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Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação: construindo saberes e práticas no diálogo cotidiano e afetivo com o território

RESUMO

O artigo objetivou discutir os aprendizados com as Comunidades Ampliadas de Pesquisa-Ação (CAP) em favelas do Rio de Janeiro, como contribuição às discussões conceituais e metodológicas no campo da saúde coletiva, na perspectiva da Promoção Emancipatória da Saúde e da Educação Popular. Com as CAP, como foi sintetizada esta metodologia, buscou-se responder a um dos principais desafios de pesquisas qualitativas em favelas: uma construção metodológica que possibilite a compreensão da forma por meio da qual os moradores desses territórios experimentam e respondem às situações de saúde. O território, como categoria integrativa de análise para compreender os processos de determinação social da saúde, impõe à CAP se configurar como uma rede de diálogos interdisciplinares e entre diferentes agentes sociais. A análise da base material documental produzida no período 2003-2020, utilizando a sistematização de experiência como metodologia de pesquisa, resultou na identificação de três eixos que estruturam o método CAP, metodologia assim denominada: 1) o cotidiano como engrenagem da dinâmica da CAP; 2) o território e os agentes sociais do diálogo; e 3) as ferramentas artesanais de co-laboração com o território. A partir desses eixos, conclui-se ser o método CAP uma rede de produção de conhecimentos e interlocução entre pessoas-lugares-territórios.

PALAVRAS-CHAVE
Promoção da saúde; Educação popular; Produção compartilhada de conhecimentos; Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação; Favelas.

ABSTRACT

The article aims to discuss the lessons learned from the Extended Action-Research Community (CAP) in favelas in Rio de Janeiro, as a contribution to conceptual and methodological discussions in the field of Public Health, from the perspective of Emancipatory Health Promotion and Popular Education. With the CAPs, we seek to respond to one of the main challenges of qualitative research in favelas: a methodological construction that makes it possible to understand the way the residents of these territories experience and respond to health situations. The territory, as an integrative category of analysis to understand the processes of social determination of health, requires CAP to configure itself with a network of interdisciplinary dialogues and between different social agents. The analysis of the documentary material base produced in the period 2003-2020, using the systematization of experience as a research methodology, resulted in the identification of three axes that structure the CAP method: 1) everyday life as the dynamics gear of CAP; 2) territory and the social agents of dialogue; and 3) artisanal tools to collaborate with the territory. Based on these axes, we conclude that the CAP method is a network for knowledge production and dialogue between people-places-territories.

KEYWORDS
Health promotion; Popular education; Shared production of knowledge; Extended ActionResearch Community; Slum.

Introdução

Um dos maiores desafios de pesquisas qualitativas desenvolvidas no campo da saúde pública em territórios de favelas e periferias urbanas reside na construção metodológica que, para além da incorporação da dialogicidade freiriana, possibilite a compreensão da forma por meio da qual moradores dessas localidades experimentam e respondem a situações de saúde, produzidas por processos contextualizados de determinação da saúde.

O Método da Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação (CAP), tema de pesquisa de doutorado desenvolvida de 2018 a 2020, é um dos caminhos que vem sendo experimentado de forma a responder a esse desafio, sendo tributário de experiências diferenciadas, desenvolvidas em diversos campos de conhecimento. Em reflexão anterior, destacou-se como a CAP dialoga com proposições do Movimento Operário Italiano, bem como autores do campo da saúde do trabalhador, que propõem as comunidades ampliadas de pesquisa a partir da experiência francesa da ergologia. Outrossim, apontou-se a origem da CAP a partir da ideia de comunidade ampliada de pares, como estratégia de garantia da qualidade na produção de conhecimentos, como base epistemológica da ciência pós-normal. Na mesma discussão, apresentaram-se os desafios da construção desse método, em territórios como os de favelas do Rio de Janeiro, onde se superpõem múltiplas violências, e são evidentes alguns limites à expressão e à participação social e política da população11 Pivetta F, Porto MF, Cunha MB. Comunidades Ampliadas de Pesquisa-Ação do Laboratório Territorial de Manguinhos: um caminho de interação com o território. In: Oddone I, Marri G, Briante G, et al., organizadores. Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 199-215..

Ressalta-se que o desafio da construção compartilhada de conhecimentos implica necessariamente o desafio da democracia e da ética, e, nesse sentido, urge que as reflexões sobre os processos de determinação social da saúde conectem as dimensões sanitárias, ambientais, políticas e culturais relacionadas com as desigualdades sociais, os déficits de democracia e as assimetrias de poder que marcam, em particular, os territórios de favelas22 Pivetta F, Cunha MB, Porto MFS, et al. Promoção da Saúde e Conhecimentos Emancipatórios: Aprendizados com Pesquisa-Ação nos Territórios de Favelas. In: Figueiredo GLA, Martins CHG, Akerman M. “Vulnerabilidades & Saúde: Grupos em Cena por Visibilidade no Espaço Urbano”. São Paulo: Hucitec Editora Ltda.; 2018. p. 383-403.. Para enfrentar tais desafios, nos aproximamos ainda mais da perspectiva freiriana. Como afirmado na mesma reflexão referida, encontramos nos conceitos de cultura, dialogicidade e inédito viável de Paulo Freire as bases político-pedagógicas que dão sentido à CAP do Laboratório Territorial de Manguinhos33 Pivetta F. Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021.: a Comunidade como movimento de promoção de autonomia e libertação individual e coletiva, enquanto espaço de produção de conhecimentos sobre o território e de formação para a emancipação de todos, moradores e pesquisadores11 Pivetta F, Porto MF, Cunha MB. Comunidades Ampliadas de Pesquisa-Ação do Laboratório Territorial de Manguinhos: um caminho de interação com o território. In: Oddone I, Marri G, Briante G, et al., organizadores. Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 199-215..

Neste texto, explicita-se como vem sendo enfrentado o desafio da construção do conhecimento, por meio da CAP implementada em territórios de favelas, abordando, em particular, a dimensão do cotidiano. Guiou-se por uma das perguntas de pesquisa: quais estratégias, dinâmicas, atividades e produções desenvolvidas pela CAP constituem os movimentos dialógicos que particularizam a metodologia?

Neste artigo, trazem-se alguns resultados de uma pesquisa de doutorado que foi desenvolvida no período 2018-2020, integrada a um projeto de pesquisa e inovação (CEP/Ensp sob o CAAE Nº 97805218.5.0000.5240). A experimentação da CAP em diferentes contextos, trabalho de campo do referido projeto, juntamente com o acervo documental - relatórios técnicos, diários de campo, relatórios de oficinas e de seminários e publicações acadêmicas -, resultante de experiência com as atividades de pesquisa e de cooperação desenvolvidas na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, desde 2003, formam a base de dados deste trabalho33 Pivetta F. Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021..

Na busca do melhor caminho que responda à particularidade da pesquisa, voltada para uma reflexão crítica da CAP, recorreu-se à metodologia da sistematização de experiência consolidada por Oscar Jara44 Jara OH. La sistematización de experiencias, práctica y teoría para otros mundos posibles. Bogotá: Centro Internacional de Educación y Desarrollo Humano - CINDE; 2018. no campo da Educação Popular, cujo princípio afirma a própria experiência como o ponto de partida para a produção de conhecimentos. Jara busca reforçar a ideia de sistematização como uma interpretação crítica, que se origina de um complexo esforço de localização, descrição, classificação, análise e reflexão do que se vive na experiência. Tendo em vista que se construiu, com experiência particular, um processo inédito e irrepetível, deve-se aproveitá-la, precisamente por sua originalidade, como fonte de aprendizado, e dela extrair aprendizados e compartilhá-los. Além disso,

Sistematizar experiências, em definitivo, é um instrumento privilegiado para que possamos realizar todo ele como um desafio para criação de novos acontecimentos inéditos, porém carregados de sentido44 Jara OH. La sistematización de experiencias, práctica y teoría para otros mundos posibles. Bogotá: Centro Internacional de Educación y Desarrollo Humano - CINDE; 2018.(57).

Os resultados da análise, discutidos neste artigo, refletem, portanto, os aprendizados expressos na forma dos três eixos que estruturam o Método CAP: 1) o cotidiano como engrenagem da dinâmica da CAP; 2) o território e os agentes sociais do diálogo; e 3) as ferramentas artesanais de co-laboração com o território. Tais eixos são as dimensões fundamentais da operacionalização da CAP como um dispositivo metodológico de produção compartilhada de conhecimento em favelas e periferias urbanas, capaz de incorporar em sua dinâmica de pesquisa os problemas, as situações-limite e os inéditos viáveis experimentados por moradores, bem como pela própria equipe de investigação, em diálogo com eles. Ao mesmo tempo, de forma a responder aos desafios do trabalho de campo, amplia seu leque de interlocuções em um caminho artesanal, recorrendo à expressão de Mills55 Mills CW. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2009., construído no diálogo entre diferentes áreas do conhecimento em que se destacam, especialmente: as contribuições da filosofia, que vem refletindo sobre a vida cotidiana em Benjamin66 Benjamin W. Sobre o programa da filosofia por vir. Rio de Janeiro: 7 Letras; 2019. e Heller77 Heller A. O cotidiano e a história. 11. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016.; da antropologia, que, de forma geral, debruça-se sobre a observação da vida em tais territórios88 Das V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao cotidiano. São Paulo: Editora UNIFESP; 2020., recorrendo ao cotidiano como escala de análise; dos estudos sociológicos voltados para a sociabilidade da vida em comum99 Martins JS. Uma sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto; 2014.

10 Bourdieu P. coordenador. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes; 2008.
-1111 Santos BS. A gramática do tempo. Para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez; 2006.
; da geografia crítica, presente em estudos sobre o cotidiano e a multiterritorialidade1212 Santos M. Por Uma Geografia Cidadã: por uma epistemologia da existência. Boletim Gaúcho de Geog. 1996 [acesso em 2018 maio 21]: (27):7-14. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38613/26350.
http://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38...
,1313 Haesbaert R. O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2007.
; e da educação popular, que contribui para pensar o processo dialógico forjado no cotidiano.

Apresentam-se e discutem-se aqui os três eixos referidos, sob a forma de uma reflexão cujo objetivo é compartilhar o modo de operacionalização da CAP. Dessa forma, afirma-se o princípio do próprio método da sistematização de experiência, trazendo, aqui, os conhecimentos e os aprendizados resultantes da sistematização da experiência.

Inicia-se a exposição desses eixos, que são princípios do método CAP, argumentando como o cotidiano configura a engrenagem principal da CAP, para, em seguida, analisar a CAP enquanto uma rede de agentes e relações que se constitui no território. Por fim, apresentar as principais ferramentas de trabalho da CAP, que lhe conferem movimento e possibilitam a dialogicidade, mesmo em situações-limite de vulnerabilidade.

Dessa forma, procurou-se contribuir para as discussões metodológicas no campo da saúde coletiva, na perspectiva da Promoção Emancipatória da Saúde (PES)1414 Porto MFS, Cunha MB, Pivetta F, et al. Comunidades Ampliadas de Pesquisa Ação como Dispositivos para uma Promoção Emancipatória da Saúde: bases conceituais e metodológicas. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1474-1756.. Tal perspectiva é referenciada nas abordagens da determinação social da saúde e da educação popular, cujas bases conceituais foram enunciadas em texto anterior1414 Porto MFS, Cunha MB, Pivetta F, et al. Comunidades Ampliadas de Pesquisa Ação como Dispositivos para uma Promoção Emancipatória da Saúde: bases conceituais e metodológicas. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1474-1756.; bem como com as reflexões sobre a pesquisa participante no contexto urbano de favelas e de um convívio cotidiano com territórios em intensos movimentos e dinamicidade. Compreende-se também a CAP como uma contribuição interdisciplinar para a ressignificação da participação, enquanto um dos pilares centrais da promoção da saúde, inscrita na Política Nacional de Promoção da Saúde (PNaPS)1515 Cunha MB, Pivetta F, Porto MFS, et al. Vigilância popular em saúde: contribuições para repensar a participação no SUS. In: Botelho BO, Vasconcelos EM, Carneiro DGB, et al., organizadores. Educação popular no Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 79-101..

O cotidiano como engrenagem da dinâmica da Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação

O cotidiano como engrenagem do Método CAP se expressa em duas dimensões: no trabalho do pesquisador, em que o cotidiano se constitui como espaço-tempo do diálogo com o território; e o cotidiano do território, no qual se inscrevem os processos invisibilizados e silenciados, que muitas vezes apontam para eventos críticos88 Das V. Vida e palavras: a violência e sua descida ao cotidiano. São Paulo: Editora UNIFESP; 2020..

Lindón1616 Lindón AV. Las huellas de Lefebvre sobre la vida cotidiana. Rev Veredas. 2004; 5(8):39-60.(41), ao recuperar a ideia de cotidiano de Lefebvre “como a trama das 24 horas de um dia qualquer e de um sujeito qualquer”, leva a pensar o cotidiano não apenas como o lugar da ação e o espaço da reprodução social, mas também como um lugar de transformação, o centro do acontecer histórico77 Heller A. O cotidiano e a história. 11. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2016.. Nesse sentido, o cotidiano tomado como espaço da micropolítica, um espaço-tempo de interação com o território, pode favorecer a elaboração de uma visão compreensiva dos processos de determinação da saúde. Ele articula os “fragmentos da história do mundo e da sociedade”, enfim, as dimensões estruturais que produzem e se reproduzem no território, com o agenciamento dos agentes sociais locais, possibilitando estabelecer as relações entre as dimensões micro-macro e a “emergência dos componentes da vida cotidiana” que produzem a saúde1212 Santos M. Por Uma Geografia Cidadã: por uma epistemologia da existência. Boletim Gaúcho de Geog. 1996 [acesso em 2018 maio 21]: (27):7-14. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38613/26350.
http://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38...
,1717 Porto MFS, Rocha DF, Finamore R. Saúde coletiva, território e conflitos ambientais: bases para um enfoque socioambiental crítico. Ciênc. Saúde Colet. 2014; 19(10):4071-4080
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Apontando na mesma direção, Martins afirma que encontramos a produção social inovadora nas ações cotidianas. Assim, diz o autor, estar atentos para reencontrar a historicidade da ação e da práxis nas invisibilidades da vida cotidiana, e para compreender os processos cotidianos e suas relações com estruturas sociais profundas e datadas, duradouras e ocultas. Um cotidiano que é fragmentário, fugaz, episódico, espaço do instantâneo, do evento99 Martins JS. Uma sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto; 2014.. Tais dimensões que emergem das narrativas dos moradores revelam invisibilidades nos processos de produção da saúde e da doença, e são, portanto, um espaço estratégico para o que Santos denomina de uma sociologia das ausências1111 Santos BS. A gramática do tempo. Para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez; 2006..

O cotidiano assim apreendido permite compreender a pluralidade dos agentes históricos e sociais e a multiplicidade dos espaços em que se dá a ação política. Possibilita também pensar a experiência e os fatos culturais, políticos e ideológicos, aí identificados como instituintes do movimento social e do saber popular.

No diálogo com o território, o cotidiano se apresenta como o espaço instituinte no qual afloram as possibilidades e as impossibilidades de produção da saúde e da vida. Um cotidiano invisível, complexo e de múltiplas vulnerabilizações e potências, que emergem nas práticas e narrativas dos moradores, nos diferentes espaços de diálogo que são compartilhados99 Martins JS. Uma sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto; 2014..

Para a pesquisa nesses territórios - cuja dinâmica é comumente definida apenas pelos pesquisadores, e ditada pelo tempo acadêmico e pela demanda dos seus projetos -, incorporar as questões trazidas pelos seus moradores e organizações que nele atuam aponta para novos problemas de pesquisas. O artesanato, então, significa incorporar novos temas e inventar técnicas de pesquisa e abordagens ajustadas à natureza cotidiana, mutável, e mesmo perigosa, desses novos temas55 Mills CW. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2009..

A centralidade do cotidiano no processo de operacionalização de uma CAP ocorre em função de dois aspectos. O primeiro tem a ver com o fato de que o território é a unidade de análise. O cotidiano é a lente privilegiada para observar as experiências, os posicionamentos e as visões dos agentes sociais com os quais se relacionam, sendo os moradores sujeitos centrais desta interlocução. Isso significa que se enfocam situações, desafios e narrativas que remetem à vida cotidiana para desencadear as problematizações. O outro aspecto relaciona-se com o trabalho propriamente dito da CAP, considerando estratégias, dinâmicas, atividades e sistematizações/sínteses que se conceberam para a produção de conhecimentos sobre uma determinada situação-problema proposta pelo território. Sendo assim, para a CAP, o cotidiano representa o espaço-tempo de aproximação com o universo temático inscrito no território e, ao mesmo tempo, o espaço da produção de conhecimentos em uma perspectiva dialógica, em que se busca o exercício da igualdade e da alteridade como princípios da prática emancipatória33 Pivetta F. Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021.,1212 Santos M. Por Uma Geografia Cidadã: por uma epistemologia da existência. Boletim Gaúcho de Geog. 1996 [acesso em 2018 maio 21]: (27):7-14. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38613/26350.
http://seer.ufrgs.br/bgg/article/view/38...
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O cotidiano como engrenagem das dinâmicas da CAP significa que o processo de trabalho da pesquisa se deixa impregnar pela realidade do território, incorporando seus problemas, os eventos que impactam a vida dos moradores e, também, seus desafios. Além disso, aponta para a necessidade da prontidão metodológica como ensina Martins99 Martins JS. Uma sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto; 2014..

O território e seus agentes sociais: constituindo uma Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação

Diante do desafio de elaborar uma visão compreensiva de uma situação-problema, contemplar como essa situação se distribui nos diferentes espaços e é experimentada pelos diversos agentes sociais do território é tarefa fundamental para a CAP.

Isso implica observar como as dimensões estruturais, sociais, culturais e simbólicas se expressam em termos da territorialização do problema, configurando uma multiplicidade de territórios ou de dimensões em um mesmo território. Trata-se, em outras palavras, de observar a relacionalidade e a espacialidade dos problemas em que os diferentes agentes ou grupos sociais experimentam em razão das suas condições socioeconômicas e culturais, da sua inserção e das relações com o território1313 Haesbaert R. O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2007..

Por isso, a interlocução e a mediação têm lugar em diferentes momentos e envolvem uma diversidade de agentes sociais, na relação cotidiana com o território. O pressuposto é incorporar ao processo de uma CAP os agentes sociais do território que encerram algumas características centrais: serem moradores antigos, trabalharem em projetos sociais, desenvolverem trabalhos sociais ou atuarem em coletivos no território. Os primeiros diferenciam-se pelo fato de acumularem um conhecimento sobre a história local e as mudanças no território, especialmente no que se refere às políticas públicas, bem como sobre as diferentes causas que dão origem ao problema. Já os que atuam em trabalhos sociais ou em coletivos sobressaem-se pelo conhecimento produzido a partir de seu trabalho ou ação local, estabelecendo interlocução regular com agentes supralocais, como profissionais de saúde, educação e assistência social, fóruns sociais da cidade, representantes de conselhos de direitos humanos e grupos acadêmicos1818 Cunha MB, Pivetta F, Domingues MT, et al. Lugar de fronteira e de conhecimento nas pesquisas em educação popular: uma reflexão sobre os agentes sociais em movimento. In: Marteleto RM, David HMSL. Cultura, conhecimento e mediação de saberes em saúde: diálogos da informação e da educação popular. Rio de Janeiro: IBICT; 2021. p. 95-113.. Também são eles que mantêm contato mais estreito com os moradores do território, em sua experiência cotidiana; que identificam as especificidades dos problemas em termos de sua territorialização, isto é, no nível em que o problema se configura - individual, familiar ou por localidade de moradia -, bem como suas causas potenciais. A escuta cotidiana do território em seu todo possibilita a definição de uma situação-problema em um dado contexto e o início do processo de uma CAP, mediante a incorporação gradativa de moradores.

O grupo que está à frente dos movimentos da CAP, nomeado Núcleo CAP, é constituído pelas pessoas que, em diálogo cotidiano com o território, respondem pelas discussões iniciais, pelo planejamento, pela organização e pela avaliação de todas as ações. Esse Núcleo é composto não só por pesquisadores e moradores do território, mas também por pessoas de outros lugares que, por suas experiências, participam, por exemplo, como coordenadores de trabalho de campo. Inclui igualmente profissionais de saúde e educação atuantes nos territórios, que se incorporam ao projeto por serem referências para a temática sobre a qual está sendo implementada uma pesquisa ou uma intervenção.

De importância fundamental para o desenvolvimento do processo da CAP, a constituição do Núcleo CAP no território envolve um processo dialógico intenso com os moradores, identificados com o que Bourdieu denomina “analistas práticos”1010 Bourdieu P. coordenador. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes; 2008.(591), uma espécie de especialistas do lugar, e com profissionais atuantes no território. Esse diálogo se dá em torno não apenas da temática para produção de conhecimentos, mas também das possibilidades de participação no Núcleo em termos de experiências e conhecimentos sobre a situação-problema e das disponibilidades pessoais, entre outras, respeitando sempre o princípio da autonomia.

Por tudo isso, as diferentes inserções no território e experiências desses analistas práticos são centrais para a sistematização preliminar da situação-problema. Elas permitem um mapeamento prévio do problema e a identificação das suas causas, desde as estruturais até as diferentes formas em que ele se manifesta. Isso resulta em uma espécie de espacialização, que possibilita identificar os modos de expressão do problema no território e os agentes sociais direta ou indiretamente implicados, que, com seus diferentes pontos de vista, poderão contribuir para as reflexões e sistematização na produção de conhecimentos sobre a temática nas discussões de uma CAP.

O Núcleo vai definindo, processualmente, estratégias e dinâmicas de aproximações e diálogos, de acordo com as possibilidades dos contextos do território e pessoais, lançando mão de conversas individuais, reuniões, presenciais ou por WhatsApp, telefone etc. A partir daí, uma rede de interlocução é criada, agregando vários agentes sociais ao processo na mobilização para os encontros e as oficinas de discussão coletiva da temática. Esse esforço envolve escutas, negociações e mudanças, assentadas na identificação de questões que aproximam ou causam divergências, inclusive recuos em decisões previamente tomadas.

Embora a CAP tenha esse núcleo central, o processo envolve muitos outros participantes. Uma oficina organizada pela CAP, por exemplo, para discutir a situação-problema selecionada ou os resultados dessa discussão, incluirá diversas pessoas que não fazem parte do Núcleo. Ademais, é comum também que participantes de alguma atividade da CAP, como a própria oficina, manifestem interesse pelo trabalho de pesquisa-ação e venham a integrar a pesquisa em seu conjunto.

Em resumo, uma CAP se constitui no território em torno de uma rede de relações cotidianas com moradores e trabalhadores, que acumulam um conhecimento resultante de experiência vivida sobre o lugar. O desenho metodológico da CAP não se dá por amostra quantitativa, não tendo como foco atingir um determinado número de pessoas, mas sim aquelas que têm conhecimentos sobre o lugar, devido à sua posição decorrente do tempo de moradia e circulação em diferentes espaços no território e na cidade, e aquelas que elaboram uma visão da situação a partir de sua experiência, tendo vivenciado o problema em seu limite. É importante também evitar convites de organizações e pessoas que estão, por sua natureza estrutural ou conjuntural, mais interessadas em disputar posições do que escutar e dialogar com o coletivo, em um processo de inter e autoaprendizados. Nesse sentido, a produção dos conhecimentos, e sua ampliação, não ocorre pela maximização de visões, mas sim pela produção de uma visão compreensiva, considerando os diferentes pontos de vista daqueles que participam de um processo de produção de conhecimentos sobre determinada temática33 Pivetta F. Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021..

Visitas de campo, oficinas e os meios e mídias de comunicação: as ferramentas artesanais de co-laboração com o território

Na perspectiva da metodologia CAP, as ferramentas são formas de trabalho que vão sendo engendradas a fim de possibilitar a comunicação dialógica com os agentes sociais no fazer cotidiano da produção compartilhada de conhecimentos.

Na verdade, muitas das ferramentas já adotadas em pesquisas qualitativas são reinventadas. São ressignificadas, na medida em que se discutem os seus sentidos para a ampliação do diálogo e se aprende com o morador, por exemplo, o lado informal do processo de trabalho, por meio de dinâmicas que favoreçam a aproximação, a comunicação, a produção do conhecimento, a partir do que Bourdieu chama construção do espaço de pontos de vista1010 Bourdieu P. coordenador. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes; 2008.. Apresentam-se aqui as três principais ferramentas da CAP: as visitas de campo, as oficinas e os meios e mídias de comunicação.

A importância de percorrer o território nas visitas de campo, no processo de uma CAP, reside na potencialidade do diálogo direto com as pessoas encontradas nas ruas e vielas e mesmo nas suas casas, sejam elas simples moradores, lideranças ou aqueles que trabalham na localidade. Isso permite ver de perto o problema e suas causas. O deslocamento dos pesquisadores, em especial em direção ao lugar onde as pessoas estão, para conhecer e dialogar nos seus lugares de moradia, abre a possibilidade de estabelecer elos de confiança e entrevistar em uma situação observacional, na qual se tem acesso a depoimentos mais descontraídos, e às imagens da localidade. Significa, ainda, reafirmar que se está junto, andando ao lado, conhecendo alguns dos riscos e desafios que os moradores vivem em seu cotidiano. Por exemplo, em janeiro de 2014, ao percorrer uma das localidades em Manguinhos, no âmbito de um projeto de avaliação participativa do PAC Favelas, na conversa, um morador faz um desabafo: “ninguém conversa com os pequenos, vocês foram os únicos”. Esse é o sentido das visitas de campo: conversar com os ‘pequenos’, o morador comum - sujeito da interlocução da CAP, cuja voz é silenciada ou invisibilizada.

Em situação semelhante, foi possível ouvir o relato de uma moradora em outra localidade. Envolvida em tantos problemas, entre os quais o esgoto a céu aberto que a levou a comprar água mineral para beber, pois não tinha coragem de tomar a água da rede de abastecimento, acabou perdendo o emprego. Nessa conversa, foi possível testemunhar a invisibilidade de muitos processos de produção de doenças em Manguinhos - o estresse e a hipertensão causados pelas condições de vida relatadas pela moradora. Só se pode ter acesso a situações invisibilizadas pelos sistemas de dados oficiais porque se estava ali, no lugar do acontecimento; e só se pode dimensioná-las quando se dialoga diretamente com as pessoas que estão expostas a esses problemas em suas vidas cotidianas.

Outra ferramenta fundamental é a oficina. Ela se constitui na estratégia principal para reunir, confrontar e estabelecer diálogos entre distintos saberes e perspectivas. A oficina de discussão é a mais importante atividade de uma CAP, pois é nela que há o debate entre as diferentes visões e experiências sobre a temática em questão no território. É até possível desenvolver uma CAP e estudar um problema sem percorrer o território, mas não é viável a elaboração compreensiva do mesmo sem o debate entre os diferentes pontos de vista daqueles que estão envolvidos e que tem experiência com esse problema.

O diálogo com a educação popular tem permitido conceber tais oficinas não apenas como uma ferramenta capaz de produzir conhecimentos e respostas a problemas em saúde que envolvem múltiplos saberes e experiências, mas também como um espaço formativo de todos os participantes, resgatando o princípio freiriano de promoção da autonomia. A oficina é um espaço coletivo privilegiado de diálogo, que promove e favorece a reflexão crítica e é, portanto, espaço potente de troca e recuperação de experiências, bem como de reapropriação dos conhecimentos por parte dos moradores. É, também, no sentido inverso, espaço de humanização e ampliação de conhecimentos por parte dos pesquisadores, pois, nela, as condições de vida e situações de saúde são confrontadas e reelaboradas coletivamente, como resultado do investigar, do morar e do viver em um dado território11 Pivetta F, Porto MF, Cunha MB. Comunidades Ampliadas de Pesquisa-Ação do Laboratório Territorial de Manguinhos: um caminho de interação com o território. In: Oddone I, Marri G, Briante G, et al., organizadores. Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 199-215..

São três os componentes que fazem com que uma oficina cumpra seu papel de principal atividade de uma CAP: os participantes, o acolhimento e a dinâmica e mediação. Com relação aos participantes, já se discutiu anteriormente, mas cabe destacar quão relevante é a participação de vozes dissonantes com relação ao tema e o cuidado em não haver qualquer forma de hierarquização entre os participantes.

O acolhimento é fundamental e começa na forma do convite, formulado pessoalmente pela equipe do Núcleo da CAP, principalmente, por suas relações de proximidade com os moradores. No convite, há a preocupação de deixar claros os objetivos e interesses, bem como o local escolhido, para que todos se sintam à vontade, o qual é organizado de forma a dar leveza ao espaço e segurança para um diálogo aberto. O acolhimento é reforçado pelo lanche, servido no início da oficina, e tem uma função primordial, por ser o momento em que as pessoas se encontram, se conhecem e se reconhecem e estabelecem os primeiros diálogos. É um tempo importante para a descontração e a sociabilidade da oficina, particularmente entre aqueles que ainda não se conhecem ou são pessoas tímidas ou sem experiência de falar em público.

Por fim, para dinamizar a oficina e mediar o debate, é importante alguém com experiência em discussão coletiva e sensibilidade social, e que empregue uma linguagem que alcance todos. Paralelamente, deve-se recorrer ao uso de materiais, como fotos, textos ou filmes, de acordo com o problema a ser discutido, que promovam e facilitem o diálogo. O tempo de duração e o número de participantes de uma oficina precisam ser considerados, pois deve ser realizada em um intervalo de tempo que permita a participação de todos nas discussões, mas não provoque o cansaço mental e emocional dos participantes.

Para exemplificar, apresenta-se resumidamente a oficina relacionada com o tema do sofrimento social em Manguinhos, em 2019. A natureza da temática - mobilizadora de experiências de dor, com estreita relação entre experiência coletiva e pessoal - exigia um cuidado ético e metodológico particular. Por isso, foi convidada para dinamizar a oficina uma moradora da região, com experiência em educação popular e em pesquisa no próprio território. O Núcleo CAP, já com a participação da dinamizadora, discutiu e organizou uma dinâmica para o encontro, guiando-se por algumas interrogações metodológicas: como problematizar uma situação que atinge todos e todas, mas que é experimentada de forma pessoal, com efeitos diferenciados nas vidas das pessoas? Como criar um espaço de acolhimento que possibilitasse não somente os relatos dos participantes, mas também a discussão da temática a partir de sua dimensão coletiva? Como fazer da oficina um espaço que venha a contribuir para a elaboração da experiência de dor, produzindo conhecimentos e autoconhecimentos e tornando-a uma forma de ação capaz de favorecer cada um e todos?

Foram então definidas algumas estratégias: problematizar o sofrimento social em sua dinâmica, considerando as transformações no território e no cotidiano dos moradores; abordar as dimensões subjetivas e estruturais geradoras de sofrimento social, evitando situações ou gatilhos que remetessem à memória de dores ou perdas pessoais; incentivar os testemunhos; e, considerando a familiaridade das pessoas com o telefone celular, usar um aparelho como microfone e como ferramenta de registro dos relatos.

A discussão sobre o uso da ferramenta de registro audiovisual ganhou especial destaque. As experiências anteriores com oficinas indicavam que o uso do microfone direcional (de mão) possibilitava qualidade técnica ao registro das falas em áudio e contribuía para o diálogo e a organização dos relatos, pois quem desejava falar esperava o outro terminar a sua intervenção. Não menos importante é o fato de que os participantes gostavam de usar o microfone de mão, no qual colocamos uma etiqueta com a palavra testemunho, expressando uma espécie de reivindicação da fala.

Os meios e as mídias de circulação dos conhecimentos são as outras ferramentas que têm centralidade no processo comunicativo da CAP, como forma de contribuir para ampliar a circulação dos discursos das minorias, dos grupos sociais não hegemônicos, daqueles que não detêm os meios de produção e de circulação de suas visões de mundo11 Pivetta F, Porto MF, Cunha MB. Comunidades Ampliadas de Pesquisa-Ação do Laboratório Territorial de Manguinhos: um caminho de interação com o território. In: Oddone I, Marri G, Briante G, et al., organizadores. Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec; 2020. p. 199-215.,1919 Sousa FM, Cunha MB, Pivetta F. Aprendizados com Grupos de Favelas: o uso de ferramentas virtuais em uma pesquisa participativa. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación. 2020; 19(35):156-165..

Decorre daí a necessidade de que a produção de conhecimentos e de informações seja contextualizada às realidades locais; e sua circulação, ampliada como forma de diminuir as assimetrias e desigualdades de poder entre as narrativas para a construção de um projeto democrático de cidade. Para tal, a fim de possibilitar maior dinamicidade à circulação, sistematizamos as informações e os conhecimentos operando com materiais de naturezas distintas - os produtos finais de um processo CAP e os materiais intermediários.

Os produtos finais são os materiais que resultam dos processos de reflexão, sistematização e sínteses da temática da pesquisa. Eles abrangem os documentários, vídeos-relatórios, relatórios de pesquisa e técnicos, textos acadêmicos etc. Os materiais intermediários, por sua vez, são produzidos para a mediação das atividades durante a pesquisa. São organizados para compartilhar conhecimentos prévios da temática, alimentar e facilitar o diálogo no decorrer das atividades e como estratégia para conferir maior dinamicidade às trocas de informações e circulação dos conhecimentos durante o processo de uma CAP. São sistematizados sob a forma de filmetes (vídeos curtos), cadernos e boletins informativos temáticos e fotografias de campo, entre outros.

As redes sociais digitais - Facebook, YouTube e WhatsApp, sobretudo, inserem-se no processo a partir dos aprendizados trazidos pelas experiências de apropriações dessas ferramentas pelos grupos que atuam em comunicação popular nas favelas e que são parceiros. A comunicação via essas mídias, juntamente com a observação de notícias e informes, permite levantar questões fundamentais à agenda da pesquisa e concorre para uma rápida e potente interlocução e produção de sínteses e novos movimentos e produtos1919 Sousa FM, Cunha MB, Pivetta F. Aprendizados com Grupos de Favelas: o uso de ferramentas virtuais em uma pesquisa participativa. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación. 2020; 19(35):156-165..

O WhatsApp tem se tornado um meio importante de comunicação, tanto para a troca de dados e informações quanto para a manutenção das relações de cuidado e afeto, desde o início do isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19. É por intermédio das trocas de mensagem individuais ou em grupo com moradores que tem sido possível o acesso, nos últimos tempos, ao cotidiano do território. Recebem-se e enviam-se mensagens sobre o trabalho de pesquisa, para informar ou trocar ideias sobre problemas e questões políticas no território e na cidade, sobre problemas de pessoas conhecidas e formas de apoio, dúvidas e assessorias.

Discutimos aqui as principais ferramentas do método, entretanto, o ciclo de produção, circulação e de apropriação de conhecimentos de uma CAP desenrola-se em uma multiplicidade de outras atividades: as planejadas, como o levantamento de informações em documentos, nas redes sociais, entrevistas, criação de materiais (textos, vídeos, fotografias etc.); mas também de atividades que resultam de encontros casuais ou de eventos que fogem à rotina ordinária do território, e que artesanalmente vão sendo criadas e incorporadas ao percurso para dar dinamicidade e continuidade aos movimentos de uma CAP.

CAP como uma rede de interlocução entre pessoas-lugares-territórios: uma finalização

Para além das trocas interdisciplinares, a CAP se constitui como uma rede de interlocução entre pessoas-lugares-territórios. O que se configura neste Método, na prática, é um diálogo regular de saberes, experiências, linguagens e habilidades compartilhadas entre todos que participam das CAP: moradores, pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, profissionais de saúde, de educação etc. O cotidiano se inscreve aqui como o espaço-tempo em que se tece o diálogo, contribuindo para a construção de uma visão compreensiva de determinadas situações-problemas definidas no diálogo na CAP.

O Método CAP, sistematizado e analisado na pesquisa, foi sendo construído na forma de um artesanato metodológico para lidar com a imponderabilidade de um cotidiano que, para além de inúmeras vulnerabilidades (sociais, econômicas, institucionais e ambientais), é atravessado no seu dia a dia por inúmeras formas de violências; sendo a violência policial uma das mais dramáticas, juntamente com as violências simbólicas (racismo, misoginia etc.) e as político-institucionais relacionadas com a omissão ou a cooptação das instituições e dos políticos em contextos abissais - Abissais, porque submetem os moradores de favelas a uma vida na precariedade, na provisoriedade e na invisibilidade, resultante de processos de desumanização seja pelo racismo, preconceito, estigma ou criminalização22 Pivetta F, Cunha MB, Porto MFS, et al. Promoção da Saúde e Conhecimentos Emancipatórios: Aprendizados com Pesquisa-Ação nos Territórios de Favelas. In: Figueiredo GLA, Martins CHG, Akerman M. “Vulnerabilidades & Saúde: Grupos em Cena por Visibilidade no Espaço Urbano”. São Paulo: Hucitec Editora Ltda.; 2018. p. 383-403.,2020 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos-CEBRAP. 2007; (79):71-94.

A CAP é marcada pelo ocupar-se com a imprevisibilidade do cotidiano e estreitamente vinculada às possibilidades colocadas pelo território. Isso implica selecionar e reinventar técnicas de pesquisa e abordagens ajustadas à natureza desses novos temas que emergem da vida ordinária do lugar. É também uma espécie de pacto entre os pesquisadores e os agentes sociais do lugar, tendo como compromisso construir possibilidades de compreensão dos processos de determinação social e de produção de conhecimentos em saúde, por meio dos recursos oferecidos pelo território e da ação exercida sobre eles. A própria escolha de uma situação-problema, ou a temática de investigação, não é uma doação ou uma imposição do pesquisador, e sim a devolução organizada sistematizada e acrescentada daqueles elementos que o território entregou de forma aparentemente desestruturada ou incompreensível2121 Freire P. Pedagogia do oprimido. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra; 2001..

Com base no diálogo cotidiano com o território e seus agentes sociais, particularmente com a favela de Manguinhos, sabe-se que só é feito o que se faz e como se faz porque se constroem redes de confiança e afetos, recorrendo a práticas e formas de comunicação dialógicas co-laborativas, a partir da tessitura dos saberes, das experiências, das habilidades em conhecimentos compartilhados, que atribuam um sentido humano à prática acadêmica e contribua para as lutas transformadoras.

Assim, nas práticas cotidianas, vão sendo conformadas redes no território, e entre territórios, e constituindo a CAP, mais do que como uma técnica, como uma artesania. “Uma conversa com a humanidade do outro” 9(34), em que o interagir com o cotidiano é olhar as “coisas pequenas”, as práticas ordinárias que dão sentido à ideia do compartilhar, que estrutura a metodologia, em um constante conjugar de os verbos dialogar, testemunhar, afetar, vivenciar, acolher, refletir, produzir, comunicar. O tempo da pesquisa se harmoniza com o tempo dos moradores, no exercício do princípio da autonomia e do princípio da igualdade, como manifestação de reconhecimento e afeto pelas e entre pessoas. O desafio para os pesquisadores é sair do lugar de conforto do espaço tradicional da academia, como processo simultâneo de busca de (auto)conhecimentos e de humanização33 Pivetta F. Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos. [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021..

Como uma rede de pesquisa-ação, assentada nas relações que estabelece com o território, as pessoas e os lugares, e voltada para a promoção da vontade de potência, do ser mais, por meio da produção compartilhada de conhecimentos, a CAP concorre para a descolonização do saber e para a legitimação da qualidade dos conhecimentos, eticamente produzidos por uma CAP, bem como para o fortalecimento dos movimentos, das lutas e do esperançar de todos que dela participam.

Reafirma-se, assim, a tarefa que se coloca para o setor da saúde, na perspectiva de uma Promoção Emancipatória da Saúde1414 Porto MFS, Cunha MB, Pivetta F, et al. Comunidades Ampliadas de Pesquisa Ação como Dispositivos para uma Promoção Emancipatória da Saúde: bases conceituais e metodológicas. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1474-1756., de promover e criar espaços de legitimação dos conhecimentos produzidos pelos agentes e movimentos sociais das favelas em suas lutas. Conhecimento é poder; portanto, dessa forma, também é redistribuído poder na sociedade, ressignificando a participação popular ao produzir conhecimentos que informam as políticas públicas, particularmente as políticas de saúde pública, estimulando avanços da Reforma Sanitária e do Sistema Único de Saúde.

As condições impostas pela pandemia da Covid-19, particularmente a necessidade de distanciamento social, colocaram novos desafios ético-político para que se continuem juntos no cotidiano. As redes de interlocução, confiança e afeto já constituídas de forma presencial e as experiências de trocas e circulação de informação e conhecimentos por meio das mídias sociais têm auxiliado na manutenção do diálogo com os territórios, via grupos de WhatsApp, conversas por Facebook e encontros via plataformas digitais. Ainda assim, não deixa de ser desafiador pensar muitas questões que já vêm se colocando nesse período de isolamento social, no qual vimos nos comunicando digitalmente para continuar tendo acesso às pessoas, ao cotidiano do território e às suas situações-problemas.

A primeira e mais central dessas questões diz respeito às formas de acolhimento e linguagens afetivas que alimentam o diálogo presencial. O desafio que se coloca é o de reinventar os modos de estar juntos, de adotar novos recursos pedagógicos para diminuir a falta das linguagens dos corpos devido ao distanciamento e pela frieza das janelas de vidro dos computadores, para que se continue existindo como CAP.

Outra questão diz respeito às condições de acesso, tanto aos equipamentos para as pessoas sem recursos para comprar um celular, um computador, quanto apoiar aquelas com dificuldades de obter e lidar com os aplicativos. Também, o imperativo ético de não colocar em risco a vida das pessoas, garantir a segurança das informações, particularmente das que circulam nas reuniões e nos encontros com moradores de favelas.

O alicerce da comunicação da CAP é o afeto: o afeto amoroso com relação ao outro, o afeto no sentido de se deixar afetar pela experiência do outro para compreendê-la. O afeto permite a ocupação de lugar no sistema de comunicação um do outro e possibilita o acesso a processos invisíveis a um e ao outro - e essa troca produz conhecimentos. Manter a interação com o cotidiano, manter a rede de interlocução, confiança e afeto com as pessoas e o território é um dos grandes desafios que se coloca neste momento.

  • Suporte financeiro: Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública - PPG/Ensp/Fiocruz

Agradecimentos

Ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública - PPG/Ensp/Fiocruz.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2021
  • Aceito
    27 Jul 2022
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