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Organização da Atenção Primária à Saúde em Municípios Rurais Remotos do Oeste do Pará

Organization of Primary Health Care in Remote Rural Municipalities in West Pará

RESUMO

O artigo objetiva identificar especificidades e estratégias da organização da Atenção Primária à Saúde (APS) em Municípios Rurais Remotos (MRR) do Oeste do Pará frente às singularidades do contexto amazônico. Realizou-se estudo de casos múltiplos em cinco municípios por meio de entrevistas com gestores municipais, enfermeiros e médicos de Equipes de Saúde da Família. As dimensões de análise foram a territorialização, escopo de práticas e organização da agenda, colaboração interprofissional, iniciativas de atração e fixação profissional e uso de tecnologias de informação e comunicação. O trabalho da APS nos MRR, principalmente no interior, organiza-se prioritariamente em atendimentos, procedimentos individuais e imunização. Enfermeiros, técnicos de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS) do interior possuem escopo de ações ampliado, muitas vezes, por ausência de médicos. Além do impacto positivo do Programa Mais Médicos, destacam-se estratégias locais de atendimentos itinerantes e sobreaviso para urgência. A territorialização, central na discussão de territórios sustentáveis e saudáveis, deve ser dinâmica e exige arranjos diferenciados, com adequação do número de famílias por ACS e por equipes. Estratégias específicas para organizar uma APS integral e integrada à Rede de Atenção à Saúde, financiamento federal suficiente e diferenciado e formação profissional direcionada ao rural são necessárias para garantir acesso e qualidade dos serviços a todos os cidadãos.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde da população rural; Atenção Primária à; Saúde; Serviços de saúde; Estratégias de saúde

ABSTRACT

The article aims to identify specificities and strategies for the organization of Primary Health Care (PHC) in Remote Rural Municipalities (MRR) in western Pará in the face of singularities in the Amazonian. Multiple case study in five municipalities, with interviews: municipal managers, nurses and physicians from the Family Health Teams. The analysis dimensions were: territorialization, scope of practices and agenda organization, interprofessional collaboration, professional attraction and retention initiatives and use of information and communication technologies. The work of the PHC in the MRR, mainly in the countryside, is organized primarily around care, individual procedures and immunization. Nurses, nursing technicians and Community Health Agents (CHA) from the countryside have an expanded scope of action, often due to the absence of physicians. In addition to the positive impact of the Mais Médicos Program, local strategies for itinerant care and on-call for emergencies stand out. Territorialization, central to the discussion of sustainable and healthy territories, must be dynamic and require different arrangements, adjusting the number of families per CHA/teams. Specific strategies to organize a comprehensive PHC integrated into the Health Care Network, sufficient and differentiated federal funding and professional training aimed at rural areas, are necessary to guarantee access and quality of services to all citizens.

KEYWORDS
Rural health; Primary Health Care; Health services; Health strategies

Introdução

Desigualdades nas condições de vida, utilização e acesso aos serviços de saúde são frequentes em territórios rurais brasileiros e mais acentuadas quando comparadas ao contexto urbano11 Kassouf AL. Acesso aos serviços de saúde nas áreas urbana e rural do Brasil. Rev. Econ. Sociol. Rural. 2005; 43(1):29-44.,22 Arruda NM, Maia AG, Alves LC. Desigualdade no acesso à saúde entre as áreas urbanas e rurais do Brasil: uma decomposição de fatores entre 1998 a 2008. Cad. Saúde Pública. 2018; 34(6):e00213816.. A falta de acesso à habitação de qualidade e saneamento, baixa renda, dificuldades de transporte e comunicação, maior exposição a riscos laborais e agravos em saúde, associados a desafios estruturais e políticos, se intensificam no território amazônico, marcado por grandes distâncias, dispersão populacional e insuficiência de políticas públicas específicas33 Garnelo L, Sousa ABL, Silva CO. Regionalização em saúde no Amazonas: avanços e desafios. Ciênc. saúde coletiva. 2017; 22(4):1225-34.,44 Confalonieri UEC. Saúde na Amazônia: um modelo conceitual para a análise de paisagens e doenças.Estud. av. 2005; 19(53):221-36..

Nas últimas décadas, ocorreram importantes avanços na universalidade no Sistema Único de Saúde (SUS) e capilaridade da Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil em municípios rurais, embora as maiores coberturas sejam encontradas na sede, em detrimento de suas zonas rurais55 Garnelo L, Lima JG, Rocha ESC, et al. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saúde debate. 2018; 42(esp1):81-99.. A oferta de serviços de APS para populações rurais é insuficiente, porque o escopo de ações é limitado e o financiamento das políticas nacionais é padronizado, apesar de demandar estratégias diferenciadas de organização para garantia de acesso33 Garnelo L, Sousa ABL, Silva CO. Regionalização em saúde no Amazonas: avanços e desafios. Ciênc. saúde coletiva. 2017; 22(4):1225-34.,66 Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, et al. Sustentabilidade da Atenção Primária à Saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(4):1605-18..

A saúde remota, termo utilizado na literatura internacional, pode ser marcada por características de isolamento profissional e social, forte abordagem multidisciplinar com mudanças e sobreposição de papéis dos membros da equipe, exigência profissional de habilidades clínicas ampliadas, de emergência e saúde pública77 Wakerman J. Defining Remote health. Aust. j. rural health. 2004; 12(5).. A organização da atenção precisa se adequar a populações pequenas e dispersas com necessidades de saúde impactadas por fatores climáticos77 Wakerman J. Defining Remote health. Aust. j. rural health. 2004; 12(5)., como também observado no contexto amazônico.

Este artigo reivindica a perspectiva da APS integral no SUS na Rede de Atenção à Saúde, com centralidade da APS no sistema nacional de saúde, integrando ações de prevenção, promoção, cura, reabilitação, e processos mais amplos de participação comunitária e articulação com outros setores para o enfrentamento aos determinantes sociais da saúde88 Giovanella L. Atenção Primária à Saúde seletiva ou abrangente? Cad. Saúde Pública. 2008; 24(supl1):7-27..

O artigo tem como objetivo identificar especificidades e estratégias da organização da APS em Municípios Rurais Remotos (MRR) do Oeste do Pará frente às singularidades do contexto amazônico. As perguntas orientadoras são: quais modelos de organização favorecem a implantação de uma atenção primária integral no SUS em contextos rurais remotos amazônicos? Que tipo de organização da APS é necessária para contribuir para territórios sustentáveis e saudáveis? A compreensão dos formatos de organização da APS contribui para equacionar obstáculos ao acesso em territórios rurais remotos para adequá-los às especificidades locais e garantir a equidade e o direito universal à saúde de suas populações.

Metodologia

Estudo qualitativo com dados da pesquisa ‘Atenção Primária à Saúde em territórios rurais e remotos no Brasil’, realizada em municípios brasileiros com classificação ‘rural remoto’ conforme tipologia rural-urbano do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)99 Fausto MCR, Fonseca HMS, Penzin VM, coordenadores. Atenção Primária à Saúde em Territórios Rurais e Remotos no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro: Fiocruz, Ensp; 2020. [acesso em 2022 dez 12]. Disponível em: https://apsmrr.ensp.fiocruz.br/categoria/biblioteca/literatura-selecionada/nossas-publicacoes/page/3/.
https://apsmrr.ensp.fiocruz.br/categoria...
,1010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e Caracterização dos Espaços Rurais e Urbanos do Brasil - Uma primeira aproximação - 2017. Rio de Janeiro: IBGE; 2017.
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Trata-se de estudo de casos múltiplos que tem como unidades de análise MMR, selecionados intencionalmente. Os casos são analisados a partir de questões comuns de pesquisa e emprega diferentes fontes de informação e atores. A seleção abarcou cinco MRR do Oeste do Pará com diferentes características socioeconômicas e geográficas1111 Lima RTS, Fernandes TG, Martins PJ, et al. Saúde em vista: uma análise da atenção primária à saúde em áreas ribeirinhas e rurais amazônicas. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(6):2053-64. - Prainha, Aveiro, Curuá, Rurópolis e Jacareacanga.

O trabalho de campo ocorreu entre maio e agosto de 2019 por meio de entrevistas presenciais gravadas a partir de instrumento semiestruturado e visitas a Unidades Básicas de Saúde (UBS). Analisaram-se 30 entrevistas com dez gestores municipais, onze enfermeiros, nove médicos de uma equipe UBS na sede e uma, no interior, nos cinco municípios.

As fontes utilizaram dados secundários de acesso aberto para o contexto de caracterização da APS; registros de diários de campo em forma de relatórios municipais; síntese elaborada pelos entrevistadores de campo, que conformaram um banco de dados qualitativo e quantitativo; e transcrições das entrevistas com gestores municipais, médicos e enfermeiros.

A categorização temática ocorreu por processo reiterativo de interpretação dos resultados, sendo identificadas dimensões com categorias emergentes das análises identificadas, a posteriori: territorialização da APS; escopo de práticas e organização da agenda; colaboração interprofissional; iniciativas de atração ou fixação profissional; e tecnologias de informação e comunicação. A inspiração teórica para essa categorização foi baseada em Almeida1212 Almeida PF, Santos AM, Cabral LMS, et al. Contexto e organização da Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos, Norte de Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(11):e00255020. e Franco1313 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção Primária à Saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520..

Para a análise, os dados foram organizados por caso, a partir de seus contextos e estratégias, tendo por base categorias em comum e especificidades. A análise cruzada dos temas, contrastando os casos, contribuiu para uma compreensão geral do conjunto das estratégias. As diferentes perspectivas dos atores entrevistados foram trianguladas para interpretação de cada caso e posterior confrontação entre os casos.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca - CEP/Ensp/Fiocruz, CAAE 92280918.3.0000.5240 e parecer nº 2.832.559, com anuência dos municípios, entrevista autorizada pelos participantes e preservação de anonimato nas análises.

Resultados

Os cinco MRR analisados do estado do Pará são de pequeno porte, onde a maioria da população é residente em território rural e possui baixa densidade demográfica e diversidade socioambiental1111 Lima RTS, Fernandes TG, Martins PJ, et al. Saúde em vista: uma análise da atenção primária à saúde em áreas ribeirinhas e rurais amazônicas. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(6):2053-64.. Rurópolis está localizado no entroncamento entre as rodovias federais Transamazônica e Santarém-Cuiabá; Jacareacanga possui expressiva população indígena e atividades como garimpo e hidrelétricas; Aveiro têm populações ribeirinhas e área de reserva ambiental nas duas margens do rio; Curuá possui acesso por rio e estrada, muito influenciado pela sazonalidade; Prainha também possui população nas duas margens do rio. Estas duas têm quase a totalidade da população beneficiárias pelo Programa Bolsa Família (tabela 1).

Tabela 1
Indicadores de APS e demais equipamentos da Rede de Atenção à Saúde dos municípios rurais remotos selecionados, Oeste do Pará, Brasil, 2019

Os municípios apresentam majoritariamente serviços de APS, com cobertura ESF (Estratégia Saúde da Família) entre 48,8% e 100%. Todos contam com um ou mais médicos do Programa Mais Médicos (PMM) e importante quantitativo de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) nas equipes, mas com baixo percentual da população cadastrada e vinculada às equipes de APS (entre 29,0% e 67,8%). Possuem uma a duas equipes de saúde bucal, equipes de Estratégia de Agentes Comunitários de Saúde (EACS), com exceção de Aveiro, e nenhuma Equipe de Saúde da Família (EqSF) fluvial. EqSF ribeirinhas e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) estão presentes em Rurópolis e Curuá. Somente Rurópolis conta também com apoio do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) (tabela 1).

A rede de serviços de saúde nos cinco municípios é exclusivamente provida pelo SUS, com exceção de um laboratório de análises clínicas em Prainha e uma farmácia privada em Aveiro. Todos os MRR possuem um estabelecimento público de saúde na sede para atendimento de urgências, parto e alguns procedimentos, compostos por pequenos hospitais (Jacareacanga e Rurópolis), Unidade Mista 24h (Prainha) ou Centro de Saúde 24h (Aveiro e Curuá). Todos dispõem de infraestrutura insuficiente e precária, à exceção de Rurópolis (tabela 1).

Territorialização da APS

A distribuição dos serviços de APS no território é variada. Jacareacanga, Aveiro e Prainha possuem uma UBS na sede e a maior parte distribuída pelos interiores, enquanto Rurópolis e Curuá apresentavam certo equilíbrio entre número de UBS na sede e nas zonas rurais. Observou-se importante diferença entre o tipo de estabelecimento cadastrado - UBS/Unidade de Saúde da Família - USF/Postos de saúde - no Sistema do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) e a realidade de organização das equipes nas UBS observada no campo, resultado de mudanças frequentes na disponibilidade de profissionais. Para manter equipes completas e garantir continuidade do financiamento federal, havia remanejamento entre os profissionais das equipes. Observaram-se estabelecimentos no do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) classificados como posto de saúde, mas que funcionavam como UBS com equipes ESF completas; e outros no CNES classificados como UBS que não contavam com equipe ESF completa.

Neste estudo, considerou-se como UBS o estabelecimento com equipes ESF completas. Posto de saúde é todo aquele que não possuía médicos na equipe: a) EACS; b) equipe com enfermeiro, técnico de enfermagem e ACS; c) equipe somente técnico de enfermagem; d) equipe com enfermeiro e ACS; e) equipe com microscopista, técnico de enfermagem e ACS (quadro 1).

Quadro 1
Territorialização da atenção básica nos municípios rurais remotos selecionados, Oeste do Pará, Brasil, 2019

Em Aveiro e Curuá, há médicos vinculados à UBS do interior que atendem a maior parte da semana na sede. Essa organização foi justificada pela ausência de energia elétrica nas UBS de origem, o que reduz o escopo possível de ações.

Atendimento do tipo itinerante em áreas do interior foi observado em todos os municípios com formatos variados. Rurópolis e Aveiro realizam atendimento itinerante de forma regular ou periódica. Mensalmente ou semanalmente, médicos da sede ou demais profissionais da ESF se deslocam para comunidades do interior sem cobertura ou sem energia elétrica e se agregam a equipes incompletas do interior para atendimento. Jacareacanga, Curuá e Prainha fazem atendimento no formato ‘mutirão’, com equipes da sede se deslocando, sem periodicidade definida, para comunidades do interior. Em Jacareacanga, esse atendimento ocorre em UBS rurais - uma UBS por mês, ou seja, no período de aproximadamente quatro a seis meses, uma UBS recebe a equipe itinerante; Curuá e Prainha priorizam atendimento em territórios rurais descobertos, em comunidades mais distantes sem cobertura. Ambos os tipos de atendimento itinerante, regular ou mutirão, têm foco em consultas e atualização de calendário vacinal. Os altos custos com transporte para esses atendimentos itinerantes sempre são informados como desafios para os gestores.

Quanto à ampliação de acesso e cuidado às comunidades ribeirinhas, Jacareacanga e Curuá estavam em fase de implantação de UBS fluvial no momento da visita e Rurópolis e Curuá possuem equipes ribeirinhas. Os demais municípios atendem à população ribeirinha, embora sem possuir ESF ribeirinhas credenciadas, principalmente devido a dificuldades de fixação de profissionais.

Ainda que haja um importante deslocamento ou circulação das equipes entre sede e interior, a adscrição formal da população às UBS seguiu o padrão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), ou seja, por equipe urbana ou rural, conforme residência do usuário. Todos os MRR possuem áreas descobertas em razão da dispersão da população nos territórios rurais e dificuldades de fixação de profissionais nas equipes. O número de ACS por equipe variou de dois a 22, conforme ESF ou EACS, e área de atuação na sede ou no interior; cada ACS acompanha de 120 a 700 pessoas. Os ACS de áreas rurais designados para realizar visitas necessitam deslocar-se e percorrer maiores distâncias no cotidiano, acompanhando, portanto, menor número de famílias.

A sazonalidade impacta a territorialização. Em quase todos os MRR, há comunidades isoladas em épocas de chuva ou seca, com exceção de Jacareacanga. Em Curuá e Prainha, há necessidade de cadastro duplicado de usuários em UBS da sede e do interior devido à migração sazonal de parte da população. O processo participativo na territorialização dos municípios mostrou-se frágil, seja referente à participação dos ACS ou do controle social, com destaque positivo para Rurópolis (quadro 1).

Escopo de práticas e organização da agenda

As UBS de todos os municípios ofertam consultas de enfermagem. Há falta de médicos em várias UBS do interior, com descontinuidades ou intermitência na prestação de consultas médicas. A oferta de consultas odontológicas ocorre somente na sede dos MRR, inclusive para a população do interior que necessite de algum atendimento de urgência. Comuns foram os relatos de sobrecarga ou atendimentos odontológicos focados em extração, uma vez que uma equipe de saúde bucal é responsável pelo suporte para até três EqSF.

A maior parte das UBS oferta imunização de rotina, coleta de preventivo e acompanhamento dos programas de saúde. A exceção são as UBS sem energia elétrica regular presentes em Aveiro, Curuá e Prainha, cujo escopo de ações é reduzido. A dispensação regular de medicamentos, em geral, é descentralizada, pois há farmácia básica em todas as UBS; não está disponível em postos de saúde. Contudo, a logística para o transporte dos medicamentos até os municípios torna os medicamentos ainda mais onerosos, provocando atrasos no abastecimento e insuficiência. Como paliativo, dois municípios repõem medicamentos por meio de emenda parlamentar (Rurópolis) ou de royalties de hidrelétricas (Jacareacanga).

Somente Rurópolis possui coleta de exames de sangue e urina nas UBS, sendo quatro vezes por semana na sede e uma vez por semana no interior. Em todos os demais, a coleta é realizada no pequeno hospital dos municípios ou no Centro de Saúde 24h ou na unidade mista da sede. Em Jacareacanga, Aveiro, Curuá e Prainha, os testes rápidos são realizados em poucas UBS e limitados às gestantes. Grupos de educação em saúde são incipientes em todos os municípios e, quando ocorrem, se limitam a campanhas temáticas como outubro rosa, hipertensão ou diabetes e pré-natal, sem periodicidade definida.

A organização da agenda dos MRR é feita por programas de saúde por turno via distribuição de fichas para atendimento predominantemente de demanda programada e reserva de algumas fichas para demanda espontânea, com relatos de insuficiência do número de vagas na sede.

Uma estratégia amplamente utilizada nas UBS rurais é o ‘sobreaviso’, um plantão de atendimento nas UBS realizado por técnicos de enfermagem ou enfermeiros nos horários não comerciais de funcionamento da UBS: das 18h00 às 7h00 e nos fins de semana. Em caso de urgência, o profissional de sobreaviso é acionado em seu domicílio e se desloca até a UBS para o atendimento. Dependendo da gravidade, outros profissionais podem ser acionados ou o paciente é encaminhado de carro ou embarcação da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) para o hospital ou Centro de Saúde 24h/unidade mista da sede. Tal iniciativa é mais voltada a procedimentos ou estabilização para transporte do paciente, amenizando a carência de atendimentos de urgência no interior e o impacto dos grandes deslocamentos até a sede dos MRR para um primeiro atendimento. Rurópolis, Aveiro e Curuá disponibilizam ambulâncias em parte de suas UBS do interior (quadro 2).

Quadro 2
Escopo de práticas e organização da agenda nos municípios rurais remotos selecionados, Oeste do Pará, Brasil, 2019

Colaboração interprofissional

Na divisão de tarefas entre médicos e enfermeiros, a atividade do médico é centrada em assistência individual nas UBS, havendo raros relatos de visitas domiciliares e educação em saúde, enquanto os enfermeiros dividem suas atribuições entre assistência individual programática, supervisão mensal dos ACS, gerência da UBS, visitas domiciliares e menos frequentes, grupos. As consultas intercaladas entre enfermeiros e médicos ocorre no acompanhamento de gestantes e pacientes com hipertensão e diabetes. Em geral, o diagnóstico e o atendimento de casos descompensados são de responsabilidade do médico, enquanto o acompanhamento e os casos controlados ficam a cargo da enfermeira.

Os enfermeiros e ACS de áreas rurais têm um escopo de ação ampliado. O trabalho dos ACS envolve desde ações individuais e familiares até coletivas e administrativas, observando-se variação entre os municípios quanto aos procedimentos. ACS do interior em Jacareacanga têm responsabilidades no controle da malária; em Rurópolis, Curuá e Prainha, auxiliam no transporte de usuários; em Jacareacanga, Aveiro e Prainha, aferem pressão arterial (quadro 3).

Quadro 3
Colaboração interprofissional nos municípios rurais remotos selecionados, Oeste do Pará, Brasil, 2019

Em Rurópolis, os enfermeiros atuam em conjunto com ACS e com profissionais do Nasf, com destaque para visitas domiciliares, estudos de caso e grupos com os usuários. Já em Curuá, as ações conjuntas ainda não haviam iniciado em razão de organização recente do Nasf. Jacareacanga e Aveiro ofertam ações em parceria com os Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEI) tais como aquisição e distribuição de medicamentos.

Iniciativas de atração ou fixação profissional

A maioria dos médicos e enfermeiros concentra-se na sede dos MRR, com ESF frequentemente incompletas no interior. O vínculo trabalhista dos profissionais, em geral, é por contrato temporário, com exceção dos médicos bolsistas do PMM e ACS concursados.

A disponibilidade de profissionais, especialmente de médicos, é um importante desafio para os municípios, principalmente em áreas mais remotas. As exigências salariais são insustentáveis, por exemplo, de R$40.000,00 para uma jornada de 15 dias no pequeno hospital ou divisão de carga horária entre municípios para duplicação de remuneração. O PMM melhorou radicalmente o provimento de médicos, qualificou o atendimento, a continuidade da assistência e reduziu a sobrecarga de atendimentos nos hospitais e Centros de Saúde 24h. Relatos revelaram que, com o Programa, muitas comunidades tiveram acesso à assistência médica contínua na UBS pela primeira vez. Em contrapartida, o rompimento de contrato com os médicos cubanos PMM, retomou os vazios assistenciais, descontinuou o financiamento federal da ESF, sobrecarregou hospitais e reduziu o acesso, com tamanho impacto que, no momento da entrevista, em 2019, seis meses depois do rompimento, os municípios não haviam conseguido reposição de parte dos médicos.

Dentre as estratégias para atração e fixação de profissionais nos MRR, constatamos a prioridade de contratação de profissionais nascidos no município ou região, em Rurópolis e Jacareacanga; previsão de concurso público em Rurópolis para todas as categorias profissionais da saúde e para ACS em Jacareacanga, algo já ocorrido em Aveiro para enfermeiros e ACS; e gratificação profissional para os profissionais de sobreaviso em Rurópolis, Jacareacanga e Prainha, e para os atuantes em ações itinerantes em Jacareacanga.

Rurópolis e Curuá firmaram parcerias privadas para formação com desenvolvimento de curso técnico de enfermagem no município. Iniciativas de educação permanente para os profissionais de todos os municípios são incipientes.

O apoio municipal aos profissionais de saúde foi expresso por moradia, transporte e melhorias de infraestrutura. A moradia é financiada para os médicos PMM em Rurópolis e Prainha. Há uma casa do município para os profissionais da equipe em uma comunidade no interior em Aveiro, assim como disponibilidade de quarto para enfermeiro de área rural em Curuá. Não é usual a disponibilidade de transporte da SMS para as equipes executarem ações rotineiras em seus territórios. Embora ressaltado como de grande relevância por todos os profissionais, transportes tais como caminhonete, carro ou lancha da SMS ou alugados são disponibilizados apenas mediante planejamento e agendamento. Demais subsídios de transporte foram direcionados para médico em Rurópolis e Curuá e para ACS do interior em Prainha.

Melhorias da infraestrutura da UBS foram informadas em quase todos os municípios, com exceção de Jacareacanga, que estava com a construção em curso de uma UBS fluvial, inaugurada em 2021. O financiamento para melhoria da infraestrutura nos MRR envolveu recursos federais do Programa Requalifica UBS, havendo autorizações em 2013-2014 para Rurópolis, Aveiro e Curuá, recursos próprios dos municípios de Aveiro e aporte de emendas parlamentares para Rurópolis e Prainha (quadro 4).

Quadro 4
Iniciativas para atração ou fixação profissional nos municípios rurais remotos selecionados, Oeste do Pará, Brasil, 2019

Tecnologias de informação e comunicação

A estratégia e-SUS APS é utilizada por todos os municípios em formatos variados. O Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) foi adotado em três municípios, de forma integral em Rurópolis e como UBS piloto em Prainha e Curuá. Nas demais UBS de Prainha e Curuá, assim como em Jacareacanga e Aveiro, adotaram-se fichas de papel para Coleta de Dados Simplificada (CDS) com digitação dos dados feita na UBS e enviada via SMS. A experiência de adoção dos tablets para ACS registrarem seus cadastros e visitas, inclusive em comunidades vicinais, foi implantada em 2018 em Rurópolis, a partir de com importante investimento em tecnologia de comunicação e estruturação de equipe de informática. Em Prainha, o uso de tablets estava sendo testado em uma UBS da sede.

O telessaúde não é uma ferramenta utilizada pelas equipes, salvo em iniciativas individuais de profissionais para realizar cursos ou formação obrigatória dos médicos PMM. Não há telefone em nenhuma UBS, mas há internet disponível nas UBS da sede dos municípios e em parte das UBS do interior, embora com conexão inconstante. O WhatsApp é a ferramenta mais utilizada para comunicação entre os profissionais do interior e a sede e da sede com o município de referência. Em Prainha, é comum o envio de bilhetes pelo ônibus ou embarcação para comunicação da equipe com usuários.

Discussão

Uma atenção primária que garanta a integralidade do cuidado precisa ser planejada de forma integrada aos demais níveis de atenção do sistema e articulada com outras políticas públicas, associando acesso oportuno e resolutividade às ações de prevenção e promoção da saúde. Ao mesmo tempo que a APS se constitui como porta de entrada, impulsiona necessidades de cuidados que exigem continuidade da atenção e coordenação dos cuidados na rede de atenção1414 Almeida PF, Gérvas J, Freire JM, et al. Estratégias de integração entre atenção primária à saúde e atenção especializada: paralelos entre Brasil e Espanha. Saúde debate. 2013; 37(98):400-15..

O contexto amazônico, marcado por injustiças ambientais, disputas territoriais e modelos de desenvolvimento que impactam diretamente o modo de vida das populações1515 Porto MF, Pacheco T, Leroy JP, organizadoras. Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o mapa de conflitos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013., demanda organização dos serviços de saúde capazes de responder a intenso movimento migratório, maiores riscos laborais e até situações de violência. Numa perspectiva mais abrangente, serviços que consigam atuar de forma articulada para impactar a redução de vulnerabilidades a que estão submetidas as populações. O exemplo mais explícito dentre os casos estudados foi o município de Jacareacanga. A forte atividade de garimpo ilegal em um município onde mais de 80% do território está inserido em terras indígenas ou unidades de conservação e a extração de ouro é proibida, atrela-se a crimes ambientais tais como desmatamento, queimadas, contaminação e assoreamento das águas, além de questões sociais gritantes tais como violências de gênero, prostituição e disputas de terra, inclusive de territórios indígenas.

A definição de Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS) tem relação direta com a promoção da saúde e a forma como o serviço de saúde articula-se no território:

TSS são espaços relacionais e de pertencimento onde a vida saudável é viabilizada, por meio de ações comunitárias e de políticas públicas, que interagem entre si e se materializam, ao longo do tempo, em resultados que visam a atingir o desenvolvimento global, regional e local, em suas dimensões ambientais, culturais, econômicas, políticas e sociais1616 Machado JMH, Martins WJ, Souza MSS, et al. Territórios saudáveis e sustentáveis: contribuição para saúde coletiva, desenvolvimento sustentável e governança territorial. Comum. Ciênc. Saúde. 2017 [acesso em 2023 out 4]; 28(2):243-9. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/territorio_%20saudaveis_%20sustentaveis.pdf.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodico...
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Logo, a territorialização de equipes e UBS exige arranjos diferenciados. Os resultados permitem identificar padrões de distribuição das UBS nos territórios, cujas especificidades estão relacionadas à presença de áreas de proteção ambiental e indígenas, às formas de territorialização adotadas pelos municípios, aos modos de concentração da população em localidades do interior e dispersão de famílias em territórios isolados. Tal realidade gera uma distribuição das UBS no interior dos MRR que não consegue abarcar todo o território.

A distribuição atual das UBS está condicionada aos contextos sociais, políticos, geográficos e demográficos. Não é possível, portanto, que incentivos federais estabeleçam um padrão uniforme de distribuição das UBS para todos os territórios. Devem se orientar por planejamento local com participação social. Rurópolis é um exemplo de como o empenho municipal associado a iniciativas de participação social consegue produzir melhor territorialização. Prainha, por outro lado, mostra as imensas dificuldades geográficas nessa territorialização, em razão da população presente nas duas margens do rio Amazonas.

A delimitação da área de atuação dos ACS, em especial do interior, envolve uma territorialização mais fluida, por vezes com áreas não contíguas, demandando menor número de famílias por ACS, a depender da concentração da população no território. É essencial o apoio da SMS de transporte para deslocamentos, como observado em algumas localidades, via uso de moto ou pequena embarcação1717 Baptistini RA, Figueiredo TAM. Agente comunitário de saúde: desafios do trabalho na zona rural. Amb. soc. 2014; 17(2):53-70..

Os esforços de territorialização das gestões municipais, contudo, podem, isoladamente, não ser suficientes para que a população adscrita procure o serviço definido. Sabe-se que dimensões tais como acessibilidade, disponibilidade do serviço e escopo de ações, organização dos processos de trabalho, longitudinalidade e vínculo influenciam a procura e a satisfação dos usuários em relação aos serviços de APS1818 Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: Unesco; Ministério da Saúde; 2002.

19 Moraes VD, Campos CEA, Brandão AL. Estudo sobre dimensões da avaliação da Estratégia Saúde da Família pela perspectiva do usuário. Physis (Rio J). 2014; 24(01):127-6.
-2020 Fausto MCR, Giovanella L, Mendonça MHM, et al. A posição da Estratégia Saúde da Família na rede de atenção à saúde na perspectiva das equipes e usuários participantes do PMAQ-AB. Saúde debate. 2014; 38(esp):13-33.
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Na ausência de oferta cotidiana de serviços pelos interiores, os gestores municipais de todos os municípios desenvolvem estratégias itinerantes de assistência, quer periódicas e regulares ou em ‘mutirão’ sem periodicidade. Embora os atendimentos móveis, muitas vezes, sejam a única forma de oferta de assistência às comunidades mais remotas, o formato mutirão, com uma prática focada na lógica campanhista, não garante nem acesso nem continuidade do cuidado.

As modalidades de atenção da PNAB específicas para essas áreas, ESF ribeirinha e UBS fluvial estiveram pouco presentes nos casos estudados. Estudos sobre essas modalidades mostram indiscutíveis avanços de acessibilidade e cobertura da AB1111 Lima RTS, Fernandes TG, Martins PJ, et al. Saúde em vista: uma análise da atenção primária à saúde em áreas ribeirinhas e rurais amazônicas. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(6):2053-64.,2121 El Kadri MR, Santos BS, Lima RTS, et al. Unidade Básica de Saúde Fluvial: um novo modelo da Atenção Básica para a Amazônia, Brasil. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180613., embora, ainda que se proponham a oferta de cuidados rotineiros, predominam características de itinerância. Apresentam desafios tais como curtos tempos de permanência em cada comunidade associados ao volume de comunidades a serem atendidas, envolvimento limitado do ACS e financiamento insuficiente para grandes deslocamentos e para manutenção de equipes2222 Garnelo L, Parente RCP, Puchiarelli MLR, et al. Barriers to access and organization of primary health care services for rural riverside populations in the Amazon. Int J Equity Health. 2020; 19(54).. Há problemas de sustentabilidade dessas equipes por custeio federal, em especial a UBS Fluvial, o que condiciona o funcionamento à contrapartida do município.

Modelos itinerantes ou serviços de visitas periódicas são frequentes em comunidades rurais remotas em diferentes países, com distintas conformações, visando a melhores resultados em saúde, maior continuidade e menores custos na assistência. Contudo, em geral, estão associados a outros modelos de intervenção com atendimentos contínuos2323 Wakerman J, Humphreys JS, Wells R, et al. Primary health care delivery models in rural and remote Australia - a systematic review. BMC Health Serv Res. 2008; 8:276.. Exemplos de experiências internacionais são o Programa Mobile Integrated Community Health (MICH) nos EUA, que combina visitas domiciliares com telefonemas periódicos de acompanhamento e telessaúde, conforme a necessidade2424 Centro de Informações de Saúde Rural. RHIHub: Queen Anne’s County Mobile Integrated Community Health (MICH) Program. [Sem local]: Rural Health Information Hub; 2021.; ou o Fly-in Fly-out e Drive-in Drive-out no Canadá, que abarca diferentes formatos de deslocamentos ou viagens das equipes para as comunidades rurais por mais ou menos tempo, preferencialmente com um mesmo grupo de profissionais atendendo à mesma comunidade2525 Carey TA, Sirett D, Wakerman J, et al. What principles should guide visiting primary health care services in rural and remote communities? Lessons from a systematic review. Aust J Rural Health. 2018; 26(3):146-56.. Na realidade dos MRR estudados, embora o atendimento itinerante seja necessário, é necessário que se traduza não somente em ações esporádicas, mas em visitas periódicas e com maior resolutividade.

O escopo de ações no interior de todos os municípios é limitado ou seletivo, salvo algumas exceções de UBS. O atendimento médico é intermitente, atendimento de saúde bucal somente na sede, não há realização de exames nem testes rápidos e há insuficiência de medicamentos na sede e no interior. Identifica-se uma centralidade de ações nos centros de saúde e pequenos hospitais da sede dos municípios. A atividade mais contínua em todo o conjunto das UBS são as consultas de enfermagem e a imunização. Algumas UBS do interior de Rurópolis e Aveiro mostraram-se bem equipadas para atendimentos de urgência.

O sobreaviso para atendimentos de urgência e as ações itinerantes para atendimento nas UBS do interior são destaque em todos os municípios. Há necessidade de qualificar essas iniciativas para garantia do cuidado contínuo por meio de financiamento específico que possibilite visitas periódicas tanto para remuneração de profissionais como para apoio de transporte para deslocamento de usuários e profissionais.

A disponibilidade contínua de profissionais de saúde representa um desafio em todo o mundo, cuja escassez de profissionais chega a ser mais que o dobro nas áreas rurais do que nas áreas urbanas2626 Scheil-Adlung X. International Labour Office (ILO). Global evidence on inequities in rural health protection. New data on rural déficits in health coverage for 174 countries. ESS document n 47. Geneva: ILO; 2015.. Dentre os fatores que dificultam a atração e fixação dos profissionais em áreas rurais estão os gastos elevados para manutenção de profissionais; carência em estrutura e insumos dos serviços; condições desfavoráveis de trabalho; qualificação profissional não voltada aos contextos rurais; e apoio insuficiente na Rede de Atenção à Saúde1313 Franco CM, Lima JG, Giovanella L. Atenção Primária à Saúde em áreas rurais: acesso, organização e força de trabalho em saúde em revisão integrativa de literatura. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(7):e00310520..

Nos casos estudados, tal cenário impacta diretamente o modelo de equipes de atenção básica adotado pelos MRR e as estratégias de organização e oferta de serviços, convertendo ESF em EACS; ou equipes originalmente cadastradas em UBS do interior sendo alocadas na sede dos MRR e se deslocando para atendimento no interior.

Estudos internacionais classificam estratégias de atração e fixação profissional nos tipos educacionais, regulatórios e de suporte profissional e pessoal2727 Grobler L, Marais BJ, Mabunda S. Interventions for increasing the proportion of health professionals practising in rural and other underserved areas (Review). Cochrane Database Syst. Rev. 2015; 6:CD005314.,2828 World Health Organization. Increasing access to health workers in remote and rural areas through improved retention: global policy recommendations. Geneva: WHO; 2010.. A maior parte dos países da América do Sul mantém cooperação com Cuba para a provisão de médicos para a APS, além de investimentos em pós-graduações ou residências em medicina de família e comunidade2929 Giovanella L, Almeida PF. Atenção primária integral e sistemas segmentados de saúde na América do Sul. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(supl2):e00118816. ou em estágio ou internatos de saúde rural na graduação de medicina. Estratégias regulatórias de atuação de recém-formados em áreas rurais e planos de carreiras, embora incomuns, são outros fatores de fixação profissional2727 Grobler L, Marais BJ, Mabunda S. Interventions for increasing the proportion of health professionals practising in rural and other underserved areas (Review). Cochrane Database Syst. Rev. 2015; 6:CD005314.,3030 Working Party on Rural Practice. Política de qualidade e eficácia dos cuidados de saúde rural. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2013; 8(supl1):15-24.. Suporte profissional e pessoal é relativo à possibilidade de participação em treinamentos ou atualizações profissionais e às necessidades familiares tais como moradia e educação para crianças2727 Grobler L, Marais BJ, Mabunda S. Interventions for increasing the proportion of health professionals practising in rural and other underserved areas (Review). Cochrane Database Syst. Rev. 2015; 6:CD005314..

Em cenários com importante insuficiência de profissionais, como no nosso cenário, a atuação colaborativa entre equipe multidisciplinar nas áreas rurais mostrou ser ainda mais importante para uma APS resolutiva, demandando profissionais com escopo de atuação ampliado e com maior capacidade comunicativa e suporte clínico à distância.

Estudos australianos e norte-americanos exemplificam contribuição da telemedicina e telessaúde na ampliação do acesso e prestação de serviços, propiciando potencial economia de viagens, menor necessidade de atenção hospitalar, acompanhamento domiciliar regular mais eficiente e maior satisfação dos pacientes3131 Meade B, Dunbar J. A virtual clinic: telemetric assessment and monitoring for rural and remote áreas. Rural Remot. Healt. 2004; 4(3):296.,3232 Totten AM, Womack DM, Eden KB, et al. Telehealth: Mapping the Evidence for Patient Outcomes from Systematic Reviews. AHRQ Publication. 2016; 16:EHC034-EF.. No contexto deste estudo, tais estratégias ainda não foram incorporadas aos modelos de organização de serviços da APS em áreas rurais, salvo iniciativa pontual de uso de tablet por alguns ACS.

O estudo de casos múltiplos permitiu observar a diversidade de contextos e necessidade de organização da APS para atender às especificidades em MMR.

O município de Rurópolis traz um exemplo positivo de gestão municipal de saúde, com continuidade administrativa; empreendedorismo e engajamento das gestoras com formação em saúde coletiva; e identidade regional e cultural estimulada na contratação de profissionais. Suas iniciativas vêm resultando em melhorias na infraestrutura das UBS, ampliação da cobertura, oferta e qualidade do cuidado, incluindo implantação de Nasf e maior periodicidade de atendimento itinerante nos interiores.

O município de Jacareacanga possui forte atividade de garimpo ilegal e predomínio de terras indígenas, exigindo articulação da SMS com o DSEI para garantia de atenção dos diferentes grupos populacionais. O aporte dos royalties de hidrelétricas trouxe alguns benefícios de estrutura assistencial tais como laboratório de entomologia e malária e abastecimento mais regular de medicamentos. Contudo, é impactado por conflitos intensos de disputa pela terra e ambientais.

Aveiro, Prainha e Curuá, por possuir acesso predominantemente fluvial, poderiam ser mais beneficiados com a ampliação e qualificação de modalidades diferenciadas de ESF na PNAB, UBS fluviais e ESF ribeirinhas. Curuá vem apresentando maiores avanços na implantação de ambas as iniciativas e é um exemplo de que a acessibilidade, mesmo na sede do município, é altamente variável conforme a sazonalidade, sendo ora acessível por via terrestre ora acessível por via fluvial. Para esses três municípios, especialmente Aveiro e Prainha, que têm população nas duas margens do rio, maior apoio financeiro dos entes federativos para logística de deslocamento fluvial é condição imprescindível para melhor acesso e cuidado em razão dos altos custos.

A organização de uma APS integral em áreas rurais remotas envolve forte articulação profissional, foco não apenas em médicos generalistas, gestão competente e adequada governança, abordagem holística com escopo ampliado de práticas, infraestrutura adequada, participação popular e enfrentamento dos determinantes sociais2323 Wakerman J, Humphreys JS, Wells R, et al. Primary health care delivery models in rural and remote Australia - a systematic review. BMC Health Serv Res. 2008; 8:276.. As intervenções em saúde no contexto estudado precisam ser intersetoriais, visto a carência de infraestrutura em geral66 Fausto MCR, Giovanella L, Lima JG, et al. Sustentabilidade da Atenção Primária à Saúde em territórios rurais remotos na Amazônia fluvial: organização, estratégias e desafios. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(4):1605-18..

Considerações finais

Quanto mais se contextualiza e se compreende o território rural amazônico, maior a capacidade de proposições adequadas para territórios saudáveis e sustentáveis e para uma APS integral e integrada às necessidades rurais. Os casos estudados mostram desafios para um planejamento que responda à diversidade desses contextos permeados por conflitos.

Modelos de organização que favoreçam a implantação de uma atenção primária integral em contextos rurais remotos podem abarcar recomendações como:

  • Territorialização da APS dinâmica, orientada por contextos locais e participação social;

  • Menor número de famílias sob responsabilidade dos ACS e equipes rurais, visto a necessidade de longos deslocamentos e a intenção de ampliar a capacidade de acompanhamento das famílias;

  • Atendimentos itinerantes com visitas regulares ou periódicas, preferencialmente realizadas pela mesma equipe, enfatizando a longitudinalidade e continuidade do cuidado;

  • Financiamento federal suficiente que contemple vulnerabilidades, distâncias, necessidades de transporte fluvial e terrestre, além das diversas modalidades itinerantes de equipes de atenção básica nas áreas remotas;

  • Fortalecimento de políticas efetivas de provimento de profissionais de saúde em áreas rurais, a exemplo da experiência exitosa do PMM;

  • Desenvolvimento de estruturas assistenciais na sede municipal para atendimento às urgências, parto de risco habitual, exames diagnósticos básicos clínicos e de imagem e internação nas clínicas básicas;

  • Formação profissional adequada para estudantes de graduação e pós-graduação da área da saúde, abarcando teoria e práticas rurais desde a graduação, a exemplo dos internatos e estágios rurais e de residências em APS com ênfase em contextos rurais;

  • Apoio técnico das secretarias estaduais de saúde e educação permanente para gestores e profissionais de saúde, com ênfase nas necessidades locais relacionadas à saúde rural;

  • Incentivos financeiros e iniciativas de valorização da identidade cultural e regional rural;

  • Investimentos em infraestrutura, insumos e equipamentos adequados, além de tecnologias de informação e comunicação com qualidade e constância que envolva a atenção especializada e possível suporte de telessaúde para atendimentos;

  • Atuação das equipes ESF em conjunto com a vigilância em saúde para reconhecimento dos riscos laborais e ambientais e necessidades dos territórios, a exemplo de áreas endêmicas de malária ou de regiões de maior exposição;

  • Processos de avaliação e qualificação específicos.

As diferenças entre contextos urbanos e rurais não podem ser justificativas para menor acesso e inferior qualidade na prestação de serviços. As políticas nacionais precisam incorporar flexibilidade de implementação e operar muito articuladas com os contextos e planejamento local, com participação social. É necessário um compromisso nacional, compatível com os princípios do SUS, de garantir que todos recebam um nível de serviço de qualidade e acessível, independentemente de onde vivam.

  • Suporte financeiro: Ministério da Saúde e Fundação de Amparo à Fiocruz pelo financiamento da pesquisa. Lima JG, foi bolsista de doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Código de financiamento 001. Giovanella L, é bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 311762/2015-8

Agradecimentos

Agradecemos a todos os gestores, profissionais da atenção básica e usuários entrevistados, ao grupo da pesquisa ‘Atenção Primária à Saúde em territórios rurais e remotos no Brasil’, aos professores e alunos do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Oeste do Pará que ajudaram na coleta de dados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2023
  • Aceito
    08 Set 2023
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