de seus efeitos sobre a vida social e especialmente sobre o funcionamento do Estado33 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S, organizadora. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997. p. 93-111..

Desafios éticos e políticos da saúde pública

[...] Duas tendências de pensamento [...] pressionam a atualização da identidade da saúde pública, como campo de saber e prática. Emergem das realidades políticas, sociais, culturais e científicas contemporâneas, e apontam [...] para desenvolvimentos distintos e alternativos do futuro da saúde pública66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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O primeiro [...] diz respeito ao crescente peso da razão econômica sobre o território epistêmico da saúde pública [...], o segundo [...] remete à importância crescente das atividades ‘individuais’ de promoção da saúde e prevenção de doenças [...], uma saúde pública ‘neo-higienista’, obcecada por um ideal de salubridade humana, não mais definida por referência a contaminações ‘externas’, mas por referência a uma desejada perfeição ou pureza física alcançável pelo manejo biológico66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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Nesse quadro [...], tanto para o debate acadêmico quanto para a disputa política, [...] a renovação da saúde pública deve [...] preservar aquilo que foi seu significante histórico, embora nem sempre explícito: a ideia da saúde como bem público [...] rejeitando claramente tanto o papel de biombo para políticas sanitárias minimalistas, quanto o de expressão institucional e normativa da obsessão com a saúde perfeita66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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[Esse] novo padrão de articulação entre o biológico e o social terá certamente de conceder uma primazia conceitual e metodológica à subjetividade que, entretanto, não poderá se restringir nem àquela de sujeitos engessados numa lógica coletiva estruturalmente definida, nem àquela de sujeitos que se constituem com a eliminação da objetividade66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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[...] Exige-se do campo da saúde pública que empreenda e supere a herança da relação dicotômica, conflituosa, entre objetividade e subjetividade, assumindo-se como um campo de interação, interseção de sujeitos em três territórios: [...] social, onde se confirme o compromisso com a equalização de oportunidades de saúde, com a universalidade e com a equidade; [...] cultural, [em que] se admita o caráter aproximado e construído das categorias relacionadas ao binômio saúde-enfermidade, sua dimensão simbólica e suas conexões com a experiência humana de estar no mundo; e um território propriamente natural, objetivo, material, [no qual] um sujeito cognoscente se compreenda distinto de seu objeto ‘natural’, guardando, porém, com ele, uma relação de intimidade e interação, de seu possível (re)criador66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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[Isso] incide diretamente sobre o próprio escopo e os objetivos da saúde pública: [...] pensar uma nova relação entre coletivo e indivíduo no campo da saúde [...] diz respeito [...] a prolongar a vida humana [...] ou igualmente melhorar sua qualidade? Diz respeito às coletividades, com suas regularidades e médias, ou visa aos indivíduos, com suas singularidades e diferenças66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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Por mais que o bom senso se apresse em optar por ambas, o quadro sanitário contemporâneo mostra que são cada vez mais frequentes as situações de conflito, a envolver escolhas e decisões excludentes, tanto no plano dos espaços públicos/coletivos (alocação de recursos, legislação, planificação social) quanto no plano das escolhas cotidianas individuais66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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Com a elevação dos custos ocorrendo num ritmo mais rápido que a extensão dos benefícios sanitários, os recursos tecnológicos tendem a estar disponíveis/acessíveis a um número proporcionalmente menor de pessoas, num quadro de aumento global da demanda66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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Pode-se dizer que, nessas escolhas, ocorre o encontro do debate sanitário com o debate ético: a tensão entre a sacralidade e a qualidade da vida66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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O tradicional Princípio da Sacralidade da Vida, norma absoluta com origens na moral cristã e, em parte, na ética médica hipocrática, tem presidido historicamente, e servido como arcabouço ideológico e ético, a uma medicina centrada no médico, voltada para cumprir ‘os processos teleológicos da ordem natural’, tendo por dever absoluto conservar a vida contra aquilo que é contrário a essa ordem66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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A diversidade e a complexidade das sociedades modernas têm tornado [esse] princípio obsoleto ou insuficiente66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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O desafio, portanto, é o de equacionar uma nova política [...] capaz de superar os modelos marcados por uma verdade técnica e por uma referência ética unicista [em que] aos indivíduos é reservado o papel de objetos ou meros coadjuvantes de um enredo ‘natural’ e a quem cabe apenas cumprir prescrições técnicas e éticas. No seu lugar, deve ser desenvolvida uma visão pluralista em que, preliminarmente, seja respeitada a diversidade de escolhas e vontades, e [na qual] as prescrições sociais decorram de diálogos e contratos intersubjetivos66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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Por uma nova política de saúde: desigualdades sociais e promoção da saúde

Assumir as desigualdades sociais como o principal obstáculo à saúde e qualidade de vida para todos (e este último como um imperativo ético e um requisito para uma economia estável) destaca a necessidade de uma ampla coalizão em favor de uma política mais equitativa, eficaz e eficiente de políticas públicas que devem envolver governo e sociedade77 Carvalho AI, Bodstein RC, Hartz Z, et al. Concepts and approaches in the evaluation of health promotion. Ciênc. Saúde Colet. 2004 [acesso em 2021 jul 5]; 9(3):521-529. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232004000300002&lng=pt&nrm=iso.
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[...] A partir, sobretudo, da década de 1960, em várias partes do mundo ocidental, [desenvolveu-se] um pensamento crítico [...] voltado para revalorizar as dimensões sociais e culturais dos determinantes do processo saúde-enfermidade, ultrapassando o foco exclusivo de combater a doença somente depois de instalada. [...] Embora diversificado em suas referências conceituais e na variedade de perfis sanitários e sociais nacionais, tais ideias tiveram sua expressão mais organizada no chamado movimento da promoção da saúde88 Carvalho AI, Buss PM. Determinantes sociais na saúde, na doença e na intervenção. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, et al. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 121-142..

Partindo do conceito positivo e ampliado de saúde, e tendo como foco o processo social de sua produção, a Promoção da Saúde tem se mostrado capaz de [...] mobilizar [...] a procura da ‘autonomia’ dos indivíduos e grupos (capacidade de viver a vida) e a procura da ‘equidade’ social (distribuição equitativa dessa capacidade entre indivíduos e grupos)77 Carvalho AI, Bodstein RC, Hartz Z, et al. Concepts and approaches in the evaluation of health promotion. Ciênc. Saúde Colet. 2004 [acesso em 2021 jul 5]; 9(3):521-529. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232004000300002&lng=pt&nrm=iso.
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Campo em construção e em constante desenvolvimento, [...] consolidou-se como ponto de convergência para [...] reflexões e práticas comprometidas com a superação da [...] biomedicina, crescentemente caudatária dos interesses do complexo médico industrial, e responsável77 Carvalho AI, Bodstein RC, Hartz Z, et al. Concepts and approaches in the evaluation of health promotion. Ciênc. Saúde Colet. 2004 [acesso em 2021 jul 5]; 9(3):521-529. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232004000300002&lng=pt&nrm=iso.
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[...] Uma abordagem crítica e ampliada da Promoção da Saúde aponta para a necessidade de discussão e aprimoramento de políticas públicas, redistribuição de poderes e estabelecimento de uma nova combinação de direitos e responsabilidades nas diversas esferas da vida social, afetando as relações profissionais/ cidadãos, coletivos/pessoas, governos/sociedade, esferas econômicas/sociais, setoriais/ extrassetoriais, entre outras77 Carvalho AI, Bodstein RC, Hartz Z, et al. Concepts and approaches in the evaluation of health promotion. Ciênc. Saúde Colet. 2004 [acesso em 2021 jul 5]; 9(3):521-529. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232004000300002&lng=pt&nrm=iso.
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Do ponto de vista da Promoção da Saúde, os determinantes socioeconômicos do processo saúde-doença constituem um referencial analítico imprescindível, não só para reflexão teórica, mas para o desenho de políticas públicas, programas e intervenções voltadas para a melhoria da qualidade de vida [...], transcende, assim, o setor saúde e impacta cada vez mais as políticas públicas em geral, dialogando com a diversidade de campos, organizações e sujeitos77 Carvalho AI, Bodstein RC, Hartz Z, et al. Concepts and approaches in the evaluation of health promotion. Ciênc. Saúde Colet. 2004 [acesso em 2021 jul 5]; 9(3):521-529. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232004000300002&lng=pt&nrm=iso.
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[Essa] intersetorialidade pela saúde nas políticas públicas, na verdade, supõe uma decisão suprassetorial, expressiva de um pacto pela saúde/qualidade de vida como decisão política, a ser operacionalizada nos planos institucional, programático e orçamentário99 Buss PM, Carvalho AI. Desenvolvimento da promoção da saúde no Brasil nos últimos vinte anos (1988-2008). Ciênc. Saúde Colet. 2009 [acesso em 2021 jul 5]; 14(6)2305-2316. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000600039&lng=pt&nrm=iso.
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No plano institucional, estabelecendo um locus no aparelho estatal, acima das agências setoriais (ministérios, secretarias etc.), explicitamente encarregado de produzir e conduzir as iniciativas transversais orientadas à produção de saúde e bem-estar, por meio do diálogo com os diversos segmentos da sociedade e do aparelho de estado, como propõe a Comissão Nacional de Determinantes Sociais99 Buss PM, Carvalho AI. Desenvolvimento da promoção da saúde no Brasil nos últimos vinte anos (1988-2008). Ciênc. Saúde Colet. 2009 [acesso em 2021 jul 5]; 14(6)2305-2316. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000600039&lng=pt&nrm=iso.
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No plano programático, cuidando para que a intersetorialidade não se esterilize nas intencionalidades retóricas e em frágeis acordos, e esteja encarnada em programas concretos dirigidos a populações concretas, com objetivos, gestão e orçamentos próprios, submetidas a procedimentos de avaliação que permitam dimensionar seus impactos sobre a saúde e a qualidade de vida99 Buss PM, Carvalho AI. Desenvolvimento da promoção da saúde no Brasil nos últimos vinte anos (1988-2008). Ciênc. Saúde Colet. 2009 [acesso em 2021 jul 5]; 14(6)2305-2316. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000600039&lng=pt&nrm=iso.
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No plano orçamentário, para sublinhar que não haverá programas intersetoriais efetivos sem alocação de recursos específicos; financiar essas iniciativas somando parcelas orçamentárias de diversos órgãos induz à competição intersetorial, e não à cooperação99 Buss PM, Carvalho AI. Desenvolvimento da promoção da saúde no Brasil nos últimos vinte anos (1988-2008). Ciênc. Saúde Colet. 2009 [acesso em 2021 jul 5]; 14(6)2305-2316. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000600039&lng=pt&nrm=iso.
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A Promoção da Saúde surge, assim, como oportunidade não só de formular uma agenda de ampliação do SUS, mas também de apontar uma ‘nova’ agenda, requalificando a política de saúde para o novo milênio, resgatando a bandeira da reforma sanitária em sua dimensão de ‘mudança social e combate às desigualdades sociais’, necessários à construção de saúde e vida com dignidade77 Carvalho AI, Bodstein RC, Hartz Z, et al. Concepts and approaches in the evaluation of health promotion. Ciênc. Saúde Colet. 2004 [acesso em 2021 jul 5]; 9(3):521-529. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232004000300002&lng=pt&nrm=iso.
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Futuros do SUS, da saúde e do Brasil: agenda 2030 e descriminalização da maconha

[...] Desenvolvido por meio de uma parceria do CEE-Fiocruz com pesquisadores do Departamento de Ciências Sociais, da Ensp, [...] o estudo ‘Percepção de especialistas brasileiros em saúde sobre os ODSs e a Agenda 2030’ [aponta que] é baixo o potencial do País para atingir qualquer um dos 17 ODS, em especial, a erradicação da pobreza (ODS 1), a redução das desigualdades (ODS 10) e a construção de uma cultura de paz e justiça (ODS 16)1010 Moreira MR, Kastrup É, Ribeiro JM, et al. O Brasil rumo a 2030? Percepções de especialistas brasileiros(as) em saúde sobre o potencial de o País cumprir os ODS Brazil heading to 2030. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 jul 5]; 43(esp7):22-35. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042019001200022&lng=pt&nrm=iso.
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Educação de qualidade e erradicação da pobreza, respectivamente ODS 4 e 1, são considerados como os mais importantes de serem cumpridos pelo Brasil e, também, aqueles que mais contribuirão para o País atingir o ODS 3 ‘saúde e bem-estar’1010 Moreira MR, Kastrup É, Ribeiro JM, et al. O Brasil rumo a 2030? Percepções de especialistas brasileiros(as) em saúde sobre o potencial de o País cumprir os ODS Brazil heading to 2030. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 jul 5]; 43(esp7):22-35. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042019001200022&lng=pt&nrm=iso.
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[A Pesquisa] apresenta um rol de recomendações distribuídos em dois eixos: o primeiro eixo está relacionado com o que se pode denominar, senso lato, de ‘políticas sociais’ – i) reduzir a pobreza; ii) aumentar a cobertura de saneamento básico; iii) reduzir as diferentes manifestações da violência; iv) investir na qualidade das vias públicas e rodovias; e v) ampliar o controle sobre atividades de extração e de indústrias poluidoras – enquanto o segundo eixo está mais diretamente vinculado à ‘política de saúde’: vi) alcançar a cobertura universal da atenção básica; vii) ampliar e qualificar o pré-natal na atenção básica; viii) ampliar a ‘saúde sexual e saúde reprodutiva’ na atenção básica; e ix) ampliar a prevenção ao abuso do álcool1010 Moreira MR, Kastrup É, Ribeiro JM, et al. O Brasil rumo a 2030? Percepções de especialistas brasileiros(as) em saúde sobre o potencial de o País cumprir os ODS Brazil heading to 2030. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 jul 5]; 43(esp7):22-35. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042019001200022&lng=pt&nrm=iso.
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Chama a atenção que, entre as recomendações que são percebidas como de ‘razoável’ ou ‘baixa’ importância, estão: [...] ‘comprometer e responsabilizar montadoras de veículos automotivas’ (recomendação para a Meta 3.6, que se refere à redução das mortes e ferimentos por acidentes em estradas); [...] ‘legalização do aborto’ (recomendação para o cumprimento da Meta 3.1, referente à redução da mortalidade materna); ‘legalizar a maconha’ e ‘descriminalizar outras drogas’ (recomendações para a Meta 3.5, referente à prevenção ao abuso de drogas), esta última a única percebida como de ‘baixa’ importância1010 Moreira MR, Kastrup É, Ribeiro JM, et al. O Brasil rumo a 2030? Percepções de especialistas brasileiros(as) em saúde sobre o potencial de o País cumprir os ODS Brazil heading to 2030. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 jul 5]; 43(esp7):22-35. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042019001200022&lng=pt&nrm=iso.
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[Isso indica que] As recentes alterações ocorridas no que constituiria um ‘senso comum sanitário’, com a incorporação de valores progressistas como a defesa ambiental, os direitos do consumidor, as questões de gênero, talvez possam ser explicadas não tanto por uma ‘conscientização tradicional’, mas por uma sutil combinação de democratização de infamação/ saberes e progresso moral66 Carvalho AI. Da Saúde Pública às Políticas Saudáveis — Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciênc. Saúde Colet. 1996 [acesso em 2021 jul 5]; 1(1):104-121. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81231996000100104&lng=pt&nrm=iso.
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[Outro] Estudo desenvolvido pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz, [em] 2014 – ‘A percepção dos brasileiros sobre temas relacionados à descriminalização da maconha’ – [aponta que] a agenda até aqui hegemônica [...], a da ‘guerra às drogas’ [...], pertencente ao universo político de coalizões de direita, que comumente acompanha proposições contra o aborto, a imigração e políticas de discriminação positiva [...] fracassou. Sob qualquer ponto de vista que leve em conta a paz, a justiça social, a saúde pública e até mesmo a eficiência do enfrentamento, seus executores não são capazes de apontar nenhum ganho significativo, que possa ser utilizado como argumento a seu favor1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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Se o objetivo é produzir um cenário social em que a repressão iniba o consumo, [esta agenda] está longe de lograr êxito, e convive diariamente com a dor e o sofrimento. No Brasil, os danos manifestam-se mais incisivamente na morbimortalidade das populações mais vulneráveis, notadamente jovens pobres, do sexo masculino, negros e mulatos, moradores de favelas e periferias; na superlotação dos sistemas carcerários e socioeducativos, que produzem condições de vida absolutamente degradantes; no reforço da repressão e da corrupção policial; na multiplicação desenfreada da demanda por serviços de saúde mental; e na organização do tráfico de drogas em uma dinâmica econômica que integra mercado legal, informal e ilegal, tornando-se uma atividade extremamente rendosa, que procura se infiltrar na política partidária e eleitoral1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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[Diante disso], Há necessidade de se desenvolverem diálogos diretos com a população, que admite estar mal-informada. [...] Isto tem relação direta com o fato de os serviços públicos de educação e saúde não representarem, nem de longe, o papel de fonte de informação1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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Ora, se o século XXI é o da ‘sociedade da informação’; se as tecnologias de informação e comunicação permitem o desenvolvimento de redes sociais que, em torno do mundo, têm produzido mobilizações sociais poderosas; [...] parece ser claro que, para que novas agendas democratizantes obtenham sucesso, elas devem ser capazes de valorizar e qualificar a participação e a deliberação social, por meio de uma política de comunicação1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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[A referida] pesquisa fornece pistas, também, para os segmentos que precisam ser focalizados por essa política de comunicação: mulheres, acima de 45 anos, com baixa escolaridade e renda. Perceba-se que, nesse grupo, estão as mães que sofrem com a violência que envolve o tráfico de drogas e atinge seus filhos1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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Aqui, ficam nítidas outras duas necessidades das agendas democratizantes: a de ouvir e de dar voz às mulheres em geral, já tão agredidas pelo machismo que domina a sociedade brasileira; e especialmente às negras, violentadas pelo racismo que teima em se manter no País. Ser mulher, mãe e negra é ter um acúmulo de características extremamente bonitas e importantes para o indivíduo e para a construção de uma sociedade mais justa. Uma agenda democratizante tem de incorporar estas pessoas como protagonistas1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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Conclusões: ainda é necessário lutar, agora pela democracia!

A crise política que o Brasil atravessa desde 2013 traz ameaças concretas à sua já incipiente democracia. O conflito aberto entre os poderes da república, [...] corolário do golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff, ilustra a radicalização da polarização política que se instaurou na sociedade1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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[...] Ações de intolerância, violência, preconceito, racismo e fascismo têm disputado o espaço público com aquelas que buscam promover a liberdade, a convivência entre os diferentes, o avanço dos direitos individuais e sociais, e a intensificação da democratização1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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Revertendo uma trajetória de crescimento, de investimentos em proteção social e de redução das desigualdades e da pobreza, o País adotou, desde 2016, uma agenda política e econômica voltada para um pesado ajuste financeiro, a redução do papel indutor do Estado no desenvolvimento e a desregulação das relações de trabalho. Várias ações políticas têm sido implementadas nesse sentido, sendo as mais representativas a Emenda Constitucional nº 95, que congelou gastos com saúde e educação pelos próximos 20 anos; a reforma trabalhista, que restringiu direitos historicamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros; e a proposta de reforma da previdência apresentada ao congresso nacional em março de 2019, em um contexto em que o Presidente da República considera que os direitos consagrados na Constituição Federal de 1988 são responsáveis pelo recrudescimento do desemprego, da pobreza e da desigualdade1010 Moreira MR, Kastrup É, Ribeiro JM, et al. O Brasil rumo a 2030? Percepções de especialistas brasileiros(as) em saúde sobre o potencial de o País cumprir os ODS Brazil heading to 2030. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 jul 5]; 43(esp7):22-35. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042019001200022&lng=pt&nrm=iso.
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No que concerne especificamente ao ‘setor saúde’ [...] no plano da formulação, [ainda] somos majoritários. Mas no plano da política, da implementação, não11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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[...] As dificuldades [...] passam por problemas históricos e avolumam-se por conta da crise do federalismo cooperativo que estrutura o SUS, atingindo estados e municípios que enfrentam dificuldades orçamentárias, restringem investimentos, deixam de pagar os salários de seus servidores e lidam com a falta de novos recursos federais como um dos principais obstáculos para a melhoria do SUS1010 Moreira MR, Kastrup É, Ribeiro JM, et al. O Brasil rumo a 2030? Percepções de especialistas brasileiros(as) em saúde sobre o potencial de o País cumprir os ODS Brazil heading to 2030. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 jul 5]; 43(esp7):22-35. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042019001200022&lng=pt&nrm=iso.
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E o SUS, até hoje, tem que disputar [...] o universo mental dos trabalhadores organizados que, desde o início, têm o plano de saúde como item de pauta [...] quer o acesso ao médico, não ao sistema de saúde. [...]. A grande vitória dos planos é a introdução disso nas pautas das lutas dos trabalhadores. [...] Isso é uma distorção que cresceu à sombra do dispositivo constitucional e de políticas de governo [...] que deixaram frouxas as relações com o setor privado11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Talvez isso explique [...] o ‘tratamento de reis’ que as operadoras de planos de saúde recebem desde sempre, com subsídio e a construção de uma base política com a adesão da classe média. [...]. Essa mistura de interesses privados e vontade da classe média de ter planos é um obstáculo muito poderoso. [...] Para quem tem algum dinheiro e paga o plano, há uma sensação [de] que o SUS é coisa de pobre. E isso é caudatário de um sentimento que acha que o pobre é pior11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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No plano privado, se a pessoa quiser fazer uma ressonância, ela faz. Como fazer isso no SUS universal? Só dá para fazer quando for realmente necessário! Então, o SUS tem que racionalizar recursos que os planos não racionalizam. Por ser muito caro, o financiamento some por dentro do SUS! E não é por corrupção11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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Defendo que o setor privado tenha seu lugar [...], mas não há propostas para uma articulação das ofertas privada e pública! Não há sinergia, um mínimo de articulação, entre as redes privadas e públicas! [...] Hoje, ninguém tem coragem de propor o fim dos subsídios aos planos, que são escandalosos. São agressivos! [...] Imagino que as coisas andariam melhor se o setor privado não contasse com tantos subsídios11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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[Diante disto], cabe àqueles que se alinham à esquerda, em suas diferentes maneiras e concepções, construírem novas agendas democráticas capazes, por um lado, de impedir o desmonte das políticas sociais e de proteção construídas no País desde 2003, e, por outro, avançar nas lutas identitárias1111 Moreira MR, Carvalho AI, Ribeiro JM. Agendas democráticas para o século XXI: percepções dos(as) brasileiros(as) sobre descriminalização e legalização da maconha. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):163-175. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042016s14.
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A democracia exige a participação, com consciência ou sem consciência, por meio do voto. E o ato do voto é rodeado de simbolismos, é uma decisão sofisticada do eleitor. Isso faz com que haja, na democracia, uma refração aos interesses escusos11 Moreira MR, Ribeiro, JM, Carvalho AI. Entrevista com Antônio Ivo de Carvalho. Saúde debate. 2016 [acesso em 2021 jul 5]; 40(esp):227-234. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000500227&lng=pt&nrm=iso.
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  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2021
  • Aceito
    16 Maio 2022
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