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A prática complexa do psicólogo clínico: cotidiano e cultura na atuação em circuito de rede institucional

The complex practice of clinical psychologist: the influence of everyday life and culture in therapeutic interventions involving community networks

Resumos

O objetivo principal deste artigo é elucidar aspectos teóricos básicos para uma compreensão da prática complexa do psicólogo clínico no contexto da reforma psiquiátrica, enfatizando a importância da cultura e do cotidiano. Essa prática implica uma interatividade colaborativa e continuada de caráter interdisciplinar e comunitário. Parte-se de um enfoque psicossocial que valoriza a dinâmica das redes sociais, a cooperação entre profissionais e desses com os usuários. Os aspectos discutidos são: experiência cultural; dinâmica entre oferta de serviço, demanda do usuário e dialógica relacional; sofrimento psíquico, cujo entendimento considera a visão de mundo e mitos culturais do usuário. Destacou-se que as regras informais e interpessoais tenderiam a influenciar o cotidiano do profissional, interferir nas decisões e nas mudanças institucionais. A dialógica relacional supõe uma ressignificação do sofrimento psíquico e da visão de mundo do usuário que passaria pela reinvenção dos mitos culturais excludentes referentes à loucura. Nas considerações finais, dá-se importância à desconstrução institucional como processo de inclusão social.

experiência cultural; inclusão social; psicólogo clínico; redes sociais


The main objective of this article is to clarify basic theoretical constructs about lhe complexity of clinical psychologist practice in the context of psychiatric reform, with an emphasis on lhe influence of everyday life and culture in therapeutic interventions involving community networks. This practice implies interdisciplinary collaboration and continuous interactions with lhe community. The psychosocial approach adopted highlights lhe dynamic of social networks and the cooperation between professionals and patients. The aspects discussed in this article are: cultural experience; the interactions involving mental health services, the demand of patients, and the dialogue in therapeutic relations; psychological suffering, whose understanding takes into account lhe patients' world vision and cultural myths. It was emphasized here that informal and interpersonal rules tend to influence lhe professionals' daily practice, and interfere with institutional decisions and changes. The dialogical communication in therapeutic interaction supposes patients' psychic suffering and world vision, which would require reinvention of cultural myths of social exclusion regarding madness. As final considerations, importance is given to de-institutionalization mental institutions as a process of social inclusion.

cultural assimilation; social inclusion; clinical psychology; social networks


ARTIGOS

A prática complexa do psicólogo clínico: cotidiano e cultura na atuação em circuito de rede institucional

The complex practice of clinical psychologist: the influence of everyday life and culture in therapeutic interventions involving community networks

Nilson Gomes Vieira Filho

Labclin, Departamento de Psicologia, Universidade Federal Pernambuco. Rua Acadêmico Hélio Ramos, s/n, Várzea, 50740-530, Recife, PE, Brasil. E-mail: <ngovi@uol.com.br>

RESUMO

O objetivo principal deste artigo é elucidar aspectos teóricos básicos para uma compreensão da prática complexa do psicólogo clínico no contexto da reforma psiquiátrica, enfatizando a importância da cultura e do cotidiano. Essa prática implica uma interatividade colaborativa e continuada de caráter interdisciplinar e comunitário. Parte-se de um enfoque psicossocial que valoriza a dinâmica das redes sociais, a cooperação entre profissionais e desses com os usuários. Os aspectos discutidos são: experiência cultural; dinâmica entre oferta de serviço, demanda do usuário e dialógica relacional; sofrimento psíquico, cujo entendimento considera a visão de mundo e mitos culturais do usuário. Destacou-se que as regras informais e interpessoais tenderiam a influenciar o cotidiano do profissional, interferir nas decisões e nas mudanças institucionais. A dialógica relacional supõe uma ressignificação do sofrimento psíquico e da visão de mundo do usuário que passaria pela reinvenção dos mitos culturais excludentes referentes à loucura. Nas considerações finais, dá-se importância à desconstrução institucional como processo de inclusão social.

Palavras-chave: experiência cultural; inclusão social; psicólogo clínico; redes sociais.

ABSTRACT

The main objective of this article is to clarify basic theoretical constructs about lhe complexity of clinical psychologist practice in the context of psychiatric reform, with an emphasis on lhe influence of everyday life and culture in therapeutic interventions involving community networks. This practice implies interdisciplinary collaboration and continuous interactions with lhe community. The psychosocial approach adopted highlights lhe dynamic of social networks and the cooperation between professionals and patients. The aspects discussed in this article are: cultural experience; the interactions involving mental health services, the demand of patients, and the dialogue in therapeutic relations; psychological suffering, whose understanding takes into account lhe patients' world vision and cultural myths. It was emphasized here that informal and interpersonal rules tend to influence lhe professionals' daily practice, and interfere with institutional decisions and changes. The dialogical communication in therapeutic interaction supposes patients' psychic suffering and world vision, which would require reinvention of cultural myths of social exclusion regarding madness. As final considerations, importance is given to de-institutionalization mental institutions as a process of social inclusion.

Key words: cultural assimilation; social inclusion; clinical psychology; social networks.

A desconstrução institucional do sistema hospitalocêntrico implica a descentralização dos serviços de saúde mental e a inclusão do "social" na pauta do cotidiano profissional, indicando modificações significativas no papel do psicólogo clínico. Questiona-se o modelo unidimensional da psicoterapia individual de consultório e propõe-se um outro modelo ligado à saúde coletiva, que supõe flexibilizações e diversificações nas intervenções clínicas (plantão, psicoterapia, visita domiciliar, rede social etc.) para poder atender a complexidade da demanda de cuidados à saúde do cliente. O psicólogo é então solicitado a trabalhar numa prática complexa, interdisciplinar, com recursos terapêuticos diversos, na qual as ações intra e interorganizacionais aparecem interligadas umas com as outras formando um circuito de rede institucional.

Para Gallio e Giannichedda (1982, p.253), essa noção de "circuito" possibilita uma leitura da forma como se organiza a prática em desinstitucionalização (Rotelli, de Leonnardi & Mauri, 1992) na medida em que permite perceber a modificação advinda da descons-trução da demanda do usuário, antes direcionada ao hospital psiquiátrico, e a construção/invenção de novas demandas e respostas instituídas de cuidados à saúde mental. Essas respostas rompem a inércia administrativa da "instituição total" (Basaglia & Ongaro Basaglia, 1980, Goffman, 1996), descentralizando, territorializando e diversificando as intervenções que tenderiam doravante a responder às necessidades vitais do sujeito que sofre.

Giannichedda (1983, p.81) considera que o "mal-estar" (individual e social) estaria na origem da construção dessa demanda de cuidados, que tem sua origem no contexto de vida do sujeito, aliada aos significados que lhe são atribuídos. Mas as formas históricas desse "mal-estar" aparecem através das intervenções institucionais que lhes atribui significados específicos, racionalizando o sofrimento em termos instituídos (sinais, sintomas etc.) e possibilitando ser ainda traduzido em termos de doença mental nos códigos da ideologia médica dominante ou, como previsto na desinstitucionalização, tende a restituir os seus significados, respeitando-os, valorizando seus conteúdos, reavivando. Conseqüentemente, o foco da leitura crítica do "circuito institucional" são as passagens institucionais do percurso do sujeito portador de uma demanda de cuidados à saúde mental, nas quais o "mal-estar" (individual) é traduzido em termos instituídos, dando-lhe significado específico. São esses processos microssociais que possibilitam visualizar as formas de seleção, aceitação, expulsão, reenvio dessa demanda nas diversas passagens institucionais, como permite também analisar os processo de construção/desconstrução dessa demanda dirigida anteriormente à organização manicomial.

Vieira Filho (1997) focaliza esses processos microssociais ao nível das intervenções clínicas, explicitando uma análise do circuito da resposta terapêutica institucional. Essa resposta ou modo de intervenção seria, sobretudo, influenciada pelo tipo de organização do serviço, seu contexto sócio-histórico e pela modalidade das relações de poder (p.ex.dialógica/anti-dialógica). Mas a circularidade da resposta à demanda do usuário se inscreve também num processo de desconstrução institucional, estando assim sujeito a contradições dialeticamente compreensíveis e nuanças culturais. Essas últimas aparecem mais claras em um estudo de caso (Vieira Filho, 2001), principalmente quando foi colocada em evidência a importância da ressignificação dos mitos da doença mental/loucura, das significações e representações da cura ou tratamento, da influência da religiosidade e da religião no processo terapêutico aqui no Brasil.

Dando continuidade a essas pesquisas, o objetivo deste artigo é elucidar pressupostos básicos para uma compreensão da prática complexa do psicólogo clínico, enfatizando os aspectos do cotidiano e da cultura na atuação desse profissional em circuito de rede institucional. Destacam-se neste artigo a noção de prática complexa e o lugar do cotidiano histórico (Heller, 1992), as redes de interações em uma sociedade relacional como a brasileira (Da Matta, 1991), os mitos culturais da loucura/exclusão social que já tinham sido lembrados por Ongaro Basaglia (1982) e os mitos familiares importantes nas intervenções em saúde mental (Gomes, 2000). Esses aspectos, entre outros, vieram reformular nossa perspectiva de análise anterior no sentido de possibilitar uma compreensão da prática de cuidados à saúde mental, em particular a do psicólogo clínico, mais voltada às contingências e vivências do sociocultural.

Considera-se esse enfoque de orientação psicossocial na medida em que as ações práticas do psicólogo clínico são compreendidas como situações processuais de rede de relações humanas e insti-tucionais, experienciadas e internalizadas em contextos socioculturais específicos, que possibilitam a construção de sentidos e tomadas de decisões. A questão da cooperação (Barus-Michel, Giust-Desprairies & Ridel, 1996, p.263) entre profissionais e entre esses e os usuários aparece como problemática central, sobretudo quando se considera o processo de desconstrução nas unidades sociais (por exemplo clínica-escola, CAPs), as quais tendem a uma prática complexa em circuito de rede institucional. Ressalta-se que os exemplos dados são oriundos de uma longa experiência de pesquisas clínicas do autor, cujos campos investigativos foram particularmente uma clínica-escola pública, um hospital psiquiátrico e serviços psicossociais.

Prática complexa e cotidiano

A prática na qual o psicólogo clínico está inserido, no âmbito da reforma psiquiátrica, é considerada complexa na medida em que se atua numa dinâmica, em rede profissional, mantendo uma interatividade colaborativa continuada, e se trabalha geralmente em equipe interdisciplinar e em serviço de caráter comunitário. A dinâmica dessa prática sócio-histórica está em movimento contínuo e sua "estabilidade" tende a aparecer como um arranjo relativamente provisório, tendo em vista a emergência de contradições, conflitos, colaborações, alianças, alternativas, bloqueios que devem ser trabalhados nas relações sociais cotidianas sujeitas a mudanças.

As possibilidades de transformações microrga-nizacionais e interventivas se processam no dia-a-dia, e estão relacionadas à cultura vivenciada pelos atores sociais e a um processo histórico determinado. Concorda-se com Heller (1992, p.20) quando afirma que "a vida quotidiana não está forada história, mas no centrodo acontecer histórico". Pode-se dizer que é no centro desse acontecer que a experiência quotidiana do profissional se desenvolve, lugar onde ele está inserido num coletivo instituído, participando das transformações sociais com seus sentimentos, paixões, decepções, idéias, intuições, sensibilidades, capacidades, ideologias, habilidades, com conhecimento e desconhecimento sobre essa situação, assim por diante.

A cotidianidade indica a irrepetibilidade da experiência cotidiana e a impossibilidade de instrumentá-la como experimento. Permite uma certa espontaneidade e apresenta uma heterogeneidade de aspectos e significados relacionados às atividades inseridas numa organização de trabalho hierárquica com contradições e conflitos, mas que possibilita uma certa regularidade e reprodução das ações do profissional. Convive-se com a rotina, ritmos e rituais formais e informais geralmente repetitivos que numa dinâmica complexa tendem a superar cristalizações e mecanismos de reificação ideológica. Essa dinâmica reconstrutiva "não é propriamente reprodutiva ou replicativa, ou apenas recorrente. Em seu processo de ser, a complexidade permanece a mesma, mudando sempre" (Demo 2002, p.17).

Processos conscientes e inconscientes estão em jogo nas decisões interventivas cotidianas, as quais apresentam um certo grau de incerteza e de risco que podem ser trabalhados na adoção de estratégias apreciadas "nas complexidades inerentes às próprias finalidades" (Morin, 2000, p.91) da ação terapêutica, na qual coexiste a particularidade e a generalidade, a escolha de alternativas, bem como as dificuldades de encontrá-las nas limitações da organização de saúde. Essas ações tendem a ser inventivas, permitindo a problematização continuada do saber e poder terapêutico numa dialógica comunicacional que respeita também a visão de mundo e contrapoder do usuário.

A cultura experienciada na prática cotidiana

Se no Brasil se vive numa "sociedade onde a relação desempenha um papel crítico na concepção e na dinâmica da ordem social" (Da Matta, 1991, p.71), entende-se por que essa capacidade comum de relacionar-se não é só com pessoas, grupos e partidos, mas também com políticas diferentes e tradições sociais diversas. Entretanto, "se o indivíduo ou cidadão não tem nenhuma ligação com a pessoa ou instituição de prestígio na sociedade, é tratado como um inferior" (Da Matta, 1991, p.84), o que entra em contradição com o ideário igualitário da cidadania. Então, uma prática profissional que enfatiza o papel da cidadania e da contratualidade terapêutica tende a sofrer o impacto das variações contextuais onde esta contradição de base não é sempre superada.

Na rotina cotidiana diz-se que se faz o que é possível dentro das dificuldades de trabalho existentes. Mas essa possibilidade é geralmente marcada pela relação, quando, por exemplo, o cliente procura a instituição por intermédio de suas relações interpessoais; quando o auxílio de um co-terapeuta depende mais do bom relacionamento com o terapeuta do que de encaminhamentos formais; quando a indicação de um outro terapeuta se faz mais por intermédio da confiança na relação com ele do que por abordagem terapêutica ou referência distrital; quando as interações entre amigos ou colegas profissionais são mais importantes no trabalho inter ou multiprofissional do que as obrigações instituídas; quando da falta de material (medicação, almofada, cadeira adequada etc) apela-se para o favor de um conhecido que possa apressar a chegada do mesmo.

Em serviços de plantão pode-se notar: presença de usuário de cidade interiorana que chega, às vezes, acompanhado por político local em tempo de eleição; recomendações verbais de alguma autoridade para que se atenda tais clientes e família; imposições da polícia para que certos clientes sejam atendidos prioritariamente; usuários que simulam estar "enlouquecidos" para conseguir ser levado gratuitamente pela polícia ao serviço de saúde mental pela falta de ambulância no serviço público e/ou também por falta de condições econômicas para pagamento do transporte.

Essas diversas conexões relacionais estão permeadas pela afetividade entre as pessoas, pelo "jeitinho", pelos conflitos sociais e de poder, mas também por teias de solidariedade entre o profissional e o cliente, entre o profissional e a comunidade.Tudo isso é muito freqüente em nossa realidade e vem indicar que as relações terapêuticas podem se apresentar também influenciadas por clientes indicados por fulano; pela simpatia do terapeuta com determinado grupo social ou religioso ao qual o cliente pertence; por trocas de considerações respeitosas entre terapeuta e família do paciente; por um pedido de outro psicólogo para que atenda um parente ou amigo, assim por diante.

Se de certa forma existe o risco de se atuar através de um modo paternalístico de atendimento, o desafio que se coloca para o profissional é tentar enfrentar esse risco não valorizando assim uma situação privilegiada, mas enfatizando a contratualidade terapêutica. O autoritarismo se reflete, muitas vezes, pelo "compadrismo" e pelo clientelismo historicamente sedimentado, os quais não se exorcizam por uma vontade profissional dialógica. Mas a consciência de sua presença cotidiana pode colaborar para se tentar driblá-los, contorná-los ou enfrentar esses conflitos para desconstruí-los e introduzir mediações mais democráticas.

No cotidiano diz-se também que "as instituições são as pessoas". Parece ser mais valorizada a rede de relações interpessoais e de prestígio na organização de trabalho que as normas escritas e instituídas. Muitos trabalhadores nem conhecem essas últimas, ou não querem conhecê-las, ou fazem de conta que elas não existem, ou as fazem existir na iminência ou emergência de um inimigo (do ditado popular "para os inimigos a Lei"); outros as conhecem para utilizá-las "quando preciso"; outros começam a conhecê-las quando sofrem algum tipo de problema institucional. Para alguns, essas normas são uma "chatice burocrática" e dizem que quando determinadas autoridades querem fazer uma coisa "passam mesmo por cima de todo mundo!"

O formal e o informal aparecem mais ou menos significativos segundo determinada situação e em relação a cada pessoa e/ou grupo no contexto da organização. Isso tem implicações no processo de mudança do papel do psicólogo. Se algumas normas antiquadas já foram modificadas (leis nacionais e estaduais de reforma psiquiátrica, portarias do Ministério da Saúde etc.), muitos psicólogos clínicos nem se preocupam em conhecê-las e continuam atuando de forma tradicional como se elas nem existissem; enquanto outros já estão trabalhando em sintonia com a reforma e já acham que essas normas ainda são limitadas aos avanços das novas práticas terapêuticas. O que se observa, muitas vezes, é que essas práticas começam a existir por iniciativa solidária dos próprios profissionais nos serviços psicossociais onde trabalham e nem sempre como implantação do planejamento político-administrativo.

As conexões instituídas que perpassam pelo prestígio estão, muitas vezes, ligadas ao "compadrismo" que engendra formas de relações de poder arbitrárias mescladas por simpatias e favores e que reforçam a estrutura corporativista da organização. Aí a oposição crítica pode ser vista como "encrenqueira" e antipática, que são formas sutis de excluir a pessoa ou grupo não conformista. E as práticas inovadoras são por vezes apreendidas nesse universo que as atrai à sua esfera de valorização hierárquica por prestígio. Por isso, não é necessariamente visto como incômodo o serviço psicossocial, porque pode atrair verbas, ser vitrine da modernidade e de avanço terapêutico.

Quanto ao usuário, às vezes, habituado a uma relação de opressão no trabalho, pode transferir esse modo de interação para a situação terapêutica e comportar-se como pessoa oprimida, solicitando sutilmente uma forma de atuação de tipo clientelista, gênero de situação que não é rara no serviço público. Essa situação pode provavelmente gerar modos ambíguos e paradoxais de relacionamento humano. Sugere-se então que o terapeuta adote estratégias que possam permitir ao usuário uma gradativa conscientização crítico-afetiva sobre esses processos opressivos para tentar superá-los.

O englobamento enquanto "operação lógica na qual um elemento é capaz de totalizar o outro em certas situações específicas" (Da Matta, 1991, p.19) aparece muitas vezes como uma modalidade de resolução de impasses institucionais, uma espécie de linguagem de conciliação na qual "todas as questões são tratadas debaixo de um prisma pessoal e 'caseiro', familiar, doméstico" (Da Matta, 1991, p.2). Daí certas frases: "fulano é como um irmão para mim e vamos conseguir uma vaga para atendê-lo"; "vamos resolver isso, e não diga isso com fulano... que ele é parente de sicrano que está financiando nosso projeto"; "fulano é meu amigo e não pode ficar prejudicado mesmo se sei que ele está errado". As novas práticas da atenção psicossocial que enfrentam contradições contextuais podem modificar esse tipo de atuação na medida em que insistem no papel social do cidadão e tentam encontrar alternativas concretas que incidam na desconstrução da reprodução institucional.

Oferta e demanda de cuidados à saúde mental

A prática complexa do psicólogo clínico se constrói no interior da oferta de serviço do sistema de saúde/saúde mental e em uma dinâmica específica entre o "dentro" e o "fora". O "dentro" se configura geralmente como grupo institucional, com estrutura hierárquica e de delegações de poder (administrativo, jurídico, terapêutico etc), constituído pela mediação do trabalho e cuja meta principal é atender uma determinada clientela na área de saúde/saúde mental. O "fora" remete às conexões diretas e indiretas que essa oferta tem com outras instituições e pessoas. Essa microunidade social apresenta uma "soberania relativa" no interior de uma rede de interdependência institucional.

A oferta cria, ao menos, duas demandas simultaneamente: a demanda da instituição (DI) incluída na gestão do pessoal e a demanda de cuidados à saúde do usuário (DCS). Essa última não pode ser entendida como simplesmente espontânea e "autônoma", pois além de se instituir numa oferta de serviço oficial é influenciada pelas informações e representações que circulam na sociedade. A DCS também não pode ser confundida com a comanda de atendimento, isto é, um atendimento solicitado e instrumentalizado por outrem em nome do usuário. A DCS é essencialmente entendida como solicitação de ajuda profissional e de busca de sentido da parte do usuário em referimento a sua experiência socioexistencial e de saúde. Essa experiência, nem sempre de sofrimento ou de doença, expressa uma visão de mundo impregnada de mitos culturais, sendo aqueles mitos judaico-cristãos hegemônicos em nosso contexto ocidental. Alguns deles, de origem bíblica (por exemplo a expulsão do paraíso, Caim e Abel etc.), aparecem ligados a processos de exclusão social. Daí a necessidade de questioná-los e repensá-los quando se reflexiona sobre a inclusão social.

Ongaro Basaglia (1982) chama a atenção para os mitos judaico-cristãos dominantes no ocidente e que fundamentam uma origem marcada pela transgressão e exclusão social, isto é, "o pecado punido com a expulsão do paraíso terrestre e com a exclusão da inocência e da felicidade. Com essa exclusão se iniciou a vida dos homens, mas também a morte, que se apresenta (...) sob a forma de um assassinato: Caim mata Abel porque não teve a benevolência de Deus" (Ongaro Basaglia, 1982, p.71). Essa configuração simbólica baseada na exclusão do outro percorreria a história possibilitando a construção de um tipo de identidade (pessoal e grupal) que tende a excluir o diferente. Acrescenta a autora que "no seu desenvolvimento histórico, esse processo pode então ser entendido como um instrumento essencial da dominação do homem pelo homem, portanto do poder" (Ongaro Basaglia, 1982, p.72).

No âmbito da circularidade da resposta terapêutica à demanda de cuidados à saúde/saúde mental, o psicólogo clínico valoriza a subjetividade, as necessidades vitais do cliente e processos de inclusão social. Tenta não reproduzir mecanismos reificantes na interpretação dessa demanda, como também tenta evitar preconceitos, estigmatizações e superposições de conteúdos da fala do usuário. Esforça-se em apreender a complexidade das configurações fenomênicas das situações socioculturais e de saúde, levando em conta a dialética das polaridades emergentes relativas à ordem e à desordem, ao caos e ao acaso, ao simplificado e ao complexo, assim por diante.

Sendo assim, as interpretações nas ações quotidianas estariam marcadas por retroações entre as partes e o todo, entre as estratégias de ação global e pontual, entre a petrificação das representações institucionais e a sua possibilidade de superação etc. Prática que requer, ao mesmo tempo, que o psicólogo clínico mantenha uma postura dialógica que implica disponibilidade, comunicação horizontal, colaborativa e solidária com o usuário e colegas de trabalho (Vieira Filho, 2003).

Sofrimento psíquico e dialógica relacional

No cotidiano, a decodificação da demanda de cuidados à saúde do usuário se constrói por intermédio do diálogo terapêutico, inscrito numa relação de poder em cooperação, como também pelo saber interdisciplinar e estilo dialógico do profissional psicólogo clínico. Nessa situação de deciframento, a experiência de sofrimento psíquico nem pode ser colocada entre parênteses nem superposta por uma interpretação unilateral de transtorno mental. O sofrimento psíquico também não pode ser objeto de "foquismo", aparece geralmente em torno de alguma(s) temática(s)significativa(s)referentes à problemática socioexistencial e de saúde do cliente. E, o transtorno mental, nessa perspectiva interdisciplinar, mostra-se como uma das informações possíveis a ser relativizada na discussão interpretativa de um caso clínico. Mas, deve-se estar atento a toda possibilidade de cristalização dos discursos e significantes lingüísticos, pois esse mecanismo tende a induzir tanto uma identidade de sofredor quanto de doente mental e com uma conotação excludente.

A língua portuguesa define o sofrimento como "ato ou efeito de sofrer". Sofrer (lat. suferere): tolerar, suportar, agüentar, ser atormentado, afligido por (Aurélio, 1975). Se esse termo é polissêmico, a língua vai impor alguns limites estruturais ligados à cultura brasileira e é possível que algum sincretismo sutil exista com o ioruba e o tupi-guarani. Em todo caso, a influência hegemônica da raiz latina se faz sentir, pois vários usuários falam do sofrimento como algo que "pesa", que "carregam" nas costas, que "suportam" bem ou mal, que não "agüentam mais", referem-se ao mal-estar, aflição, agonia, tormento e que, algumas vezes, dizem ter paciência, resignação. Não se confunde sofrimento com doença. Doença (lat. Dolentia): "perturbação da saúde; moléstia, mal, enfermidade" (Aurélio, 1975). O doente sofre de dores na coluna, na cabeça, nos nervos... Fulano de tanto sofrer de aperreio terminou adoecendo... A doença de fulano causa-lhe muito sofrimento. Assim, o sofrimento pode ser entendido como estando na origem da doença, ser causado por ela ou fazer parcialmente parte dela.

Diz-se sofrimento psíquico porque se valoriza a escuta da subjetividade, historicidade e afetividade do outro - usuário em instituição de saúde/saúde mental. Mas entendendo também que todo sofrimento tem sua parte de corporalidade mesmo quando não tem uma origem orgânica atribuída por aquele que sofre. Na dimensão psicossocial (Barus-Michel, 2001), o sofrimento supõe uma situação de conflito relacional (interiorizado) e de frustração das necessidades vitais do sofredor que se mostra no "aqui e agora" não dialetizável ou com dificuldade de superar-se. Refere-se geralmente a situações de exclusão, não-reconheci-mento social, rejeição, humilhação, opressão, injustiça, assim por diante. A dialetização pode advir em um processo dialógico-terapêutico no qual é possível trabalhar a desconstrução gradativa de mecanismos geralmente opressivos que concorrem às restrições da liberdade do outro, sobretudo aquele outro-cliente que já foi internado em instituições totais psiquiátricas.

Alguns relatos clínicos de nossos usuários, ex-internados em hospitais psiquiátricos, colocam em evidência o aprendizado de situações antidialógicas e de violência que tiveram nesse ambiente. Pode-se citar: a representação de uma situação de "terceira guerra mundial" entre o usuário e a organização hospitalar totalitária; a agressividade introjetada e não superada na convivência com a hierarquia institucional; a representação de um lugar (hospital) a ser evitado pelo desprazer e vergonha que causa.

Observou-se também que havia diferença entre o comportamento manifesto do usuário na estrutura manicomial e em serviço psicossocial de uma clínica-escola pública. Exemplifica-se com o caso de um dos nossos usuários, em "crise psicótica", que se comportou sem apresentar comportamento agressivo ou perturbador ao funcionamento da organização universitária. Mas a reação desse usuário foi inversa durante sua primeira consulta psiquiátrica ambulatorial recomendada por nós. O psiquiatra revelou-nos que se não tivesse sido advertido sobre o atendimento terapêutico psicossocial que realizava conosco, teria internado o paciente no hospital psiquiátrico. O usuário explicou-nos que, ao chegar na porta do ambulatório, viu o hospital psiquiátrico ao lado, então se desesperou: pensava que estava realmente louco e que iriam interná-lo. Entende-se então que a simbólica institucional hospitalar induziu um sofrimento desesperador e de exclusão social iminente que quase prejudicou o processo terapêutico do usuário.

Na relação de alteridade distingue-se, ao menos, a inclusão do outro como diferente ou a exclusão do outro pela diferença. Essa exclusão interiorizada contribuiria tanto para a desorganização psíquica da pessoa aflita quanto para pressioná-la, de algum modo, no sentido denormalizá-la seguindo certos padrões socioculturais dominantes na sociedade onde vive. Ao contrário, a perspectiva de inclusão social questiona esse processo de normalização e valoriza a cultura vivenciada do usuário, seu contrapoder e auto-estima. Portanto, a dialógica terapêutica enfatizando essa inserção positiva lhe daria possibilidade de ressignificação, ressimbolização, reordenamento, reorganização gradativa e afetiva da sua situação de sofrimento psíquico.

Sofrimento psíquico, visão de mundo e mitos culturais

O sofrimento psíquico está intimamente relacionado com a visão de mundo do usuário e com sua rede intersubjetiva e de relações de poder experienciadas na realidade sociocultural de referência. Essa cosmovisão é também influenciada pelas mitologias culturais interiorizadas (Eliade, 1963; Gomes, 2000) e pode variar durante o ciclo de vida do usuário e/ou família (Cerveny & Berthoud, 2002). A possibilidade de reinterpretação e/ou reinvenção desses mitos por ele parece ligada ao desenvolvimento de sua capacidade crítico-afetiva e de suas buscas existenciais na procura de alternativas à situação de sofrimento.

Em nossa sociedade ocidentalizada e multiétnica, os mitos culturais podem aparecer sincretizados ou não, porém com conotações específicas e em referimento a pessoas ou grupos sociais localizados. Assim, na cosmovisão do ateu, sofrer de feitiço pode ser de difícil compreensão visto que implica a aceitação de conteúdos religiosos específicos que vêm de encontro a seu modo de perceber a realidade circundante e a modernidade de seu posicionamento. Para o umbandista, ao contrário, a sua visão de mundo permite entender o feitiço como "trabalho feito" (para fazer mal a outrem), daí ser lógico e coerente procurar alternativas para "desmanchá-lo". O espírita Kadercista provavelmente desconsidere essa última explicação, mas entenda o feitiço como uma "obsessão mandada" por outrem, a qual sinaliza a busca de uma cura religiosa de "desobsessão de espírito". Há também uma visão de mundo de caráter mais sincrético e que pode possibilitar à pessoa que sofre procurar uma cura religiosa para o feitiço sem mostrar rigidez para um ou outro tipo de crença, valorizando mais o religioso disponível que a possa ajudar a aliviar sua aflição.

O mito da loucura é marcado pela cultura da exclusão implícita na ideologia da desrazão. Loucura: estado ou condição de louco. Louco: que perdeu a razão ... que está fora de si; contrário a razão ou ao bom senso; insensato (Aurélio, 1975). E loucura também rima com psicose, delírio, alienação mental e periculosidade social. A institucionalização da loucura, como categoria incluída na esfera de competência da medicina, vai dar lugar ao século dos manicômios (XIX), isolando e aprisionando o "louco". Todas essas concepções e seus mitos estão sendo seriamente questionados na tentativa de reinventá-los nesse século (XXI) que se deseja sem manicômios.

Na prática complexa cotidiana, o mito da loucura não costuma ser geralmente questionado pelo usuário e pela sua família (Vieira Filho, 2001), contribuindo, muitas vezes, para aumentar o sofrimento psíquico. De fato, o mito cultural aparece mais como crença compartilhada numa rede social e transmitida de geração a geração. Sem geralmente passar por transformações interpretativas significativas, a narrativa mítica pode se cristalizar no núcleo familiar e/ou grupo social de referência contribuindo assim para o aparecimento de conflitos adialéticos que possibilitam a construção e/ou reforço do sofrimento psíquico do usuário. Nesse sentido, a noção de periculosidade contida geralmente na narrativa do mito da loucura tende a reforçar a ideologia da desrazão, induzindo medo, imprevisibilidade, perigo e suspeita de agressividade entre as pessoas que são codificadas como "loucas". As ações interventivas na desconstrução manicomial passam também por um profundo questionamento desse mito excludente da loucura, daí a necessidade de refletir sobre ele e reinventá-lo com uma orientação includente.

Conclusão

A elucidação de alguns pressupostos básicos para a compreensão da prática complexa do psicólogo clínico no contexto da desinstitucionalização enfatizou, de um lado, a importância do cotidiano e da cultura em processo de mudança sócio-histórica; e, de outro, que essa compreensão parta da prática institucional onde se atua, em um vai-e-vem dialético, possibilitando ao profissional estar sempre ancorado na realidade sociocultural de referência. O enfoque psicossocial valorizou a dinâmica das redes sociais e profissionais, bem como destacou dificuldades da prática em circuito de rede institucional.

Nesse sentido, se mostrou que as ações profissionais perpassam pela cultura relacional brasileira onde as redes interpessoais informais parecem ser mais atuantes que a defesa das normas instituídas, marcando assim sua influência na dinâmica cotidiana, com implicações nas mudanças institucionais e na própria política local de saúde (mental). E que nas intervenções é geralmente necessário desconstruir o corporativismo que separa um setor ou mesmo uma instituição de outra, o que dificulta uma prática solidária em rede de serviço.

Os mitos culturais, significações e representações da loucura/doença mental aparecem arraigados à cultura manicomial e à ideologia da periculosidade, da contenção comportamental, que se refletem nas interpretações cotidianas e que necessitam de uma decodificação do sofrimento psíquico, em reinvenção, para se tentar não reproduzir processos de exclusão social. Conseqüentemente, a ressignificação dessa experiência de mal-estar do usuário possibilitaria um reordenamento de sua visão de mundo, suas aspirações pessoais e sociais, suas necessidades vitais e de suas estratégias cotidianas em busca de uma melhor qualidade de vida.

Recebido para publicação 5 de outubro de 2004 e aceito em 5 de maio de 2005.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2005

Histórico

  • Aceito
    05 Maio 2005
  • Recebido
    05 Out 2004
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