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Percepções dos profissionais de linha de frente da saúde sobre HIV e juventudes

RESUMO

A temática do HIV ainda é permeada de estigmas e culpabilização de indivíduos por seus comportamentos. Políticas públicas, incluindo a de HIV/Aids, são baseadas em categorias políticas que geram efeitos simbólicos, reproduzindo ou enfrentando estigmas. A literatura afirma que Trabalhadores da Linha de Frente (TLF) mobilizam valores pessoais e profissionais nas interações com os usuários, que podem incluir categorias sociais ou políticas. Este artigo objetivou compreender como TLF operam tais categorias em contextos institucionais de ambiguidade, bem como analisar se suas percepções com relação às categorias de comportamento de risco e juventude estão em consonância com as políticas públicas. Foram analisadas 8 normativas e entrevistados 42 trabalhadores de 6 serviços de saúde. Os materiais foram codificados, as categorias oficiais foram comparadas, e as práticas, identificadas. As conclusões sugerem que as categorias sociais e políticas têm influência mútua. As categorias políticas ainda são legitimadas por meio de percepções sociais de normalidade e risco, especialmente ao lidar com populações prioritárias. As categorias sociais, operadas na implementação reforçam estigmas e julgamentos morais sobre alguns jovens, como os negros e pobres, as mães solteiras e a comunidade LGBTQIA+. Os serviços especializados utilizam mais as categorias políticas do que os serviços de atenção primária.

PALAVRAS-CHAVE
Política pública; Adolescente; Categorias de trabalhadores; Estigma social; HIV

ABSTRACT

Discussions about HIV are still permeated with stigmas and placing blame on individuals for their behavior. Public policies, including those related to HIV/AIDS, are based on political categories that can generate symbolic effects, either by reproducing or confronting stigmas. The literature points out that frontline health workers (TLF) apply personal and professional values in their interactions with service users, and that these values may be influenced by social or political categories. This article aims to understand how TLF operate such categories in institutional contexts that might be ambiguous, as well to analyze whether TLF’s perceptions of categories related to risk behavior and youth are in line with public policies. We analyzed 8 policy documents and interviewed 42 workers from 6 health services. The materials were coded, the official categories were compared and the practices were identified. The findings suggest that social and political categories have mutual influences. Political categories are still legitimized through social perceptions of normalcy and risk, especially as it relates to priority populations. Social categories, which operate in policy implementation, reinforce stigmas and moral judgments about certain young people, such as blacks and the poor, single mothers and those who belong to the LGBTQIA+ community. Specialized services utilize political categories more than primary care services.

KEYWORDS
Public policy; Adolescent; Occupational groups; Social stigma; HIV

Introdução

Políticas sociais são baseadas em processos de categorização de cidadãos entre aqueles que têm ou não direito a serviços específicos11 Mohr JW. Soldiers, mothers, tramps and others: Discourse roles in the 1907 New York City charity directory. Poetics. 1994 [acesso em 2022 mar 15]; 22(4):327-357. Disponível em: https://doi.org/10.1016/0304-422X(94)90013-2.
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,22 Møller MØ. Solidarity and categorization: Solidarity perceptions and categorization practices among Danish social workers. [dissertação]. Arhus: Juridisk Instituts Trykkeri, Aarhus Universitet; 2009. [acesso em 2022 mar 15]. Disponível em: https://politica.dk/fileadmin/politica/Dokumenter/Afhandlinger/marie_oestergaard_moeller.pdf.
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,33 Schneider AL, Ingram HM. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.. Embora as normativas proponham categorias de cidadãos com direitos, os processos concretos de categorização ocorrem durante a implementação das políticas públicas, quando os Trabalhadores da Linha de Frente (TLF) decidem quem recebe o que44 Lipsky M. Street-level bureaucracy: Dilemmas of the individual in public service. Nova York: Russell Sage Foundation; 2010.. Os TLF adaptam categorias oficiais e introduzem outras não oficiais para classificar as situações reais que encontram55 Harrits GS, Møller MØ. Prevention at the front line: How home nurs, pedagogues, and teachers transform public worry into decisions on special efforts. Public Manag. Rev. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 16(4):447-480. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14719037.2013.841980.
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,66 Møller MØ, Harrits GS. Constructing at-risk target groups. Critical Policy Studies. 2013 [acesso em 2022 jan 7]; 7(2):155-176. Disponível em: https://doi.org/10.1080/19460171.2013.799880.
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. Esses processos transformam cidadãos em usuários identificáveis com direito a políticas públicas específicas44 Lipsky M. Street-level bureaucracy: Dilemmas of the individual in public service. Nova York: Russell Sage Foundation; 2010.,55 Harrits GS, Møller MØ. Prevention at the front line: How home nurs, pedagogues, and teachers transform public worry into decisions on special efforts. Public Manag. Rev. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 16(4):447-480. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14719037.2013.841980.
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O uso de categorias na implementação de políticas públicas pode ter diferentes efeitos e gerar graus desiguais de acesso ao determinar níveis variados de distribuição e merecimento44 Lipsky M. Street-level bureaucracy: Dilemmas of the individual in public service. Nova York: Russell Sage Foundation; 2010.,66 Møller MØ, Harrits GS. Constructing at-risk target groups. Critical Policy Studies. 2013 [acesso em 2022 jan 7]; 7(2):155-176. Disponível em: https://doi.org/10.1080/19460171.2013.799880.
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,88 Terum LI, Torsvik G, Øverbye E. Discrimination against ethnic minorities in activation programme? Evidence from a vignette experiment. J. Soc. Policy. 2018 [acesso em 2022 jan 27]; 47(1):39-56. Disponível em: https://oda.oslomet.no/oda-xmlui/bitstream/handle/10642/5954/Terum%20et%20al%202017%20Discrimination%20Against%20...%20-%20versjon%20sendt%20OA%20HiOA.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
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. Categorias também podem ter efeitos simbólicos ao reproduzir julgamentos sociais perversos, estereótipos ou preconceitos55 Harrits GS, Møller MØ. Prevention at the front line: How home nurs, pedagogues, and teachers transform public worry into decisions on special efforts. Public Manag. Rev. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 16(4):447-480. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14719037.2013.841980.
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,77 Maynard-Moody SW, Musheno M, Musheno MC. Cops, teachers, counselors: Stories from the front lines of public service. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2003.,99 Dubois V. La vie au guichet. Relation administrative et traitement de la misère. In: Epp CR, Maynard-Moody S, Haider-Markel DP. Pulled over: How police stops define race and citizenship. Chicago: University of Chicago Press; 2014..

Neste artigo, considera-se que os TLF são atores sociais que tomam decisões cultural e socialmente inseridas99 Dubois V. La vie au guichet. Relation administrative et traitement de la misère. In: Epp CR, Maynard-Moody S, Haider-Markel DP. Pulled over: How police stops define race and citizenship. Chicago: University of Chicago Press; 2014.. São guiados pelas leis e regras do Estado e pelas formas como julgam os cidadãos e suas necessidades. Assim, os TLF podem produzir e reproduzir desigualdades sociais, uma vez que são influenciados pelos ambientes nos quais estão inseridos1010 Lotta G, Costa MIS. Uso de categorizações políticas e sociais na implementação de políticas: contribuições teóricas e analíticas. Rev. Soc. Política. 2020 [acesso em 2021 dez 7]; 28(76):1-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1678-987320287604.
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Dessa forma, o objetivo geral deste artigo é compreender como os TLF, que implementam a política de HIV/Aids, operam categorias políticas e sociais em contextos institucionais de ambiguidade nas regras e nos protocolos que deveriam orientar seu trabalho cotidiano. O objetivo específico é analisar as percepções dos TLF com relação às categorias de comportamento de risco e juventude e suas consonâncias com a política de HIV/Aids.

O tema de HIV/Aids é permeado por estigmas, culpabilização de indivíduos denominados como ‘grupos de risco’, moralização de sexualidade e discriminação da população LGBTQIA+1111 Calazans GJ. Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens. [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2018.; o que já é sensível para adultos, resulta ainda mais para a população jovem1212 Silva CGd, Paiva V, Parker R. Juventude religiosa e homossexualidade: desafios para a promoção da saúde e de direitos sexuais. Interface – Comum. Saúde, Educ. 2013 [acesso em 2021 mar 14]; 17(44):103-117. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-32832013000100009.
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A estrutura do artigo inclui: referencial teórico, baseado em análises sobre categorias e processos de categorização em políticas preventivas; descrição do contexto da política pública e métodos empregados para analisá-la; apresentação dos resultados; discussões e considerações finais.

Categorias e processos de categorização em políticas de prevenção

A noção de categorias é mobilizada em estudos de políticas públicas ao discutir como imagens públicas socialmente construídas e definições de problemas podem afetar os direitos dos cidadãos33 Schneider AL, Ingram HM. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.,1313 Yanow D. Constructing race and ethnicity in America: Category-making in public policy and administration New York: M. E. Sharpe; 2003.. Categorias são ferramentas aplicadas para construir grupos com direitos a tipos e graus de políticas públicas e serviços33 Schneider AL, Ingram HM. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.. São princípios organizadores de relações e interações, na medida em que agrupam objetos e pessoas em torno de atributos coletivos, que são destacados entre outras possíveis características22 Møller MØ. Solidarity and categorization: Solidarity perceptions and categorization practices among Danish social workers. [dissertação]. Arhus: Juridisk Instituts Trykkeri, Aarhus Universitet; 2009. [acesso em 2022 mar 15]. Disponível em: https://politica.dk/fileadmin/politica/Dokumenter/Afhandlinger/marie_oestergaard_moeller.pdf.
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,1111 Calazans GJ. Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens. [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2018..

Embora categorias sejam criadas em desenhos de políticas públicas, elas são concretizadas quando os TLF interagem com cidadãos durante a fase de implementação22 Møller MØ. Solidarity and categorization: Solidarity perceptions and categorization practices among Danish social workers. [dissertação]. Arhus: Juridisk Instituts Trykkeri, Aarhus Universitet; 2009. [acesso em 2022 mar 15]. Disponível em: https://politica.dk/fileadmin/politica/Dokumenter/Afhandlinger/marie_oestergaard_moeller.pdf.
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e transformam categorias oficiais abstratas em decisões concretas55 Harrits GS, Møller MØ. Prevention at the front line: How home nurs, pedagogues, and teachers transform public worry into decisions on special efforts. Public Manag. Rev. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 16(4):447-480. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14719037.2013.841980.
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. O processo de categorização, assim, é um dos possíveis lócus das práticas discricionárias55 Harrits GS, Møller MØ. Prevention at the front line: How home nurs, pedagogues, and teachers transform public worry into decisions on special efforts. Public Manag. Rev. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 16(4):447-480. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14719037.2013.841980.
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e pode ser descrito por três aspectos principais: i) prática de agrupamento e prática política, na medida em que classifica, valora e estabelece elegibilidade; ii) mecanismo redutor de ambiguidades sociais; e iii) processo social distintivo, uma vez que promove inclusão ou exclusão e, assim, distribui direitos e sanções22 Møller MØ. Solidarity and categorization: Solidarity perceptions and categorization practices among Danish social workers. [dissertação]. Arhus: Juridisk Instituts Trykkeri, Aarhus Universitet; 2009. [acesso em 2022 mar 15]. Disponível em: https://politica.dk/fileadmin/politica/Dokumenter/Afhandlinger/marie_oestergaard_moeller.pdf.
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Em uma perspectiva gerencialista, os TLF categorizam formas de lidar com a enorme quantidade de usuários que atendem. Sua discricionariedade torna-se rotinizada e estereotipada, sendo utilizada de forma funcional, para processar usuários, em um contexto de limitação de recursos e pressão por resultados55 Harrits GS, Møller MØ. Prevention at the front line: How home nurs, pedagogues, and teachers transform public worry into decisions on special efforts. Public Manag. Rev. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 16(4):447-480. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14719037.2013.841980.
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. Em uma perspectiva sociológica, o processo de categorização resulta da prática cognitiva de julgamento social22 Møller MØ. Solidarity and categorization: Solidarity perceptions and categorization practices among Danish social workers. [dissertação]. Arhus: Juridisk Instituts Trykkeri, Aarhus Universitet; 2009. [acesso em 2022 mar 15]. Disponível em: https://politica.dk/fileadmin/politica/Dokumenter/Afhandlinger/marie_oestergaard_moeller.pdf.
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, e os TLF categorizam cidadãos baseados em racionalidades e julgamentos22 Møller MØ. Solidarity and categorization: Solidarity perceptions and categorization practices among Danish social workers. [dissertação]. Arhus: Juridisk Instituts Trykkeri, Aarhus Universitet; 2009. [acesso em 2022 mar 15]. Disponível em: https://politica.dk/fileadmin/politica/Dokumenter/Afhandlinger/marie_oestergaard_moeller.pdf.
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,77 Maynard-Moody SW, Musheno M, Musheno MC. Cops, teachers, counselors: Stories from the front lines of public service. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2003..

Os TLF mobilizam seus repertórios – de regras, valores pessoais, percepções sociais, trajetória profissional, entre outros – quando uma decisão precisa ser tomada77 Maynard-Moody SW, Musheno M, Musheno MC. Cops, teachers, counselors: Stories from the front lines of public service. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2003.,1414 Harrits GS, Møller MØ. Categories and categorization: towards a comprehensive sociological framework. Distinktion: Scandinavian J. soc. theory. 2011 [acesso em 2021 dez 7]; 12(2):229-247. Disponível em: https://doi.org/10.1080/1600910X.2011.579450.
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. Essa atividade interpretativa pode gerar incertezas devido a ambiguidades, conflitos e dilemas sobre o que fazer, quando os TLF confrontam diretrizes oficiais e valores pessoais1515 Raaphorst N, Groeneveld S. Discrimination and representation in street-level bureaucracies. In: Hupe P, editor. Research Handbook on Street-Level Bureaucracy. London: Edward Elgar Publishing; 2019.. Os TLF classificam os usuários dos serviços e, potencialmente, agem de acordo com as categorias que os atribuem77 Maynard-Moody SW, Musheno M, Musheno MC. Cops, teachers, counselors: Stories from the front lines of public service. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2003.. Esse julgamento social pode informar decisões e ações voltadas aos cidadãos, com graus de atenção que variam desde extraordinária – para aqueles entendidos como ‘bons’ cidadãos – até ajuda mínima ou mesmo violação de direitos – para aqueles tidos como ‘maus’ cidadãos77 Maynard-Moody SW, Musheno M, Musheno MC. Cops, teachers, counselors: Stories from the front lines of public service. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2003.. Em políticas preventivas, essa tarefa interpretativa é central para explicar as concepções dos TLF e suas percepções de risco55 Harrits GS, Møller MØ. Prevention at the front line: How home nurs, pedagogues, and teachers transform public worry into decisions on special efforts. Public Manag. Rev. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 16(4):447-480. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14719037.2013.841980.
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Nessa discussão, a perspectiva sociológica é útil por dois motivos: ilumina a reivindicação de que os processos de categorização não são exclusivamente condicionados por estruturas administrativas e organizacionais, mas reproduzem informação socialmente disponível sobre cidadãos; e evidencia como o processo de categorização não é somente ancorado em direitos, mas também em moralidades, resultando em separações entre aqueles que têm direito e aqueles que o merecem segundo as concepções individuais dos TLF22 Møller MØ. Solidarity and categorization: Solidarity perceptions and categorization practices among Danish social workers. [dissertação]. Arhus: Juridisk Instituts Trykkeri, Aarhus Universitet; 2009. [acesso em 2022 mar 15]. Disponível em: https://politica.dk/fileadmin/politica/Dokumenter/Afhandlinger/marie_oestergaard_moeller.pdf.
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A divisão entre merecedores e titulares de direitos, com frequência, reflete as operações de categorias políticas e sociais, sendo as primeiras relacionadas com o sistema político-administrativo, e as demais, atreladas a outros sistemas e práticas sociais1414 Harrits GS, Møller MØ. Categories and categorization: towards a comprehensive sociological framework. Distinktion: Scandinavian J. soc. theory. 2011 [acesso em 2021 dez 7]; 12(2):229-247. Disponível em: https://doi.org/10.1080/1600910X.2011.579450.
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. Categorias políticas são oficiais, definidas em textos normativos. Contêm as fronteiras entre cidadãos incluídos ou excluídos das políticas públicas, ou seu público-alvo. Categorias sociais representam noções socialmente compartilhadas e conhecimentos frequentemente referenciados em estereótipos55 Harrits GS, Møller MØ. Prevention at the front line: How home nurs, pedagogues, and teachers transform public worry into decisions on special efforts. Public Manag. Rev. 2014 [acesso em 2022 mar 15]; 16(4):447-480. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14719037.2013.841980.
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,1414 Harrits GS, Møller MØ. Categories and categorization: towards a comprehensive sociological framework. Distinktion: Scandinavian J. soc. theory. 2011 [acesso em 2021 dez 7]; 12(2):229-247. Disponível em: https://doi.org/10.1080/1600910X.2011.579450.
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Assim, os processos sociais de categorização constroem atributos considerados como comuns e naturais dessas categorias, e os ambientes sociais estabelecem exigências que precisam ser preenchidas. Será considerado um estranho aquele que tiver um atributo diferente, como um sujeito menos desejável, perigoso ou fraco, sendo reduzido a uma pessoa arruinada. Assim constitui-se um estigma quando uma pessoa, um grupo ou uma comunidade carregam atributos sociais, cujo valor é pejorativo, de descrédito ou negativo. Tais atributos são considerados como defeito, fraqueza ou uma discrepância. Diante da dificuldade em lidar com a diferença, é constituído um caminho de exclusão, em que a identidade incorpora o tal atributo de valor social negativo1616 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade São Paulo: LTC; 1988..

Pesquisas na área da saúde revelam as relações entre estigma e adoecimento em suas dimensões social e política. O estigma está relacionado com as políticas públicas, as práticas cotidianas nos serviços, o adoecimento, o sofrimento e o enfrentamento de seus agravos, podendo reduzir ou dificultar o acesso aos serviços de saúde1717 Monteiro S, Villela W. Estigma e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013..

Nos discursos relativos ao tema de HIV/ Aids, persistem metáforas fatalistas, como a da morte iminente, e a associação com a sexualidade. Há ainda dificuldade de profissionais de saúde em lidar com as dimensões psicológicas e sociais do cuidar nesse tema, ainda que, formalmente, tenham como tarefa desfazer essas metáforas que contribuem para a estigmatização e marginalização das pessoas que vivem com HIV/Aids1818 Bastos FI. Da persistência das metáforas: estigma e discriminação & HIV/AIDS. In: Monteiro S, Villela W. Estigma e saúde. São Paulo: Editora Fiocruz; 2013.. Ou seja, os TLF acabam reproduzindo desigualdades que deveriam combater1919 Pires RRCO. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília, DF: IPEA; 2019..

A literatura aponta para a permanência, no discurso de profissionais da saúde, da vinculação de identidades LGBTQIA+ ao conceito de grupo de risco, associada a comportamentos moralmente condenáveis, como causadora de doenças e transtornos mentais. A possibilidade de adoecer é ligada a atributos em que o sujeito normal reconhece o estigmatizado2020 Guimarães RCP, Lorenzo CFG, Mendonça AVM. Sexualidade e estigma na saúde: uma análise da patologização da diversidade sexual nos discursos de profissionais da rede básica. Physis: Rev. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 set 21]; 31(1):1-21. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312021310128.
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. Esse aspecto está profundamente ligado à história do HIV/Aids e ao processo de desqualificação moral das pessoas soropositivas2121 Sontag S. Aids and Its Metaphors. New York: Straus and Giroux; 1989.. As categorias relacionadas com estas eram de pessoas promíscuas, prostitutas, criminosas ou que estavam com os dias contados.

A literatura sobre a construção social de grupos-alvo de risco na linha de frente das políticas preventivas indica a predominância de categorias sociais, percepções de normalidade e estereótipos no processo de categorização. A distinção entre cidadãos normais e aqueles em risco é explicada pela não conformidade com convenções sociais mais amplas88 Terum LI, Torsvik G, Øverbye E. Discrimination against ethnic minorities in activation programme? Evidence from a vignette experiment. J. Soc. Policy. 2018 [acesso em 2022 jan 27]; 47(1):39-56. Disponível em: https://oda.oslomet.no/oda-xmlui/bitstream/handle/10642/5954/Terum%20et%20al%202017%20Discrimination%20Against%20...%20-%20versjon%20sendt%20OA%20HiOA.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
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. Ademais, a distância social entre os TLF e os cidadãos é uma fonte importante de definição sobre o senso de normalidade66 Møller MØ, Harrits GS. Constructing at-risk target groups. Critical Policy Studies. 2013 [acesso em 2022 jan 7]; 7(2):155-176. Disponível em: https://doi.org/10.1080/19460171.2013.799880.
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e a potencial (re) produção de desigualdades, por meio da estigmatização ou da reiteração de estigmas enfrentados pelos usuários dos serviços. Como discutido, o estigma merece atenção na análise das percepções dos TLF, já que constitui um tema central para o processo saúde-doença, ao promover adoecimento e sofrimento psíquico e social de determinados grupos sociais2222 Cazeiro F, Silva GSD, Souza EMFD. Necropolítica no campo do HIV: algumas reflexões a partir do estigma da Aids. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 out 3]; 26(3):5361-5370. Disponível em: https://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/necropolitica-no-campo-do-hiv-algumas-reflexoes-a-partir-do-estigma-da-aids/17560?id=17560.
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Política de prevenção ao HIV no Brasil

Considerando a organização do Sistema Único de Saúde (SUS) em diferentes níveis de atenção, tem-se na Atenção Primária à Saúde (APS) a responsabilidade por tratamento, reabilitação, prevenção e promoção da saúde em Unidades Básicas de Saúde (UBS), por meio de serviços generalistas e trabalhadores de saúde nas várias categorias. O governo federal tem forte protagonismo na regulação da APS, que é implementada principalmente pelos municípios.

Assim, a esfera federal, por meio da Política Nacional de DST/Aids, formula princípios, diretrizes e estratégias, enquanto as esferas estaduais e municipais podem formular políticas sobre o tema, desde que em consonância com a orientação nacional. A política de HIV/Aids – termo aqui utilizado de forma a abranger o conjunto de instrumentos, ações, programas e projetos relacionados ao tema HIV/Aids – é implementada por diferentes serviços e níveis de atenção à saúde, em particular, na atenção primária e secundária à saúde. A APS concentra-se na promoção da saúde e prevenção de enfermidades, com serviços descentralizados e longitudinais que acompanham os cidadãos em seus territórios2727 Melo EA, Maksud I, Agostini R. Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Rev. Panam. Salud Pública; 2018 [acesso em 2021 dez 14]; (42):1-5. Disponível em: https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.151.
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No Brasil, a política de HIV/Aids foi criada no final dos anos 1980. No entanto, seu foco, sua linguagem e o modo como deve combater os preconceitos sociais têm sido alvo de disputas2828 Morais PB, Amorim RF. Políticas públicas de saúde e campanhas de prevenção à aids: resgatando algumas controvérsias enfrentadas nas décadas de 1980 e 1990. Temp. Ciênc. 2011 [acesso em 2021 dez 17]; 15(35):95-114. Disponível em: https://doi.org/10.48075/rtc.v18i35.9003.
https://doi.org/10.48075/rtc.v18i35.9003...
. Até recentemente, as políticas eram concentradas em serviços especializados, o que significa menor foco na prevenção e maior no tratamento e cuidado de públicos-alvo2727 Melo EA, Maksud I, Agostini R. Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Rev. Panam. Salud Pública; 2018 [acesso em 2021 dez 14]; (42):1-5. Disponível em: https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.151.
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. Isso pode explicar a dificuldade dos serviços de APS em focar em públicos-alvo específicos – uma vez que fornecem serviços universais e generalistas1111 Calazans GJ. Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens. [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2018., com grande demanda a diversos programas de atenção básica a serem implementados.

Os grupos mais afetados pelo HIV eram tradicionalmente estigmatizados e com acesso dificultado aos serviços de saúde. Dessa forma, a política de HIV/Aids e seus públicos-alvo têm sido historicamente invisibilizados nos serviços de APS. No entanto, nos últimos anos, novas políticas foram elaboradas para dar maior destaque à APS no tratamento de serviços de HIV e mais atenção preventiva.

A política atual tem como cerne a integralidade da atenção à saúde e a garantia dos direitos dos portadores de HIV. Apesar da resistência de muitos grupos, a política traz novas tecnologias de prevenção organizadas sob a estratégia denominada ‘prevenção combinada’2929 Brasil. Ministério da Saúde. Cinco passos para a prevenção combinada ao HIV na Atenção Básica Saúde. Brasília, DF: MS; 2017.,3030 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes para organização do CTA no âmbito da Prevenção Combinada e nas Redes de Atenção à Saúde. Brasília, DF: MS; 2017., que é baseada no paradigma da prevenção e da autonomia do usuário. No entanto, diversos conflitos giram em torno desse novo paradigma, e os serviços responsáveis nem sempre possuem informações suficientes sobre como implementá-lo. Como resultado, geram-se cenários de ambiguidades3131 Matland RE. Synthesizing the implementation literature: The ambiguity-conflict model of policy implementation. Journal of public administration research and theory. 1995 [acesso em 2021 dez 14]; 5(2):145-17. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1181674.
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nos quais os TLF possuem alto nível de discricionariedade para interpretar a política e tomar decisões3232 Gofen A. Mind the gap: Dimensions and influence of street-level divergence. J. Public Adm. Res. Theory. 2014 [acesso em 2021 dez 14]; 24(2):473-493. Disponível em: https://doi.org/10.1093/jopart/mut037.
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.

Uma possível explicação para a resistência em construir ações a partir do paradigma da prevenção e da autonomia parte da própria percepção sobre a juventude no campo da saúde pública. As políticas públicas são muito mais direcionadas à adolescência como ciclo biológico, o que reforça a compreensão de fenômenos a partir da teoria dos instintos e hormônios, gerando serviços que visam controlar esses aspectos, e não na compreensão da juventude como etapa emocional, social e política de vida3333 Adorno RCF, Alvarenga AT, Vasconcelos MPC. Jovens, trajetórias, masculinidades e direitos. São Paulo: Fapesp; 2005..

Um exemplo é o tema da gravidez na adolescência, frequentemente tratada sob enfoques tradicionais embasados na noção de ‘gravidez indesejada’, como se esta só fosse em decorrência de desinformação, e não pudesse resultar do desejo da jovem de ter um filho3434 Ribeiro WA, Andrade M, Fassarella BPA, et al. A gravidez na adolescência e os métodos contraceptivos: a gestação e o impacto do conhecimento. Nursing. 2019 [acesso em 2021 dez 14]; 22(253):2990-2994. Disponível em: https://doi.org/10.36489/nursing.2019v22i253p2990-2994.
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ou mesmo em decorrência de violência e abuso. Isso vai na contramão de organismos internacionais, os quais discutem que ‘ações educativas devem estimular o protagonismo dos jovens como detentores de autonomia para o exercício da sexualidade, para a constituição dos relacionamentos afetivos e para tomar decisões no campo da reprodução’1212 Silva CGd, Paiva V, Parker R. Juventude religiosa e homossexualidade: desafios para a promoção da saúde e de direitos sexuais. Interface – Comum. Saúde, Educ. 2013 [acesso em 2021 mar 14]; 17(44):103-117. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-32832013000100009.
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. Apesar disso, no cenário de cuidado ao HIV na população juvenil, são presentes o estigma e o julgamento como fenômenos persistentes e comprometedores da prevenção.

Material e métodos

O artigo analisou a implementação da política de HIV/Aids em um dos bairros mais desiguais da cidade de São Paulo, o Grajaú. Selecionaram-se seis serviços de saúde com o objetivo de realizar uma análise comparativa de como estes interpretam a política e os usuários: duas UBS, dois serviços especializados em HIV e dois Centros de Atenção Psicossocial (Caps). A opção pela seleção em um mesmo bairro se deu para possibilitar a comparação entre os serviços que atendem jovens com o mesmo perfil socioeconômico e potenciais usuários dos mesmos serviços.

Inicialmente, selecionaram-se serviços especializados no tratamento de pacientes infectados pelo HIV: Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) e Serviços de Assistência Especializada (SAE). Os CTA fornecem testes e informações para Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), e os SAE são clínicas ambulatoriais destinadas a diagnosticar e acompanhar pacientes infectados pelo HIV. Eles se articulam com outros serviços, construindo redes de cuidado nos territórios para prestar atenção integral à saúde3535 São Paulo. Prefeitura Municipal de São Paulo. Linha de Cuidados de IST/Aids. São Paulo: Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo; 2020.. Esses serviços são, portanto, especializados para os casos de HIV, com atendimento específico para esse público-alvo e com TLF que atendem apenas esse tipo de usuário.

Outrossim, foram selecionadas duas UBS com equipe de Estratégia Saúde da Família (ESF), serviços considerados como a porta de entrada do SUS e responsáveis por ações de atenção primária nos territórios. Na política de HIV/Aids, as UBS devem desenvolver atividades de promoção da saúde e prevenção de enfermidades com a comunidade, mas com enfoque especial nos jovens. Também devem fornecer teste sorológico rápido 2e encaminhamento dos usuários com testes positivos ao SAE3030 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes para organização do CTA no âmbito da Prevenção Combinada e nas Redes de Atenção à Saúde. Brasília, DF: MS; 2017..

Por fim, incluíram-se dois Caps, sendo um serviço especializado em questões de álcool e drogas e outro específico para a população infantojuvenil. Na política de HIV, esses equipamentos são responsáveis por testar e aconselhar usuários. Devem também encaminhar e articular o atendimento dos casos ao SAE3535 São Paulo. Prefeitura Municipal de São Paulo. Linha de Cuidados de IST/Aids. São Paulo: Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo; 2020.. Cabe ressaltar que o atendimento a questões associadas às IST é um aspecto secundário de sua atuação, que é voltada à redução de danos e aos cuidados em saúde mental.

A inclusão desses três tipos de serviços que são responsáveis pelas políticas relacionadas com a prevenção ao HIV, mas com enfoques e responsabilidades diferentes, permite observar se e como os seus TLF aplicam categorias na classificação dos jovens, incluindo aqueles que se enquadram nos regulamentos e nas categorias políticas.

Para compreender o processo de categorização em diferentes serviços, analisaram-se as categorias políticas disponíveis na regulamentação, as categorias sociais operadas pelos TLF e a relação entre elas. Coletaram-se dados de duas fontes: dos regulamentos da política e dos TLF dos serviços selecionados.

Selecionaram-se os regulamentos nacionais atuais sobre políticas de prevenção de HIV, assim como os regulamentos da cidade de São Paulo. Buscava-se verificar se o município adaptou ou alterou as regulamentações nacionais adotando diferentes categorias políticas. Por mais que o objetivo fosse analisar especificamente a prevenção do HIV entre a população jovem, cabe ratificar que não há normativas específicas para esse público-alvo. Analisaram-se, assim, as normativas e, sempre que possível, identificou-se o que era específico para os jovens.

Foram entrevistados 42 TLF entre os seis serviços, incluindo médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, técnico de enfermagem, agentes comunitários de saúde e terapeutas ocupacionais. Foi uma amostra por conveniência, ou seja, entrevistaram-se trabalhadores disponíveis para a pesquisa e cujas funções estivessem relacionadas com a política de HIV/Aids. O roteiro de entrevista continha questões sobre: conhecimento sobre a política de prevenção de HIV em jovens; percepções sobre comportamento de risco dos jovens; compreensões sobre prevenção e novas tecnologias; e perspectivas sobre os usuários jovens. As entrevistas, conduzidas virtualmente pelos pesquisadores durante o horário de trabalho dos profissionais, foram gravadas e transcritas na íntegra.

Quadro 1 Fontes e quantidade de dados coletados
Objetivo Material Quantidade
Identificar categorias e comportamentos de risco Normativas federais e municipais

5 normativas federais

3 normativas municipais

Identificar categorias sociais operadas pelos profissionais da linha de frente Entrevistas com profissionais da linha de frente na Atenção Primária à Saúde 22 entrevistas
Identificar percepções sobre comportamento de risco Entrevistas com profissionais da linha de frente na política de prevenção ao HIV 10 entrevistas
Entrevistas com profissionais da linha de frente com equipamentos de saúde mental 10 entrevistas
  • Fonte: elaboração própria.
  • As entrevistas foram codificadas com base nessa análise de categorias e comportamentos de risco dos jovens seguindo duas etapas. A primeira inspirou-se na análise fundamentada em dados grounded3535 São Paulo. Prefeitura Municipal de São Paulo. Linha de Cuidados de IST/Aids. São Paulo: Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo; 2020. na qual se codificaram as categorias utilizadas para classificar os tipos de usuários jovens. O processo de codificação sobre comportamento de risco analisou as respostas à pergunta ‘o que você acha que é um comportamento de risco dos jovens?’. As respostas foram codificadas para compreender as variações e as semelhanças entre cada código.

    Os regulamentos foram analisados e codificados de duas formas: identificaram-se as categorias políticas utilizadas para identificar os tipos de usuários e as concepções oficiais sobre comportamentos de risco dos jovens.

    Após a codificação dos materiais, analisou-se se as categorias utilizadas pelos entrevistados eram semelhantes àquelas propostas pela regulamentação. Assim, diferenciaram-se as categorias políticas e sociais e comparou-se sua utilização entre os diferentes tipos de serviços. Posteriormente, repetiu-se o procedimento com ‘comportamento de risco dos jovens’, comparando as categorias oficiais e as práticas relacionadas com comportamentos de risco dos jovens entre os tipos de serviços aqui analisados.

    Resultados

    Categorias sociais e políticas

    Todos os regulamentos analisados definem que a política de prevenção de HIV deve ser direcionada a dois grupos: ‘grupo-alvo’ (homens gays, Homens que fazem Sexo com Homens – HSH, usuários de drogas, profissionais do sexo e pessoas transgênero) e ‘população prioritária’ (população negra, população em situação de rua, população indígena e população jovem), definidos como tal nos regulamentos.

    O primeiro grupo é composto por categorias políticas muito específicas, enquanto o segundo é muito geral e abarca a maioria da população brasileira. O primeiro grupo se justifica pela maior taxa de infecção entre pessoas desses segmentos populacionais. O segundo grupo é definido entre aqueles que também são afetados desproporcionalmente, considerando toda a população. No entanto, diferentemente do primeiro grupo, suas taxas de infecção são explicadas não pelo seu comportamento, mas pela dinâmica social local. De acordo com as normas, por já apresentarem vulnerabilidades socioeconômicas, são considerados mais suscetíveis à infecção e devem ser priorizados na política. Cabe ratificar que a população jovem se encontra nesse subgrupo e é definida segundo sua vulnerabilidade. Entretanto, isso não significa que não haja jovens com as características das que são apresentadas no público-alvo, ou seja, os jovens se encaixam em ambas as categorias políticas.

    Identificaram-se dois achados na análise dos regulamentos. O primeiro é que as categorias políticas utilizadas são ambíguas, especialmente aquelas relativas aos grupos prioritários. Ao incluírem a maior parte da população brasileira, criam espaços para interpretações sobre quem deve ser priorizado. Isso reforça a identificação de que os jovens podem ser encaixados em todas as categorias. O segundo é que, ao justificar as categorias políticas dos grupos-alvo sobre as taxas de infecção, as políticas reforçam o preconceito. Assim, as categorias políticas, como foram criadas, não são capazes de combater categorias sociais e podem também reforçá-las. Dessa forma, tornou-se importante analisar como os TLF operam essas e outras categorias.

    Ao analisar as categorias operadas pelos TLF, foram encontrados três grupos de categorias: as baseadas em comportamentos; as baseadas no perfil socioeconômico; e as baseadas em gênero e sexualidade. Algumas dessas categorias são inspiradas por categorias políticas, e outras não. O quadro 2 descreve as categorias encontradas nas entrevistas.

    Quadro 2
    Categorias operadas por trabalhadores de primeira linha e tipos de serviços

    A análise sugere que os TLF usam categorias políticas e sociais ao classificar os usuários. Ao comparar serviços, os de atenção primária tendem a operar mais categorias sociais do que os demais, especialmente em relação às categorias de comportamento2121 Sontag S. Aids and Its Metaphors. New York: Straus and Giroux; 1989.. Os TLF do serviço especializado em HIV utilizam mais categorias políticas – principalmente aquelas baseadas em gênero e sexualidade. Assim, tendem a categorizar os jovens alinhados com as regulamentações políticas. Finalmente, os TLF dos serviços de atenção psicossocial propendem a misturar categorias políticas e sociais, especialmente aquelas diretamente ligadas à especialidade do serviço, como uso de drogas e características socioeconômicas.

    Os dados também mostram a alta prevalência de categorização do comportamento em comparação com os outros tipos de categorias. Considerando os regulamentos e as evidências sobre a doença, espera-se que os TLF mobilizem categorias associadas ao uso de drogas e ao comportamento sexual. No entanto, 34 deles mencionam categorias sobre comportamentos que não estão no desenho de políticas: aqueles sobre sociabilidade. Para os TLF, os jovens que frequentam festas ou atividades sociais têm maior chance de contágio.

    Os dados também mostram que a classe social importa na categorização dos jovens: 24 entrevistados, em diferentes tipos de serviços, acreditavam que os jovens de classe social mais baixa e com menor escolaridade têm mais chance de contágio.

    Finalmente, identificou-se o uso diferencial de categorias sobre gênero. Enquanto os TLF da APS e dos equipamentos de saúde mental pensam em jovens genéricos, sem perfis específicos associados aos regulamentos (como mulher e homem), os TLF da política de HIV pensam nas categorias de gênero propostas pelas políticas como grupo-alvo, como LGBTQIA+ e HSH.

    Percepções sobre comportamentos de risco

    Analisaram-se também as percepções dos TLF sobre os chamados ‘comportamentos de risco’ dos jovens. Esse conceito tornou-se central nas políticas brasileiras de prevenção do HIV desde 2010 ao considerar que as intervenções políticas devem se concentrar no comportamento dos jovens como uma forma de prevenir situações de risco. Essas intervenções são baseadas em oferecer informações para que os jovens identifiquem situações de risco e comportamentos que devem ser evitados. Conforme proposto pelos regulamentos, essas intervenções ‘estão relacionadas às práticas cotidianas, que envolvam ou não aspectos relacionados às práticas sexuais, ao uso de álcool e outras drogas ou a outros comportamentos que impliquem risco de infecção pelo vírus’2222 Cazeiro F, Silva GSD, Souza EMFD. Necropolítica no campo do HIV: algumas reflexões a partir do estigma da Aids. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 out 3]; 26(3):5361-5370. Disponível em: https://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/necropolitica-no-campo-do-hiv-algumas-reflexoes-a-partir-do-estigma-da-aids/17560?id=17560.
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    . Três diferentes fontes de comportamento de risco são identificadas nos regulamentos e descritas no quadro 3.

    Quadro 3
    Noções oficiais sobre comportamento de risco

    Ao analisar as percepções dos entrevistados sobre comportamentos de risco, encontraram-se três tipos: associados à conduta; associados à informação e associados à violência (quadro 4).

    Quadro 4
    Comportamento de risco para entrevistados

    Os dados sobre o comportamento de risco sugerem que a maioria dos TLF associa o risco à conduta, e não ao trabalho e à violência, conforme proposto pelos regulamentos. Em relação às informações, oito entrevistados consideram que isso está associado ao comportamento de risco. Eles acreditam que a falta de informação ou a desconfiança sobre a informação oficial podem aumentar o risco de contágio de HIV, especialmente entre os jovens. A desconfiança desempenha um papel importante na explicação do comportamento dos jovens. Os TLF mencionaram que, muitas vezes, percebem que os jovens têm a informação, mas decidiram não fazer prevenção de qualquer maneira, como se nada lhes acontecesse.

    Finalmente, as percepções sobre a violência como um comportamento de risco são semelhantes ao que é proposto pelos regulamentos. Apenas três entrevistados o citaram, e quando o faziam, geralmente associavam a violência a outro comportamento, como o uso de drogas ou álcool, que tornam os jovens mais vulneráveis.

    O quadro 5 apresenta as diferentes percepções dos entrevistados sobre a conduta como um comportamento de risco. Na APS, a maioria sugere que a sociabilidade, a sexualidade e o uso de drogas são arriscados. A ideia de que as festas são fatores de risco não é mencionada nos regulamentos. No entanto, para os entrevistados dos serviços de HIV e Psicossocial, a sociabilidade não foi considerada arriscada, sendo o risco associado à sexualidade e ao uso de drogas.

    Quadro 5
    Tipos de condutas de comportamento de risco

    Os TLF também interpretam diferentemente o significado de risco sexual. Nos serviços especializados (HIV e saúde mental), o risco relacionado com a sexualidade era associado a aspectos técnicos e políticos, como ser de população vulnerável e a necessidade de uso de preservativos ou outras tecnologias de prevenção. Na APS, os trabalhadores abordaram a questão da sexualidade do ponto de vista moral, discutindo o número de parceiros e a orientação sexual dos usuários.

    Os achados apontaram diferenças importantes entre os serviços, especialmente com relação à frequência do uso de cada um dos tipos de categorias: enquanto, nos serviços especializados, há maior uso de categorias políticas para descrever grupos-alvo, as categorias sociais predominam nos serviços da atenção primária e, em alguma medida, nos serviços de atenção psicossocial.

    Discussão

    As categorias políticas relacionadas com o HIV são permeadas por noções carregadas de estereótipos e estigmas desde os anos 1980 como demonstrado na literatura1111 Calazans GJ. Políticas públicas de saúde e reconhecimento: um estudo sobre prevenção da infecção pelo HIV para homens que fazem sexo com homens. [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2018.,2828 Morais PB, Amorim RF. Políticas públicas de saúde e campanhas de prevenção à aids: resgatando algumas controvérsias enfrentadas nas décadas de 1980 e 1990. Temp. Ciênc. 2011 [acesso em 2021 dez 17]; 15(35):95-114. Disponível em: https://doi.org/10.48075/rtc.v18i35.9003.
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    . Isso significa que as categorias políticas podem, na prática, reforçar as categorias sociais33 Schneider AL, Ingram HM. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.,1010 Lotta G, Costa MIS. Uso de categorizações políticas e sociais na implementação de políticas: contribuições teóricas e analíticas. Rev. Soc. Política. 2020 [acesso em 2021 dez 7]; 28(76):1-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1678-987320287604.
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    . Uma categoria social latente pode ser traduzida em uma categoria política como resultado de negociações de poder, influência de grupos favorecidos e grupos de interesse33 Schneider AL, Ingram HM. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.,1010 Lotta G, Costa MIS. Uso de categorizações políticas e sociais na implementação de políticas: contribuições teóricas e analíticas. Rev. Soc. Política. 2020 [acesso em 2021 dez 7]; 28(76):1-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1678-987320287604.
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    . Categorias sociais e percepções de normalidade podem legitimar ferramentas e categorias políticas à medida que se sobrepõem e mudam mutuamente77 Maynard-Moody SW, Musheno M, Musheno MC. Cops, teachers, counselors: Stories from the front lines of public service. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2003..

    A principal implicação é que, mesmo em um sistema de saúde universal, como o brasileiro, as políticas podem reproduzir desigualdades durante a implementação de políticas à medida que suas categorias políticas reforçam as sociais com base em preconceitos e exclusões.

    Esta análise sugere que a política de prevenção de HIV consolida algumas categorias de alvo ou prioridade com conteúdo vago e ambíguo, como negros ou jovens, que incluem uma grande quantidade de pessoas, deixando aos TLF a responsabilidade de escolher quem são os verdadeiros alvos prioritários. Tal como já apontado por Raaphorst e Groeneveld1515 Raaphorst N, Groeneveld S. Discrimination and representation in street-level bureaucracies. In: Hupe P, editor. Research Handbook on Street-Level Bureaucracy. London: Edward Elgar Publishing; 2019., isso cria espaços para a operação de percepções sociais mais amplas e se torna fonte de incertezas interpretativas. Portanto, os dados deste estudo reforçam as afirmações de Lotta e Costa1010 Lotta G, Costa MIS. Uso de categorizações políticas e sociais na implementação de políticas: contribuições teóricas e analíticas. Rev. Soc. Política. 2020 [acesso em 2021 dez 7]; 28(76):1-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1678-987320287604.
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    de que o uso de categorias sociais por parte dos TLF comumente ultrapassa o uso de categorias políticas, criando um cenário potencial para a reprodução de desigualdades.

    Ao usar categorias sociais com base em julgamentos sobre o comportamento social e sexual, os TLF introduzem questões políticas relacionadas com a não conformidade dos usuários com convenções sociais mais amplas, incluindo noções do que entendem como ‘sexualidade desviante’ ou sobre uso de drogas. Complementam a definição política do grupo-alvo com impressões sociais compartilhadas sobre quem é mais vulnerável ou exposto a vírus, o que pode reforçar preconceitos. Por exemplo, ao categorizar os usuários para descrever o jovem típico em risco, alguns entrevistados mencionaram critérios como ‘festeiros’ ou características como ‘imaturo’ ou ‘negligente’. Ao falar de sexualidade, alguns mencionaram o número de parceiros ou sexo casual, em lugar de questões preventivas como o uso de preservativo, como preconizado pela política. Essas evidências vão ao encontro do que já é apontado pela literatura sobre estigma e HIV de que os profissionais da saúde ainda associam o que consideram comportamentos moralmente condenáveis à Aids2020 Guimarães RCP, Lorenzo CFG, Mendonça AVM. Sexualidade e estigma na saúde: uma análise da patologização da diversidade sexual nos discursos de profissionais da rede básica. Physis: Rev. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 set 21]; 31(1):1-21. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312021310128.
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    Além do uso dos estereótipos, há uma diferença importante entre os trabalhadores nos serviços analisados que marca a forma de uso das categorias: a quantidade de políticas e diretrizes oficiais com as quais devem lidar em seus trabalhos diários. Nos serviços voltados à prevenção e ao cuidado de IST, as ações preventivas são direcionadas especificamente para o público que os procura. Por outro lado, os trabalhadores dos serviços da atenção primária estão, ao mesmo tempo, lidando com ações preventivas contra hipertensão, diabetes, arboviroses e outras questões sob a competência da APS.

    Já nos serviços de atenção psicossocial, há um público pré-selecionado: pessoas com questões de saúde mental. Porém, a política de prevenção ao HIV não é parte cotidiana de suas rotinas, atravessando de forma lateral os atendimentos e as questões tratadas. As categorias políticas tornam-se ‘diluídas’ em serviços da atenção primária em comparação com aqueles com foco em IST, e aparecem de forma secundária nos serviços de atenção psicossocial. Assim, o exercício da discricionariedade tem diferentes efeitos sobre o processo de categorização e sobre as categorias mobilizadas pelos trabalhadores.

    Em relação ao comportamento de risco dos jovens, os serviços de especializados de IST/Aids frequentemente apontavam para a sexualidade enquanto os equipamentos especializados de saúde mental consideravam o risco de uso de drogas, e os trabalhadores da atenção básica faziam menções a condutas, algumas incluídas na política e outras não. Esse fato pode estar relacionado com o grupo-alvo de intervenção de cada serviço: nos serviços de IST/Aids, os trabalhadores lidam com jovens que buscam prevenção ou tratamento de IST; e nos serviços de saúde mental, os TLF lidam com jovens com questões vinculadas à saúde mental, incluindo o abuso de drogas. Isso significa que, em serviços voltados a IST, o público para ações preventivas é concreto, no sentido de que os trabalhadores não têm que escolher quem aconselhar ou oferecer um teste ou informação de prevenção de HIV. Esse é o centro de seus trabalhos, e cada usuário é submetido a essas intervenções.

    Nos serviços de atenção psicossocial, o público é mais ‘filtrado’ que na atenção primária, porém, por não ser concentrado na prevenção ao HIV, os profissionais também terão algum grau de escolha dos usuários a quem irão propor a prevenção de HIV. Por fim, os trabalhadores dos serviços da atenção primária estão promovendo a prevenção entre os públicos potenciais, e têm que escolher e decidir quem precisa de informações e serviço sobre cada tipo de política.

    A necessidade de selecionar o grupo-alvo, associada a categorias políticas já marcadas por ambiguidades e a consolidação de categorias sociais de comportamento sexual e raça, por exemplo, favorece o processo de categorização fundamentado em percepções sociais. Uma vez que os TLF precisam escolher com base em seu conhecimento comum e perspectivas, o uso de categorias sociais pode ser (e provavelmente será) construído em julgamentos e estereótipos. As conexões feitas entre a percepção sobre os potenciais beneficiários e suas famílias ou os espaços de sociabilidade frequentados pelos jovens mostram como os trabalhadores operam o processo de categorização, relacionando pobreza e vulnerabilidade com a exposição ao vírus.

    Como já apontado pela literatura33 Schneider AL, Ingram HM. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.,1010 Lotta G, Costa MIS. Uso de categorizações políticas e sociais na implementação de políticas: contribuições teóricas e analíticas. Rev. Soc. Política. 2020 [acesso em 2021 dez 7]; 28(76):1-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1678-987320287604.
    https://doi.org/10.1590/1678-98732028760...
    , em um contexto de grandes desigualdades, o estudo da (re)produção da desigualdade na implementação de políticas sociais é, em parte, em torno do próprio desenho da política. Cristaliza categorias sociais mergulhadas em estereótipos e imprecisões. Conforme o evidenciado por Bastos1818 Bastos FI. Da persistência das metáforas: estigma e discriminação & HIV/AIDS. In: Monteiro S, Villela W. Estigma e saúde. São Paulo: Editora Fiocruz; 2013. e Cazeiro et al.2222 Cazeiro F, Silva GSD, Souza EMFD. Necropolítica no campo do HIV: algumas reflexões a partir do estigma da Aids. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 out 3]; 26(3):5361-5370. Disponível em: https://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/necropolitica-no-campo-do-hiv-algumas-reflexoes-a-partir-do-estigma-da-aids/17560?id=17560.
    https://cienciaesaudecoletiva.com.br/art...
    , tais características resultam da trajetória de conflito da política de HIV/Aids nos debates sociais e políticos. Na esteira da epidemia dos anos 1980, o HIV era um tema chocante, permeado por polêmicas em torno da moralidade. Após anos de campanhas e conquistas dos movimentos sociais, o cenário institucional atual é de proteção e reconhecimento de direitos das pessoas infectadas pelo HIV. No sistema de saúde, isso se traduz tanto em serviços de tratamento, quando a infecção já aconteceu, quanto em políticas preventivas.

    É inegável que o sistema de saúde brasileiro possui políticas específicas de proteção e redução de desigualdades para determinados grupos e doenças, como a política de HIV/ Aids. No entanto, o potencial de reprodução de desigualdades é uma herança do conflito e das ambiguidades que marcaram sua formulação. Quando se trata dos TLF, eles podem reproduzir as desigualdades já apresentadas na formulação de políticas. Além disso, considerando a ambiguidade das categorias políticas, elas também podem introduzir categorias sociais adicionais baseadas em julgamentos e preconceitos que reforçam as desigualdades. Isso é ainda mais evidente quando se comparam serviços da atenção primária e especializados nas ações de prevenção de HIV com os jovens. As categorias políticas são mais utilizadas entre os serviços especializados do que entre aqueles com abordagens da atenção primária, criando espaço para ainda mais uso de categorias sociais.

    Considerações finais: a influência mútua das categorias políticas e sociais

    Este artigo analisou os processos de categorização dos jovens desenvolvidos na implementação da política de prevenção ao HIV em um bairro vulnerável da cidade de São Paulo, buscando observar especificidades em três diferentes tipos de serviços: APS, serviços especializados em HIV e serviços de saúde mental. O objetivo foi entender como os TLF operam categorias sociais e políticas diante de um quadro institucional de ambiguidades e conflitos nas regras e diretrizes que norteiam seu trabalho cotidiano.

    Os resultados sugerem que as categorias sociais e políticas têm influência mútua. Em primeiro lugar, a despeito das mudanças na legislação sobre o tema e os crescentes debates sobre a construção de normativas menos estigmatizantes, as categorias políticas ainda são legitimadas por meio de percepções sociais de normalidade e risco, especialmente ao lidar com a população prioritária, como os negros, por exemplo. Isso significa que a reprodução de estereótipos começa na normativa, mas pode ser ampliada na implementação de políticas.

    Isso acontece devido à ambiguidade das normas que delegam aos serviços a escolha de quem será o verdadeiro grupo-alvo. Há uma diferença especial entre os serviços: os serviços especializados lidam com usuários concretos, enquanto os da atenção primária, com potenciais usuários; e os TLF precisam identificar quem está mais vulnerável à infecção pelo HIV. Esse fato influencia a forma como os TLF utilizam as categorias em seu trabalho, uma vez que os serviços especializados em IST estão mais familiarizados com as categorias políticas, e os serviços de APS e os de saúde mental têm que complementar seu conhecimento com noções sociais compartilhadas para encontrar o grupo-alvo.

    A esse respeito, as categorias sociais operam frequentemente no contexto da implementação de políticas, reforçando os estigmas e os juízos ao selecionar os grupos mais vulneráveis ao risco. Na prática, esse contexto pode reforçar os estigmas com alguns jovens, como negros e pobres, mães solteiras e a comunidade LGBTQIA+. Análises de estudos anteriores sugerem que o estigma constitui um tema central para o processo saúde-doença, visto que ainda promove adoecimento e sofrimento psíquico e social de determinados grupos sociais, pois o preconceito e a estigmatização podem ser mais letais que o próprio vírus2222 Cazeiro F, Silva GSD, Souza EMFD. Necropolítica no campo do HIV: algumas reflexões a partir do estigma da Aids. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2021 out 3]; 26(3):5361-5370. Disponível em: https://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/necropolitica-no-campo-do-hiv-algumas-reflexoes-a-partir-do-estigma-da-aids/17560?id=17560.
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    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Mar 2023
    • Data do Fascículo
      Dez 2022

    Histórico

    • Recebido
      06 Ago 2022
    • Aceito
      10 Set 2022
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