Comprometimento da Capacidade para o Trabalho e efeitos neuropsicológicos entre trabalhadores com Covid-19 prévia

Impairment of Work Ability and neuropsychological effects among workers who have had COVID-19

RESUMO

A Covid-19 é uma doença multissistêmica e consequências funcionais e tardias estão em estudo. Sequelas psicológicas e neurocognitivas podem comprometer a Capacidade para o Trabalho (CT) dos trabalhadores. Objetivou-se investigar a CT de pessoas previamente infectadas pelo Sars-CoV-2, correlacionando-a com avaliação da sonolência, ansiedade, depressão e fadiga. Estudo transversal, com trabalhadores diagnosticados com Covid-19 e em acompanhamento no Serviço de Neurologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Aplicou-se o instrumento Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT), um formulário com dados sociodemográficos e ocupacionais, bem como escalas de sonolência, ansiedade, depressão e fadiga. Dos 119 trabalhadores que participaram do estudo, mais da metade apresentaram comprometimento da CT (52,9%). Distúrbio emocional foi o agravo relatado mais frequente (31,9%). A regressão logística múltipla mostrou que a interação entre ansiedade e sonolência esteve associada ao comprometimento da CT (OR=4,50 com p=0,002). Ansiedade e sonolência foram alterações tardias da Covid-19 e associadas ao comprometimento da CT dos trabalhadores avaliados. Este estudo demonstra a necessidade de que todos os trabalhadores com teste positivo por Covid-19 tenham sua CT avaliada por ocasião do retorno ao trabalho. Ações de promoção à saúde, reabilitação funcional e adaptação do trabalho de acordo com as sequelas apresentadas pelos trabalhadores.

PALAVRAS-CHAVE
Covid-19; Avaliação da capacidade de trabalho; Trabalho; Questionário de saúde do paciente; Promoção da saúde

ABSTRACT

COVID-19 is a multisystemic disease, with functional and late consequences still under study. Psychological and neurocognitive sequelae impact workers’ quality of life and may compromise the Work Ability (WA). The objective was to investigate the WA of people infected with SARS-CoV-2, correlating it with the assessment of sleepiness, anxiety, depression and fatigue. Cross-sectional study, involving workers diagnosed with COVID-19 under follow-up at the Department of Neurology of Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Application of the Work Ability Index (WAI) analyzed with sociodemographic and occupational variables, as well the sleepiness, anxiety, depression and fatigue scales. Multiple logistic regression analysis was performed. 119 workers participated in the study and, among them, more than half had WA impairment (52.9%). Emotional disorders were the most frequent reported problem (31.9%). Multiple logistic regression showed that the interaction between anxiety and sleepiness was associated with WA impairment (OR=4.50, p=0.002). Anxiety and sleepiness were associated with previous COVID-19 and they were associated with WA impairment among workers. This study shows the WA evaluation should be provided for all workers with a previous history of COVID-19, when they return to work. This assessment can guide health promotion actions, functional rehabilitation and work adaptation to the sequelae presented by workers, singularly.

KEYWORDS
COVID-19; SARS-CoV-2; Work capacity evaluation; Work; Patient health questionnaire; Health promotion

Introdução

A Capacidade para o Trabalho (CT) é uma importante premissa para a inserção no mercado de trabalho e um princípio do bem-estar relacionado à atividade laboral e que resulta da combinação entre a capacidade física, mental e social apresentada pelo trabalhador para a execução das atividades e demandas do trabalho. É um conceito amplo e multidimensional que remete à complexidade desse dinâmico tema, que além de ser temporal, varia com as mudanças demográficas, uso de tecnologias e novos processos de trabalho^1,2.

Para avaliar a CT, foi desenvolvido o Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT) por uma equipe multidisciplinar do Instituto Finlandês de Saúde Ocupacional, cuja versão em português foi validada no Brasil em 2009^1-3. Esse instrumento avalia a CT a partir da percepção do(a) próprio(a) trabalhador(a) e os itens procuram avaliar o desgaste resultante das exigências físicas e mentais do trabalho; o estado de saúde atual e assim fundamentar recomendações de medidas de promoção de saúde, manutenção da qualidade de vida e melhores adaptações do trabalho, em benefício dos trabalhadores^1-4.

O estudo realizado na Finlândia evidenciou que, além das mudanças fisiológicas do envelhecimento, concorrem para o declínio da CT alguns determinantes nesse processo, como doenças, estilo de vida e ambiente de trabalho³.

A doença pelo vírus SARS-CoV-2 foi identificada pela primeira vez em Wuhan, China, no início de dezembro de 2019, levando à uma síndrome clínica chamada de Covid-19^5,6. Desde então e até janeiro de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou mais de 753 milhões de casos, com 6,8 milhões de mortes no mundo, causando impactos sociais, econômicos e de saúde⁷.

O quadro clínico das pessoas acometidas pela Covid-19 é variável, entre casos assintomáticos ou com sintomas respiratórios, gastrointestinais, neurológicos, dentre outros⁸. A progressão e continuidade da pandemia evidenciou o caráter multissistêmico da doença, com consequências funcionais em vários órgãos, complicações e sequelas de curto, médio e longo prazo^8-10.

Essa condição clínica foi nomeada como síndrome ou condição pós-Covid-19 e incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS, sendo caracterizada por um conjunto heterogêneo de sintomas que ocorre, geralmente, três meses após o início da infecção pelo SARS-CoV-2, durante pelo menos dois meses, sem outro diagnóstico causal alternativo¹¹. A gravidade e o desenvolvimento desse quadro não parecem estar relacionados com a extensão, natureza e gravidade dos sintomas apresentados durante a fase aguda da Covid-19, embora seja mais comum em pacientes hospitalizados^12,13.

O impacto e duração das manifestações clínicas ainda estão sendo estudados, mas dados mostram com maior frequência quadros clínicos manifestados por sintomas relacionados à redução persistente da função pulmonar e alterações psicológicas e neuro cognitivas, como cefaleia, ansiedade, depressão, diminuição da concentração e da memória^11,14.

Em relação às sequelas neuropsicológicas, é frequente o relato de distúrbio de ansiedade e depressão^10,12,15. Aproximadamente um a cada três pacientes que tiveram Covid-19 foi diagnosticado com distúrbios de ansiedade generalizada, um em cada cinco com depressão e um em cada quatro com distúrbios do sono¹³.

Além de impactarem na qualidade de vida do indivíduo, essas sequelas podem impactar outros aspectos, inclusive na funcionalidade e habilidade para o trabalho. As possíveis sequelas psicológicas e neurocognitivas podem também afetar a funcionalidade e comprometer a CT dos trabalhadores empregados e daqueles que procuram emprego. Nesse cenário de incertezas acerca da Covid-19, as sequelas da infecção viral e o consequente comprometimento da CT, a avaliação, o controle e a promoção da CT são aspectos relevantes e desafiadores para os profissionais da saúde e, em especial aqueles responsáveis pelo cuidado nos ambientes de trabalho.

Um estudo recente apontou que a condição pós-Covid-19 pode ter um impacto significativo no trabalho e identificou que 45% dos participantes estavam trabalhando com a CT reduzida e 22,3% não estavam trabalhando no momento da pesquisa devido à sua doença¹⁶.

O objetivo desta pesquisa foi investigar a CT de trabalhadores previamente infectados pelo SARS-CoV-2 e as alterações neurológicas que possam comprometer as atividades de trabalho.

Material e métodos

Trata-se de um estudo exploratório transversal conduzido junto a trabalhadores diagnosticados com Covid-19, em acompanhamento no Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Utilizou-se uma amostra de conveniência de pacientes elegíveis de um estudo longitudinal em curso denominado ‘Relação entre o perfil da resposta imune adaptativa e alterações neurológicas em pacientes com infecção por Sars-COV-2’.

A população alvo do presente estudo foi constituída por trabalhadores ativos, previamente infectados pelo Sars-CoV-2. Os critérios de inclusão foram: ter vínculo empregatício atual e ter tido infecção pelo Sars-CoV-2. Os critérios de exclusão foram: a recusa em participar do estudo, pessoas que não trabalham, participantes que não tiveram Covid-19 (grupo controle da pesquisa da Neurologia) ou que responderam os questionários de maneira incompleta, impossibilitando sua análise. Os questionários da pesquisa foram aplicados no período de 22/02/2021 à 27/07/2021. A amostra final foi composta por 119 participantes.

Foram utilizados os questionários: Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT), Escala de Sonolência de Epworth (ESS-BR), Escala de Fadiga Chalder (CFQ11), Inventário de Depressão de Beck (BDI-II) e o Inventário de Ansiedade de Beck (BAI). Foram aplicadas também perguntas sobre sexo, idade, estado conjugal, escolaridade, ocupação atual (ocupação, tempo de trabalho na ocupação, turno de trabalho, situação de trabalho) e sobre a infecção pela Covid-19: tipo de teste utilizado para diagnóstico, data do diagnóstico e qual o tratamento realizado (domiciliar, enfermaria, Unidade de Terapia Intensiva - UTI). Os questionários foram aplicados no modelo de autorresposta, presencialmente, no Laboratório de Neuroimagem da Unicamp.

Para avaliação da CT foi utilizada a versão brasileira do ICT, composto por 7 dimensões: CT atual e comparada com a melhor de toda a vida; CT em relação às exigências do trabalho; número atual de doenças diagnosticadas por médico; perda estimada para o trabalho devido a doenças; falta ao trabalho por doenças; prognóstico próprio sobre a CT; e recursos mentais^2,3,17. As dimensões fornecem um escore variando de 7 a 49 pontos, sendo que quanto maior a pontuação, melhor a CT. O escore foi categorizado em CT em ótima, boa, moderada ou baixa, e a variável foi dicotomizada em CT comprometida (moderada ou baixa) e preservada (ótima ou boa)^2,3,14.

A Escala de Sonolência de Epworth (ESS-BR) apresenta coeficiente de confiabilidade satisfatória por meio do coeficiente Alfa de Cronbach (α=0,83) e tem pontuação variando de 0 a 24. O sono é considerado normal quando valores entre 0 e 10; levemente excessivo se pontuação 11 ou 12; moderadamente excessivo entre 13 e 15; e sono severamente excessivo entre 16 e 24^18,19. O questionário Escala de Fadiga Chalder (CFQ11) apresenta Alfa de Cronbach (α=0,83) para a pontuação de fadiga binária global variando de 0 a 11. Sendo considerado sem fadiga se a soma for menor ou igual a 3 e fadiga severa se a soma for maior que 4²⁰. O Inventário de Depressão de Beck (BDI-II) apresenta Alfa de Cronbach (α=0,82) e tem a pontuação variando de 0 a 63. Foi classificado com depressão mínima/sem depressão a pontuação entre 0 e 13; depressão leve entre 14 e 19; depressão moderada 20 a 28; e depressão severa entre 29 e 63^21,22. Em relação ao Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) utilizado, apresenta Alfa de Cronbach (α=0,83) e sua pontuação varia entre 0 e 63. É considerado grau mínimo de ansiedade a pontuação de 1 a 10, ansiedade leve de 11 a 19, ansiedade moderada de 20 a 30 e ansiedade severa de 31 a 63^23,24.

Foi feita análise descritiva por meio de números absolutos e proporções para variáveis qualitativas. A confiabilidade do questionário ICT apresenta Alfa de Cronbach, com resultado satisfatório (α=0,82). As análises da associação foram feitas por meio do teste qui-quadrado e modelos de regressão logística univariados e múltiplos. O ajuste do modelo foi avaliado por meio do teste de Hosmer-Lemeshow. A medida de risco foi o Odds Ratio (OR) e em todas as análises foi utilizado o nível de descritivo p<0,050.

O estudo obteve a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp, parecer nº 4.728.265, CAAE nº 32706620.2.0000.5404, versão 5, não havendo conflitos de interesses por parte dos autores. O mesmo foi realizado de acordo com os princípios da Declaração de Helsinki e da Associação Médica Mundial. A participação dos pacientes foi voluntária, mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e a confidencialidade dos dados individuais foi garantida.

Resultados

As características gerais e parâmetros demográficos da amostra de 119 trabalhadores previamente infectados pelo Sars-CoV-2 são apresentados na tabela 1. A maior parte da população estudada é composta pelo sexo feminino (63,9%), pessoas com idade entre 30 e 49 anos (63,8%), casados(as)/com companheiro(a) (61,3%) e com ensino universitário completo com ou sem pós-graduação (57,9%).

Tabela 1
Distribuição de pacientes com Covid-19 segundo características demográficas e ocupacionais. Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, 28/02/2021 a 27/07/2021

Característica	nº	%
Sexo
Feminino	76	63,9
Masculino	43	36,1
Faixa etária (em anos)
17 a 29	17	14,3
30 a 39	33	27,7
40 a 49	43	36,1
50 a 66	26	21,8
Estado conjugal
Solteiro(a)	36	30,3
Casado(a)	60	50,4
Vive com companheiro(a)	13	10,9
Separado(a)/divorciado(a)	9	7,6
Viúvo(a)	1	0,8
Escolaridade
Fundamental incompleto	1	0,8
Fundamental Completo	4	3,4
Médio incompleto	2	1,7
Médio completo	10	8,4
Técnico de 2° grau completo	16	13,4
Faculdade incompleta	17	14,3
Faculdade completa	21	17,6
Pós-graduação incompleta/completa	48	40,3
Ocupação
Área da saúde	34	28,6
Administrativo	13	10,9
Comerciante/venda/empresário	10	8,4
Tecnologia	7	5,9
Professor	6	5,0
Design/arquitetura/paisagista	5	4,2
Pesquisador	5	4,2
Outros	39	32,8
Situação de trabalho
Autônomo	46	38,7
Carteira assinada (CLT)	59	49,6
Servidor público	11	9,2
Estagiário	2	1,7
Não informado	1	0,8
Exigências do trabalho
Predominantemente mentais	52	43,7
Mistas (tanto físicas como mentais)	64	53,8
Predominantemente físicas	3	2,5
Trabalho noturno (turnos alternantes ou fixos)
Sim	20	16,8
Não	99	83,2
Total	119	100,0

Fonte: elaboração própria.

Em relação ao histórico ocupacional, 28,6% são trabalhadores da área da saúde, 10,9% de área administrativa e os demais distribuídos em outras ocupações com grande variabilidade, o que impossibilitou seu agrupamento. As situações de trabalho mais frequentes foram o trabalho formal com carteira assinada (49,6%), seguido do trabalho autônomo (38,7%). Nas atividades exercidas, predominaram as exigências de trabalho mistas (tanto físicas como mentais), com 53,7%, seguida das atividades predominantemente mentais (43,7%). O trabalho noturno foi informado por 16,8% dos trabalhadores.

Quanto às características do diagnóstico e tratamento da Covid-19, a maioria dos participantes teve o seu diagnóstico comprovado através do teste de swab de reação da transcriptase reversa, seguida pela Reação em Cadeia da Polimerase (RT-PCR) em 88,2%, e a forma mais branda da doença, com tratamento domiciliar, foi apontada por 88,2% dos trabalhadores. O tempo transcorrido entre o diagnóstico da Covid-19 e a avaliação da CT foi de 7 a 12 meses em 42% dos participantes, seguido de 4 a 6 meses em 39,5% e de 18,5% em até 3 meses (tabela 2).

Tabela 2
Distribuição de pacientes com Covid-19 segundo características do diagnóstico e tratamento da Covid-19 e saúde mental. Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, 28/02/2021 a 27/07/2021

Característica	nº	%
Principal teste diagnóstico realizado
PCR (Swab)	105	88,2
Anticorpos (Exame de sangue/Teste rápido)	7	5,9
Anticorpo + PCR	2	1,7
SWAB Antígeno	2	1,7
Tomografia computadorizada de tórax	3	2,5
Principal tratamento realizado
Domiciliar	105	88,2
Enfermaria	10	8,4
UTI	4	3,4
Tempo (meses) entre o diagnóstico de Covid-19 e a avaliação da capacidade para o trabalho
Até 3	22	18,5
4 a 6	47	39,5
7 a 12	50	42,0
Sonolência
Sono normal	52	43,7
Sono levemente excessivo	20	16,8
Sono moderadamente excessivo	24	20,2
Sono severamente excessivo	23	19,3
Fadiga
Sem fadiga	28	23,5
Fadiga severa	91	76,5
Depressão
Depressão mínima / sem depressão	71	59,7
Leve	20	16,8
Moderada	20	16,8
Severa	8	6,7
Intenção de se matar
Não tenho quaisquer ideias de me matar	102	85,7
Tenho ideias de me matar, mas não as executaria	17	14,3
Ansiedade
Grau mínimo	62	52,1
Leve	28	23,5
Moderada	21	17,6
Severa	8	6,7
Total	119	100,0

Fonte: elaboração própria

Quanto às condições de saúde mental, a sonolência moderada e severamente excessiva estiveram presentes em 39,5% dos participantes; 76,5% apresentaram score indicativo de fadiga severa; 24,4% apresentaram de ansiedade moderada ou severa; 23,5% depressão moderada ou severa; e 14,3% informaram ideias de autoextermínio (tabela 2).

Entre os participantes, 10,1% apresentaram CT ótima, 37,0% boa, 27,7% moderada e 25,2% baixa, indicando que 52,9% tinham CT comprometida. Os grupos de agravos à saúde com diagnóstico médico, relatados no momento de resposta do ICT, com mais frequência foram: distúrbio emocional (31,9%), lesão decorrente de acidente (25,2%), doença/problema digestivo (23,5%), doença metabólica/endócrina (23,5%), doença musculoesquelética nas costas, braços, pernas ou outra parte (20,2%), doença respiratória (20,2%), doença neurológica ou dos órgãos dos sentidos (20,2%), doença cardiovascular (16,0%) e doença da pele (11,8%).

A análise univariada mostrou que nenhuma das características demográficas, ocupacionais e do diagnóstico e tratamento da Covid-19 apresentou associação estatisticamente significativa com o comprometimento da CT (tabelas 3 e 4). As características da saúde mental que estiveram associadas ao comprometimento da CT foram a sonolência moderada e excessiva (p=0,005), a fadiga severa (p<0,001), a depressão (p<0,001) e a ansiedade (p<0,001), sendo que nessas variáveis houve aumento da frequência de comprometimento da CT acompanhando o aumento da gravidade do distúrbio emocional (tabela 4).

Tabela 3
Distribuição de pacientes com Covid-19 segundo características demográficas e ocupacionais e a condição da Capacidade para o Trabalho. Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, 28/02/2021 a 27/07/2021

Característica	Adequada		Comprometida		Total		p*
	nº	%	nº	%	nº	%
Sexo
Feminino	31	40,8	45	59,2	76	100,0	0,069
Masculino	25	58,1	18	41,9	43	100,0
Faixa etária (em anos)
17 a 29	7	41,2	10	58,8	17	100,0	0,695
30 a 39	17	51,5	16	48,5	33	100,0
40 a 49	18	41,9	25	58,1	43	100,0
50 a 66	14	53,8	12	46,2	26	100,0
Estado conjugal
Casado(a) / vive com companheiro(a)	35	47,9	38	52,1	73	100,0	0,807
Solteiro(a) / separado(a)/divorciado(a) / viúvo(a)	21	45,7	25	54,3	46	100,0
Escolaridade
Até Ensino Médio ou Curso Técnico completo	16	48,5	17	51,5	33	100,0	0,847
Ensino Universitário completo ou incompleto	40	46,5	46	53,5	86	100,0
Ocupação
Área da saúde	20	58,8	14	41,2	34	100,0	0,104
Demais áreas	36	42,4	49	57,6	85	100,0
Situação de trabalho
Autônomo	23	50,0	23	50,0	46	100,0	0,642
Carteira assinada (CLT)	28	47,5	31	52,5	59	100,0
Servidor público / estagiário / sem informação	5	35,7	9	64,3	14	100,0
Exigências do trabalho
Predominantemente mentais	25	48,1	27	51,9	52	100,0	0,883
Mistas (tanto físicas como mentais)	30	46,9	34	53,1	64	100,0
Predominantemente físicas	1	33,3	2	66,7	3	100,0
Trabalho noturno (turnos alternantes ou fixos)
Sim	9	45,0	11	55,0	20	100,0	0,840
Não	47	47,5	52	52,5	99	100,0
Total	56	47,1	63	52,9	119	100,0

Fonte: elaboração própria.
• ^*
  Teste qui-quadrado.

Tabela 4
Distribuição de pacientes com Covid-19 segundo características do diagnóstico e tratamento da Covid-19 e saúde mental e a condição da Capacidade para o Trabalho. Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, 28/02/2021 a 27/07/2021

Característica	Adequada		Comprometida		Total		p*
	nº	%	nº	%	nº	%
Principal teste diagnóstico realizado
PCR (Swab) somente	51	71,8	20	28,2	71	100,0	0,365
Outras opções de exames	5	22,7	17	77,3	22	100,0
Principal tratamento realizado
Domiciliar	49	46,7	56	53,3	105	100,0	0,840
Enfermaria ou UTI	7	50,0	7	50,0	14	100,0
Tempo (meses) entre o diagnóstico de Covid-19 e a avaliação da capacidade para o trabalho
Até 3	9	40,9	13	59,1	22	100,0	0,811
4 a 6	23	48,9	24	51,1	47	100,0
7 a 12	24	48,0	26,0	52,0	50	100,0
Sonolência
Sono normal	29	55,8	23	44,2	52	100,0	0,005
Sono levemente excessivo	14	70,0	6	30,0	20	100,0
Sono moderadamente excessivo	7	29,2	17	70,8	24	100,0
Sono severamente excessivo	6	26,1	17	73,9	23	100,0
Fadiga
Sem fadiga	24	85,7	4	14,3	28	100,0	<0,001
Fadiga severa	32	35,2	59	64,8	91	100,0
Depressão
Depressão mínima / sem depressão	47	66,2	24	33,8	71	100,0	<0,001
Leve	7	35,0	13	65,0	20	100,0
Moderada	2	10,0	18	90,0	20	100,0
Severa	0	0,0	8	100,0	8	100,0
Intenção de se matar
Não tenho quaisquer ideias de me matar	49	48,0	53	52,0	102	100,0	0,600
Tenho ideias de me matar, mas não as executaria	7	41,2	10	58,8	17	100,0
Ansiedade
Grau mínimo	38	61,3	24	38,7	62	100,0	<0,001
Leve	16	57,1	12	42,9	28	100,0
Moderada	2	9,5	19	90,5	21	100,0
Severa	0	0,0	8	100,0	8	100,0
Total	56	47,1	63	52,9	119	100,0

Fonte: elaboração própria.
• ^*
  Teste qui-quadrado.

A análise de regressão logística múltipla mostrou que a interação entre presença de ansiedade e de sonolência esteve associada ao comprometimento da CT (OR=4,50, p=0,002) e essa associação foi controlada por faixa etária, sexo e tempo (meses) entre o diagnóstico de Covid-19 e a avaliação da CT. A análise de resíduos por meio do teste de Hosmer-Lemeshow mostrou bom ajuste (x²=3,10; p=0,875) (tabela 5).

Tabela 5
Análise de regressão logística (^*) múltipla dos fatores associados ao comprometimento da Capacidade para o Trabalho entre os pacientes com Covid-19. Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, 28/02/2021 a 27/07/2021

	ORajust	IC95% (ORajust)		p
		Inf.	Sup.
Interação entre ansiedade e sonolência
Sem ansiedade e/ou sem sonolência	1,00
Com ansiedade e com sonolência	4,50	1,72	11,76	0,002
Faixa etária (em anos)
17 a 39	1,00
40 a 66	0,91	0,42	1,98	0,810
Sexo
Feminino	1,00
Masculino	0,56	0,25	1,25	0,157
Tempo (meses) entre o diagnóstico de Covid-19 e a avaliação da capacidade para o trabalho
Até 6 meses	1,00
7 a 12 meses	0,81	0,37	1,78	0,606

Fonte: elaboração própria.^*

As variáveis foram dicotomizadas, devido ao número pequeno de sujeitos em algumas caselas, gerando pouca estabilidade estatística. Observou-se associação entre as variáveis relativas à saúde mental, ocasionando modificações de efeito e/ou sobre ajuste. Foram testados efeitos de confusão e interação, e o melhor ajuste foi dado pela interação entre ansiedade e sonolência.

Discussão

Avaliar a CT é muito valioso para planejar e melhorar a saúde, e adequação ao trabalho, tendo inferências coletivas, individuais e econômicas, além de ser útil para predizer invalidez, doença e mortalidade^25,26. Foi detectada uma alta prevalência (52,9%) de CT comprometida entre os participantes do presente estudo. As exigências mistas (físicas e mentais) tiveram a maior prevalência, seguidas da exigência mental. Portanto, para uma adequada avaliação de saúde e CT é imprescindível o conhecimento acerca das atribuições do cargo/função e atividades exercidas pelo(a) trabalhador(a), assim como do ambiente e organização do trabalho local, como sendo variáveis fundamentais que impactam nas principais exigências daquele trabalho e podem ou não comprometer o trabalhador.

Estudos mostram uma associação positiva entre altas demandas mentais e físicas no trabalho e uma baixa pontuação no ICT^25,26. A baixa CT está associada ao aumento do risco de absenteísmo, aposentadoria precoce, intenção de sair e estresse no trabalho, exaustão emocional e doenças^25,26.

As publicações brasileiras que aplicaram o ICT em determinados segmentos de trabalho tiveram em sua maioria de profissionais-alvo os trabalhadores de enfermagem do nível hospitalar e do setor de produção, com o comprometimento da CT variando de 11,3 a 52,0% e 18,0 a 81,2%, respectivamente^27,28. A amostra do presente estudo não permitiu uma análise mais profunda sobre as ocupações dos envolvidos na pesquisa.

Uma revisão sistemática mostrou que 72,5% dos pacientes relataram pelo menos um sintoma persistente após a infecção pela Covid-19¹⁰. Na revisão as manifestações sequelares mais comuns foram fadiga, cefaléia, distúrbio de atenção, queda de cabelo e dispneia¹⁵.

As sequelas neuropsicológicas de ansiedade e depressão podem impactar a vida do indivíduo em vários aspectos, inclusive na funcionalidade e habilidade para o trabalho. Os resultados obtidos no presente estudo, após a análise de regressão logística múltipla, mostraram uma relação positiva entre ansiedade e sonolência no comprometimento da CT.

As doenças mentais, principalmente depressão e ansiedade, têm impacto significativo na CT¹. Pessoas com depressão e ansiedade apresentam uma menor taxa de produtividade, resultante do baixo desempenho laboral, além de altas taxas de absenteísmo e presenteísmo²⁹. Distúrbios do sono e sono excessivo durante o dia são fatores comuns que afetam o desempenho do trabalhador, podendo diminuir a concentração e memória, bem como dificultar a tomada de decisões complexas, aumentando o risco de acidentes durante as atividades de trabalho^30,31.

Novos desafios para o campo da saúde do trabalhador foram criados com a pandemia da Covid-19, com a necessidade de manter as atividades essenciais, ao mesmo tempo em que medidas de proteção precisam ser adotadas para prevenir a ocorrência de casos nos locais de trabalho. Ainda assim, o crescimento do número de casos no Brasil nos alerta para as sequelas e consequências da Covid-19 e seus impactos na vida individual e organizacional que ainda não são plenamente conhecidos e mensurados, devendo ser avaliadas ao longo do tempo e demandando maior atenção e apoio na atenção à saúde, especialmente no retorno ao trabalho.

Para a avaliação desse retorno ao trabalho, ainda há escassez de orientações de padrão internacional, principalmente devido à variedade de manifestações clínicas. No cenário brasileiro, os padrões legais vigentes de avaliação para o retorno ao trabalho e seguimento dos trabalhadores formais são insuficientes e inadequados para abranger o cenário da Covid-19 de maneira eficaz, fazendo-se necessárias medidas mais protetivas para a saúde dos trabalhadores, garantindo a segurança e saúde para todos.

Os profissionais de saúde, em especial os médicos responsáveis pelos exames ocupacionais, precisam se envolver na avaliação e no aconselhamento de retorno ao trabalho, de maneira mais precoce, de todos os trabalhadores que tiveram Covid-19, independentemente da sua gravidade, traçando um plano de retorno individualizado, progressivo e adequado ao trabalho, incluindo adaptações nos ambientes e processos de trabalho. Atenção especial deve ser dedicada para aquelas atividades em que houver risco de segurança para os trabalhadores, terceiros, comunidades e ambiente.

Para um adequado exame de retorno ao trabalho, todos os potenciais efeitos pós-Covid conhecidos pela atual literatura científica devem ser considerados. Em havendo suspeita ou diagnóstico de alguma alteração, um plano terapêutico específico deve ser desenvolvido, a partir das confirmações diagnósticas e das atividades realizadas no trabalho. Para isso, profissionais de saúde e/ou serviços especializados podem ser necessários. Uma intervenção precoce por ocasião do retorno ao trabalho pode envolver tratamento de longo prazo, reabilitação funcional e, em casos mais graves, até mesmo reabilitação profissional. Deve-se estar atento também a condições clínicas prévias ou pré-existentes que possam exacerbar os impactos da síndrome pós-Covid-19 como, por exemplo, a existência de doenças neurológicas e psiquiátricas, distúrbios da coagulação, doenças cardiovasculares e do sistema respiratório, doenças renais, dentre outras.

Finalmente e não menos importante, é preciso alertar para a necessidade de investigação do caso de Covid-19 com o trabalho. Em se tratando de caso confirmado ou suspeito, em que o trabalho tenha sido um fator contributivo (Schilling II)³². Para os casos de Covid relacionados ao trabalho³³, recomenda-se a devida notificação via Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) para os trabalhadores segurados, ou semelhante para servidores públicos que tenham regime próprio de previdência. Para esses, e também para trabalhadores informais, cabe a notificação de caso confirmado ou suspeito de Covid-19 relacionada ao trabalho no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), na ficha de acidente de trabalho grave. Além da contribuição epidemiológica para a Vigilância em Saúde do Trabalhador, a adequada notificação de caso torna-se ainda mais relevante frente aos efeitos tardios da Covid-19.

Importante ressaltar que o presente estudo tem suas limitações. Os resultados foram obtidos em um estudo transversal, em curto período de tempo. Além disso, a amostra por conveniência e o seu reduzido número de participantes limita a generalização dos resultados e a possibilidade de inferir a causalidade. Devido ao número reduzido da amostra, houve concentração de sujeitos mais em algumas caselas do que em outras, favorecendo a sobredispersão de dados e instabilidade estatística.

Outra limitação é o fato de o estudo não ter investigado as variáveis relacionadas ao estilo de vida dos indivíduos, como hábitos de fumar ou consumo de bebida alcoólica; e variáveis relacionadas às condições de trabalho de cada segmento, que podem interferir na avaliação de CT. As variáveis sobre o tratamento específico adotado durante a infecção pelo Sars-CoV-2, também não foram abordadas no estudo.

Portanto, os achados deste estudo devem ser interpretados na perspectiva de seu caráter exploratório e precisam ser confirmados ou não em estudos futuros, com amostras maiores e com seguimento longitudinal.

Apesar das limitações apontadas, os resultados demonstram a necessidade de maior atenção nas ações no âmbito da saúde do trabalhador, no contexto da pandemia, com a proposição de medidas mais protetivas. São necessárias medidas e estratégias inovadoras que visam a recuperação e promoção da CT, em um nível organizacional e individual, e que promovam ambientes e processos de trabalho mais saudáveis, incluindo ações voltadas à saúde mental e os potenciais efeitos neurológicos pós-Covid-19. Essas estratégias devem perpassar a prevenção primária, secundária e, principalmente, a terciária, com medidas de reabilitação, quando necessário, e que garantam o retorno ao trabalho em boas condições laborais.

Conclusões

Um total de 119 trabalhadores que tiveram Covid-19 foram avaliados em estudo exploratório transversal, por amostra de conveniência. Constatou-se que mais da metade deles (52,9%) apresentaram um ICT comprometido. Ansiedade e sonolência foram alterações sequelares à Covid-19 associadas ao comprometimento da CT dos trabalhadores participantes do estudo (OR=4,50, p=0,002).

Os achados são compatíveis com estudos internacionais que descrever sequelas da Covid-19, incluindo efeitos neurológicos e psicológicos, para casos da doença considerados leves e apontam a necessidade de se avaliar previamente a situação de saúde de todos os trabalhadores que retornam do pós-Covid antes de retomar suas atividades, em especial aquelas de risco para si e para os demais

As atuais diretrizes e normatizações legais se mostram inadequadas para atender a este tipo de demanda, em especial no que se refere aos prazos para avaliações de retorno ao trabalho, em sua maioria acima do período de afastamento pela Covid-19, especialmente para os casos considerados de menor gravidade. Isso exige que gestores, empregadores, trabalhadores e seus representantes desenvolvam medidas mais protetivas do que o simples cumprimento dos requerimentos legais, visando uma maior proteção dos trabalhadores, de suas famílias e das comunidades onde estão inseridos. Avaliar a CT através do ICT é uma forma de objetivar e organizar a necessidade de atenção à saúde dos trabalhadores que tiveram Covid-19, em nível individual e coletivo, ao longo do tempo.

Este estudo demonstra a necessidade de que todos os trabalhadores com histórico de Covid-19 tenham sua CT avaliada por ocasião do retorno ao trabalho. Essa medida pode orientar ações de promoção à saúde, reabilitação funcional e adaptação do trabalho às sequelas apresentadas pelos trabalhadores, singularmente. A sua utilização pode ajudar o profissional de saúde e médico do trabalho para o adequado retorno ao trabalho e também na orientação e formulação de políticas, programas e medidas de prevenção, recuperação e manutenção da CT.

• Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  17 Nov 2023
• Data do Fascículo
  Oct-Dec 2023

Histórico

• Recebido
  13 Abr 2023
• Aceito
  13 Jul 2023