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Sérgio Arouca na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp

Sérgio Arouca at the UNICAMP School of Medical Sciences

RESUMO

Este trabalho resgatou a passagem do médico sanitarista e professor universitário Antônio Sérgio da Silva Arouca pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre 1967 e 1975, mediante estudo de três documentos importantes conservados nessa instituição, a saber, seu Processo de Vida Funcional, a Revista Comemorativa dos 25 anos do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas, onde consta depoimento seu, e o Relatório Final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”. No Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, encontrou ambiente propício para atuar conforme suas convicções. Integrou-se à disciplina de Ciências Sociais Aplicadas à Medicina, cujo conteúdo teórico dialogava com ações extramuros desenvolvidas pelos alunos em bairro pobre da cidade, com o intuito de lhes propiciar a oportunidade de reconhecer a importância e a influência dos fatores sociais sobre o estado de saúde dos indivíduos e das populações. Tal experiência, muito provavelmente, influenciou sobremaneira o jovem docente que, anos depois, produziria uma tese de extrema relevância para formulação e consolidação da saúde coletiva brasileira e presidiria a VIII Conferência Nacional de Saúde, que estabeleceu as bases do Sistema Único de Saúde.

PALAVRAS-CHAVES
Saúde pública; Sistema Único de Saúde; Universidade; História da medicina

ABSTRACT

This work recovers the passage of the public health physician and university professor Antônio Sérgio da Silva Arouca through the State University of Campinas (UNICAMP), between 1967 and 1975, through the study of three important documents kept in this institution, namely, his Functional Life File, the Commemorative Magazine of the 25th anniversary of the Department of Preventive and Social Medicine of the Faculty of Medical Sciences, where his statement is included, and the Final Report of the “Octávio Ianni” Truth and Memory Commission. At the UNICAMP’s Department of Preventive and Social Medicine, he found a favorable environment to act according to his convictions. He joined the discipline of Social Sciences Applied to Medicine, whose theoretical content dialogued with extramural actions developed by students in poor neighborhoods of the city, in order to give them the opportunity to recognize the importance and influence of social factors on the health status of individuals and populations. This experience probably had a great influence on the young professor who, years later, would produce a thesis of extreme relevance for the formulation and consolidation of Brazilian Public Health, and preside over the 8th National Health Conference, which established the bases for the Unified Health System.

KEYWORDS
Public health; Unified Health System; Universities; History of medicine

Introdução

Antônio Sérgio da Silva Arouca foi médico sanitarista, professor universitário, pesquisador e político, engajado na defesa da saúde como direito para todos e dever do Estado. Suas atividades profissionais “estiveram sempre associadas à militância política”11 Escorel S. Sergio Arouca: Democracia e Reforma Sanitária. In: Hochman G, Lima NT, organizadores. Médicos intérpretes do Brasil. São Paulo: Hucitec; 2015.(620). Presidiu a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que estabeleceu as bases do Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei nº 8.080 de 1990. Foi professor na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 1967 e 1975 e, posteriormente, professor da Escola Nacional de Saúde Pública e presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Sua tese, ‘O Dilema Preventivista’, é um marco da mudança de paradigma da saúde pública brasileira e um dos documentos que respaldam o nascimento da saúde coletiva contemporânea. Existe vasta produção sobre a sua vida profissional, acadêmica e política, em teses, artigos, sites e livros, com recorrente destaque para sua trajetória enquanto pesquisador e professor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) e como político. Esta pesquisa investigou sua passagem pela Unicamp, um período em geral menos estudado e pouco relatado nas demais obras. Para isso, analisou-se seu Processo de Vida Funcional, a Revista Comemorativa dos 25 anos do Departamento de Medicina Preventiva e Social da FCM da Unicamp, onde consta depoimento seu, e o Relatório Final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni” da Unicamp.

Material e métodos

Trata-se de pesquisa documental – “procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para a apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos”22 Sá-Silva JR, Almeida CD, Guindani JF. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Rev. Bras. Hist. Amp. Ciênc. Soc. 2009; 1(1).(5). Tendo em vista os objetivos da pesquisa, foram selecionados os seguintes documentos, conservados na Unicamp e que não receberam até o momento nenhum tratamento, considerados, portanto, fontes primárias: Processo de Vida Funcional de Antônio Sérgio da Silva Arouca na Unicamp (1967 a 1975), a Revista Comemorativa dos 25 anos do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da FCM/Unicamp (1990) e o Relatório Final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”, da Unicamp (2015). Foram produzidos em contextos e intencionalidades diferentes. O primeiro foi sendo elaborado durante os anos que Arouca trabalhou na Unicamp e tinha por objetivo o registro e acompanhamento de suas atividades enquanto funcionário da instituição, ocupando o cargo de professor. Tem, portanto, caráter mais administrativo e descritivo. O segundo, de 1990, é fruto de encontro comemorativo dos 25 anos do DMPS e reproduz discurso de um Arouca mais maduro e experiente, que olha para o seu passado no DMPS. O último documento selecionado faz referência a Arouca apenas de forma indireta e restrita à lente dos efeitos da ditadura militar em sua trajetória dentro da universidade.

Após a seleção e análise da validade e consistência dos documentos, procedeu-se à leitura dos mesmos e busca de informações que respondessem aos objetivos da pesquisa.

Resultados e discussão

No processo de vida funcional de Arouca na Unicamp constam vários documentos, desde aqueles entregues a esta instituição em 1967, com o objetivo de apresentar-se como candidato a professor, até seu desligamento em 1975.

Arouca nasceu na casa dos pais, à rua Florêncio de Abreu, em Ribeirão Preto, São Paulo, a 20 de agosto de 1941, filho de José Pereira Arouca, funcionário público, e de Alzira da Silva Arouca, “prendas domésticas”33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(14).

Estudou na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), da Universidade de São Paulo. Graduou-se a 3 de dezembro de 1966, sendo, nessa ocasião, diretor o Prof. José Moura Gonçalves. No que se refere a seu percurso dentro da FMRP, encontramos que participou ativamente do Centro Acadêmico Rocha Lima (CARL), tendo sido diretor do Departamento Cultural entre 1964 e 1965. O CARL conferiu a Arouca o Diploma de Mérito Acadêmico por sua atuação como membro da Liga de Assistência Médico Social, a mais antiga em funcionamento, fundada em 1957, com a “finalidade de despertar e desenvolver, entre os universitários, o espírito de medicina social e assistir médica e socialmente a população” 33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(28–42),44 Coelho GG, Ferrarese SRB. Centro Acadêmico Rocha Lima. Rev. Med. 2002 [acesso em 2021 jun 2]; (35):440-446. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rmrp/issue/view/59.
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(444). Participou da organização do Posto de Puericultura José Jacques, na cidade de Ribeirão Preto, tendo sido reconhecido com a atribuição do Diploma de Mérito Acadêmico. Foi membro da Liga Brasileira de Combate à Moléstia de Chagas, tendo proferido palestra sobre “Problemas da Moléstia de Chagas no Brasil”33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(28) na cidade de Jardinópolis, em 1965.

Com o intuito de se apresentar ao pleitear vaga de professor na Unicamp, Arouca incluiu em seu processo de vida funcional vários outros documentos, como certificados de plantonista e cursos realizados ainda na condição de estudante de medicina. Destacam-se aqueles relacionados ao curso de Leprologia e a atividades junto ao Serviço de Hidratação Infantil do Pronto Socorro Municipal, durante o ano de 1966, revelando a importância dessa doença e da desnutrição infantil naquele período33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(21–32).

Em 1966, recebeu o Prêmio Comendador Assad Abdalla, instituído pelas Indústrias York S. A., por ter sido o aluno que mais se distinguiu nas atividades junto ao Departamento de Higiene e Medicina Preventiva da FMRP33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(40). Nesse mesmo ano, foi agraciado com um dos prêmios oferecidos pelo Departamento de Oftalmologia por: “composições sobre temas ligados à visão (viagem ao Rio de Janeiro)”33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(45), conforme consta em declaração do Prof. Dr. Almiro Pinto de Azevedo, Catedrático.

Em 1967, já formado, atuou como consultor médico de filme sobre moléstia de Chagas, produzido pelo CARL33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(28).

Em declaração escrita em 20 de fevereiro de 1967, o instrutor do Departamento de Higiene e Medicina Preventiva da FMRP, Dr. José Romero Teruel, afirma que

a capacidade e esforço já demonstrado por esse médico permite acreditar que o mesmo venha a ser, em futuro próximo, elemento de real valor para colaborar em docência e mesmo pesquisa ligada ao setor de Medicina Preventiva e Medicina Social33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(44).

Nessa mesma data, o professor associado Geraldo Garcia Duarte redige a seguinte carta, endereçada ao diretor do DMPS da Unicamp, Prof. Miguel Ignácio Tobar Acosta:

Prezado Dr. Tobar, Tem esta a finalidade de apresentar a V. S. o Dr. Antônio Sergio da Silva Arouca, nosso ex-aluno que demonstrou durante toda sua atividade de estudante de medicina um interesse particular pelo Departamento de Higiene e Medicina Preventiva desta Faculdade. O Departamento, reconhecendo o interesse e as atividades escolares do Dr. Arouca outorgou-lhe o prémio Comendador Assad Abdalla das Indústrias York, para o melhor aluno do ano. Além de ter sido um dos melhores alunos do Departamento de Higiene e Medicina Preventiva, o Dr. Arouca participou ativamente da campanha de vacinação anti-variólica levada a efeito na cidade de Ribeirão Prêto sob a orientação do Dr. Jarbas Leite Nogueira, instrutor do Departamento. Por ocasião dos estágios optativos do 6 º ano, o Dr. Arouca escolheu Medicina Preventiva, como matéria de estágio intensivo. Considerando suas atividades e seu desempenho julgamos que o Dr. Arouca tem um futuro de que muito se pode esperar. Atenciosamente33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(20).

Três dias depois, Tobar Acosta solicita ao Magnífico Reitor, Prof. Zeferino Vaz,

A nomeação do dr. Antônio Sérgio da Silva Arouca para ocupar o cargo de Instrutor no DMPS, em regime de tempo parcial, e futuramente, em regime de tempo integral33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(2).

Após um mês, já com a aprovação do Conselho Diretor da Universidade de Campinas, é assinado o primeiro contrato entre a Unicamp e Arouca.

No seu ‘Plano de trabalho e pesquisa’ consta sua intenção de realizar

Um estudo médico-social quanto ao aspecto de cuidados materno-infantis, durante o 1º ano de vida da criança, através da combinação de métodos epidemiológicos e da metodologia de Ciências Sociais, a fim de se inferir sobre incidência de moléstias, distúrbios nutricionais, morbidade, e desenvolvimento, relacionados a aspectos psico-sócio-culturais, bem como a elaboração de técnicas de comunicação para informação sobre saúde e gestantes33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(59).

O desenho da pesquisa exploratória proposta por ele incluía entrevistas dirigidas com gestantes, observação estruturada, aplicação da técnica de história de vida nas gestantes, aplicação de questionários com perguntas abertas a pediatras e obstetras sobre atitudes e crenças quanto ao relacionamento materno-infantil no que se refere à saúde. Os locais propostos para a realização da pesquisa eram a Santa Casa de Misericórdia de Campinas, Maternidade de Campinas, Casa de Saúde Campinas e Bairro Jardim dos Oliveiras. Foram indicados os seguintes recursos humanos: instrutor médico, instrutor sociólogo, monitores de 5º ano da Faculdade de Medicina, estagiários de Ciências Sociais do DMPS; com a colaboração do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de Campinas33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(60–61).

Nesse mesmo documento, Arouca menciona um trabalho científico complementar, a partir de pesquisa sobre mortalidade infantil, em colaboração com a Organização Mundial da Saúde33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(61). No que diz respeito às atividades docentes que constam em seu Plano de trabalho, observa-se amplo rol de atividades33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(61–62):

Quadro 1 Atividades previstas no ‘Plano de trabalho’ de Sergio Arouca – 1967
1 Curso de Ciências Sociais Aplicado à Saúde – 2º ano do Curso Médico: Participação de Seminários às 4as e 6as feiras; Supervisão de Visitas Domiciliares em Ciências Sociais. Participação do Curso dado em Piracicaba aos alunos do 2º ano de Odontologia da Universidade de Campinas.
2 Curso de Epidemiologia – 3º ano do Curso Médico durante o 2º semestre do ano letivo.
3 Curso de Medicina Preventiva – 4º e 5º anos do Curso Médico: Ambulatórios Docentes às 2as, 3as e 4as feiras; Seminários; Supervisão do Trabalho de Campo.
4 Ambulatório Docente junto ao Departamento de Clínica Médica dentro do esquema de integração do curso.
5 Programa Paralelo para Monitores de 3º, 4º e 5º anos do Curso Médico: Reuniões Semanais para discussão de Casos Clínicos e Temas Diversos Relacionados à Saúde; Ambulatório Docente para Monitores.
  • Fonte: Universidade Estadual de Campinas3.
  • Incluiu ainda atividades que classificou como administrativas, tais como a organização da seção de vacinas e soroterapia e o controle de moléstias de notificação compulsória, em colaboração com centro de saúde de Campinas. Essas atividades estariam vinculadas ao exercício da docência no curso de Epidemiologia, a pesquisas futuras e ações em ambulatório de moléstias transmissíveis33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(62).

    Apresentou de forma detalhada os programas dos cursos de Ciências Sociais Aplicadas à Medicina e do DMPS, integrado aos Departamentos de Tocoginecologia, Pediatria e Clínica Médica, incluindo grade semanal e até diária para o ano de 1967. Essa mesma proposta de ensino baseado na integração entre diferentes departamentos esteve presente na ‘Reforma Curricular do Curso de Medicina da FCM – Unicamp’, de 2000, que preconizava “um currículo integrado, horizontal e verticalmente, estruturado em módulos gerenciados por grupo de docentes de vários departamentos” 55 Bicudo AM, Antonio MARGM, Passeri SMRR, et al. Integração Ensino-Serviço-Eixo Integrador da Atenção Básica à Saúde no Currículo da FCM-Unicamp. In: Bollela VR, Germani ACCG, Campos HH, et al., editores. Educação Baseada na Comunidade para as Profissões da Saúde: Aprendendo com a Experiência Brasileira. Ribeirão Preto: FUNPEC; 2014.(61), revelando, portanto, que experiência semelhante já fôra colocada em prática mais de trinta anos antes, na mesma instituição.

    O Curso de Ciências Sociais Aplicadas à Medicina, para alunos do 2º ano, tinha como

    objetivo básico propiciar ao estudante de Medicina conhecimentos que o levem a conhecer melhor a importância e a influência dos fatores sociais sobre o estado de saúde dos indivíduos e das populações que irá servir33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(63).

    Tal proposta, presente na disciplina do 2º ano, que Arouca encontrou funcionando quando chegou ao DMPS, em 1967, pode ser reconhecida nas palavras que ele proferiu na abertura da VIII Conferência Nacional de Saúde, quando afirmou que saúde é mais que a simples ausência de doença, incluindo também o bem-estar social, que depende da garantia do direito à moradia, trabalho, salário condigno, água, vestimenta, educação, informação, meio ambiente preservado e livre opinião, entre outros66 Arouca ASS. Democracia é Saúde [vídeo]. Brasília-DF: Comissão Organizadora da 8ª Conferência Nacional de Saúde/Fiocruz; 1986/2013. [acesso em 2023 jun 2]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-_HmqWCTEeQ.
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    .

    A parte teórica desenvolvia-se a partir de aulas expositivas e discussões de artigos selecionados de livros e revistas especializadas. Abordava-se temas de Ciências Sociais relacionadas à Saúde e Medicina, tais como Antropologia, Sociologia, Psicologia Social, Cultura, organização, estrutura, classe e mobilidade social, família, hospital, Medicina Popular ou Folk, Ecologia e fatores sociais na distribuição e etiologia das enfermidades, entre outros33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(63).

    A parte prática desse curso era desenvolvida no bairro Jardim dos Oliveiras. Cada par de alunos ocupava-se do estudo de uma família que era visitada mensalmente, entre março e início de outubro, quando deveriam ser apresentadas as histórias completas das famílias estudadas.

    A supervisão ocorria a cada dois meses por um sociólogo e um médico, alternadamente. Os alunos funcionavam como ‘Assessores de Saúde’, devendo, para tanto, orientar as famílias sobre tópicos relacionados à Medicina Construtiva, bem como, em casos de doenças, encaminhar os membros da família ao ambulatório da Faculdade. Posteriormente, os alunos deveriam registrar as opiniões sobre o atendimento médico recebido, bem como orientar o seguimento do tratamento prescrito. A assistente social do departamento responsabilizava-se pelas questões sociais encontradas pelos alunos junto às famílias.

    Atividades complementares relacionadas ao Curso de Ciências Sociais Aplicadas à Medicina visavam habilitar os alunos a desempenhar o papel de assessores de saúde. Estas incluíam aulas sobre educação sanitária, Medicina Construtiva – a cargo do Prof. Miguel Ignácio Tobar Acosta –, educação sexual e perspectivas profissionais das diferentes especialidades médicas33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(64).

    Durante o 4º e 5º anos, as atividades pedagógicas eram essencialmente práticas e consistiam em atividades de Clínica da Família (no lar e no ambulatório) e complementares: saúde oral, técnicas elementares de enfermagem, saúde escolar, discussão de histórias clínicas, análise bibliográfica, assuntos de epidemiologia especial e ‘programa paralelo’33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(63).

    Visitas periódicas a famílias moradoras no Bairro Jardim dos Oliveiras resultavam em histórias médico-familiares que eram discutidas com os professores.

    No ambulatório localizado nas dependências da Santa Casa de Misericórdia de Campinas, os estudantes atendiam moradores desse mesmo bairro, sob orientação de docentes. As atividades das segundas e terças-feiras estavam a cargo da Clínica Médica, Obstetrícia, Pediatria, Oftalmologia e Estomatologia.

    Às quartas-feiras, o Ambulatório de Clínica de Família ficava a cargo do DMPS, integrando-se, na medida do possível, às clínicas acima mencionadas. Tinha o fim específico de atendimento às famílias que eram acompanhadas pelos acadêmicos do 2º ano, bem como aos pacientes do Jardim dos Oliveiras.

    As consultas eram agendadas com uma semana de antecedência pela assistente social do departamento. A rotina na Clínica da Família era a seguinte:

    O paciente, com consulta já marcada, vem do Jardim dos Oliveiras, dirigindo-se ao Depto. de Medicina Preventiva. Passará por uma triagem que será feita por uma Assistente Social, e aí será preenchida uma ficha-família e uma ficha individual do paciente. O paciente receberá um cartão e será encaminhado ao ambulatório que lhe for indicado. Após a consulta voltará à mesma Assistente Social que fez a triagem e que o orientará nos exames pedidos, medicamentos, inter-consultas e retorno. Na medida do possível será feita a Educação Sanitária de Grupo (família ou coletividade) com os pacientes atendidos no ambulatório, através do acadêmico, da enfermeira ou da assistente social33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(67).

    Os prontuários eram arquivados no DMPS e ficavam disponíveis para acadêmicos e docentes dos outros departamentos que participavam da Clínica da Família33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(68). “Cada família escolhida será entregue a dois estudantes para os correspondentes cuidados durante dois anos”33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(73).

    Os estudantes deveriam obedecer a um ‘Guia para observação médico-familiar’ que incluía informações relacionadas à facilidade de acesso à casa, habitação, membros da família, horta ou pomar, animais domésticos, hábitos alimentares, imunizações, caracterização do ambiente psíquico, condições econômicas, assistência médica, economia médica (custo da assistência: medicamentos, dietas, consultas, visitas domiciliárias, hospitalização), receptividade (como a família recebeu a visita, dificuldades encontradas e como foram solucionadas), impressão sumária, medidas propostas33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(75–76).

    Os alunos do 5º ano tinham um estágio de saúde escolar realizado no grupo escolar ‘Júlio de Mesquita’, sediado no bairro Jardim dos Oliveiras. Integrava docentes da Pediatria, Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Medicina Preventiva e Social. A coordenação cabia ao diretor deste último departamento. “Para auxiliar nas consultas conta-se com a colaboração dos professores da Sociedade Amigos do Bairro e Clube das Mães”33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(77).

    O estágio incluía um levantamento preliminar sobre a planta física, administração, professorado, alunos, carga e distribuição de horários de estudos, serviço médico- odontológico, serviço social. Em seguida, procedia-se ao estudo do estado de saúde, imunização, dieta de soja, consulta aos escolares doentes, educação sanitária (observação das atividades que a educadora sanitária do grupo escolar desenvolve), problemas especiais (caso de crianças excepcionais, cujo estudo será feito em conjunto com o Departamento de Psicologia e Psiquiatria) e análise e apuração dos dados feitos pelos alunos estagiários, assessorados pelo Instituto de Matemática e Estatística, da Unicamp33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(78).

    No final de fevereiro de 1969, Arouca elaborou o “Relatório das atividades do instrutor Dr. Antônio Sérgio da Silva Arouca, durante o ano de 1968”33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(97). Suas atividades docentes consistiram em: participação nos cursos de Ciências Sociais Aplicadas à Saúde (120 horas/ ano), Epidemiologia (60 horas/ano), Medicina Preventiva, dada aos alunos do 4º ano, organização e coordenação do Curso da Medicina Institucional, dada aos alunos do 5º ano (100 horas/ano), atividades no Ambulatório de Clínica Geral, responsável pelo Ambulatório de Clínica de Família do bairro Jardim dos Oliveiras, participação no programa extracurricular com monitores do DMPS, redação e organização do material didático para os cursos de 3º e 5º anos33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(97).

    No que diz respeito à pesquisa, consta a realização do plano piloto da pesquisa sobre atendimento materno-infantil nas famílias do programa de Clínica de Família no bairro Jardim dos Oliveiras. Participou ainda da campanha de vacinação domiciliar no bairro Jardim dos Oliveiras, fora do período de trabalho; de atendimentos no Posto de Imunizações do DMPS, especialmente dos casos de imunoprofilaxia do tétano; de atendimento médico aos acadêmicos da Universidade e seus familiares; nesse mesmo departamento, de encontros preliminares com o DATE em Piracicaba, Pirassununga e Amparo para instalação do Centro Rural, com características de treinamento multiprofissional e pesquisa; e do Fórum Universitário da Faculdade33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(97–98).

    Realizou viagem de estudos à Região Centro-Oeste de Goiás, para posterior pesquisa em área endêmica de Moléstia de Chagas33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(98). Atuou como membro eleito representante dos Instrutores no Conselho Técnico Administrativo da faculdade e participou como redator dos Estatutos dessa instituição33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(98). Coordenou o Grupo de Medicina Social do DMPS33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(98).

    Suas qualidades pessoais e devotamento ao trabalho justificaram a renovação de seu contrato em 1970, conforme solicitação do diretor da faculdade, Prof. Silvio dos Santos Carvalhal33 Universidade Estadual de Campinas, Reitoria. Processo. 01P-44-67. Vida Funcional Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Campinas: Unicamp; 1967.(101).

    Nos anos seguintes, Arouca teve grande produção científica, tendo participado de numerosas pesquisas coordenadas por professores do departamento e da faculdade.

    Arouca não continuou sua trajetória como pesquisador e docente junto à Unicamp em virtude de assédio moral vindo da Reitoria da universidade, conforme informações presentes no Relatório Final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”, publicado pela Unicamp em 201577 Universidade Estadual de Campinas. Relatório final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni” da Unicamp. Campinas, SP: UNICAMP/Gabinete do Reitor; 2015..

    Segundo esse relatório, Arouca foi importante líder de movimento em prol de reformas sanitárias inovadoras ligadas ao DMPS da Unicamp, na década de 197077 Universidade Estadual de Campinas. Relatório final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni” da Unicamp. Campinas, SP: UNICAMP/Gabinete do Reitor; 2015.. Dentre elas, destacam-se a reconfiguração da relação médico-paciente, marcada pelas reflexões influenciadas para o que havia de mais avançado na época nas áreas de Sociologia e Psicologia e uma mudança nos eixos epistemológicos da Epidemiologia, conferindo peso maior às determinações sociais das doenças77 Universidade Estadual de Campinas. Relatório final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni” da Unicamp. Campinas, SP: UNICAMP/Gabinete do Reitor; 2015.(31).

    Durante o período que vigorou a ditadura militar no Brasil, professores ligados ao Partido Comunista Brasileiro sofreram perseguições. No DMPS, principalmente a partir de 1973, algumas mudanças concretas fizeram-se sentir no cotidiano de seus membros, tais como a proibição de reunião entre professores e alunos, a imposição da presença de docente de outro departamento durante as visitas aos bairros periféricos e, posteriormente, o impedimento de que ministrassem aulas sob alegação de conteúdo subversivo.

    Ainda que de forma menos violenta em relação a algumas outras instituições de ensino superior, a repressão esteve presente na Unicamp, com efeitos diretos na carreira de muitos docentes. No caso de Arouca, houve – a princípio – a proibição da defesa de sua tese, considerada subversiva. Em seguida, como condição para tal defesa, foi obrigado pelo reitor da Unicamp a demitir-se ‘voluntariamente’.

    Quando Arouca defende sua tese de doutorado, em 1976, já estava morando no Rio de Janeiro, como professor na Fiocruz.

    Ata da reunião da comissão examinadora da prova de doutoramento para obtenção do grau de Doutor em Ciências a que se submete o médico Antônio Sérgio da Silva Arouca. Aos 23 dias do mês de julho de 1976, no Anfiteatro da Congregação da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, às nove e trinta horas, reuniu-se a comissão examinadora da prova em epígrafe, eleita pelo professor doutor Zeferino Vaz, magnífico reitor da UNICAMP, ad referendum do conselho diretor, composta pelos senhores professores doutores Manildo Fávero, José Martins Filho (suplente), Guilherme Rodrigues da Silva, Cecília Donangelo e José Aristodemo Pinotti, conforme determina o artigo 11 do decreto 40.669/62, para julgar os trabalhos do médico Antônio Sérgio da Silva Arouca, apresentado sob o título O dilema preventivista: contribuição para compreensão e crítica da Medicina Preventiva. Os trabalhos foram declarados abertos pelo professor doutor José Aristodemo Pinotti, diretor da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, também membro da comissão examinadora, prestando esclarecimento sobre a forma do andamento da prova iniciada, lendo para os membros da comissão examinadora os artigos 12, 13, 14 do decreto 40.669/62, que regulamenta as defesas de tese. O senhor presidente determinou o início das argüições e respostas na seguinte ordem. Primeiro: professor Manildo Fávero. Segundo: professora Cecília Donangelo. Terceiro: professor José Martins Filho. Quarto: professor Guilherme Rodrigues da Silva. Quinto: professor José Aristodemo Pinotti. Realizadas as argüições e respostas, procedeu-se ao julgamento do trabalho. Cada examinador concedeu grau de seu julgamento em cédula especial, colocando-a em envelopes opacos, em seguida o senhor presidente leu o resultado do julgamento, que foi o seguinte: Professor Ramildo Fávero, distinção com louvor; professora Cecília Donangelo, distinção com louvor; professor José Martins Filho, distinção com louvor; professor Guilherme Rodrigues da Silva, distinção com louvor; e professor José Aristodemo Pinotti, distinção com louvor. O presidente anunciou em voz alta o resultado da prova, proclamando o candidato Doutor em Ciências com grau ‘distinção com louvor’, devendo esse resultado ser referendado pelo Conselho Diretor da UNICAMP. Declarando encerrados os trabalhos o senhor presidente agradeceu a presença dos membros da comissão examinadora, saudou o candidato pelo brilhantismo da tese, bem como a presença de todos. Nada mais havendo a tratar, eu, Maria Angélica de Melo Rosalen, lavrei a presente ata, que assino juntamente com todos os membros da comissão examinadora. Campinas, 23 de julho de 197688 Araújo AMC, Toledo CN, Tega D, et al., organizadores. Processo. 01P-3275/1969. Doutoramento Antônio Sérgio da Silva Arouca. Arquivo Central/Siarq. Fundo Reitoria. Universidade Estadual de Campinas; 1969.(62).

    De acordo com o Prof. Everardo Duarte Nunes, que ingressou no DMPS no mesmo ano que Arouca, este era

    uma pessoa extremamente carismática, e com isso ele conseguia atrair, seduzir as pessoas de uma forma muito elegante, muito inteligente, eu acredito que isso fazia parte de sua personalidade e fazendo parte da sua personalidade ele transmitia isso. [...] uma pessoa que deixa sempre uma lembrança muito grande. Muitas coisas poderiam ser lembradas, mas eu tô ficando no plano mais geral e não no plano mais pessoal da lembrança, eu acho que ele passa para a História da Saúde Pública como uma figura de militante e de autor de um trabalho que se sustenta até hoje. Ele não é só um trabalho histórico, o trabalho do Arouca, sua Tese de Doutorado defendida aqui na UNICAMP é um trabalho que, agora publicado em livro, felizmente, com as observações de vários companheiros dele, trás para as novas gerações um exemplo de profissional, um exemplo de intelectual. [...] uma figura extraordinariamente simpática, inteligente, culta e que deixa saudades, e sempre falar dele traz à memória uma grande saudade99 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Memória e patrimônio da Saúde Pública no Brasil: a trajetória de Sérgio Arouca. Relatório de Atividades Sérgio Arouca 1967-1975. Rio de Janeiro: Projeto: PRODOC 914 BRA 2000 – UNESCO; 2005. [acesso em 2023 jan 4]. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/relatorios/relatorio19671975.pdf.
    http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/a...
    (117–123–124).

    Por ocasião das comemorações dos 25 anos do DMPS, em 1990, Arouca participou de uma das mesas do Encontro Comemorativo, ao lado de Ana Maria Canesqui, Anamaria Testa Tambellini, David Capistrano de Souza Filho e Guilherme Rodrigues da Silva.

    Em sua palestra, Arouca fez reflexões sobre o que o departamento que o acolheu representou: Eu acredito que, em determinados momentos da história dos países e das instituições, algumas instituições conseguem situar-se num espaço que permite um grande grau de criatividade, onde as coisas podem estar sendo pensadas, sem submeterem-se a certos limites e nem estarem subordinadas a determinadas estruturas do poder institucional que estabelece o seu modo de andar.

    Neste sentido, a Universidade de Campinas é um exemplo e, dentro dela, o Departamento de Medicina Preventiva e Social que representou aquela via. E, não foram poucas as vezes que se perguntou, como foi possível, durante o governo ditatorial – nos períodos da mais dura ditadura e da perseguição política de pesquisadores, professores, intelectuais e ao povo brasileiro – construir esta universidade, onde tínhamos a sensação de viver numa ilha em relação aos acontecimentos do país? Como era possível, por exemplo entrar num ônibus, da cidade para o Campus, momento em que se criou o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, quando o marxismo estava sendo perseguido, verificar que os estudantes andavam com O Capital debaixo do braço?

    Neste contexto o Departamento de Medicina Preventiva assumia e discutia a aplicação de uma ciência social transformadora e não funcionalista no campo da saúde. Foram anos em que foi possível criar uma universidade moderna, embora eu não saiba explicar o porquê. Mas, talvez, eu possa levantar a hipótese de que era necessário criar uma universidade moderna que pudesse representar a possibilidade de formar novos intelectuais orgânicos e reatualizar o capitalismo. Mas, o fundamental que me parece possível pensar, foi a criação de um determinado espaço, com certo grau de liberdade, de não imposição, de não limites, onde foi possível existir um pensamento libertário, questionador da medicina preventiva, e da ciência social. Foi possível ainda se pensar o trabalho de comunidade, a forma de ensino médico e, foi se repensando tanto, que se criou um Laboratório de Educação Médica e de Medicina Comunitária para tentar ser um elemento transformador de todo o ensino médico na Faculdade. [...] O Departamento de Medicina Preventiva teve a possibilidade crítica da reflexão, não só pelo espaço institucional, mas pelo espaço político que foi criado pelo tempo integral, que possibilita a criatividade. Foi fundamental o que aqui aconteceu – um projeto – que não foi só um projeto técnico, mas que envolvia pessoas que estavam dentro dele. [...]

    De novo eu entendo que a área de Saúde Coletiva vai voltar a ser uma área de resistência, de pensamento crítico, de denúncia e de participação política. Sem dúvida alguma este Departamento teve e tem um papel importante e fundamental na saúde1010 Canesqui AM, organizadora. 25 anos Departamento de Medicina Preventiva e Social 1965-1990. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas. Unicamp; 1990.(30–32–39).

    A análise dos documentos relacionados à passagem de Arouca pela Unicamp revelam que ele já demonstrava interesse pela Medicina Preventiva e Social durante seus anos de estudante na FMRP, destacando-se nessa área e recebendo o reconhecimento da instituição e professores. Foi com esta bagagem que aportou, em 1967, no DMPS, criado dois anos antes, em março de 1965, pelo Prof. Miguel Ignácio Tobar Acosta,

    em um contexto social e político bastante adverso e repressivo, desfavorável às atividades acadêmicas de um modo geral, sobretudo àquelas vinculadas aos estudos sociais, em particular1111 Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas. Saad MJA, Pereira RIC (direção). Dias CD (projeto editorial, organização, produção, edição de textos e entrevistas). Pereira Filho RA, Carvalho Pinto e Silva JL, Cruz MA (revisão). Campinas, SP: FCM Unicamp; 2013.(98).

    O Prof. Tobar Acosta foi figura importante no acolhimento e formação do jovem professor que iniciava sua carreira docente na Unicamp, tendo sido orientador de pesquisas, como a tese defendida por Arouca em 1976.

    Os documentos mostram compromisso e dedicação de Arouca ao ensino, pesquisa e assistência, envolvendo-se sobremaneira com as atividades junto a moradores do bairro Jardim dos Oliveiras, na Clínica da Família e na assistência aos alunos, no que hoje cabe, prioritariamente, ao Centro de Saúde da Comunidade da Unicamp (Cecom).

    A prática de ensino e assistência no Jardim dos Oliveiras é pioneira enquanto atividade extramuros, continuada e vinculada a uma comunidade específica, num período de disputa entre a extensão universitária puramente assistencialista – alinhada com os ideais controladores do regime militar –, e o movimento de extensão crítica – fruto do pensamento freiriano e muito mais condizente com a forma de pensar de Arouca1212 Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. Indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão e a flexibilização curricular: uma visão da extensão. Brasília, DF: MEC-SESu; 2006.,1313 Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. Política Nacional de Extensão Universitária. Manaus: UFSC. 2012 maio. [acesso em 24 set 2021]. Disponível em: https://proex.ufsc.br/files/2016/04/Pol%C3%ADtica-Nacional-de-Extensão-Universitária-e-book.pdf.
    https://proex.ufsc.br/files/2016/04/Pol%...
    . As atividades no Jardim dos Oliveiras merecem ser revisitadas atualmente, pela lente da extensão universitária, principalmente diante da exigência legal de garantir pelo menos dez por cento da grade curricular à extensão, conforme a resolução nº 7, de 18 de dezembro de 2018, do Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação e Câmara de Educação Superior1414 Brasil. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação. Resolução nº 7 de 18 de dezembro de 2018. Diário Oficial da União. 7 dez 2018. [acesso em 2023 jun 10]. Disponível em: https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/pdf/CNE_RES_CNECESN72018.pdf.
    https://normativasconselhos.mec.gov.br/n...
    .

    O acompanhamento de famílias do Jardim dos Oliveiras, com valorização de suas histórias de vida e suas condições socioeconômicas e culturais, durante o segundo, quarto e quinto anos, proporcionando experiência de ensino longitudinal e responsabilidade sanitária, vai de encontro à proposta de uma Clínica Ampliada e Compartilhada e às convicções e desejos de professores e estudantes do século XXI de desfragmentar o ensino e reduzir o distanciamento entre a universidade e outros setores da sociedade1515 Campos GWS. Saúde Paideia. São Paulo: Hucitec; 2003..

    Arouca parece ter sido muito influenciado pela disciplina de Ciências Sociais Aplicadas à Medicina, já existente por ocasião de sua chegada à Unicamp, elaborada pelos professores que o precederam no DMPS e com os quais fez trocas profícuas. A disciplina ocupava espaço significativo na grade curricular dos alunos. Aparentemente, a vivência extramuros no Jardim dos Oliveiras também contribuiu para moldar seu modo de compreender a relação entre as ações de saúde e as demandas da comunidade. Pode-se dizer que são importantes fatores, entre outros, que contribuíram substancialmente para que Arouca moldasse seu futuro enquanto professor, gestor e político engajado na construção de um campo de conhecimento e um sistema de saúde que levassem em conta fatores sociais na determinação do processo de saúde, adoecimento e cuidado. Em outras palavras, não seria exagero enxergar naquele Arouca do movimento da Reforma Sanitária, e mais especificamente da VIII Conferência Nacional de Saúde, influência marcante do DMPS da Unicamp, que não apenas o acolheu, mas que também participou de sua formação durante os anos iniciais de sua carreira como docente.

    Considerações finais

    Arouca demonstrou interesse pela Saúde Pública e Medicina Preventiva e Social desde seus anos de graduação na FMRP. Chegou à Unicamp em 1967, recém formado, e encontrou no DMPS um ambiente acadêmico caracterizado pela criatividade, inovação, integração com outros departamentos e fortalecimento das Ciências Sociais dentro do currículo médico, o que contribuiu significativamente com sua trajetória futura dentro da Unicamp e, posteriormente, fora dela.

    Ao resgatar a história da passagem de Arouca pela Unicamp, entre 1967 e 1975, encontramos contribuições importantes de seus colegas do DMPS na sua formação e produção acadêmica durante os primeiros anos de sua carreira docente e de pesquisador, o que deve ser levado em conta ao buscar compreender sua trajetória nos anos seguintes. Mesmo após sua saída, em 1975, Arouca fez jus à sua capacidade de agregar intelectuais e outras pessoas da sociedade, como na ocasião de sua defesa de tese na Unicamp e, uma década depois, na condução dos trabalhos da VIII Conferência Nacional de Saúde.

    • *
      Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
    • Suporte financeiro: não houve

    Referências

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      Canesqui AM, organizadora. 25 anos Departamento de Medicina Preventiva e Social 1965-1990. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas. Unicamp; 1990.
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      Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas. Saad MJA, Pereira RIC (direção). Dias CD (projeto editorial, organização, produção, edição de textos e entrevistas). Pereira Filho RA, Carvalho Pinto e Silva JL, Cruz MA (revisão). Campinas, SP: FCM Unicamp; 2013.
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      Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras. Indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão e a flexibilização curricular: uma visão da extensão. Brasília, DF: MEC-SESu; 2006.
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    • 15
      Campos GWS. Saúde Paideia. São Paulo: Hucitec; 2003.

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Set 2023
    • Data do Fascículo
      Jul-Sep 2023

    Histórico

    • Recebido
      06 Fev 2023
    • Aceito
      22 Maio 2023
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