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Prevalência de Violência Sexual com contato e sem contato contra homens brasileiros e fatores associados a sexo forçado

Prevalence of contact and non-contact sexual violence against Brazilian men and factors associated with forced sex

RESUMO

Objetivou-se estimar a prevalência da Violência Sexual (VS) contra homens brasileiros e fatores associados. Estudo transversal, que estimou a prevalência de várias formas de VS entre homens brasileiros por meio de questionário virtual. Participaram do estudo 1.241 homens de todos os estados. A maioria era jovem, entre 18 e 39 anos de idade (61,7%), heterossexual (50,2%), do Sudeste (54,4%), das classes socioeconômicas C/D/E (72,1%) e brancos (64,3%). Sobre as prevalências de VS, 70,5% afirmaram ter sofrido VS sem contato, 43,1%, VS com contato, 23,9%, VS com penetração, e 33,1%, sexo forçado. Ser bissexual, ser homossexual e ser divorciado/separado aumentaram as chances de sofrer sexo forçado. Este estudo indica que homens bissexuais e homossexuais têm mais chances de sofrer VS, corroborando outras pesquisas. Entre divorciados/separados, as chances de sofrer VS também se mostraram significativas e precisam ser mais bem exploradas. O estudo oferece a possibilidade de problematização para acolhimento de homens vítimas de VS, pensando majoritariamente na prevenção de efeitos adversos após a violência e na implantação de políticas públicas da área da saúde mais direcionadas para o público-alvo, considerando os principais fatores associados.

PALAVRAS-CHAVES
Delitos sexuais; Abuso sexual na infância; Saúde do homem; Política de saúde; Estudos transversais

ABSTRACT

We aimed to estimate the prevalence of sexual violence against Brazilian men and associated factors. A cross-sectional study was conducted, which estimated the prevalence of various forms of sexual violence among Brazilian men by means of a virtual questionnaire. A total of 1241 men from all Brazilian states participated in the study. Most participants were young men between 18 and 39 years (61.7%), heterosexual (50.2%), from the Southeast (54.4%), from socioeconomic classes C/D/E (72.1%), and white (64.3%). Regarding the prevalences of sexual violence, 70.5% reported non-contact sexual violence, 43.1% sexual violence with contact, 23.9% sexual violence with penetration, and 33.1% forced sex. Being bisexual homosexual, and being divorced/separated increased the odds of experiencing forced sex. This study indicates that bisexual and homosexual men are more likely to suffer sexual violence, corroborating other research. Among divorced/separated men the chances of experiencing sexual violence were also significant and need to be further explored. The study offers the possibility of problematization for the care of male victims of sexual violence, focusing mainly on the prevention of adverse effects after violence and the implementation of public policies in health that are more directed to the target audience, considering the main associated factors.

KEYWORDS
Sex offenses; Child abuse, sexual; Men’s health; Health policy; Cross-sectional studies

Introdução

O tema da violência tem sido estudado há longa data no campo das ciências sociais. Na área da saúde, contudo, ele foi introduzido recentemente em decorrência da percepção de que as situações de violência impactam diretamente no bem-estar dos sujeitos11 Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.. A compreensão sobre os agravos à saúde fez com que o Ministério da Saúde (MS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) se posicionassem sobre o tema. Em 2001, o MS publicou o documento intitulado ‘Política Nacional de Redução de Mortalidade por Acidentes e Violência’22 Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência. Rev Saúde Pública. 2000 [acesso em 2022 jan 15]; 34(4):427-30. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102000000400020.
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. Na mesma direção, a OMS publicou, em 2002, o ‘Relatório Mundial sobre Violência e Saúde’33 Dahlberg LL, Krug EG. Violência: um problema global de saúde pública. Ciênc. saúde coletiva. 2006 [acesso em 2022 jan 15]; (11):1163-78. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232006000500007.
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, definindo violência como aquilo que afeta a saúde e o bem-estar dos indivíduos e identificando a violência como um problema grave de saúde pública.

Nos estudos sobre violência, é possível identificar evidências de que algumas formas persistem no tempo e se estendem por diversas culturas11 Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006., 44 Njaine K, Constantino P, Avanci JQ, organizadores. Impactos da violência na saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; Educação à distância da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2009. p. 21-42., como é o caso da Violência Sexual (VS); e, embora o MS e a OMS tenham se posicionado apenas no começo dos anos 2000, estudos já indicavam que a VS se tratava de um problema de grande magnitude55 Pereda N, Guilera G, Forns M, et al. The international epidemiology of child sexual abuse: a continuation of Finkelhor (1994). Child Abuse Negl. 2009 [acesso em 2022 jan 15]; 33(6):331-42. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2008.07.007.
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No Brasil, tem-se a publicação anual do ‘Relatório do Disque Direitos Humanos – Módulo Criança e Adolescente’, indicando que, no ano de 202066 Brasil. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Disque Direitos Humanos. Relatório 2019. Brasília, DF: MMFDH; 2020., 82% das notificações de VS realizadas foram contra meninas e 18% contra meninos. De acordo com uma revisão de literatura sobre VS no Brasil, a prevalência de VS autodeclarada entre meninas e mulheres varia de 1% a 40%, e entre meninos e homens, de 2% a 35%77 Winzer L. Frequency of self-reported sexual aggression and victimization in Brazil: a literature review. Cad. Saúde Pública. 2016 [acesso em 2022 jan 15]; 32(7):e00126315. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00126315.
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. Com relação à diferença nas notificações encontradas entre os gêneros das vítimas, Hohendorff e colaboradores88 Hohendorff JV, Habigzang LF, Koller SH. Violência sexual contra meninos: dados epidemiológicos, características e consequências. Psicol USP. 2012 [acesso em 2022 jan 15]; 23(2):395-416. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642012005000007.
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sustentam que não é possível afirmar que a VS contra meninos se trata de um problema de menor magnitude em comparação às meninas em decorrência, justamente, dos problemas de subnotificação que são retroalimentados pela cultura machista.

Em 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou a mais recente Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), que pela primeira vez incluiu questões sobre VS. De acordo com a PNS, a prevalência de VS entre brasileiros/as com 18 anos ou mais nos últimos 12 meses antes da entrevista ou ao longo da vida foi de 5,9%; e, quando analisado apenas contra homens, foi de 2,5%, o que representaria cerca de 2 milhões de homens com 18 anos ou mais vítimas de VS99 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional de Saúde – acidentes, violência. Brasília, DF: IBGE; 2019.. Embora a PNS represente um grande avanço na produção de dados para formulação de políticas públicas, as informações que se tem sobre VS contra homens brasileiros ainda são insuficientes, o que já apontava Hohendorff e colaboradores em 201288 Hohendorff JV, Habigzang LF, Koller SH. Violência sexual contra meninos: dados epidemiológicos, características e consequências. Psicol USP. 2012 [acesso em 2022 jan 15]; 23(2):395-416. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642012005000007.
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Além dos problemas da subnotificação e dos poucos dados representativos com os homens da população geral, outros estudos indicam que determinados grupos podem ser mais vulneráveis à VS, por exemplo, os Homens que fazem Sexo com Homens (HSH), bissexuais e homossexuais1010 Spizzirri G, Eufrásio RÁ, Abdo CHN, et al. Proportion of ALGBT adult Brazilians, sociodemographic characteristics, and self-reported violence. Sci Rep 12. 2022 [acesso em 2022 ago 15]; (11176). Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41598-022-15103-y.
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, 1111 Sweet T, Welles SL. Associations of sexual identity or same-sex behaviors with history of childhood sexual abuse and HIV/STI risk in the United States. J Acquir Immune Defic Syndr. 2012 [acesso em 2022 ago 15]; 59(4):400-8. Disponível em: https://doi.org/10.1097/QAI.0b013e3182400e75.
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. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo estimar a prevalência da VS contra homens brasileiros e fatores associados, buscando contribuir para a construção de ações estratégicas a ser adotadas por políticas públicas no País.

Material e métodos

Trata-se de um estudo transversal, que estimou a prevalência de VS entre homens brasileiros por meio de questionário virtual (Google Forms). Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário de Várzea Grande (protocolo CAAE 37312020.0.0000.5692, parecer CEP 4.286.977).

Os participantes foram recrutados por meio da internet mediante divulgação em redes sociais (Facebook e Instagram), além de o questionário ter sido publicado no site da primeira Organização Não Governamental (ONG) brasileira que oferece suporte psicológico para homens vítimas de VS, a Memórias Masculinas. A pesquisa foi também amplamente divulgada pelo WhatsApp na rede de contato dos pesquisadores. Foram considerados elegíveis para participação homens, acima de 18 anos, que sinalizaram voluntariamente o consentimento no formulário virtual.

A coleta de dados foi realizada por meio de bloco de informações, sendo incialmente coletadas informações sociodemográficas, tais como: sexo, identidade de gênero, orientação sexual, localidade de moradia, idade, grau de instrução, raça/cor, status religioso, situação conjugal e renda. Posteriormente às respostas sobre as características pessoais dos participantes, utilizou-se o questionário National Institute of Child Health and Human Development (NICHD), para investigar situações de VS com ou sem contato. O NICHD é um instrumento amplamente utilizado e nacionalmente validado1212 Williams LCA, Hackbarth C, Blefari CA, et al. Investigação de suspeita de abuso sexual infantojuvenil: o Protocolo NICHD. Temas psicol. 2014 [acesso em 2022 jun 19]; 22(2):415-432. Disponível em: http://dx.doi.org/10.9788/TP2014.2-12.
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para rastreio de VS entre crianças e adolescentes. Além desse instrumento, utilizou-se a pergunta: ‘Alguma vez na vida alguém forçou você a ter relações sexuais?’, com possibilidade de resposta dicotômica (Sim/Não).

Foram realizadas análises descritivas, e calculada a prevalência de VS com contato, sem contato, com penetração e sexo forçado. A variável VS sem contato foi obtida por meio das perguntas do NICHD que não incluíam contato físico, por exemplo: exposição à pornografia, conversas sexuais e exibicionismo. A variável VS com contato também foi extraída das perguntas do NICHD em que as situações de violência tinham contato físico, mas sem penetração (masturbação por cima ou por baixo da roupa, beijos ou abraços de forma sexual forçados, contato com os genitais sem penetração etc.). Por fim, a variável VS com penetração foi conseguida das perguntas do NICHD que incluíam penetração oral, vaginal e anal com genitais, dedos e objetos. Estimou-se também a prevalência de sexo forçado ao menos uma vez na vida a partir da pergunta ‘Alguma vez na vida alguém forçou você a ter relações sexuais?’. Ter sofrido sexo forçado pelo menos uma vez vida foi considerada variável de desfecho. A associação entre as variáveis selecionadas e o sexo forçado foi analisada por meio do teste de qui-quadrado. A partir dos resultados, foram selecionadas as variáveis que estiveram associadas com o desfecho com valor de p ≤0,20 para compor as análises uni e multivariada. O modelo foi ajustado por idade, escolaridade e nível socioeconômico. Calculou-se a Odds Ratio (OR), e respectivos intervalos de confiança de 95%, por meio da Regressão Logística no STATA (versão 15.1).

Resultados

A amostra foi composta por 1.241 pessoas do gênero masculino, maiores de 18 anos de idade de todos os estados brasileiros. Na sua maioria, os participantes eram pessoas entre 18 e 39 anos de idade (61,7%), do sexo masculino (99,5%), visto que também foram incluídas pessoas trans e não binárias, heterossexuais (50,2%), da região Sudeste (54,4%), das classes socioeconômicas C/D/E (72,1%), brancos (64,3%), pertencentes a alguma religião (54,4%), solteiros (53,8%), com mais de 12 anos de estudo (99,1%) e vítimas de violência física (59,2%) (tabela 1).

Tabela 1
Distribuição das características socioeconômicas segundo as experiências de Violência Sexual com contato, sem contato, com penetração, Brasil, 2021, (n=1.241)

Em relação às características pessoais e as VS sofridas, os participantes entre 25 e 39 anos, bissexuais, nortistas, de classe socioeconômica D, pretos ou pardos, sem religião, divorciados ou separados, com menos de 12 anos de estudo foram os que mais sofreram VS sem contato. Essas maiorias se repetem também entre os participantes que foram vítimas de VS com contato, com exceção da região do País, sendo os nordestinos a maioria e os pertencentes a alguma religião. Por outro lado, a faixa etária de 40 a 59 anos, bissexuais, nordestinos, pertencentes à classe socioeconômica C, amarelos ou indígenas, pertencentes a alguma religião, divorciados ou separados, com menos de 12 anos de estudo foram os que mais sofreram situações de VS com penetração (tabela 1).

Entre as características dos participantes e a associação com o tipo de violência, estiveram associados a VS sem contato, orientação sexual, região do País, classe socioeconômica, situação conjugal e ter sofrido violência física. Em relação à VS com contato, estiveram associados: sexo de nascimento, orientação sexual, região do País, raça e histórico de violência física. Por fim, estiveram associados à VS com penetração: faixa etária, orientação sexual, região do País, status religioso e situação conjugal (tabela 1).

Referente à orientação sexual e as formas de VS, foi possível observar que, entre os homossexuais – e, principalmente, entre os bissexuais –, as prevalências de todas as formas de VS foram mais altas. Foi possível perceber também que a VS sem contato é a mais prevalente, independentemente da orientação sexual, seguida da VS com contato, enquanto a VS com penetração foi menos prevalente para qualquer orientação sexual (gráfico 1).

Gráfico 1
Prevalência de violência sexual contra homens brasileiros a partir da orientação, Brasil, 2021, (n=1241)

Com relação à prevalência dos tipos de VS, as formas de violência sem contato são as mais prevalentes (70,5%), seguidas de com contato (43,1%) e com penetração (23,9%). No que diz respeito a sexo forçado, a prevalência foi de 33,1% (tabela 2).

Tabela 2
Prevalência dos tipos de Violência Sexual entre homens brasileiros, 2021, (n=1.241)

Sobre a prevalência de sexo forçado, a partir das características dos participantes, observou-se que a faixa etária de 25 a 39 anos foi a mais vitimada (34,3%), sem diferença em relação ao sexo; seguida de bissexuais (41,5%), nortistas (41,3%), pessoas da classe A (41,0%), pretos ou pardos (36;6%), pertencentes a alguma religião (35,8%), divorciados/separados (49,1%), com mais de 12 anos de estudo (33,1%) e que sofreram também violência física (35,2%). Estiveram associados ao sexo forçado: a orientação sexual (p valor <0.01), a raça (p valor 0.19), a religião (p valor 0.01), a situação conjugal (p valor 0.01) e a violência física (p valor 0.17) (tabela 3).

Tabela 3
Prevalência de sexo forçado a partir das características dos participantes e análises uni e multivariada, Brasil, 2021, (n=1241)

No modelo univariado, bissexuais (OR 1.81; IC95%: 1.27-2.59), homossexuais (OR 1.46; IC95%: 1.12-1.91), homens da classe B (OR 0.61; IC95%: 0.37-1.0), sem religião (OR 0.73; IC95%: 0.57-0.94) e divorciados/separados (OR 2.20; IC95%: 1.27-3.84) foram os que apresentaram risco para sofrer sexo forçado. No modelo final, apenas ser bissexual (OR 1.69; IC95%: 1.13-2.54), homossexual (OR 1.40; IC95%: 1.02-1.92), ser da classe B (OR 0.57; IC95%: 0.32-0.99), C (OR 0.64; IC95%: 0.39-1.04), E (OR 0.39; IC95%: 0.15-1.02) e ser divorciado/separado (OR 2.48; IC95%: 1.34-4.57) mantiveram-se independentemente associados a sexo forçado.

Discussão

A partir dos resultados desta investigação, foi possível observar que os homens bissexuais e homossexuais têm maiores chances de sofrerem VS se comparados com os heterossexuais. Na mesma direção desses resultados, um estudo realizado em alguns municípios do interior de São Paulo estimou uma prevalência de VS aproximadamente duas vezes maior em adolescentes não heterossexuais do que em heterossexuais1313 Teixeira-Filho FS, Rondini CA. Ideações e tentativas de suicídio em adolescentes com práticas sexuais hetero e homoeróticas. Saude soc. 2012 [acesso em 2022 ago 15]; 21(3):651-67. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902012000300011.
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. Outra pesquisa realizada com jovens na Califórnia (Estados Unidos da América – EUA) identificou que, de todas as formas de assédio e VS investigadas, exceto o assédio sexual cibernético, as pessoas que se identificaram como LGBTQIA+ foram as vítimas mais frequentes1414 Inwards-Breland DJ, Johns NE, Raj A. Sexual Violence Associated With Sexual Identity and Gender Among California Adults Reporting Their Experiences as Adolescents and Young Adults. JAMA Netw Open. 2022 [acesso em 2022 jun 19]; 5(1):e2144266. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2788245.
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Estudo realizado em Washington, DC, identificou que o grupo de HSH que sofreram VS na infância representa um número expressivamente maior quando comparado a homens heterossexuais1515 Phillips G, Magnus M, Kuo I, et al. Childhood sexual abuse and HIV-related risks among men who have sex with men in Washington, DC. Arch Sex Behav. 2014 [acesso em 2022 jun 19]; 43(4):771-8. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24573398/.
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. Uma possível explicação para esse resultado pode estar relacionada com a tensão produzida pela construção social do homem como ser universal, ou seja, a ideia de que os homens possuem o mesmo reportório de comportamentos, sentimentos e relações; e, nesse sentido, os homens bissexuais e homossexuais produzem uma tensão ao não corresponderem com o comportamento hegemônico do ser homem. De acordo com Silva Junior e Silva1616 Silva Junior JA, Silva MLR. De guri a cabra macho: masculinidades no Brasil. In: Caetano M, Silva Junior PM, editores. De guri a cabra macho: masculinidades no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina; 2018. p. 86-107., os homens bissexuais e homossexuais, ao não representarem o ideal viril, que se relaciona sexualmente apenas com mulheres, tornam-se passíveis de violências como uma forma de correção. Os violentadores podem, ainda, sentir-se autorizados a atos não consentidos por considerarem que homens bissexuais e homossexuais estão preparados ou autorizados aos abusos.

Assim como os homens bissexuais e homossexuais, os separados e/ou divorciados também apresentaram maior risco de serem vítimas de violência. Por se tratar de um estudo transversal, não foi possível identificar em que momento na história de vida o sexo forçado aconteceu, mas a hipótese é de que os homens vítimas de VS apresentam, como consequência da violência, uma série de problemas relacionados com saúde mental e bem-estar, podendo, inclusive, dificultar na manutenção das relações interpessoais. Nessa hipótese, reforçada a partir dos resultados de uma pesquisa teórica sobre VS contra meninos e homens88 Hohendorff JV, Habigzang LF, Koller SH. Violência sexual contra meninos: dados epidemiológicos, características e consequências. Psicol USP. 2012 [acesso em 2022 jan 15]; 23(2):395-416. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642012005000007.
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, é possível identificar evidências de que meninos e homens vítimas de VS apresentam problemas na manutenção de relações íntimas e dificuldades interpessoais. Com as mulheres esse fenômeno também foi observado: uma revisão integrativa realizada para identificar consequências na satisfação sexual de mulheres que foram vítimas concluiu que elas podem apresentar dificuldade para manter relações íntimas1717 Krindges CA, Macedo DM, Habigzang LF. Abuso sexual na infância e suas repercussões na satisfação sexual na idade adulta de mulheres vítimas. Contextos Clínic. 2016 [acesso em 2022 jun 19]; 9(1):60-71. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2016.91.05.
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. Nesse sentido, mais estudos com abordagens metodológicas distintas para explicar melhor esse resultado entre os homens são necessários; todavia, é possível que os homens vítimas de VS possam ter problemas de ajustamento social, não conseguindo permanecer em relações amorosas estáveis.

Na presente amostra, a prevalência de VS sem contato foi muito maior do que as situações de violência com contato e com penetração. Uma revisão sobre VS contra homens, que incluiu estudos dos EUA, Canadá e outros países, concluiu que a prevalência de violência variou de 1% para estupro a 30% para qualquer forma de contato sexual coercitivo1818 Peterson ZD, Voller EK, Polusny MA, et al. Prevalence and consequences of adult sexual assault of men: review of empirical findings and state of the literature. Clin Psychol Rev. 2011 [acesso em 2022 ago 15]; 31(1):1-24. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21130933/.
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. Uma pesquisa realizada entre HSH chineses, que estimou a prevalência de VS com e sem contato, indicou que a prevalência da VS sem contato foi maior que a da violência com contato, 36,2% e 29,8% respectivamente1919 Xu W, Zheng L, Zheng Y. Prevalence of non-contact and contact childhood sexual abuse: An Internet-based sample of men who have sex with men in China. PLoS One. 2017 [acesso em 2022 ago 15]; 12(4):e0175444. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0175444.
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Esse cenário também se repete em situações com crianças e adolescentes. De acordo com uma pesquisa realizada em Salvador, na Bahia, concluiu-se que os atos libidinosos em crianças da faixa etária ‘até 12 anos’ representaram 59%, enquanto os atos considerados relação sexual, que envolveram sexo oral e relações sexuais vaginal e anal, foram de 18,18%2020 Viodres Inoue SR, Ristum M. Violência sexual: caracterização e análise de casos revelados na escola. Estud psicol (Campinas). 2008 [acesso em 2022 ago 15]; 25(1):11-21. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-166X2008000100002.
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. Provavelmente, a preferência da prática de atos não penetrativos por parte do abusador seja maior devido ao fato de não deixarem marcas e vestígios do crime na vítima, dificultando, assim, a coleta de material para comprovação da violência e identificação do criminoso, o que também afasta o violentador da acusação do crime.

É importante destacar que as prevalências de VS com contato e sem contato, as experiências de violência que incluem conversas sexuais, exposição a pornografia, toques, carícias, beijo forçado, entre outras, foram expressivamente altas. O fato de haver poucas pesquisas com amostras representativas da população masculina brasileira e se tratar de um assunto bastante delicado em que há um problema gravíssimo na subnotificação88 Hohendorff JV, Habigzang LF, Koller SH. Violência sexual contra meninos: dados epidemiológicos, características e consequências. Psicol USP. 2012 [acesso em 2022 jan 15]; 23(2):395-416. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642012005000007.
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impede de concluir que isso representa a realidade dos homens da população geral. Além disso, a pesquisa foi divulgada no site e nas redes sociais da ONG Memórias Masculinas, que oferece suporte psicológico para homens brasileiros vítimas de VS, podendo caracterizar um viés de seleção. Assim, é provável que os homens que tiveram acesso à pesquisa pelo site pudessem estar procurando ajuda. Nesse sentido, essa é uma limitação deste estudo. Por outro lado, em relação às prevalências de sexo forçado e/ou VS com penetração, os dados são similares aos já encontrados em populações masculinas.

Outra característica deste estudo foi ter incluído na amostra homens transexuais. Isso pode ter afetado os resultados já que todos os homens trans que participaram do estudo foram vítimas de VS sem contato e com contato. Novamente, por se tratar de um estudo transversal, em que não era o objetivo estabelecer uma relação causal, não se sabe se os homens trans sofreram essas violências ainda quando pertenciam ao gênero feminino ou se essas violências aconteceram enquanto homens. O que se sabe é que os homens trans têm sido expostos a situações de VS como uma forma de corrigir algo que poderia causar a transgeneridade neles2121 Mujugira A, Kasiita V, Bagaya M, et al. You are not a man”: a multi-method study of trans stigma and risk of HIV and sexually transmitted infections among trans men in Uganda. J Int AIDS Soc. 2021 [acesso em 2022 ago 15]; 24(12):e25860. Disponível em: https://doi.org/10.1002/jia2.25860.
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, o que se considera completamente absurdo e inadmissível. De todo modo, reforça-se que os profissionais de saúde precisam estar aptos para acolher esses e todos os homens, ajudando-os a evitar consequências dessas violências.

Considerações finais

Conhecer a prevalência de VS contra homens no Brasil é fundamental para o desenvolvimento de estratégias de combate a tal transgressão, além de cuidados efetivos valorizando a individualidade da situação. Este estudo trouxe maiores dados e perspectivas sobre o assunto, percebendo maior prevalência de VS entre homens não heterossexuais, tendo provável relação direta sobre a construção social desses indivíduos e relação indireta com várias esferas da sociedade. Além disso, é necessário atentar para o impacto que a violência pode produzir, dificultando a manutenção de relações íntimas por longos períodos, como é o caso dos divorciados/separados. A esse respeito, mais investigações precisam ser feitas.

O estudo oferece, portanto, a possibilidade de problematização para acolhimento de homens vítimas de VS, pensando majorita-riamente na prevenção de efeitos adversos após a violência e na implantação de políticas públicas da área da saúde mais direcionadas para o público-alvo, considerando os principais fatores associados.

  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2022
  • Aceito
    21 Mar 2023
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