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Estudo sobre a formação presbiteral num seminário católico

Study about the presbyterate formation in a catholic seminary

Resumos

Nesta pesquisa, realizamos uma análise institucional cujo objetivo é problematizar as práticas formativas eclesiásticas católicas, tais como elas se apresentam nos modos de funcionamento institucional de um Seminário Católico - localizado no Estado de São Paulo - e no registro do saber eclesiástico, como produtoras de uma 'modalização' específica da subjetividade (futuros padres). Apresentamos, neste artigo, dados e análises de entrevistas semi-estruturadas com a equipe dirigente da instituição, buscando compreender as relações de formação entre padres formadores e seminaristas como um dispositivo privilegiado de constituição do Seminário como agência de produção de subjetividade. Concluímos que o Seminário investigado pode ser considerado como uma instituição tipicamente disciplinar, cujo principal mecanismo e operador microfísico é o relatório (instrumento de exame, vigilância e sanção normalizadora). Sua origem pode ser encontrada no convento católico medieval, matriz de diversas instituições totais. Sua técnica básica é o confinamento e sua lógica é totalitária e "panóptica".

psicologia e religião; análise institucional; seminário católico; instituições totais; produção de subjetividade; microfísica do poder


We have realized an institutional analysis which aim is to examine the catholic ecclesiastical formative practices, by means of institutional functioning from a Catholic Seminary - set in São Paulo State - and the register of the ecclesiastical knowledge, producer of a specific subjectivity pattern (future priests). We provide data and analysis of semi-structured interviews with the staff for understanding the formation relationship between priests responsible for the formation and seminarians concerning to a privileged and constitutive device of the seminary as an agent producer of subjectivity. Thus we come to the conclusion that the Seminary focused can be considered as a common disciplinary institution, which maintains the report as its main mechanism and microphysics device (exam tool, surveillance and normal process sanction). Its genesis can be found into the Catholic medieval convent, the matrix to the total institutions. It had used the confinement and a totalitarian and "panoptic" logic.

psychology and religion; institutional analysis; Catholic Seminary; total institutions; subjectivity production; microphysics of power


ARTIGOS

Estudo sobre a formação presbiteral num seminário católico* * Este artigo é parte da pesquisa de mestrado: "Pescadores de Homens. A produção da subjetividade no contexto institucional de um Seminário Católico" que está sendo desenvolvida por Sílvio José Benelli, sob orientação do Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa, com financiamento da FAPESP.

Study about the presbyterate formation in a catholic seminary

Sílvio José BenelliI; Abílio da Costa-RosaII

IAluno do Curso de Pós-Graduação, Mestrado em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Assis/SP. Endereço para Corespondência: R: Santa Helena, 605 ap 22, Jardim Alvorada Marília/SP Cep: 17513-322 - E-mail: sjbewelli@yahoo.com.br

IIProfessor Assistente Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica e do Curso de Pós-Graduação em Psicologia - Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Assis/SP

RESUMO

Nesta pesquisa, realizamos uma análise institucional cujo objetivo é problematizar as práticas formativas eclesiásticas católicas, tais como elas se apresentam nos modos de funcionamento institucional de um Seminário Católico - localizado no Estado de São Paulo - e no registro do saber eclesiástico, como produtoras de uma 'modalização' específica da subjetividade (futuros padres). Apresentamos, neste artigo, dados e análises de entrevistas semi-estruturadas com a equipe dirigente da instituição, buscando compreender as relações de formação entre padres formadores e seminaristas como um dispositivo privilegiado de constituição do Seminário como agência de produção de subjetividade. Concluímos que o Seminário investigado pode ser considerado como uma instituição tipicamente disciplinar, cujo principal mecanismo e operador microfísico é o relatório (instrumento de exame, vigilância e sanção normalizadora). Sua origem pode ser encontrada no convento católico medieval, matriz de diversas instituições totais. Sua técnica básica é o confinamento e sua lógica é totalitária e "panóptica".

Palavras-chave: psicologia e religião, análise institucional, seminário católico, instituições totais, produção de subjetividade, microfísica do poder.

ABSTRACT

We have realized an institutional analysis which aim is to examine the catholic ecclesiastical formative practices, by means of institutional functioning from a Catholic Seminary - set in São Paulo State - and the register of the ecclesiastical knowledge, producer of a specific subjectivity pattern (future priests). We provide data and analysis of semi-structured interviews with the staff for understanding the formation relationship between priests responsible for the formation and seminarians concerning to a privileged and constitutive device of the seminary as an agent producer of subjectivity. Thus we come to the conclusion that the Seminary focused can be considered as a common disciplinary institution, which maintains the report as its main mechanism and microphysics device (exam tool, surveillance and normal process sanction). Its genesis can be found into the Catholic medieval convent, the matrix to the total institutions. It had used the confinement and a totalitarian and "panoptic" logic.

Key words: psychology and religion, institutional analysis, Catholic Seminary, total institutions, subjectivity production, microphysics of power.

ANÁLISE INSTITUCIONAL DE UM SEMINÁRIO CATÓLICO

Realizamos uma análise institucional de um Seminário Católico que acolhe jovens candidatos ao sacerdócio, denominados seminaristas. Quisemos investigar o Seminário como agência de produção de subjetividade. Que tipo de instituição é o Seminário Católico atual? Que tipo de subjetividade se produz no seu contexto institucional? Desejamos nos apropriar do sistema de regras que institui o processo formativo eclesiástico. Ao estudar seu aparecimento e funcionamento, poderemos entender, com o auxílio de um instrumental estratégico, como ele se organiza e o que pode produzir nas atuais circunstâncias.

Esta pesquisa de mestrado propõe o desenvolvimento de um trabalho que começamos na iniciação científica (Benelli e Costa-Rosa, 2002), cujo objetivo era realizar um estudo sobre a produção da subjetividade em um Seminário Católico, utilizando-nos do referencial teórico relativo às instituições totais de Goffman (1987) como instrumento de análise.

O Seminário Católico que estamos pesquisando funciona em regime de internato no qual 80 seminaristas estudam Filosofia durante 3 anos, numa etapa preparatória para o sacerdócio. Essa casa de formação localizada no Estado de São Paulo constitui um espaço social específico, cujo objetivo é preparar indivíduos que se tornarão padres, ocupando então posições de relevância que consistem na coordenação de comunidades paroquiais amplas.

Queremos pesquisar a configuração da subjetividade seminarística. Não discutiremos a suposta essência da vocação sacerdotal, como se ela fosse um objeto natural, imutável ao longo do tempo. Procuramos identificar os discursos e as práticas sociais que foram construindo a realidade do seminarista, da instituição Seminário Católico, elucidando a formação de redes discursivas eclesiásticas e suas relações com estratégias de poder. Por meio de uma exaustiva pesquisa de campo envolvendo observações, entrevistas e análise documental, partimos do contexto intra-institucional de um Seminário para formação de padres e percorremos múltiplos caminhos, tecendo cartografias que nos permitiram compreender como se produz a subjetividade no contexto institucional.

Para tanto, a pesquisa que iniciamos com Goffman (1987) foi ampliada e desenvolvida a partir da contribuição de Foucault: o Seminário pode ser investigado como um estabelecimento que encarna o poder disciplinar e as instituições disciplinares que esse poder implementa, procurando detectar como são os sujeitos que seu funcionamento microfísico produz, focalizando as relações de formação entre formadores e seminaristas como um dispositivo privilegiado de constituição do Seminário enquanto agência de produção de subjetividade. À luz das contribuições de Foucault, nossos dados podem revelar as características e nuances do Seminário, permitindo compreendê-lo como dispositivo organizado de modelagem subjetiva, tanto por seus discursos e por suas práticas, quanto pela articulação (sintonia ou contradição) desses dois aspectos. Ao mesmo tempo, podemos aspirar a compreender, com maior desenvoltura, as características da subjetividade aí produzida e suas possíveis implicações para a performance social dos padres como sujeitos emergentes desse processo institucional.

O estudo de uma instituição e a compreensão de sua complexidade exigem incursões por diversos campos teóricos: análise institucional, elementos de análise histórica da constituição das instituições na sociedade moderna, teorias relativas à produção de subjetividade. Assim, utilizamos também o referencial de análise de instituições de Costa-Rosa (2000; 2002), denominado "Modo Psicossocial", instrumento que nos permitiu organizar e manejar os dados da pesquisa de campo com as discussões teóricas de Goffman e Foucault.

INVESTIGANDO O SEMINÁRIO CATÓLICO: PROBLEMATIZAÇÃO DAS PRÁTICAS E DOS SABERES

Goffman (1987) estudou detalhadamente a estrutura, a natureza e a dinâmica psicossocial das "instituições totais", e sua análise mostrou-se um instrumento valioso para estudar a produção da subjetividade no contexto institucional de um Seminário Católico. Porém, sentimos a necessidade de situar as análises de Goffman, e a que realizamos a partir dele, num campo mais geral da evolução da análise das instituições. Esse campo de referências históricas mais amplo nós o encontramos na obra de Michel Foucault, que comenta a importância do estudo das instituições asilares realizado por Goffman (Foucault, 1984a, p.110-111).

O desenvolvimento desta pesquisa no nível de mestrado é um trabalho de aprofundamento da análise dos achados preliminares e também a realização de novas investigações, utilizando como elemento organizador da escuta e do olhar o referencial teórico de Foucault, que apresenta o poder como portador de uma positividade produtiva, tanto de saberes quanto de sujeitos. Em Foucault encontramos também uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura (Foucault, 1982, 1984b, 1985).

Segundo Foucault, a subjetividade do homem contemporâneo seria caracterizada pela experiência de uma interioridade privatizada (um eu psíquico profundo, localizado no interior do indivíduo, que se considera como sendo único, original, autônomo e responsável, cujo eixo estruturante se encontraria em sua sexualidade). Sujeito, então, seria aquele que se reconhece como um ser moralmente autônomo, capaz de iniciativas, dotado de sentimentos e desejos próprios. Transformações do Modo de Produção trouxeram como conseqüência para as relações sociais uma intensa individualização. Há a produção de uma subjetividade privatizada, na qual são superadas as relações sociais feudais anteriores, marcadas pela solidariedade grupal e pelo sistema de proteção. A sociedade é atomizada, e os indivíduos se tornam livres para vender sua força de trabalho. O destino individual fica nas mãos do próprio sujeito, que é entregue à própria sorte. Técnicas disciplinares (vigilância hierárquica, sanção normalizadora e exame) transformaram o homem num ser individuado e tecnologias de produção de si (auto-exame e confissão) o subjetivaram como aquele que busca a verdade interior sobre si mesmo, verdade que estaria inscrita em sua sexualidade (Foucault, 1982; 1984a; 1999a; 1999b).

São poucos os estudos que levam em conta o conhecimento da produção da subjetividade em instituições religiosas formadoras. O convento, o mosteiro, o seminário e o colégio interno parecem ter sido menos pesquisados em sua especificidade. Há poucos estudos sobre esses estabelecimentos porque, embora relativamente numerosos, eles não se abrem facilmente para a investigação científica (Cabras, 1982; Trevisan, 1985; Tagliavini, 1990; Rocha, 1991; Ferraz e Ferraz, 1994; Paula, 2001; Benelli, 2002a).

Um estudo profundo do funcionamento institucional e dos diversos fenômenos que se produzem nesse espaço social específico pode proporcionar indícios valiosos quanto aos procedimentos utilizados na formação de pessoas. Seria possível entender como nessas instituições se produz e reproduz a subjetividade daqueles que as compõem, tanto internados quanto dirigentes.

O Seminário Católico, sendo uma instituição dedicada à formação, tem características peculiares em relação aos demais estabelecimentos do gênero. Seu funcionamento prevê que seus internados se tornarão padres, passando da condição de internado/seminarista/formando a dirigente/padre/formador. O Seminário produz padres, que são agentes formados e que se tornam, por sua vez, agentes formadores.

Por outro lado, no mais comum de seus resultados, produz padres que ocuparão lugares proeminentes na liderança de setores relevantes das comunidades. Pensamos que uma hipótese pertinente é que seu processo formativo possui uma incidência direta no tipo de prática social desenvolvida por esses agentes. Para entender melhor esse ator que tem sua relevância no meio social, precisamos inicialmente debruçar-nos sobre a instituição Seminário, estudá-la e produzir um conhecimento a seu respeito.

Ir ao encontro da subjetividade institucional do seminarista é uma tentativa de produzir uma pesquisa mais próxima da realidade social brasileira que possa também vir a contribuir com um saber mais específico sobre a produção de subjetividade no contexto brasileiro. Pensamos, ao mesmo tempo, estar em sintonia com os estudos que investigam como se produzem os atravessamentos da subjetividade em geral no mundo contemporâneo.

CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS

O Seminário que estudamos ocupa um quarteirão inteiro. O conjunto é constituído por grandes construções: dois pavilhões com térreo e primeiro andar, divididos em celas individuais (os quartos dos seminaristas), que abrigam ainda banheiros coletivos, uma biblioteca, sala de informática, sala de leituras e um anfiteatro; há um outro bloco que abriga cozinha, despensa, refeitório e lavanderia. Há também um conjunto denominado prédio escolar, que inclui salas de aula, de televisão, secretaria, sala de visitas e alguns quartos para os seminaristas no primeiro andar. Finalmente, temos uma grande capela, um campo de futebol gramado, uma quadra de esportes e as garagens dos veículos.

O quadro do pessoal existente no estabelecimento é o seguinte: 80 seminaristas, três padres formadores (reitor, vice-reitor, diretor espiritual), quatro cozinheiras, duas lavadeiras, 1 secretária, 1 bibliotecária, 1 diretor de estudos e 20 professores. Dos professores, 04 são padres e 06 são leigos do sexo feminino, os demais são leigos do sexo masculino. Os padres formadores têm entre 35 e 45 anos. Já os seminaristas oscilam entre 18 e 45 anos, sendo que todos já concluíram, obrigatoriamente, o segundo grau.

INSTRUMENTOS

Visando detectar as concepções dos principais atores institucionais, seminaristas e equipe de formadores, a respeito de sua própria vida e experiência no contexto institucional, procuramos escutar os diversos discursos que permeiam a produção de subjetividade na instituição.

Para tanto utilizamos entrevistas semi-estruturadas, como um instrumento para a coleta de dados junto aos participantes da vida institucional desse Seminário Católico. Ela foi útil para esclarecer questões que surgiram na etapa de observação participante e para a pesquisa de informações sobre a perspectiva dos sujeitos que emergem e interagem na instituição quanto à sua vida no estabelecimento.

Optamos pela entrevista semi-estruturada para que pudéssemos conjugar os dados informativos que desejávamos obter, com outros possíveis temas trazidos pelos sujeitos. Assim, os entrevistados puderam explicitar suas concepções sobre a vida institucional e sua própria formação de um modo fluido e amplo. A entrevista partiu de algumas questões que nos pareceram pertinentes, mas não se prendeu necessariamente a elas apenas.

Entrevistamos os membros da equipe de formadores, 04 sujeitos, incluindo o bispo diretamente responsável pelo Seminário. Todas as entrevistas foram gravadas e depois transcritas. As entrevistas foram tratadas a partir da metodologia de Análise do Discurso do Sujeito Coletivo (Lefrève et.al., 2000).

A técnica de análise do discurso do sujeito coletivo é utilizada para a organização de dados em pesquisas que trabalham com uma metodologia qualitativa. Essa proposta trabalha com quatro figuras metodológicas que foram elaboradas para a organização de discursos: a ancoragem, a idéia central, as expressões-chave e o discurso do sujeito coletivo (Lefrève, 2000, p. 17).

A ancoragem detecta que os pressupostos, teorias, conceitos e hipóteses sustentam o discurso. A idéia central constitui-se a partir da(s) afirmação(ões) que permite(m) traduzir o essencial do conteúdo do discurso. As expressões-chave são transcrições literais de trechos do discurso, permitindo o resgate do conteúdo essencial dos segmentos que o compõem. O discurso do sujeito coletivo constrói, com pedaços de discursos individuais, tantos discursos-síntese quantos julgue necessários para expressar uma determinada representação social sobre um fenômeno.

Essa metodologia trata o discurso de todos como se fosse o discurso de um, indicando que o pensamento de uma determinada comunidade pode ser mais adequadamente representado pelo resgate do seu imaginário, pelo conjunto dos discursos nela existentes sobre determinado objeto de representação social.

Os autores (Lefrève et.al., 2000, p.33-34) afirmam que as representações sociais

não são secreções simbólicas de grupos de indivíduos, mas discursos que, a despeito de terem indivíduos na sua origem, são relativamente autônomos dos emissores individuais, na medida em que constituem produtos simbólicos de natureza coletiva.

No discurso dos entrevistados expressa-se aquilo que podem pensar sobre dado tema, o que está no horizonte de pensamento da sua cultura. Assim, o pensamento de um dado indivíduo pode incluir aquilo que outros indivíduos socialmente equivalentes verbalizam por ele. As representações sociais formam um imaginário que pode ser considerado como um meio ambiente ideológico que afeta de modo necessário e difuso os membros que se reúnem em determinada formação social.

Na análise das entrevistas, utilizamos três figuras metodológicas para a organização do material coletado, buscando discriminar os principais temas que constituem o discurso apresentado pelos seminaristas, relativo à sua própria percepção quanto à experiência formativa que vivem no Seminário: expressões-chave, idéia central e o Discurso do Sujeito Coletivo (Lefèvre, 2000).

Resgatamos o conteúdo das representações individuais, construindo com elas o Discurso do Sujeito Coletivo, pois as pessoas são, ao mesmo tempo, estruturadoras das representações sociais e estruturadas por elas. No contexto institucional, elas produzem e são produzidas pelo seu meio ambiente ideológico, no qual interagem dialeticamente, na medida em que há uma interpenetração, uma porosidade constitutiva entre o contexto e os indivíduos.

De uma perspectiva institucional, podemos dizer que são sujeitos que se fundam no interior das práticas, ao mesmo tempo constituídos e constituintes do cotidiano institucional. Quando um sujeito fala, seu discurso pode ser tomado enquanto uma representação do lugar institucional que ocupa: seu pensamento pode incluir também aquilo que outros indivíduos socialmente equivalentes verbalizam por ele.

O DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO RELATIVO À EQUIPE DIRIGENTE DO SEMINÁRIO CATÓLICO

Entrevistamos os membros da equipe de formadores responsável pelo Seminário: o padre reitor, padre diretor espiritual e professor diretor de estudos, que é leigo. Além destes, entrevistamos um bispo que foi nomeado pelos demais bispos cujos seminaristas se encontram na instituição, como o encarregado mais direto do acompanhamento do Seminário.

Os depoimentos revelaram um pensamento institucional específico e comum aos formadores: seu discurso se encontra ancorado no que podemos considerar como um discurso eclesiástico, um discurso clerical católico. As idéias centrais, afirmações centrais do conteúdo discursivo, emergiram dos próprios discursos e também das questões já levantadas anteriormente nas observações de campo e nas entrevistas com os seminaristas. As expressões-chave são as transcrições literais do conteúdo discursivo essencial. O Discurso do Sujeito Coletivo, construído a partir da elaboração dos discursos dos formadores, nos permite compreender o que se pode pensar sobre o processo formativo no Seminário Católico nas atuais condições de possibilidade institucionais.

Pudemos também verificar novamente a aguda perspicácia de Goffman (1987), em suas análise do dizer e do fazer dos membros pertencentes à equipe dirigente das instituições totais.

Vejamos qual é o trabalho do reitor no Seminário de Filosofia:

O reitor é responsável por toda a administração da casa: funcionários, professores. Responde juridicamente pela casa, pelas construções que são realizadas. A administração contábil da casa toma um tempo muito grande. É o responsável direto pela formação e disciplina dos seminaristas, juntamente com a equipe. Essa é a parte mais polêmica. Os seminaristas moram aqui, são oriundos de sete dioceses, o reitor e a equipe é o responsável direto para emitir no final do semestre e do ano um relatório sobre o seminarista. A responsabilidade é grande, temos que acompanhar toda a vida do seminarista, apesar de todo o trabalho administrativo, das aulas que ministramos. Os bispos, geralmente no final do ano, pedem um parecer para o reitor, para a equipe. Trabalhar na formação é um desafio, são poucos os que aceitam. Geralmente quem tem condições, resiste muito em aceitar, quem não tem condições, quer. Temos que contar com aqueles que têm condições.

O Seminário está organizado de modo centralizado na pessoa do padre reitor (CNBB, 1995, p.46, nº 72), detentor de plenos poderes no estabelecimento. Ele se assemelha ao governante de um pequeno Estado, um príncipe vassalo que deve obediência aos bispos que o nomearam. De acordo com sua índole pessoal, pode ser de tendência mais democrática ou centralizadora. Sua função é administrar burocraticamente a vida institucional: é patrão, gerente, supervisor, formador.

O gerenciamento do Seminário absorve grande parte do seu tempo, a formação propriamente dita vem em segundo plano. Como é típico nas instituições em geral, as urgências do cotidiano consomem a maior parte do tempo e energias dos dirigentes e a consecução dos objetivos formais fica comprometida. O essencial sempre é protelado para um futuro no qual hipoteticamente haveria mais tranqüilidade para enfrentá-lo.

O famoso relatório que emite semestralmente é um mecanismo fundamental e central na tecnologia microfísica do dispositivo institucional, baluarte do poder, influência pessoal e inquestionável que o reitor detém sobre os seminaristas. O relatório, prática não-discursiva, tem mais efeito no "processo formativo" do que todos os discursos edificantes e construtores de pensamento crítico que permeiam o cotidiano das orações, das aulas de filosofia e das palestras formativas diversas no Seminário. Além do mais, tal relatório é uma lacuna nos documentos que regem o processo formativo. Dele não se fala, instrumento sutil e eficaz, peça tática de normatização dos comportamentos.

A responsabilidade principal do reitor é verificar e atestar a autêntica vocação sacerdotal dos seminaristas-candidatos, selecionando por meio da observação, os indivíduos considerados aptos para o sacerdócio e dispensando os outros:

Ter que decidir a vida de um sujeito é um mistério, mas às vezes a gente percebe alguns sinais que indicam que não há motivação válida para o sacerdócio e aí cabe ao reitor tentar fazer ver ao seminarista que ele está no lugar errado, tem que pensar, amadurecer, ou por outras questões mais sérias, disciplinares, vários aspectos aí... que você tem que dispensar o seminarista. É um trabalho desgastante decidir a vida de outras pessoas, sem se deixar intimidar, procurando agir com justiça, com critérios, sem perseguir, mas colocando aquilo que a Igreja exige. A Igreja tem direito de exigir aquilo que quer para os seus futuros padres, que tipo de formação quer, e o seminarista não é obrigado a estar aqui nem a aceitar. Aqui nós temos canais de participação, nosso lema é "liberdade com responsabilidade" mas muitos não sabem usar a liberdade. Aí é a função do reitor a disciplina e se for o caso, se não houver condições, se percebemos que não há boa-vontade do candidato é aconselhável deixar o Seminário.

A autêntica vocação se manifesta em sinais, motivações válidas para o sacerdócio (CNBB, 1995, p.42-44, nº 65, 66, 67). O discernimento vocacional realizado pela equipe dirigente (CNBB, 1995, p.44, nº 68) é baseado na observação dos comportamentos. O seminarista é enclausurado para melhor ser observado, como um objeto expropriado de sua subjetividade que, quando emerge, é tomada como perturbação. A vocação é considerada como uma essência passível de verificação fenomenológica. Tal trabalho "formativo" é executado com convicção, apesar dos altos custos emocionais e com grande desgaste pessoal para os membros da equipe dirigente.

Como são confeccionados os relatórios semestrais:

Os relatórios são elaborados em equipe. É desgastante, é um "peso", a responsabilidade é grande porque às vezes não conseguimos expressar com palavras aquilo que é o sujeito. Mas a gente tenta conversar com os bispos também, dividir um pouco a decisão, tomar uma decisão mais partilhada. Mas é lógico que a responsabilidade última é do formador, que tem que assumir, tem que comunicar o interessado e tem que assumir todo o desgaste, ainda que seja o bispo que decida em última instância.

A equipe dirigente (CNBB, 1995, p.45, nº 70) formadora possui uma visão específica a respeito de quem são os seminaristas, indivíduos que estão longe do "seminarista ideal":

Ser seminarista é um apaixonado por Jesus Cristo, que apesar de suas limitações, deseja fazer o seguimento de Jesus. O sujeito tem que ter uma estrutura humana, não pode ser um bom seminarista sem ser antes um bom cristão. A Graça supõe a natureza. Se não houver uma estrutura humana, a Graça não violenta. Um bom seminarista, mesmo com seus limites, é aquele que tem uma opção por Jesus. O sacerdócio de cada um só se realiza no sacerdócio de Cristo, senão não tem sentido, não é uma função social. Se esse amor a Jesus for autêntico, necessariamente vai levar ao bem, ao amor aos irmãos, à Igreja, aos pobres, ao trabalho social. O que a gente percebe é que nem todos, infelizmente, muitos ainda não fizeram essa experiência de Jesus Cristo, ou se fizeram, ainda está um pouco ofuscada. Durante a caminhada filosófica ou no início da Teologia tem que acontecer essa experiência de Jesus Cristo, se não acontecer, não tem como se ordenar padre, porque aí vai ser uma frustração para a própria pessoa, vai causar um dano para a comunidade. Nós acolhemos os meninos, os jovens que são filhos da pós-modernidade. Aí está o grande problema. Eles chegam aqui com aquela cultura e é difícil inculcar neles o seguimento de Jesus Cristo, o Evangelho, temos sempre citado Jesus: "Entre vocês não deve ser assim". É difícil para o seminarista fazer essa passagem. A gente acaba, às vezes, reproduzindo, nem todos, mas aquilo que acontece lá fora, relações neoliberais, competição, fofoca. Tem muita gente séria, mas são filhos da pós-modernidade. Chegam aqui e o Seminário oferece uma possibilidade de formação, o sujeito não é obrigado a permanecer aqui, a formação tem como ponto central o Seguimento de Cristo, os valores cristãos. Se o sujeito percebe que não dá para entrar nessa, tem toda liberdade para sair. Não é também o menino santinho que é o ideal. Também não é o rebelde totalmente. Nós somos bastante tolerantes, não indiferentes. A gente sabe que estão todos num processo de cristianização. É duro falar, hein?! Alguns ainda têm que aprender a ser cristãos, depois ser padres. Muitos já chegam aqui com o objetivo de ser padre, mas não são cristãos nas relações humanas, nos valores. Tentamos justamente no Curso de Filosofia oferecer esta base humana para que o sujeito se sinta gente, pessoa humana integrada, bom cristão, depois ele vai ser um bom padre. É possível ser padre e não ser cristão. O grande desafio é inculcar neles os valores evangélicos. Seminarista é alguém que está em preparo, tem que viver o presente dele, a fase de formação, de ir se preparando para o trabalho futuro como apóstolo. Embora esteja tendo uma vivência que o prepara para o futuro, para o sacerdócio, é alguém que está em fase de discernimento e de formação, de preparação intensa, de vivência, de experiência, para que possa conhecer bem, o mais possível aquilo que vai abraçar mais tarde. A formação é algo permanente, não termina com a ordenação sacerdotal. O Seminário não pode prever tudo, mas dá um encaminho para a pessoa, aqueles pontos fundamentais, a partir dos quais a pessoa vai dar prosseguimento, se auto-formar.

A vocação sacerdotal é o objeto institucional do Seminário Católico. O jovem vocacionado que chega às portas do Seminário, ao cruzá-las, é recebido como um seminarista, criatura institucional, ser hipoteticamente dotado de "vocação sacerdotal". Podemos dizer que o paradigma da Cristandade construiu a "vocação sacerdotal" como um objeto ontológico e elaborou, ao longo do tempo, um sistema organizado de teorias, normas e serviços - um processo de discernimento (diagnóstico) que visa a um prognóstico (a certeza da vocação que levará o indivíduo à ordenação sacerdotal).

O "seminarista", sujeito dotado de uma vocação sacerdotal, não existe em sua pureza ideal. Os formadores constatam que os rapazes que entram no Seminário são filhos do seu tempo, marcados pela sociedade na qual vivem. É difícil vivenciar os valores cristãos, contrários aos padrões sociais comuns: fofoca, competição, reprodução de relações neoliberais de dominação e subordinação.

Ora, nós constatamos que a lógica do Seminário Católico, organizada a partir do Paradigma Romano (Benelli 2002b), está afinada com as práticas hegemônicas do sistema social capitalista. Embora o discurso institucional aponte para valores evangélicos e cristãos que podem ser considerados contraculturais, as práticas não-discursivas estão longe de sintonizar com eles, como estamos demonstrando (Benelli e Costa-Rosa, 2002).

O seminarista é um jovem que tem uma vida institucionalizada, na qual ainda não é criança, nem adulto. Não é considerado (ou considera-se) leigo, mas não é ainda padre. É uma forma de vida dirigida para o futuro que, espera-se, se constitua como um indivíduo adulto ideal, integrado, harmonioso, dotado de uma suposta "maturidade humano-afetiva".

Formar pode ser entendido como algo que se remete a "inculcar valores evangélicos", idéias, conceitos, valores abstratos, enquanto que o cotidiano, contraditoriamente, é organizado por práticas diversas. Mas uma forte experiência espiritual é exigida como condição para a sanção da vocação pessoal ao sacerdócio: "fazer experiência de Jesus Cristo".

O Seminário ideal seria um estabelecimento pequeno: uma "casa de formação" com poucas pessoas:

O Seminário ideal nós não temos. Este é um Seminário grande: várias dioceses, 80 seminaristas, três formadores apenas. Logo vamos ter mais dois. O Seminário ideal seria um Seminário formado com pequenas comunidades, grupos menores com um formador, onde a gente se encontra mais, se conhece melhor. Na grande comunidade, as pessoas se escondem, aí é que está a maior dificuldade de acompanhar pessoalmente. Em vista desse sonho de um Seminário com pequenas comunidades - a gente sabe que vai ser difícil isso - mas estamos dando um passo, conseguindo mais formadores, procurando oferecer um atendimento personalizado, isso tudo já é algo embrionário para uma mudança. No momento, é esse o paradigma que nós temos, que a Igreja oferece e propõe e é assim que a gente tem que tentar formar, com todos os seus limites, não temos um outro modelo. Estamos buscando. Temos o modelo do grande Seminário, com algumas alterações e iniciativas nossas para diminuir um pouco o peso e ficar menos desgastante.

A equipe de formadores sonha com uma "casa de formação" (Moro, 1997), contraponto idealizado, remanso pacífico diante dos "desgastes" que impõe o grande Seminário. Lá, as relações seriam mais próximas, formando uma verdadeira comunidade, com encontros e conhecimento real das pessoas, possibilitando um acompanhamento personalizado. Utopia da harmonia plena da comunidade de irmãos, onde reina a partilha, a amizade, a confiança, a ausência de conflitos, avesso da realidade experimentada no dia-a-dia. Ela detecta ainda que o grande Seminário possibilita o anonimato, causa grande desgaste e é um lugar onde o seminarista pode esconder-se.

Um grande grupo confinado, monitorado e governado por uma equipe mínima é uma das características específicas das instituições totais. Porém, acreditamos que não basta diminuir o tamanho, é preciso uma mudança na própria lógica do dispositivo de formação para que ele possa aproximar-se mais dos seus objetivos oficiais.

Origem e percurso formativo do jovem vocacionado:

Os seminaristas são oriundos de famílias pobres, a grande maioria, com deficiências intelectuais, carências, limitações em vários aspectos e tudo o mais, são pessoas feridas e que estão procurando também se reencontrar nesse período. Muitos, nessa tentativa de abrir a cabeça, se perdem, entram em crise, alguns acabam purificando a fé, outros perdendo. Entram aqui após terem feito o curso propedêutico, com um ou dois anos de duração, que acontece nos Seminários Menores das dioceses, como uma fase de introdução, de preparação para a Filosofia. Infelizmente, nem todos se preparam bem nessa fase.

De origem socioeconômica média-baixa (CNBB, 1995, p.19, nº13), os jovens começam o seu percurso formativo no Seminário Menor, fazendo o curso propedêutico, preparando-se para o Seminário de Filosofia. Constatamos que a maioria dos jovens vocacionados trabalhava antes de ingressar no Seminário (CNBB, 1995, p.20, nº14), e tiveram que abandonar seus empregos para se dedicarem exclusivamente à formação sacerdotal. Tinham emprego, salário, responsabilidade e relativa autonomia pessoal, viviam como adultos capazes de razoável contratualidade social.

Ingressar no Seminário Menor, porta de entrada do processo formativo, implica sair do mercado de trabalho, retornando muitas vezes a uma situação de adolescência indefinida e duradoura, numa dependência quase completa da instituição eclesial. Mas a tutela oferecida é informal e incompleta, acarretando diversos problemas que são remetidos ao indivíduo, não se percebe sua produção institucional nem qual sua função: maior controle sobre os vocacionados.

Pensamos que ao ingressar no Seminário, o jovem vocacionado abre mão do exercício de sua liberdade, trocando-a pela clausura da comunidade seminarística, que implica uniformidade normatizada e segregação. Renuncia a práticas sexuais visando ao celibato, mas sua sexualidade não fica do lado de fora dos muros do Seminário, adentra os portões junto com ele e experimentará muitas vicissitudes num grande grupo monossexuado. Ele se retira do mercado de trabalho, perdendo sua autonomia e iniciando uma longa menoridade tutelada. Contudo, não negamos que no Seminário haja algumas possibilidades de promoção social consideráveis para os candidatos ao sacerdócio, vindos de classe social média-baixa.

As dificuldades dos seminaristas são particularizadas num processo típico de psicologização ou sociologização das contradições sociais e das conflitivas relações de poder no estabelecimento:

Alguns seminaristas se fecham a esse cultivo, por "n" problemas, às vezes é uma resistência com autoridade, com o pai, problemas com a autoridade, alguns não aceitam, por mais que você fale, o sujeito resiste, então a planta não cresce, aí chega no final do curso e o sujeito está mal, não se desenvolveu. Estamos chegando à causa de muitos problemas que temos aqui, o seminarista vem para a Filosofia e nosso sistema e o esquema é de "liberdade com responsabilidade", um Seminário Maior com um curso universitário oficialmente reconhecido que tem uma orientação confessional cristã, mas muito aberta, com professores bastante abertos, até de outras religiões, porque a Filosofia tem que abrir a cabeça.

Nesse sistema de "liberdade com responsabilidade", não se diz liberdade de quê ou para quê, nem responsabilidade sobre o quê. O discurso é liberal; "liberdade" e "responsabilidade" são reduzidas a valores formais, abstratos e observamos que as práticas são inevitavelmente autoritárias, neste modelo de instituição.

Do ponto de vista da equipe de formadores, os desafios e dificuldades do seminarista neste Seminário são basicamente abrir-se ao processo formativo com transparência:

O seminarista deve ter abertura ao novo, à formação, não vir com paradigmas distorcidos, deve ter principalmente abertura, transparência, saber trabalhar em equipe e viver em comunidade, ter disponibilidade, saber escutar, acolher, não passivamente, um pouco mais de motivações válidas para o sacerdócio, sair um pouco da periferia e da superficialidade das coisas, como o poder do padre, o status social, a estabilidade. Essas são motivações que têm que ser purificadas, se não forem, precisamos falar: "olha, acho que você está no lugar errado". O formando não deve se esconder, deve viver a liberdade com responsabilidade, esse é o nosso lema: educar para a liberdade. Se fosse a "grande disciplina", seria até fácil fazer o relatório. Como nós deixamos esse espaço, cada um vai gerenciando a própria vida. Tem que gerenciar agora, porque depois não vai ter ninguém para cobrar. É difícil porque confiamos nesse esquema de "liberdade com responsabilidade", embora alguns prefiram o autoritarismo, um reitor que seja linha dura...Explicitamente, isso nunca apareceu, mas sabemos que os jovens aí fora querem alguém que mande, então aqui não vai ser diferente. Para alguns, isso seria bom. Mas nós não entramos nesse esquema, justamente porque o sujeito tem que gerenciar. Isso não quer dizer omissão, a gente cobra, coloca os pontos, vai durante o ano todo colocando o que vamos percebendo. Ele é o protagonista da sua formação, o seminarista, não o formador... lógico, o protagonista é Deus, se o seminarista deixar, porque às vezes também impede, e em segundo lugar é ele mesmo, tem que ser ele o responsável.

O seminarista deve ser transparente e não se esconder, pois de observação é que se trata no dispositivo institucional. A hierarquia católica não é democrática, ela se organiza a partir da autoridade escalonada em diversos graus de poder. No Seminário, um discurso que se pretende democrático não consegue competir com procedimentos autoritários.

A equipe aborda com cuidado o delicado problema da sexualidade e do celibato:

A vida afetiva deles é bastante complicada, com certeza. Quando optam pelo sacerdócio, sabem que têm que viver o celibato, mas não se vive isso de uma hora para outra, é preciso aprender a se viver isso, pelo menos até enquanto é exigido. Nem todos os seminaristas conseguem, ou pelo menos, têm claro que devem viver celibatários, se querem entrar nas regras atuais. Podem até lutar para mudar, mas hoje, se querem ser padre, é assim. É preciso interiorizar e trabalhar a dimensão do celibato, há toda uma espiritualidade nesse sentido. O celibato é uma exigência para o candidato e de alguma forma ele vai ter que conseguir lidar ou não poderá ficar. Os rapazes chegam ao Seminário muito espiritualistas, individualistas e idealistas demais. Seu conceito do que é ser um padre não vai muito na direção do serviço, de trabalhar para resolver os problemas das pessoas. Dá a impressão de que é aquele tipo de padre que fica rezando a missa, dando o sacramento, recebendo seu salariozinho, tendo seu carro, sua roupinha e isso está muito bom, sem ter que sujar muito as mãos.

Controlar a própria sexualidade a partir da "espiritualidade", superando o individualismo e o idealismo ingênuo, orientando-se para um amor oblativo, é a indicação. Mas constata-se entre os seminaristas uma concepção do sacerdócio como mera "profissionalização", um padre "funcionário do sagrado" interessado em viver como classe média alta.

Os formadores também são sensíveis às necessidades materiais dos seminaristas:

Há uma série de outras necessidades, uma boa relação com a família, com a comunidade de origem, uma boa relação com o povo, e há a questão das necessidades materiais. O Seminário oferece casa, comida, estudo. Mas as despesas pessoais, ou eles recebem ajuda das paróquias ou das famílias. Alguns não têm, então isso pode acabar dificultando um pouco e aí a gente procura outros meios para poder ajudar essas pessoas. Todos aqueles que foram transparentes, contaram com nossa ajuda. Estamos aqui para isso, se o sujeito não entende, aí fica difícil, não adianta dar murro em ponta de faca.

Constatamos novamente a situação de tutela informal e incompleta, efeito da opção que exclui os vocacionados do trabalho remunerado como exigência para o ingresso no Seminário.

Vejamos como os formadores compreendem a "grande disciplina" e a "educação para a liberdade":

A "grande disciplina" é o horário todo regrado, faltou você já é punido, uma observação constante, muito no pé do sujeito, não aceitar que às vezes o sujeito não está bem, que faz parte a crise. A disciplina é importante, a "grande disciplina", não sei se ela é boa, se bem que nós temos grandes padres e bispos que passaram por ela, são pessoas extraordinárias, então fica difícil hoje fazer um julgamento. No passado valeu essa experiência, mas neste mundo pós-moderno não dá mais. A gente aqui procura educar para a liberdade, é lógico que é cobrado, o sujeito tem que gerenciar a própria vida se quiser fazer o que bem entender, ele vai ser cobrado, tem que responder por aquilo também. Agora, não existe aquilo de ir lá no quarto todo dia: "você não foi à missa, você faltou nisso", só que os formadores observam, também não é o ficar policiando, mas é para o bem da pessoa, por questão de amor e de caridade, acho que o formador também tem que falar: "olha, desse jeito não dá, será que você não está no lugar errado?" Tem que ajudar o sujeito a se encontrar.

A "grande disciplina" seria caracterizada por uma vigilância ostensiva e permanente, autoritária, policialesca, que deu bons frutos no passado, mas não seria tolerada pelos jovens "pós-modernos" de hoje. A "educação para a liberdade" exerce uma vigilância mais sutil, tolerante, apela para a motivação pessoal, corrige-se o seminarista por amor. No entanto, temos demonstrado que as práticas não-discursivas, os detalhes operacionais técnicos que funcionam e produzem a vida no contexto institucional contradizem esse discurso liberal (Benelli e Costa-Rosa, 2002).

O clima institucional é tenso, pois o cotidiano é tecido por relações de poderes e de focos de resistência, movimentos de controle e de sabotagem, intensificados por discursos e práticas contraditórias. A "luta" é o cenário normal do cotidiano, causando desgastes, ressentimentos, recriminações mútuas entre seminaristas e formadores:

Mas esse esquema de "liberdade com responsabilidade" é mais desgastante, porque a gente deu uma grande abertura para os canais de participação, são os vários canais e a gente vê que quando a coisa é do interesse deles, tem que ser resolvida rapidamente, quando não é, aí põe em discussão. Há uma certa parcialidade, infelizmente. Querem democracia para aquilo que não é do interesse deles. Aquilo que é do interesse tem que resolver rapidinho, o reitor tem que resolver imediatamente, para as outras coisas, não, então o pessoal não sabe o preço da democracia. Na hora que você é chamado para discutir, ouvir o outro, chegar a um consenso, a gente vê que há muita resistência, então nós tentamos, sabendo que há muitos padres autoritários, educar esses meninos para a responsabilidade. Ninguém vai poder falar que a gente agiu com autoritarismo. Com autoridade, sim. Esse exemplo eles não vão ter aqui. Se virarem padres autoritários, eles não tiveram essa formação, principalmente, dentro de tantos canais de participação, de transparência. Mas não estão educados para a liberdade, não.

O Seminário de Filosofia é percebido como uma etapa normalmente crítica dentro do processo formativo:

O Seminário de Filosofia é uma etapa crítica do processo formativo porque é justamente quando a fé e a vocação vão ter que ser purificadas pela crítica da razão. Por outro lado, há quase que uma coincidência entre a passagem da adolescência para a idade adulta, justamente nesse período. Na Teologia as coisas se assentam. Aqui é a "peneira fina", o sujeito tem que fazer o seu discernimento. Alguns, passam o curso todo e não conseguem fazer o discernimento. Vão para a Teologia sem ter feito o discernimento, chegam lá, ficam seis meses e vão embora, ficaram muito presos à razão, não fizeram aquele passo. O objetivo do Curso de Filosofia é abrir a cabeça, amadurecer a fé, oferecer formação humana. Também temos complementos: a presença de dois terapeutas, momentos de formação humana, afetiva, espiritual. Não só o curso, mas também uma outra formação complementar que deve caminhar mais ou menos em sintonia com a dimensão acadêmica.

Do ponto de vista da equipe de formadores, o seminarista é um ser em desenvolvimento e em conflito. Ele atravessa uma crise de amadurecimento pessoal. Finalmente, seria considerado maduro e adulto quando bem adaptado à estrutura clerical, tornando-se mais um elemento da máquina.

O Curso de Filosofia deve desenvolver o senso crítico em um contexto no qual não se pode criticar muito, o que provavelmente aumenta mais ainda a percepção dos seminaristas quanto ao descompasso entre o que se diz e o modo como vivem realmente.

Viver no Seminário é considerado tacitamente como algo formativo em si mesmo. O isolamento do mundo social mais amplo é uma condição necessária do atual regime de formação. Discernimento da vocação e purificação da fé são algumas das metas buscadas pelo funcionamento institucional do Seminário. Constatamos que, na prática, a dimensão acadêmica é o eixo principal do Seminário, outros aspectos da formação são literalmente "complementos", acréscimos que não implicam maiores repercussões no clima institucional.

A equipe de formadores também constata uma defasagem entre a dimensão acadêmica e as demais, ao avaliar as dimensões formativas no Seminário:

A gente tem que melhorar em todas as áreas. As dimensões da formação são seis: a espiritual, a intelectual, a comunitária, a humano-afetiva, a pastoral e a vocacional também. A primeira dimensão é a comunitária e participativa. Precisamos de mais formadores, padres, mais pessoal técnico e especializado, já que nós temos que nos adaptar aí. Deveríamos ter atividades por diocese, seria um espaço e seria um mecanismo também para determinados encontros, ações, atividades, poderia ser por turma, mas ainda assim é grande. Nós devemos ter outros pequenos grupos, as chamadas equipes. O aspecto espiritual é o mais prejudicado de todos. Por quê? Porque é o mais difícil também. Gostar de uma matéria ou de outra e se enfronhar é relativamente fácil. Mesmo no aspecto comunitário, é mais fácil se entrosar numa equipe ou noutra, na sua própria comunidade diocesana, na sua própria turma. A espiritualidade depende de uma mística. E de mística não se dá aula. Aí é que esse tipo de Seminário também perde por causa de ter a estrutura que tem. Tudo grande, tudo macro. A mística se faz com um discipulado pequeno, como Jesus tinha doze apóstolos. Ele não ficava parado num lugar. A vida ia correndo e sendo vivida e eles iam vivendo junto com Ele e percebendo o modo dele viver, percebendo o modo dele administrar os problemas, as coisas que iam acontecendo, etc. e tal. A dimensão intelectual, do ponto-de-vista de tempo, ganha de todas as outras. Tem o tempo das aulas e ainda um tempo que é dedicado aos estudos, é o que predomina. A vida afetiva não se resolve simplesmente com um acompanhamento psicológico, mas isso ajuda muito. Faz muito tempo que as pessoas reclamavam de um apoio maior nesse aspecto e o Seminário começou a dar um acompanhamento psicológico, de terapia de grupo, dias de formação com palestras, de semanas de estudo teológico-filosófico dedicadas ao tema da afetividade. A espiritualidade não seria só palestra com diretor espiritual ou a própria direção espiritual. Essa talvez seja a dimensão mais prejudicada, juntamente com a dimensão humano-afetiva, porque também são as duas que exigem empatia e um grau de confiança maior entre quem está fazendo o processo formativo e quem está formando. Nesses dois campos, os formadores deveriam ter uma autonomia, deveriam ser resguardados, preservados, de ter que participar do papel de interditor, dentro da instituição.

Nesse depoimento está delineada uma síntese dos objetivos oficiais do Seminário. Esse é o discurso relativo ao que a instituição diz que faz. Já observamos que ela faz menos do que pretende (Benelli e Costa-Rosa, 2002), com o que a equipe de formadores também parece concordar.

Tentando adequar o Seminário clássico a um processo formativo mais moderno e democrático, a equipe de formadores criou diversos canais de participação no estabelecimento:

São vários os canais de participação. Temos a cada quinze dias uma Assembléia, comunicações e decisões em comunidade. Nós decidimos juntos, aquilo que não é viável, se não estiver em conformidade com o Evangelho, com as orientações da Igreja, o reitor não é obrigado a aceitar, tem uns parâmetros. O que os seminaristas solicitam através das assembléias costuma ser atendido. Temos uma vez por mês a reunião com a Equipe do Reitor: os responsáveis por cada diocese se reúnem com os seminaristas e discutem como está a casa, se têm alguma sugestão e depois levam para essa reunião as sugestões, observações, críticas, da comunidade diocesana e aí a gente delibera juntos. Se for algo muito polêmico, levamos para a assembléia. Eles têm toda a liberdade para criticar, com fundamento, damos toda a liberdade para isso, se não falam, se não o fazem é porque não toleramos a fofoca, não há motivo para isso. Temos o Conselho Lato: reúne os formadores, representantes dos alunos, dos professores, dos funcionários, e vamos discutir como está o Seminário, como anda, os gastos, vamos planejar. Depois tem a equipe de formadores, que reúne o padre reitor, o padre diretor espiritual e o diretor de estudos, que é leigo. Muitos não utilizam esses canais, mas há muito espaço para que todos participem, para que a gente chegue a um consenso e não só para o bem da comunidade, mas também para educá-los para a democracia. Tem muitas reuniões, isso cansa, desgasta. Também estamos cansados com tantas reuniões, mas é o preço da democracia, é o ônus. Muitos não querem, reclamam: "mas hoje tem reunião de novo?". Querem participação, mas na hora que vem a exigência, então é melhor que o reitor decida.

As iniciativas democratizantes da equipe de formadores são louváveis, em primeiro lugar porque não são exigidas nem estão previstas nos documentos oficiais que regem o processo formativo. Estes indicam apenas e vagamente que o "método participativo" (CNBB, 1995, p.53, nº 88) é um bom instrumento para a formação, sem fazer nenhum tipo de especificação. Ter tais espaços de participação é fundamental, mas a questão é como utilizá-los de modo realmente eficaz.

O problema está em "colocar vinho novo em odres velhos", reduzindo instrumentos altamente democráticos e participativos como conselhos e assembléias em práticas formais multiplicadas que discutem apenas aspectos secundários e irrelevantes da vida cotidiana no Seminário. Esses instrumentos parecem funcionar também como concessões táticas que recobrem e camuflam as manobras microfísicas dos dispositivos institucionais realmente eficazes.

É difícil superar uma visão funcionalista que pensa seminaristas, formadores e Seminário como objetos independentes, compactos, fechados e completos em si mesmos, relacionados apenas exteriormente.

Os seminaristas se calam diante da tradicional autoridade tutelar dos padres formadores. Já observamos o descontentamento deles com as excessivas reuniões, "reclaméias" e com a "transparência fumê" (Benelli e Costa-Rosa, 2002). As idéias de auto-análise e autogestão do Seminário pela coletividade que o constitui estão muito longe do horizonte de todos os atores. Mas estão presentes todas as lutas e embates das forças antagônicas que compõem a realidade institucional. Sentem-se seus efeitos, que são atribuídos aos indivíduos particulares.

Comentando sobre a vida comunitária, membros da equipe de formadores constatam a solidariedade paradoxal entre o seminaristas, o ocultamento da informação, a fofoca destrutiva, o clima superficial de bem-estar, os conflitos e tensões ardendo na surdina. Sua percepção coincide com a dos próprios seminaristas. Percebemos novamente a atualidade das agudas percepções de Goffman (1987):

Estamos num clima bom, aparentemente, visivelmente falando. Tivemos um momento muito forte aqui - uma festa de confraternização - reunimos professores, funcionários, seminaristas, tudo muito bem preparado pelas equipes. Nós temos momentos fortes, acho que a vida comunitária está boa. Melhoramos bastante, temos que caminhar, tem alguns que ainda se escondem, participam por obrigação e estamos passando um momento de muita fofoca, de maldade entre alguns, muitas vezes, de seminarista querendo prejudicar o outro. Isso não aparece, aparentemente, por isso dizemos que visivelmente está tudo bem. Mas a gente sabe que há conflitos, que o reitor é o último a saber, mas que há conflitos ideológicos, aí há vários tipos de conflitos, até de opção de vida e tudo o mais. Então isso precisa ser purificado, com mais formadores a gente pode acompanhar melhor. Mas nesse grande grupo é difícil, também porque eles não falam, as coisas não chegam até os formadores, nem tudo chega. Além disso, eles têm dificuldade de falar com a autoridade. O formador pode ter espiões na casa, pode ter todo tipo de informações, mas isso gera um mal-estar na casa, então discutimos uma vez ou outra entre nós, um ajuda o outro, se tem alguma informação, um parecer sobre alguém. Mas sempre foi assim: acontecem coisas que os seminaristas sabem, mas os formadores não ficam sabendo. Há uma cumplicidade entre eles, tanto no bem quanto no mal. Os sujeitos que sabem não querem se comprometer, é uma certa omissão, uma indiferença, "eu cuido da minha vida..." Mas é a Igreja, a instituição que está em jogo. E em meio a isso, tem muita gente séria, que se empenha, que colabora, que tem vida comunitária, é disponível, é a grande maioria. A reitoria não é lugar de fofoca, quem vai, tem que provar, eles sabem que quando levam alguma informação ou queixa, vamos encaminhar, não vai ser engavetado, isso afasta os seminaristas dos formadores: se levarem alguma coisa, vamos encaminhar e se tiver que dispensar, vamos dispensar.

A tranqüilidade da comunidade é superficial e os seminaristas sonegam a informação aos formadores, vistos como ameaça latente de expulsão do Seminário. Acreditamos que é difícil que uma instituição total possa vir a funcionar de modo diverso desse.

A equipe dirigente tende a ter uma opinião pejorativa do grupo dos seminaristas, ressentida com os embates não declarados, as resistências e sabotagens, a sensibilidade democrática dos seminaristas:

Essa geração é excessivamente melindrosa. Tudo ofende ou tudo não tem a ver com eles, é sempre com o outro e quando a gente fala alguma coisa, a pessoa se sente sempre ofendida, não é uma geração que acolhe, é um excesso de melindre, eles viram a cara, alguns se revoltam. Jesus falou que o caminho é duro, aí você entende aqueles paradoxos do Evangelho: o seguimento de Jesus Cristo tem sofrimento, há um excesso de melindre: "o padre me ofendeu, ou a paróquia, aquilo me ofende". Talvez seja mecanismo de defesa, desculpa ou fuga. Essa é uma geração frágil, infelizmente. Frágil, frágil. A gente sabe que é difícil agradar a todos e muito mais difícil ainda agradar seminarista, por isso tanta dificuldade em trabalhar na formação. Quando é preciso dispensar uma pessoa, é um momento muito difícil. Não é que o formador esteja aí para isso, está para ajudar a pessoa a crescer, se preparar. Mas às vezes, quando ocorre algum problema grave, a gente tem que tomar alguma decisão muito radical, visando ao bem da pessoa e da comunidade. Acompanhar a caminhada dos alunos é estar exposto aos questionamentos, às cobranças, às vezes eles são exigentes. Têm muitas exigências que são válidas, outras que não podemos suprir. O formador é muito cobrado. Nos conflitos e dificuldades, ele faz o meio de campo entre os alunos e o episcopado. Os bispos exigem, cobram que você seja o intérprete deles na formação, e do outro lado, os alunos fazem suas exigências. O formador tem que ser como que um algodão entre os cristais. Precisa conseguir levar toda a programação da formação, realizar a integração entre os bispos e os alunos, fazer com que haja uma aproximação entre eles. Os alunos também precisam compreender que a gente não pode aceitar tudo, há princípios, temos um papel a desempenhar. Eles têm a responsabilidade deles, não devem ficar numa pura cobrança, mas atentar para aquilo que conduz à formação. O formador deve saber fazer uma articulação entre tudo aquilo que a Igreja exige e o que é possível fazer com os recursos disponíveis, trabalhar para conduzir a formação a bom termo.

A formação sacerdotal é uma questão político-pedagógica, é algo da ordem de forças, intensidades, poderes, múltiplas pulsações, ganham corpo e expressão nas relações institucionais. "Melindre" é o nome que podem dar a uma potência que se lhes opõe. Os seminaristas não têm por que se deixar dominar, e não o fazem facilmente. De seu lado, representando os bispos, a equipe de formadores sente a pressão dos seminaristas.

Vejamos qual é a função do Diretor Espiritual:

A função primordial é o trabalho de orientação dos alunos, na espiritualidade, na vida de oração, da vida relacionada à vivência da fé. Ajudar os alunos a crescerem nesse testemunho de fé, através de ajudá-los a resolver os problemas que eles têm na vida afetiva, seria preciso aprofundar esse aspecto, precisaria da ajuda de um psicólogo, até de outras especialidades, mas a gente tem algo a dizer. O aspecto religioso envolve toda a vida: estudos, relacionamentos, trabalho, cumprimento dos deveres da pessoa. Seria a própria pessoa, no relacionamento consigo própria, com Deus e com os outros.

O padre diretor espiritual é um antepassado do psicólogo clínico. Pensamos que a clínica psicológica é herdeira dos mestres de vida espiritual dos conventos medievais (Benelli, 2002c). A mística católica cavou uma interioridade espiritual na alma do homem ocidental que depois foi psicologizada pelo advento das ciências humanas (Foucault, 1999b; 1999c).

Como é o atendimento do diretor espiritual:

Os alunos devem procurar o diretor espiritual ao menos uma vez por semestre, para que a gente possa ter alguma coisa para dizer para a pessoa, manter um contato, conhecer os alunos e também poder ajudar nessa caminhada. Além dessa conversa semestral com todos, independente de ser ou não o orientador deles, depois, o diretor espiritual está à disposição desses alunos, seminaristas, no caso deles precisarem de uma conversa, além daquelas semestrais obrigatórias. Aí é livre, o diretor fica à disposição da casa. Seria melhor que as próprias pessoas tomassem a iniciativa de procurar direção espiritual, mas às vezes a pessoa cai um pouco numa certa acomodação, não procuram, então procuramos saber como é que a pessoa vai.

O diretor espiritual se ocupa dos assuntos de "foro interno", relativos à intimidade dos seminaristas e sobre eles não deve pronunciar-se, obrigado pelo "segredo de confissão" (antepassado do sigilo ético), mas sua isenção é prejudicada por sua participação inevitável na equipe dirigente. Os seminaristas acham difícil confiar nele e acabam comunicando-lhe apenas coisas simples e irrelevantes. Desconfiam do corporativismo clerical e da função de interdição da equipe como um todo.

A direção espiritual é uma entrevista. Ali a pessoa vai colocar as suas dificuldades maiores, se tem um problema na dimensão formativa, por exemplo, intelectual, ela vai se colocar, um problema de ordem espiritual mesmo, da dificuldade que tem de participar de uma celebração, etc. A gente também dá a sugestão para que a pessoa leia um livro de espiritualidade, que ela viva um ato de piedade, rezar o terço, fazer meditação, incentivamos essas coisas também. Às vezes aparece cada um com questões, com coisas diferentes, com determinados tipos de problemas, ou pode ser que não tenha problema nenhum.

A direção espiritual é essencialmente uma entrevista psicológica de aconselhamento realizada de modo empírico por um sacerdote católico encarregado dessa função. Não há maiores preocupações ou cuidados técnicos em sua realização. Parece tratar-se de uma conversa mais ou menos formal entre dois atores institucionais, algo bem diverso de uma escuta clínica.

Um referencial maior é a vida de oração, de união com Deus que depois se expressa na vida sacramental, se alimenta nas diversas celebrações, numa leitura espiritual, numa meditação, mas o restante tem que estar em harmonia. A espiritualidade é medida pelas atitudes, mediatizada pelos comportamentos. Se uma pessoa tem bom convívio com os demais, é responsável, é cumpridora dos seus deveres, leva com seriedade assim todas as dimensões da sua formação, ela está vivenciando uma fé que pode não ser muito explícita, embora essa fé não esteja muito tematizada. Não podemos querer que alguém seja cristão mas que tem uma deformação de personalidade. Uma pessoa que reza muito, mas é intratável como pessoa na convivência, não tem uma vivência correta da fé. Aquela que é tratável com os demais, aberta, isso é uma grande coisa já, porque está demonstrando um equilíbrio. Se a pessoa diz que tem uma profunda vida espiritual, de oração, mas ela se comporta mal, não é colega com seu próprio colega, então a gente começa a desconfiar.

Como já comentamos, a observação do comportamento visível e de sua coerência com o discurso emitido pelo seminarista é tomada como índice de desenvolvimento espiritual e vocacional. Apesar de a direção espiritual ser uma prática que utiliza a palavra, o discurso, com entrevistas realizadas semestralmente, notamos que a dimensão do discurso não é prioritária no processo formativo do Seminário.

Os seminaristas se calam no cotidiano, ou fazem fofoca, se ocultam dos formadores. Podemos falar mesmo da rareza do encontro entre seminaristas e formadores, pois o mecanismo essencial do processo formativo baseia-se na observação, na visibilidade e vigilância normatizadoras. Os seminaristas reclamam que os formadores não os atendem, porque estão ocupados com outras coisas ou ausentes do Seminário; os formadores se queixam de que os seminaristas não os procuram, por isso dedicam seu tempo a funções administrativas ou buscam trabalho pastoral fora do Seminário.

A equipe de formadores possui uma concepção específica quanto às condições acadêmicas gerais dos seminaristas:

A maioria vem de cidades menores ou de ambiente rural, de famílias pobres; estudaram em escolas públicas, em ambientes de famílias que não incentivavam o trabalho de estudo mesmo. Era mais trabalhar, não estudar. Trazem uma deficiência muito grande para o trabalho acadêmico. Não sabem ler, escrever, não estão habituados a pensar. Chegam aqui e têm um choque de ter que dedicar grande parte de sua vida para o estudo, para eles o estudo era só sala de aula. É cobrado em sala de aula, mas não fica ninguém no pé deles, têm um horário livre e têm que se organizar. Alguns ficam realmente perdidos, não conseguem se sintonizar, demora um tempo, outros não, conseguem mais facilmente. A primeira etapa no propedêutico é sofrível, por não ter hábito de trabalho acadêmico, de ler livros, de dedicar um tempo a estudar, que não apenas o tempo da escola.

Este discurso coincide com dados que já havíamos obtido freqüentando reuniões do corpo docente durante o período de visitas de observação. A instituição se queixa de que os seminaristas não são alunos ideais, geniais, prontos e acabados. Como sempre, o problema costuma ser imputado, sem mais, à clientela.

O seminarista é um candidato vocacionado ao sacerdócio e também um estudante universitário, aspectos distintos, porém implicados e que podem se tornar conflitivos:

O rapaz vem ser padre, não significa necessariamente que tem o dom para a área de humanas. Pede-se que faça dois cursos nessa área, que supõem muita leitura, escrever, debater. A maioria consegue sim, investe nisso, percebe a importância, claro, alguns se destacam. Outros se esforçam e conseguem atingir um nível normal e tem alguns que realmente o mínimo só. É um paradoxo, se ele não teve uma boa formação como professor de filosofia, às vezes não recebeu nem o diploma, como vai ser padre? Ele será alguém que vai estar orientando as pessoas, coordenando encontros, dando formação, tem que ter minimamente isso. O padre tem muito mais poder que o professor, o professor fala e pode ser discutido; o padre normalmente não, ainda mais hoje. Ele tem que ser uma pessoa bem preparada e essa é uma das questões que não trazem quando chegam aqui. Mas setenta por cento consegue dar conta bem disso, minimamente.

Os seminaristas vão gastar em média oito anos de vida com formação acadêmica e, se não conseguirem superar as dificuldades, supomos que este longo processo pode ser extremamente sofrido. A equipe de formadores pode enfrentar grandes dilemas ao ter que "decidir a vida" de um seminarista, vocacionado e universitário ao mesmo tempo. Provavelmente, a titulação acadêmica em Filosofia e Teologia, requisito parcial exigido para a ordenação sacerdotal, pode ser tomada como indicador de que o candidato está apto para receber o sacramento da ordem, o que talvez nem sempre se verifique.

O seminarista não opta pelo Curso de Filosofia, que lhe é imposto como uma exigência da formação clerical, que deve ser acatada. Diferentemente de outros profissionais, que para seu êxito devem despender grandes esforços para capacitar-se bem e estar em condições de disputar vagas escassas no mercado de trabalho, o candidato ao sacerdócio tem uma perspectiva folgada do seu futuro como padre: a demanda é imensamente maior que a oferta, há grande estabilidade e segurança socioeconômica, diríamos mesmo, uma quase intocabilidade. Então, para que estudar tanto, se quem manda na paróquia, quem diz a última palavra é o padre mesmo? Sobretudo, acreditamos que é isso que os seminaristas verificam no ambiente eclesial concreto onde circulam.

O que realmente parece produzir efeito não são todos os discursos pedagógicos formativos que ouvem e suportam no Seminário, mas sim as práticas não-discursivas e outros discursos informais que circulam no ambiente sócio-eclesial, como este, por exemplo: "Na Igreja, manda quem pode (a hierarquia), e obedece quem tem juízo (o povo, o seminarista)".

O padre católico é detentor de um poder, prestígio e status que lhe são outorgados pela autoridade episcopal constituída: poder hierárquico e tradicional. Sua adequada capacitação técnico-acadêmica é um pré-requisito imprescindível, mas acaba ficando relegada a um plano secundário, uma dificuldade típica dos processos institucionais em geral.

Segundo os formadores, há uma série de razões para a opção e manutenção do Seminário tradicional:

Esse modelo tradicional foi se solidificando, por vontade dos bispos, que tinham suas razões. A primeira razão é ideológica, ou teológica: a própria Santa Sé não aprovou muito a experiência de pequenas comunidades, não gostou muito dessa idéia. Um Seminário do modelo tradicional torna mais homogênea a formação, principalmente do ponto de vista disciplinar. Talvez a segunda razão seja mais de ordem econômica. Uma terceira razão, que é apresentada também para não se estudar numa universidade pública, são razões de fé: a universidade e os professores são anticlericais, são ateus. Outra razão apresentada, muitas vezes, também é a falta de padres. Eles dizem: "Mas como é que nós vamos abrir uma comunidade para cada diocese? Nós não temos padres para liberar e destinar para isso", como se fosse um luxo. Boa parte dessas razões não se justificam.

Na base de sustentação do Seminário tradicional há razões de ordem ideológica: propicia uma uniformização disciplinar da formação sacerdotal, de acordo com as exigências do Paradigma Romano (Benelli, 2002b): um padre católico recebe praticamente a mesma formação em qualquer lugar do globo, o que facilita muito sua transferência e adaptação; é um modelo econômico: com um clero escasso, é muito mais prático que poucos padres formadores gerenciem um grande número de seminaristas; e também financeiro, pois os investimentos são concentrados numa mesma instituição com um único quadro de padres formadores, de professores e de funcionários em geral; uma faculdade própria no interior da clausura evita a contaminação e/ou perseguição ideológica, pois o isolamento do mundo continua sendo uma condição exigida para o processo formativo clerical.

Constatam a falência do modelo tradicional, instituição anacrônica que não corresponde aos tempos "pós-modernos" que nos tocam viver. O Seminário clássico é uma instituição medieval que só pode preparar padres dentro de uma lógica da Cristandade, atualizada no Paradigma Romano. Os procedimentos micropolíticos que produzem a vida no contexto institucional não podem formar um padre do diálogo, preparam um padre investido de autoridade, um homem separado, sagrado, distante da realidade cotidiana dos demais cristãos. Acreditamos que reformas paliativas mantêm tudo como sempre foi: reuniões e assembléias formais, ausência de diálogo em relações sociais verticalizadas, vigilância hierárquica, relatórios avaliativos, enclausuramento, tutela, dificilmente poderão formar indivíduos capazes de dialogar com a cultura atual. A proposta das "casas de formação" de Moro (1997) reduze o número de seminaristas, mas mantém intactas as demais estratégias formativas.

As relações que a equipe de formadores mantém com o Seminário, sob a perspectiva da instituição total, de acordo com os depoimentos e nossa observação, são complexas e ambíguas: por um lado, elas tendem a encarnar seu papel de agente normalizador e sancionador da "vocacionalidade" dos candidatos ao sacerdócio, mas também sofrem as pressões e processos típicos dessa modalidade de instituição: é bastante difícil encontrar padres que aceitem o cargo de formador no Seminário, como disse o reitor. Os formadores estão constantemente sob o olhar exigente e atento dos seminaristas que também vigiam as eventuais contradições entre o discurso e a prática dos seus superiores. Consideramos que o trabalho da equipe de formadores é experimentado como sendo estressante, desgastante e, em certos momentos, isso se manifesta em reações de endurecimento, fechamento, broncas, ameaças e pressão por parte deles sobre os seminaristas. Membros da equipe de formadores sentem-se ressentidos com a "ingratidão exigente" do grupo dos seminaristas, que são vistos como "resmungões e eternos insatisfeitos". O padre reitor se ausentou algumas vezes do estabelecimento, para descansar e recompor-se, depois de alguns momentos de conflitos mais agudos. Deles também poderíamos dizer que "não sabem o que fazem", pois sua prática muitas vezes segue a lógica totalitária, embora não seja exatamente essa sua intenção. Pensamos que, quanto maior o tempo que os membros da equipe de formadores permanecem dirigindo a instituição, mais eles tendem a incorporar o discurso oficial dela e mais se enrijecem em suas funções de mando. "O Seminário é uma máquina de moer padres" - comentou o diretor espiritual, numa conversa informal. Ora, observamos que essa "máquina kafkiana" mói todos: padres, formadores e seminaristas.

VIGILÂNCIA E PUNIÇÃO NO SEMINÁRIO CATÓLICO

O Seminário Católico é um estabelecimento que visa à formação de sacerdotes, de padres para a manutenção dos quadros hierárquicos da Igreja Católica, encarregados do serviço pastoral, profético e sacramental à comunidade católica. Em seus estatutos e regimentos, este estabelecimento oferece uma formação que se divide em seis campos: a vida comunitária, a dimensão humano-afetiva, a formação espiritual, a dimensão intelectual, a formação pastoral e a dimensão vocacional. Este é o projeto institucional oficial do Seminário (CNBB, 1995).

Mas, estudando o Seminário Católico, detectamos uma série de procedimentos utilizados pelo estabelecimento na formação dos candidatos ao sacerdócio. A vida comunitária implica a reclusão no claustro do Seminário e, aparentemente, o próprio estabelecimento é considerado um instrumento formativo em si mesmo, com monitoração das saídas e ausências; considera-se que viver na instituição forma o seminarista. A convivência é tensa, caracterizada pelos diversos fenômenos típicos do enclaustramento totalitário (Goffman, 1987; Foucault, 1999b).

Os relatórios semestrais de avaliação do processo vocacional de cada seminarista são percebidos como um instrumento de controle nas mãos dos formadores. O relatório confeccionado pelo reitor, juntamente com os demais membros da equipe dirigente, é um poderoso e efetivo instrumento da tecnologia microfísica que concentra os três elementos básicos que constituem o poder disciplinar: é um amálgama da vigilância escalonada e hierárquica, da sanção normalizadora e do exame. Seus efeitos visam à normatização e à uniformização disciplinar do seminarista enquanto um eu ideal.

Para confeccionar tal relatório, a equipe dirigente utiliza-se básica e principalmente da observação do comportamento e da conduta visível do seminarista. Estão previstas entrevistas-interrogatórios semestrais, raros e escassos encontros formais entre formadores e seminaristas, nos quais os primeiros exigem transparência e abertura dos formandos. Os seminaristas podem conhecer ou não o conteúdo do relatório a seu respeito. Isso não é um direito que possam exigir, mas é uma concessão generosa por parte da equipe dirigente, quando ocorre.

Os bispos, de posse dos relatórios, entrevistam, interrogam e admoestam os respectivos seminaristas quanto ao seu desempenho no processo formativo. O boletim de notas escolares também é conferido e utilizado como parâmetro de avaliação. Como são os bispos que pagam a formação recebida gratuitamente pelos seminaristas, desejam ver seus investimentos bem aproveitados.

A equipe de formadores desempenha claramente o papel de interditor/promotor dos seminaristas no processo formativo. Um bom relatório é condição indispensável para a permanência na instituição e para o prosseguimento nas diversas e graduadas etapas da formação, rumo ao sacerdócio.

Podemos, portanto, considerar o Seminário Católico como uma instituição tipicamente disciplinar, cujo principal mecanismo e operador microfísico é o relatório, instrumento de efeitos ambíguos, parâmetro de normalidade, "vocacionalidade" e de produção dos duplos "anormais" da figura do seminarista: o jovem assexuado reprimido, o homossexual, o beato perverso. Os demais "complementos" formativos de ordem pedagógica e psicológica acabam funcionando como uma cobertura que se sobrepõe a esta tecnologia disciplinar, produzindo efeitos pouco consistentes no cotidiano institucional.

Os seminaristas permanecem em contato com seus colegas e formadores, expostos a uma observação constante, o que Goffman (1987) denomina como exposições contaminadoras físicas, sociais e psicológicas. O "circuito", técnica de vigilância, promove a interligação de todas as esferas da vida do seminarista no contexto institucional, monitorando-as e avaliando a "vocação autêntica" do candidato por meio de sua conduta.

A fofoca, expressão verbal da agressividade no cenário institucional, produz comportamentos corretos, participação responsável nas atividades, cumprimento pontual das tarefas e deveres. Os próprios grupos diocesanos elegem um seminarista como coordenador, que assume o posto de um autêntico "reitorzinho", reproduzindo as mesmas relações autoritárias com seus pares, subordinados que se deixam governar, obedientes. O coordenador coloca indivíduos na berlinda nas reuniões quinzenais do grupo diocesano, chama seus membros à ordem, corrige-os em público, cobra explicações e critica comportamentos individuais que pareçam inadequados e prejudiciais para a boa imagem do grupo. Por isso tais reuniões são desagradáveis, segundo os seminaristas (Benelli e Costa-Rosa, 2002).

Trata-se assim de uma sociedade transparente, visível em cada um de seus componentes, em que "cada um, do lugar que ocupa, possa ver o conjunto (...) que os olhares não encontrem mais obstáculos, que a opinião reine, a de cada um sobre cada um (...) cada camarada torna-se um vigia" (Foucault, 1999c, p. 215).

Se as pessoas são vistas por um tipo de "olhar piramidal", imediato, coletivo e anônimo, temos aí a efetuação de um poder que se exerce simplesmente porque as coisas serão sabidas, descobertas. O Seminário é descrito por seus habitantes como "bastidores" e "caixa de ressonância" da realidade eclesial. O olhar vigilante produz a interiorização, sem utilizar violências físicas, coações materiais. "Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo" (Foucault, 1999c, p 218). O Seminário, portanto, se erige como um "aparelho de vigiar" (Foucault, 1999b, p. 145).

Notamos uma espécie de má-fé, de desconfiança tácita e recíproca entre os seminaristas, entre estes e a equipe de formadores, entre esta e os bispos responsáveis pelo estabelecimento, e vice-versa, nesses mesmos níveis. Parece que o Seminário exemplifica bem a constituição "de um aparelho de desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto. A perfeição da vigilância é uma soma de malevolências" (Foucault, 1999c, p 221).

O Seminário é também um estabelecimento que, ao impor a lei do celibato compulsório aos candidatos ao sacerdócio, utiliza mecanismos aparentemente repressivos para controlar a sexualidade dos seminaristas, mas o que realmente faz é incitá-la, acaba por fomentá-la ao proibi-la (Foucault, 1982). Ao encerrar os seminaristas como um grupo monossexuado no claustro totalitário, acaba por vê-la emergir perversa e polimorfa. Sobre a "formação humano-afetiva" (CNBB, 1995), denominação assepsiada da sexualidade no jargão eclesiástico, pouco se fala. Sobre sexo, há um enorme silêncio oficial. Educação para o celibato? Há apenas balbucios ou enormes lacunas no discurso. Porém, se sobre isso não se fala, "isso" fala, numa intensificação dos afetos e dos corpos, num intenso erotismo que, passando pelo flerte, paquera, se configura eventualmente em relacionamentos, em "casos", em prováveis namoros, na formação de casais apaixonados, em amores secretos, nem sempre discretos, platônicos ou intensamente carnais. Assim sendo, dentro dos muros do Seminário Católico, sob o interdito do celibato compulsório, encontramos o frescor do desejo e uma sexualidade fervilhante. Parece que a vida no claustro tende a produzir uma exacerbação, intensificação e passagens ao ato das possibilidades neuróticas e perversas dos jovens vocacionados.

O Seminário é atravessado pelo poder disciplinar que predomina na sociedade moderna, encarnado no estabelecimento por meio de técnicas, procedimentos, estratégias, tecnologias produtivas que visam ao controle, adestramento e modelação dos corpos que ali são enclausurados. Não se trata de reprimi-los nem de pura e simplesmente mutilá-los, mas de agir sobre eles, produzindo sujeitos (Foucault, 1999b).

CONCLUSÕES

O Seminário Católico, pesquisado desde a perspectiva de Goffman e Foucault, pode ser pensado como uma instituição típica das sociedades disciplinares. Sua técnica básica é o confinamento e seu modo de funcionamento se baseia na lógica do Panopticon (Foucault, 1984a, 1999b, 1999c): visibilidade, vigilância hierárquica, exame, sanção normalizadora.

Os processos de subjetivação que se produzem na instituição engendram sujeitos que procuram escapar aos saberes constituídos (teorias sobre a formação eclesiástica e pedagógica que produziram o objeto "seminarista") e aos poderes dominantes (práticas individualizantes, submetedoras, normatizantes). Os sujeitos que dali emergem parecem possuir uma "espontaneidade rebelde" (Deleuze, 1992, p. 217), são novos tipos de acontecimentos, evanescentes em sua desterritorialização: corpos, carne sem nome, sem sexo específico, desejo em uma materialidade brutal, intensidades e instâncias que não se submetem à moral, aos deveres, ao poder, ao saber, distanciando-se e diferindo do que já deixaram de ser.

O Seminário funciona como uma máquina para produzir uma "identidade sacerdotal" nos seminaristas, conforme se pode ler nos documentos oficiais o sentido dos enunciados: "plasmar", "formar", "modelar", "inculcar". Mas isso não cola, dizem os seminaristas, que resistem ao processo de sobrecodificação, de modelagem. Eles são espertos, capazes mesmo de nos ensinar que a questão identitária é apenas um jogo. Eles jogam, mas não colam no modelo. Talvez seja o modelo mesmo que não cole em sujeitos pós-modernos.

A equipe dirigente se coloca no papel de interditor e vigia dos seminaristas; sente o peso e o desgaste de administrar a instituição e reclama dos seminaristas, considerando-os eternos insatisfeitos, melindrosos, ingratos, sempre fazendo pressão e desafiando os formadores de modo mais ou menos velado. Reclama que os seminaristas são demasiado problemáticos, indóceis e se escondem, vivem no anonimato e distantes dos formadores. Percebe que há um clima pesado na instituição, ocultado por uma fachada de bem-estar e tranqüilidade. Detecta que algo não funciona como devia no Seminário, sobretudo porque os padres novos que ali se formaram têm apresentado problemas. Ela vê a instituição como algo que deve ser aperfeiçoado por meio de uma luta que conquiste melhores condições de formação para os seminaristas.

O processo formativo no Seminário pesquisado busca normatizar os comportamentos, pensamentos e sentimentos dos seminaristas. A relação formativa entre a equipe dirigente e os seminaristas internados se apresenta plena de contradições. Por um lado, há um discurso que proclama a participação, a iniciativa, a "liberdade com responsabilidade", conjugadas com um chamado para que o seminarista assuma a tarefa formativa como uma responsabilidade pessoal no estabelecimento. Ao mesmo tempo, o seminarista se sente pressionado a se conformar com as normas, deve aderir e formar consenso ao redor do projeto eclesiástico proposto pela organização. Detectamos o funcionamento de controles autoritários, explícitos e implícitos no contexto institucional, além do controle exercido pelos pares. O ideal visado parece ser a internalização do controle: o autocontrole.

O Seminário, funcionando a partir da lógica das instituições totalitárias, despoja o indivíduo de sua autonomia, responsabilidade, capacidade de reflexão crítica, procurando transformá-lo em massa dócil, que pode ser moldada, obediente e submissa. Como opera por subtração, retira o vocacionado da vida civil corrente para torná-lo um "seminarista", personagem habitante de um mundo clerical. É preciso examinar constantemente o seminarista, que é considerado tacitamente como um transgressor em potencial: vindo das camadas populares, das quais é arrancado, deve, no processo formativo institucional, socializar-se e identificar-se com o poder clerical dominante, alinhado com as forças hegemônicas sociais.

O seminarista é posicionado como o "súdito", aquele que deve obediência ao seu "Senhor", membro do clero, seu padre formador. Um dia, o seminarista será possivelmente ordenado padre, quando passará a ser "Senhor", investido de autoridade e dignidade. Por ora, no Seminário, ele é infantilizado e vive na contraditória situação de submissão e humilhação, sem poder questionar.

O jovem candidato ao sacerdócio não pertence à classe social dominante, seja ela clerical ou mundana, mas será levado a pactuar com ela. Suas condições reais de classe são mantidas no processo formativo: submissão, dependência, menoridade tutelada, marginalidade institucional que exige vigilância permanente. Oprimidos pelas suas condições de vida, tanto social quanto institucional no Seminário, tornam-se opressores nas relações fraternas com seus pares.

A passagem do "súdito" para o "Senhor", a partir da ordenação sacerdotal, parece uma conseqüência "natural" desse processo: oprimido/opressor, súdito/Senhor. É como uma carta de baralho: duas figuras invertidas que constituem apenas uma e mesma personagem.

Embora haja uma série de "brechas" que aparentemente suavizam o caráter totalitário do Seminário (a contínua possibilidade de deixar de ser seminarista, por uma decisão pessoal do jovem; as saídas para a cidade; as atividades pastorais fora da instituição; etc.), tendemos a pensar que tais aspectos apenas tornam a estratégia disciplinar mais difusa, invisível e capilar: onde quer que esteja, o seminarista é alvo de uma vigilância onipresente: dos pares, da comunidade mais ampla, etc., tal como discutimos acima, em sintonia com as análises de Benedetti (1999a, 1999b). Ao comentar a entrevista com o padre reitor, também afirmamos que a flexibilização pedagógica da "grande disciplina" parece mais um aperfeiçoamento da tecnologia disciplinar, apontando para a sofisticação de "sociedade de controle" (Deleuze, 1992).

Recebido para publicação em 15 de agosto de 2003 e aceito em 26 de setembro de 2003.

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    Este artigo é parte da pesquisa de mestrado: "Pescadores de Homens. A produção da subjetividade no contexto institucional de um Seminário Católico" que está sendo desenvolvida por Sílvio José Benelli, sob orientação do Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa, com financiamento da FAPESP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      26 Set 2003
    • Recebido
      15 Ago 2003
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