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Trabalho e riscos de adoecimento na Atenção Psicossocial Territorial: implicações para a gestão do cuidado em saúde mental

RESUMO

O estudo busca analisar a precarização do trabalho por meio das condições laborais que influenciam a gestão do cuidado em saúde mental e a saúde do trabalhador. Trata-se de estudo de caso único, com abordagem mista, realizado em seis Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de Área Descentralizada de Saúde. Aplicou-se o Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento em amostra intencional total de 35 trabalhadores, dos quais, 15 participaram da entrevista projetiva. Os dados foram tratados no SPSS 26.0.0.0, expressos como medidas de tendência central e dispersão. As entrevistas foram categorizadas a partir dos eixos de avaliação propostos pelo inventário, contextualizadas e problematizadas a partir do pensamento complexo de Edgar Morin. O resultado é crítico para a maioria dos preditores que avaliaram o contexto, o custo humano, o prazer, o sofrimento e os danos relacionados ao trabalho nos Caps. Dados ilustrados pelas narrativas dos trabalhadores descrevem as condições do trabalho precário. Princípios produtivistas do neoliberalismo foram incorporados rapidamente pelos gestores locais do Sistema Único de Saúde, tornando a precarização do trabalho uma constante real. É preciso rever os processos de gestão do cuidado em saúde mental, financiamento e condições ocupacionais e contratuais legais, para que se alinhem com a Atenção Psicossocial Territorial (APT).

PALAVRAS-CHAVE
Condições de trabalho; Saúde ocupacional; Serviços de saúde mental

ABSTRACT

The study aims to analyze precarious work due to working conditions that influence the management of mental health care and occupational health. This single case mixed study was conducted in six Psychosocial Care Centers (CAPS) in a Decentralized Health Sector. The Work and Illness Risks Inventory was applied to a total purposeful sample of 35 workers, 15 of whom participated in the projective interview. Data were processed in SPSS 26.0.0.0 as measures of central tendency and dispersion. The interviews were categorized based on the evaluation axes proposed by the inventory, contextualized, and discussed from Edgar Morin’s Complex Thought. The result is critical for most predictors that evaluated the context, human cost, pleasure, distress, and harm related to work in the CAPS. Data illustrated by the workers’ narratives describe the precarious work conditions. Local Unified Health System managers quickly incorporated neoliberalism’s productivist principles, perpetuating substandard work conditions. Mental health care management processes, funding, and legal occupational and contractual conditions must be reviewed to align with Territorial Psychosocial Care (APT).

KEYWORDS
Working conditions; Occupational health; Mental health services

Introdução

A propalada modernização dos direitos trabalhistas, hoje praticada em muitos países, inclusive no Brasil, traz consigo um conjunto de elementos que caracterizam a precarização do trabalho, diante da perda dos direitos e da seguridade social, em um processo de sucateamento dos serviços, baixos salários, regras e formatos fluidos de contratação e da não garantia da segurança ocupacional11 Standing G. O precariado: a nova classe perigosa. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2019., processo que vem sendo implementado na Atenção Psicossocial Territorial (APT), contra a lógica da construção do que se pretendia enquanto um novo paradigma para a atenção à saúde mental, proposto pelo Movimento Brasileiro de Reforma Psiquiátrica (MBRP).

Hoje, a modernização da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) não tem alinhamento com o desenvolvimento de uma política de Estado em saúde mental, que possa ofertar serviço psicossocial voltado para o sujeito-família-cuidador-comunidade, em sua plenitude22 Sampaio JJC, Guimarães JMX, Abreu LM. Supervisão clínico-institucional e a organização da atenção psicossocial no Ceará. 2. ed. Fortaleza: EdUECE; 2019., sendo essa a base fundamental para o desenvolvimento do trabalho na APT, pela qual busca construir o cuidado por meio da política de humanização da atenção, da valorização do trabalhador e da produção do trabalho interdisciplinar, coletivo e criativo, essencial para o campo da saúde mental, individual e coletiva22 Sampaio JJC, Guimarães JMX, Abreu LM. Supervisão clínico-institucional e a organização da atenção psicossocial no Ceará. 2. ed. Fortaleza: EdUECE; 2019.. Com isso, a saúde do trabalhador vem sendo fragilizada diante da insegurança sobre as condições laborais, principalmente frente aos possíveis riscos psicossociais das práticas desenvolvidas nos serviços realizados nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).

Se nada for feito, a própria gestão do cuidado em saúde mental, enquanto conjunto de teorias e práticas organizacionais, em meio à produção do trabalho colaborativo e interdisciplinar, não hierarquizado33 Guimarães JMX. Inovação e gestão em serviços de saúde mental: incorporação de tecnologias e reinvenção no cotidiano dos Centros de Atenção Psicossocial. [tese]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2012., tenderá à fragmentação permanente do cuidado, da comunicação e das relações humanas. Estas tendem a afetar os trabalhadores e toda a cadeia produtiva necessária para a concretização da APT, que é a interrelação entre os núcleos usuários-familiares-cuidadores-comunidades-profissionais. Tende-se, então, às condições-limite que promovem o adoecimento do corpo, da mente e da alma humana, em decorrência das condições do trabalho44 Casulo AC, Silveira C, Alves G, et al. Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da era neoliberal. Bauru: Canal 6; 2018..

Para tanto, é preciso problematizar o fenômeno, o qual está em permanente dinâmica em seus acordos e desacordos, para que os elementos da precarização do trabalho na APT possam ser enfrentados no mundo real. Logo, a complexidade mista e misturada das partes e do todo constituinte precisa ser compreendida em suas convergências, divergências e contradições55 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. 20. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2000.

6 Morin E. Ciência com consciência. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002.
-77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.
. Dessa forma, o estudo busca analisar a precarização do trabalho por meio das condições laborais que influenciam a gestão do cuidado em saúde mental e a saúde do trabalhador.

Material e métodos

Trata-se de um estudo de caso único88 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman; 2015. sobre a influência da precarização do trabalho na gestão do cuidado em saúde mental e na saúde do trabalhador na APT. Estudo ancorado na triangulação metodológica, pelo uso de técnicas quantitativas e qualitativas, caracterizando-se como do tipo exploratório, crítico e analítico99 Minayo MCS, Souza ER, Constantino P, et al. Métodos, técnicas e relações em triangulação. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; 2005. p. 71-103., ao considerar seu caráter complexo, comum e longitudinal.

Teve como cenário seis Caps, da Área Descentralizada de Saúde (ADS) de Crateús, Ceará, Brasil, composta por 11 municípios, dos quais cinco possuíam Caps: Crateús, Novo Oriente, Nova Russas, Monsenhor Tabosa e Tamboril. As demais cidades - Ararendá, Independência, Ipaporanga, Ipueiras, Poranga e Quiterianópolis - apresentam sua demanda de usuários atendidos pelos serviços das cidades circunvizinhas, conforme acordos intermunicipais, e/ou pelos serviços da Atenção Primária à Saúde local.

A ADS é um conjunto de municípios agrupados por características regionais, socioeconômicas e culturais, que formam uma Região de Saúde (RS). A ADS de Crateús faz parte, portanto, da RS Norte, com porte populacional para o ano de 2022 de 300.372 habitantes1010 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo estimado dos municípios Ararendá, Independência, Ipaporanga, Ipueiras, Poranga e Quiterianópolis, Crateús, Monsenhor Tabosa, Novo Oriente, Nova Russas e Tamboril, para o ano de 2022..

O estudo foi dividido em duas etapas, atendendo aos seguintes critérios de inclusão: profissionais de nível técnico e superior, que atuavam há pelo menos seis meses nos Caps, participando ativamente dos processos de atenção à saúde mental desses serviços. Os critérios de exclusão se deram por férias, licença médica ou conflitos de interesse.

Assim, na primeira etapa, foi aplicado o Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (Itra); e, na segunda etapa, foram realizadas entrevistas do tipo projetivas. Na primeira etapa do estudo, foram distribuídos 51 questionários, perfazendo a ‘amostra total de trabalhadores dos Caps’, dentro dos critérios de inclusão, com (n=35) respostas (31% de perda). Esses profissionais possuíam os seguintes tipos de vínculo de trabalho: concursados (12), contrato temporário (12), cooperados (seis), residentes (três), contrato por CLT (dois). Trata-se, portanto, de uma ‘amostra intencional’ total, organizada em dois grupos:

  • Grupo I - Coordenadores (oito participantes): cinco enfermeiros, dois assistentes sociais, um psicólogo.

  • Grupo II - Trabalhadores da Atenção (27 participantes): cinco enfermeiros, nove psicólogos, cinco assistentes sociais, dois psiquiatras, dois terapeutas ocupacionais, um farmacêutico, um pedagogo, dois técnicos de enfermagem.

O Itra é composto por quatro escalas: Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT), Escala de Custo Humano no Trabalho (ECHT), Escala de Indicadores de Prazer e Sofrimento no Trabalho (EIPST) e a Escala de Avaliação dos Danos Relacionados ao Trabalho (EADRT), do tipo Likert, desenvolvido por Ferreira e Mendes em 20031111 Ferreira MC, Mendes AM. Trabalho e riscos de adoecimento: o caso dos auditores fiscais da Previdência Social brasileira. Brasília, DF: Edições LPA/FENAFISP; 2003., com reedições nos anos de 20071212 Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento - ITRA: Instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, editora. Psicodinâmica do Trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p. 111-26. e 20081313 Ferreira MC, Mendes AM. Contexto de Trabalho. In: Siqueira MMM, organizadora. Medidas de comportamento organizacional: ferramentas de diagnósticos e gestão. Porto Alegre: Artmed; 2008. p. 111-23.. O quadro 1 descreve a organização das escalas do Itra.

Quadro 1
Quadro informativo das escalas do Inventário sobre Trabalho e Risco de Adoecimento

O inventário foi concebido diante das dimensões da interface vida e trabalho, e da subjetivação desses campos concretos, considerando o contexto, os efeitos e as causas que o trabalho implica na vida, sobretudo na saúde, repercutindo no modo de existir do trabalhador. Logo, o Itra busca investigar o trabalho e os riscos de adoecimento em sua decorrência pela descrição do contexto de trabalho, saúde e segurança ocupacional e psicossocial. Instrumento validado, conforme Mendes et al.1212 Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento - ITRA: Instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, editora. Psicodinâmica do Trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p. 111-26..

Neste artigo, serão apresentadas as análises dos dados referentes à classificação das principais médias dos itens das escalas EACT, ECHT, EIPST e EADRT. Os fatores e o conjunto de preditores foram analisados da seguinte forma: satisfatório, crítico ou grave. Satisfatório indica resultado positivo, relacionado com a produção de prazer no trabalho. Crítico aponta resultado mediano, indicador de situação-limite, com custo negativo e sofrimento no trabalho, sinalizando condição de alerta, e requer providências imediatas em curto e médio prazo. Grave é um resultado negativo, que produz custo humano e sofrimento no trabalho, resulta em forte risco de adoecimento e requer providências imediatas nas causas, almejando dirimi-las1212 Mendes AM, Ferreira MC, Cruz RM. Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento - ITRA: Instrumento auxiliar de diagnóstico de indicadores críticos no trabalho. In: Mendes AM, editora. Psicodinâmica do Trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007. p. 111-26.. As análises estatísticas foram realizadas no software SPSS 26.0.0.0®, e os dados expressos como medidas de tendência central e dispersão.

Já na segunda etapa, a adesão dos participantes se reduziu devido a: sobrecarga de trabalho, ausência de tempo, ausência de local restrito para a realização da entrevista, receio sobre o registro da entrevista, as quais seriam gravadas pelo Google Meet diante do conteúdo que seria abordado, o qual foi caracterizado por um dos entrevistados como ‘politicamente conflitante’ para a permanência dos profissionais no emprego. Dessa forma, essa fase teve a participação de 15 interlocutores, sendo:

  • Grupo I - Coordenadores (cinco participantes): três enfermeiros e dois assistentes sociais.

  • Grupo II - Trabalhadores da Atenção (dez participantes): sete psicólogos, um enfermeiro, um terapeuta ocupacional, um assistente social.

A redução de participantes não trouxe prejuízo para a análise do fenômeno, uma vez que a saturação das informações foi alcançada, o que garantiu a qualidade e a confiabilidade das entrevistas produzidas.

A análise se deu por meio da organização e da sistematização das falas conforme as categorias pré-existentes no Itra, que se debruçam sobre a avaliação da organização do trabalho, condições de trabalho, relações socioprofissionais, saúde ocupacional, realização profissional, liberdade de expressão, falta de reconhecimento e a falta de liberdade de expressão.

Os dados da etapa inicial foram problematizados a partir da Teoria da Complexidade, de Edgard Morin55 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. 20. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2000.

6 Morin E. Ciência com consciência. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002.
-77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.
, diante da análise crítica das falas e da literatura pertinente ao objeto investigado. É, portanto, proposta ativa e criativa que contextualiza o problema diante das reflexões sobre as incertezas, a incompletude e as dúvidas sobre a objetividade que se desponta inicialmente aos olhos do observador-pesquisador.

Esse pensamento propõe lutar contra a simplificação do fenômeno, o qual reduz os sentidos diante da multidimensionalidade do objeto, diante da não linearidade da causa-efeito proposta pelo círculo retroativo, pela repercussão que o produtor e produto apresentam um ao outro na perspectiva posta pelo círculo recursivo, em que se busca o rompimento da dualidade do fenômeno por meio do pensamento dialógico, o qual busca a promoção da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento, diante do devir histórico, político e social do objeto55 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. 20. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2000.

6 Morin E. Ciência com consciência. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002.
-77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.
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O estudo obteve parecer ético legal do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará (CAAE: 46699621.2.0000.5534, parecer nº 4.784.241). O anonimato dos participantes foi mantido pela utilização dos códigos, que correspondem a letra P = profissional, com a sigla CAPS e a ordem de entrevista, como no exemplo a seguir: (PCAPS1).

Resultados e discussão

Os resultados encontrados com a aplicação do Itra (n = 35) na EACT (tabela 1) apresentaram classificação de risco de adoecimento crítico para os três fatores: organização do trabalho, relações socioprofissionais e condições de trabalho, indicando, portanto, situação-limite, com custo negativo e sofrimento derivado do trabalho na APT.

Tabela 1
Classificação da média dos itens da Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho do Itra. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2023

O risco crítico representado nos preditores que compõem os fatores organização do trabalho, relações socioprofissionais e condições de trabalho da EACT sugere haver fortes características e elementos que representam e constituem o trabalho precário concreto relacionado com o ritmo de trabalho excessivo, pressão para cumprimento de tarefas/metas, cobrança por resultados e descontinuidade de ações, podendo existir divisão do trabalho33 Guimarães JMX. Inovação e gestão em serviços de saúde mental: incorporação de tecnologias e reinvenção no cotidiano dos Centros de Atenção Psicossocial. [tese]. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará; 2012., pela hierarquia organizacional instituída pelas gestões locais sobre quem são os agentes que planejam e os que executam as ações. Isso contribui para possíveis entraves e disputas de forças, sendo, portando, um conjunto de fatores que intensificam o trabalho, mas que não resulta na produção de APT.

Nesse âmbito, a organização do trabalho e as relações socioprofissionais na APT sofrem, ainda, com as próprias condições do trabalho nos Caps, pela deficiência de insumos e materiais, inadequação e irregularidade das instalações, da acústica e do mobiliário, os quais prejudicam o desenvolvimento da gestão em saúde mental nesses serviços, repercutindo, também, na saúde ocupacional dos trabalhadores desses serviços.

Outros estudos com trabalhadores da saúde mental trazem resultados que se assemelham com os dados encontrados nesta pesquisa. Os principais problemas estão associados à fragilidade da gestão pública dos serviços, que repercute intensamente na organização do trabalho, nas relações socioprofissionais e condições precárias dos serviços1414 Fidelis FAM, Barbosa GC, Corrente JE, et al. Satisfação e sobrecarga na atuação de profissionais em saúde mental. Esc Anna Nery Rev. Enferm. 2021; 25(3):1-5.

15 Trevisan E, Haas VJ, Castro SS. Satisfaction and work overload at Psychosocial Care Centers - Alcohol and Drugs in the Minas Triangle region, Brazil. Rev. Bras. Med. Trab. 2019; 17(4):511-20.
-1616 Leal RMAC, Bandeira MB, Azevedo KRN. Avaliação da qualidade de um serviço de saúde mental na perspectiva do trabalhador: satisfação, sobrecarga e condições de trabalho dos profissionais. Psicol. Teor. prát. 2012; 14(1):15-25.
.

Os relatos de PCAPS2, PCAPS3, PCAPS5 e PCAPS11 trazem, enquanto informações, a ilustração da materialização dos preditores (tabela 1) referentes à organização do trabalho e às relações socioprofissionais vivenciadas in loco nos Caps.

Fui para uma reunião na promotoria, e a promotora olhava para você trabalhador do Caps e dizia assim: O que o Caps vai fazer? Como assim? Ela tinha acabado de participar de uma audiência com a família e os outros serviços. É como se o Caps tivesse que resolver essa situação só. Estava lá todo mundo, vamos resolver em rede, vamos dar as mãos, serviços, família, assistência social e justiça. Não, eles não veem assim. (PCAPS2).

O gestor não quer saber se você está sendo esmagado, se está adoecendo, ele quer que você faça. Porém, existia outro psicólogo contratado. Dividimos as demandas, estávamos começando os grupos. De repente, ele foi tirado, então o projeto que a gente fez parou, eu não tinha como fazer sozinha [...] a demanda dele voltou para mim. É bem complicado o trabalho intermitente, mexe no andamento do serviço. (PCAPS3).

As pessoas não entendem a saúde mental e querem que os pacientes saiam curados do Caps. Os familiares querem que a gente dê um jeito, o gestor quer que a gente dê um jeito. O Secretário de Saúde não entende os processos, quer que a gente trabalhe como se fosse uma unidade da Estratégia Saúde da Família ou hospital [...] tem cobranças exageradas a respeito de resultados. (PCAPS5).

A Residência pede para fazer atendimento compartilhado, já a gestão e a coordenação dizem não. Te coloca um ponto ‘dedo’ para atender, eles dizem que o investimento do Caps é produção, e se não produzir o Caps vai perder verba. A prefeitura não terá condições de bancar o Caps sozinha. É isso que dificulta a saída dos profissionais do Caps para o campo. (PCAPS11).

Os relatos supracitados vão ao encontro da afirmativa de Fidelis et al.1414 Fidelis FAM, Barbosa GC, Corrente JE, et al. Satisfação e sobrecarga na atuação de profissionais em saúde mental. Esc Anna Nery Rev. Enferm. 2021; 25(3):1-5., diante de estudo com profissionais dos Caps I, Caps álcool e outras drogas, Caps infantil e Caps III de um município do interior de São Paulo. As condições que deveriam ser favoráveis para a problematização, o planejamento e o desenvolvimento do trabalho na perspectiva da APT são subvertidas pela hegemonia neoliberal11 Standing G. O precariado: a nova classe perigosa. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2019.,44 Casulo AC, Silveira C, Alves G, et al. Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da era neoliberal. Bauru: Canal 6; 2018. e biomédica assistencialista22 Sampaio JJC, Guimarães JMX, Abreu LM. Supervisão clínico-institucional e a organização da atenção psicossocial no Ceará. 2. ed. Fortaleza: EdUECE; 2019., que tende a causar instabilidade no SUS, diante da produção não relacionada com os princípios da equidade e integralidade da atenção e humanização exigidas pelo modelo de APT.

Nesse contexto, as condições de trabalho sinalizam para inadequação do número de profissionais para atender à demanda, o que tende a provocar intensificação do trabalho diante do contingenciamento dos atendimentos, em meio à insuficiência ou inexistência de materiais para o desenvolvimento do trabalho, além do desconforto, barulho e mobiliário inadequado (tabela 1), problematizado por PCAPS1, PCAPS6, PCAPS9 e PCAPS12.

A estrutura do próprio prédio é velha, inclusive nesse período de inverno foi um transtorno gigantesco, porque chove, entra água pelo telhado, temos pouquíssimas salas. Destas salas, a maioria não é um espaço bom, porque geralmente o ar-condicionado não está funcionando [...] o espaço é pequeno, poucas cadeiras. A terapeuta ocupacional precisa de materiais para desempenhar o serviço dela, e uma sala adaptada não tem. O Serviço de Arquivamento Médico e Estatístico (Same) possui muitos prontuários, precisa de um espaço maior para ficar conforme tem que ser. Só temos um computador na unidade, para todos os funcionários, para sistemas, laudos e tudo. (PCAPS1).

[...] acústica é ruim. Algo que poderia melhorar é a questão do barulho [...] é prejudicial à nossa saúde [...] isso interfere no meu trabalho, tenho que me esforçar mais para me manter atenta, e isso é uma energia que eu poderia poupar. Aqui vem pacientes que tem uma sensibilidade enorme a barulho e fobias. (PCAPS6).

O profissional psiquiatra tem o horário reduzido. Enquanto eu e outros colegas trabalhamos oito horas por dia [...], o psiquiatra trabalha três turnos na semana. Então muitos pacientes ficam esperando, primeiro vão para uma lista de espera [...] ele vai trabalhar com a demanda reprimida de vários dias que não está sendo atendida. Acaba que ele nem faz parte da equipe, ele vem para atender: diagnosticar, dar atestados, receitas, encaminhamentos. (PCAPS9).

Os contratos frágeis de trabalho implicam na mudança dos profissionais, acaba quebrando o vínculo com o paciente. Essa relação de troca de profissionais não é legal, o paciente se sente abandonado. Eu já recebi pacientes que se sentiam abandonados, porque o profissional foi embora. O paciente não entende que o profissional foi embora por questões contratuais. (PCAPS12).

As falas demonstram, de modo recursivo77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina; 2015., haver fragilidades na gestão pública dos Caps. Essas, por sua vez, influenciam uma série de efeitos prejudiciais para o desenvolvimento da gestão do cuidado em saúde mental, tais como: vínculos de trabalho frágeis, que levam a descontinuidade do trabalho, especialização e centralização das práticas de atenção à saúde mental restrita aos Caps; má compreensão sobre o fazer da APT, que corrobora a insuficiência da educação permanente para gestores e demais profissionais do território e de educação em saúde para os familiares/cuidadores dos usuários desses serviços; má gestão dos recursos financeiros e/ou deficiência, para a adequação de estrutura, mobiliário, insumos dos Caps, além da instabilidade e da dualidade77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina; 2015., que são os diversos e precários tipos de vínculo trabalhista.

Como seria possível desenvolver projeto terapêutico com vínculos frágeis de trabalho que podem durar menos de doze meses? Sabe-se que os processos terapêuticos consolidados pela APT almejam a reconstrução da autonomia e da cidadania dos usuários dos Caps, por meio de ações individuais e coletivas que promovam o reestabelecimento da saúde mental e física, em meio às condições socioeconômicas em que estão inseridos22 Sampaio JJC, Guimarães JMX, Abreu LM. Supervisão clínico-institucional e a organização da atenção psicossocial no Ceará. 2. ed. Fortaleza: EdUECE; 2019., em um percurso que busca projetar um novo devir consciente, autônomo, produtor de si.

Compreende-se que a causa central, sob o ponto de vista do círculo retroativo77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina; 2015., está na inserção dos princípios neoliberais, na flexibilidade dos contratos de trabalho, redução do financiamento dos serviços públicos do SUS, segundo as regras do mercado privado, que tende a exigir uma alta produção com o mínimo de recursos empenhados44 Casulo AC, Silveira C, Alves G, et al. Precarização do trabalho e saúde mental: o Brasil da era neoliberal. Bauru: Canal 6; 2018.. Nesse caminho, a intensificação dos processos de trabalho, para atender à meta de alta produção (consultas, receitas, encaminhamentos e atestados), vira uma constante, atribuindo valor de troca significativo com relação à baixa produção de saúde mental.

Ao analisar a ECHT, nota-se que ela teve classificação de risco crítico para os fatores custo afetivo, custo cognitivo e físico (tabela 2) e indica situação-limite, com custo negativo e sofrimento laboral. Tais resultados sinalizam alerta quando comparados com os dados da aplicação da ECHT em trabalhadores da enfermagem em hospital psiquiátrico de referência, em Teresina, Piauí1717 Sousa KHJF, Lopes DP, Nogueira MLF, et al. Risco de adoecimento e custo humano em um hospital psiquiátrico. Esc. Anna Nery Rev. Enferm. 2018; 22(2):1-9..

Tabela 2
Classificação da média dos itens da Escala do Custo Humano no Trabalho do Itra. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2023

No estudo em questão, os custos afetivo e físico foram satisfatórios. Apenas o custo cognitivo foi considerado risco crítico, devido à complexidade do trabalho frente aos usuários em estado grave, em situação de cronificação ou que estão internados há muito tempo1717 Sousa KHJF, Lopes DP, Nogueira MLF, et al. Risco de adoecimento e custo humano em um hospital psiquiátrico. Esc. Anna Nery Rev. Enferm. 2018; 22(2):1-9.. Alerta que se dá exatamente por tal serviço ser oriundo e estar mais alinhado aos modelos Asilar e Psiquiátrico Clássico22 Sampaio JJC, Guimarães JMX, Abreu LM. Supervisão clínico-institucional e a organização da atenção psicossocial no Ceará. 2. ed. Fortaleza: EdUECE; 2019.: o primeiro está voltado para exclusão e marginalização dos usuários sem tratamento; e o segundo coloca a doença mental como eixo central, diante das práticas assistencialista e curativista biomédicas, as quais se opõem ao modelo de APT, considerado inovador e original por ter nascido a partir do coletivo que formou o MBRP, o qual instituiu os Caps em suas diversas classificações, como modelo substitutivo do hospitalocêntrico/manicomial.

Os relatos de PCAPS4, PCAPS7 e PCAPS13 problematizam a implicação dos itens dos fatores custo afetivo, cognitivo e físico em suas vidas enquanto trabalhadores dos Caps.

O trabalho adoece, nos deixa triste para algumas situações que acontece. Eu estava trabalhando no acolhimento, uma paciente chegou atrás de medicamento. Ela me xingou, pela falta da medicação. Eu faço tanto pelo serviço, faço tanto por esse paciente, o paciente não reconhece, não vê. O problema da medicação é da gestão. (PCAPS7).

Muitas vezes a administração coloca para a equipe do Caps realizar atividades que não são para o Caps. Como dar suporte em outras campanhas que o Caps poderia desenvolver, mas de outra forma. Tipo, a campanha do Outubro Rosa. Nos colocam na rua, na rádio, e fazemos tudo, mas isso acaba tirando o foco. Eu já falei, vamos trabalhar campanhas da saúde, não como apoio, mas, sim, trabalhar com nosso público. Nos vemos muitas vezes fazendo ações que não são do Caps, por solicitação da Secretaria de Saúde. Gera um stress moral e ético. Gera sentido que enquanto estou fazendo isso, não estou fazendo um grupo terapêutico, atendendo uma família, evoluindo um paciente. Não priorizar o que eu sei que deve ser priorizado. (PCAPS13).

Eu atualmente estou mais com o trabalho infantil [...] apesar da falta de material [...], eu levo o material, e isso me deixa estressada, irritada [...] eu vi que não adiantava, eu iria adoecer e ficaria louca. Não iria resolver o problema. Agora, levo o material para fazer um trabalho de qualidade. (PCAPS4).

Diante das falas, é possível deduzir que, mesmo com a implantação de uma rede de APT, a partir do zero, nessa ADS de Crateús, Ceará, Brasil, onde nunca existiram hospitais psiquiátricos, a implementação da APT, por meio dos Caps, vem encontrando barreiras, as quais não favorecem substancialmente a aceitação política e social sobre os modos ideais para a gestão do cuidado em saúde mental, capazes de produzir impactos reais e positivos para a APT.

É notório existir uma sobreposição de ações que se repelem, mas convivem de maneira predatória dentro de um mesmo sistema, diante da luta travada pela APT frente à hegemonia dos modelos antigos, como o Asilar e o Psiquiátrico Clássico. Fator esse também relatado no estudo de Feitosa et al.1818 Feitosa JBA, Lima ICS, Santos SD, et al. Modelos e paradigmas orientadores do trabalho multiprofissional em Centros de Atenção Psicossocial em um município brasileiro. Rev. port. enferm. saúde mental. 2022; (28):8-27. sobre os modelos e paradigmas orientadores do trabalho multiprofissional em Caps em um município brasileiro, os quais estão fortemente associados com a compreensão de saúde pública, curativista, medicamentosa, que marginaliza e causa dependência1919 Viana GV, Cavalcante ASP, Marinho MNASB, et al. El ser autónomo y/o dependiente en la mirada de los usuarios de atención psicosocial frente al consumo de alcohol y drogas. Enferm. Comunitaria. 2022; 18(supl):e14066. dos usuários por tais serviços.

Já a EIPST teve classificação de risco satisfatória relacionada ao prazer no trabalho, sendo, portanto, um resultado positivo, provavelmente associado à produção dialogada do trabalho entre os membros das equipes dos Caps. Quanto ao fator valorização e reconhecimento, a classificação de risco de adoecimento foi crítica. Com relação aos fatores esgotamento profissional e falta de reconhecimento, ambos apresentaram risco crítico (tabela 3) e são caracterizados como situações-limite devido ao custo negativo e ao sofrimento no trabalho.

Tabela 3
Classificação da média dos itens da Escala de Indicadores de Prazer e Sofrimento no Trabalho do Itra. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2023

O prazer no trabalho relacionado com liberdade e realização profissional foi correlacionado, nos estudos de Fidelis et al.1414 Fidelis FAM, Barbosa GC, Corrente JE, et al. Satisfação e sobrecarga na atuação de profissionais em saúde mental. Esc Anna Nery Rev. Enferm. 2021; 25(3):1-5. e Trevisan et al.1515 Trevisan E, Haas VJ, Castro SS. Satisfaction and work overload at Psychosocial Care Centers - Alcohol and Drugs in the Minas Triangle region, Brazil. Rev. Bras. Med. Trab. 2019; 17(4):511-20., principalmente, com a boa relação e integração entre os membros da equipe, os quais tendem a produzir de uma dada forma o trabalho coletivo, diante da sensibilidade dos profissionais para a compreensão dos problemas enfrentados por seus pares perante as necessidades e os problemas apresentados pelos usuários dos Caps.

Compreende-se, a partir do pensamento recursivo77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina; 2015., que essa forma de trabalho está próxima do que se almeja enquanto APT, por ela favorecer os processos de cogestão e interdisciplinaridade, como demonstrado por PCAPS10 e PCAPS14.

[...] com a coordenação atual existe muito diálogo, tem toda uma questão que é levada em conta para que você esteja bem. Ele tem esse olhar, é parceiro. Na medida que entra um coordenador que conhece o Caps, conhece a estrutura da saúde, com uma cabeça moderna. Trata o usuário como ser de direito. Realmente deixa a gente mais à vontade. (PCAPS10).

O trabalho interdisciplinar em grupo é positivo, flui melhor, a gente interage mais em relação aos pacientes, e, também, sempre que a gente necessita diante de um atendimento individual, os colegas são muito colaborativos. Você chama, eles já vêm, estão disponíveis para trabalhar com você, dependendo da sua necessidade. A gente se sente mais seguro em tomar algumas decisões, até em relação ao serviço. (PCAPS14).

Já os itens valorização e reconhecimento tendem a ser insatisfatórios devido às afetações causadas pelos fatores esgotamento profissional e falta de reconhecimento, os quais geram sofrimento no trabalho em decorrência da sobrecarga laboral e da desvalorização da produção de saúde mental desenvolvida pelos trabalhadores nos Caps. Esses efeitos foram relatados nos estudos de Fidelis et al.1414 Fidelis FAM, Barbosa GC, Corrente JE, et al. Satisfação e sobrecarga na atuação de profissionais em saúde mental. Esc Anna Nery Rev. Enferm. 2021; 25(3):1-5. e Trevisan et al.1515 Trevisan E, Haas VJ, Castro SS. Satisfaction and work overload at Psychosocial Care Centers - Alcohol and Drugs in the Minas Triangle region, Brazil. Rev. Bras. Med. Trab. 2019; 17(4):511-20., com profissionais de Caps, e podem ser melhor ilustrados diante dos relatos de PCAPS11 e PCAPS15.

[...] médico não bate o ponto no Caps, e a gente tem que bater. Se ele ganha dez vezes mais que eu, como que a gente se sente? Não tem coordenador que cobre horário de médico, por que o meu tem que ser cobrado? Por que que um pode e o outro não pode nada? Apesar disso, a equipe do Caps tem uma relação boa, profissionais e coordenação, não tem fofocas, de um querer derrubar um ao outro. O que nos adoece é a sobrecarga de trabalho, a desvalorização e a falta de reconhecimento. (PCAPS8).

Por conta das cobranças, me senti muito angustiada, as pessoas cobrando atendimento, porque temos uma demanda enorme, a população cobrando, porque o filho é autista... A gente se vê de mãos atadas para uma demanda dessa, a cobrança da população em cima da gente. Tentamos dar o melhor para atender todo mundo, mas nos vemos em situação de desespero. (PCAPS15).

A ausência ou deficiência sobre ações que buscam valorizar, reconhecer o trabalhador pelo empenho e dedicação ao serviço prestado na atenção à saúde mental também foram relatadas nos estudos de Fidelis et al. (2021)1414 Fidelis FAM, Barbosa GC, Corrente JE, et al. Satisfação e sobrecarga na atuação de profissionais em saúde mental. Esc Anna Nery Rev. Enferm. 2021; 25(3):1-5.; Trevisan, Haas e Castro (2019)1515 Trevisan E, Haas VJ, Castro SS. Satisfaction and work overload at Psychosocial Care Centers - Alcohol and Drugs in the Minas Triangle region, Brazil. Rev. Bras. Med. Trab. 2019; 17(4):511-20.; Sousa et al., (2018)1717 Sousa KHJF, Lopes DP, Nogueira MLF, et al. Risco de adoecimento e custo humano em um hospital psiquiátrico. Esc. Anna Nery Rev. Enferm. 2018; 22(2):1-9.; e Feitosa et al., (2022)1818 Feitosa JBA, Lima ICS, Santos SD, et al. Modelos e paradigmas orientadores do trabalho multiprofissional em Centros de Atenção Psicossocial em um município brasileiro. Rev. port. enferm. saúde mental. 2022; (28):8-27., ao considerarem a densidade e a complexidade do tipo de ocupação. As condições laborais tendem a aumentar o esgotamento emocional, o estresse, a insatisfação, a sobrecarga, a frustação, o medo e a indignação diante de condutas contraditórias e antagônicas contra o modelo de APT, que deveria estar sendo implementado em sua plenitude pela gestão do SUS.

Por último, a análise da EADRT apresentou classificação de risco grave para o item dor de cabeça, sugestivo de risco de doença ocupacional, que requer providência imediata sobre as causas, almejando eliminar ou reduzir os efeitos. Para os demais itens dos fatores danos físicos, sociais e psicológicos, a classificação foi de risco crítico, o qual resulta em custo negativo e sofrimento correlacionado ao trabalho realizado nos Caps (tabela 4).

Tabela 4
Classificação da média dos itens da Escala de Avaliação dos Danos Relacionados ao Trabalho do Itra. Fortaleza, Ceará, Brasil, 2023

Como foi visto nos estudos de Trevisan et al.1515 Trevisan E, Haas VJ, Castro SS. Satisfaction and work overload at Psychosocial Care Centers - Alcohol and Drugs in the Minas Triangle region, Brazil. Rev. Bras. Med. Trab. 2019; 17(4):511-20. e Sousa et al.1717 Sousa KHJF, Lopes DP, Nogueira MLF, et al. Risco de adoecimento e custo humano em um hospital psiquiátrico. Esc. Anna Nery Rev. Enferm. 2018; 22(2):1-9., os problemas de saúde derivados do trabalho em serviços de saúde mental são frequentes, acarretando não só o adoecimento psicológico, representado por tristeza, embotamento, ansiedade, como, também, pelos danos físicos, como dor de cabeça, dor muscular e articular, alterações do sono, os quais afetam a rotina social e familiar dos trabalhadores, pelo desejo que estes manifestam de ficar sozinhos e isolados.

A seguir, os relatos de PCAPS2, PCAPS3, PCAPS9 e PCAPS11 problematizam os danos físicos, sociais e psicológicos apresentados no (tabela 4), derivados do trabalho nos Caps.

Nunca pensei em fazer psicoterapia por conta do trabalho. Tive que tomar indutor do sono, minha mente estava trabalhando a mil por hora. É mental, mas mexe com o físico, sentia dor nos membros, na cabeça, nas costas, no pescoço. Vai consumindo você de um jeito que você não percebe [...] não tinha mais vida pessoal. (PCAPS2).

É aquela questão... vir trabalhar doente é o normal. Se eu adoeço, eu tenho que vir adoecida, estou sobrecarregada com demandas de automutilação, tentativa de suicídio. Me sinto desgastada, na maioria dos dias, sem força para ouvir mais nada, pelo excesso de atendimentos. O ambiente de trabalho é pesado, e isso é adoecedor. (PCAPS3).

Trabalho atualmente e fingimos que está tudo bem. Está todo mundo fingindo que está tudo bem. Mas os profissionais estão adoecidos, com problemas físicos, sistema imunológico baixo, por conta do trabalho. A quantidade de trabalho que nós temos, pela baixa resolutividade, que gera sentimento de frustação, que não depende só de nós, depende mais de fatores da rede, dos gestores, implicações socioeconômicas. (PCAPS9).

O adoecimento vejo pela sobrecarga de trabalho, que se manifesta por via de atestados médico. É atestado médico de stress, hipertensão e glicemia altas, sendo somatizado por questões de trabalho me adoecendo. Tive que colocar atestado para descansar, me desligar. (PCAPS11).

Neste ponto da discussão, reintroduzindo todo o conhecimento no conhecimento em reflexão-ação problematizadora55 Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. 20. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2000.

6 Morin E. Ciência com consciência. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002.
-77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.
, compreende-se que as condições precárias do trabalho na APT do cenário estudado vêm repercutindo não só no desenvolvimento dos processos produtivos de saúde mental dos Caps, mas estão possivelmente ocasionando danos à saúde ocupacional dos trabalhadores. E isso se deve exatamente à ambiguidade e às contradições promovidas pelos princípios neoliberais produtivistas que precarizam o trabalho na APT. Antes de tudo, pela sobreposição de ações de modelos antigos, retrógrados sobre o novo progressista, diante do subfinanciamento e do sucateamento.

Conclusões

A implementação dos Caps, nesse contexto, não tem favorecido a concretização de processos de trabalho alinhados com o modelo de APT, em sua plenitude. Nele, os modos de gestão do cuidado em saúde mental são subvertidos pela não aceitação política e social, não adicta aos modelos antigos, que tendem a repercutir não só na fragmentação das ações desenvolvidas, mas, também, na deficiência da estrutura, na insuficiência de insumos/recursos humanos para os Caps e no adoecimento dos trabalhadores.

Observa-se que nos Caps dessa região o modelo tendeu ao amorfo mais do que ao híbrido, com vínculos trabalhistas diversos, entre concursados, contratados temporários ou cooperados, os quais seguem em seus núcleos isolados, sob os princípios produtivistas do neoliberalismo incorporados rapidamente pelos gestores locais do SUS, tornando a precarização do trabalho uma constante real, que se distancia dos princípios do SUS: universalidade, integralidade e equidade da atenção. Além disso, a própria valorização do trabalhador foi esquecida.

É urgente, pois, a concretização da Política Nacional de Humanização enquanto estratégia inovadora que busca melhorar não somente as condições organizacionais e estruturais da rede SUS, mas o reconhecimento de sua força de trabalho e a revisão dos processos de gestão do cuidado em saúde mental, financiamento e condições ocupacionais e contratuais legais, para que se alinhem com a APT.

Este estudo tem como limitação o N amostral, porém, é importante considerar que todos os profissionais dos Caps dos municípios foram convidados a participar. As entrevistas permitiram maior solidez para a interpretação, problematização e compreensão dos dados.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2023
  • Aceito
    24 Ago 2023
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