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Homicídio seguido de suicídio na cidade de Porto Alegre

Homicide followed by suicide in Porto Alegre city, Brazil

Resumos

O objetivo deste trabalho foi caracterizar o perfil dos indivíduos que cometeram homicídio, seguido de suicídio em Porto Alegre num período de oito anos. As informações sobre esse evento foram localizadas em matérias jornalísticas, inquéritos policiais e entrevistas com informantes. Nos 14 casos localizados, o evento parece ser um fenômeno de gênero, já que os homens são os assassinos/suicidas, e mulheres e crianças, as vitimas. O método mais utilizado para o homicídio e o suicídio foi a arma de fogo. A casa da vítima foi o local em que o homicídio e o suicídio foram efetuados, na maior parte das vezes, no período da manhã. Em cinco casos, os precipitadores do evento foram ciúme, ameaça ou término da relação amorosa. O agressor era um sujeito que tinha problemas com seu grupo de apoio primário, com indicativos de impulsividade, agressividade, depressão, dependência de álcool e antecedentes criminais, principalmente, por violência contra a família.

homicídio; suicídio; homicídio seguido de suicídio


This paper intended to characterize the profile of individuals who have committed homicide followed by suicide in Porto Alegre, during an 8-year period. The information about the events were gotten by newspaper articles and police inquiries researches, and through informants' interviews. In the 14 cases located, the event seems to be a gender-related phenomenon, as men were the killers, while women and children were the victims. The most used method for both the homicide and suicide was gunshot. The victim's home was the place where most homicides and suicides were committed, usually during the morning. In five cases, the event triggers were jealousy, threats or end of a relationship. The aggressor had problems in his primary support group, signs of impulsiveness , aggressiveness, alcohol abuse and criminal records, especially due to violence against his own family.

homicide; suicide; homicide following suicide


ARTIGOS

Homicídio seguido de suicídio na cidade de Porto Alegre1 1 Artigo elaborado a partir da dissertação de S.D. SÁ, intitulada "Homicídio seguido de suicídio na cidade de Porto Alegre" . Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2005.

Homicide followed by suicide in Porto Alegre city, Brazil

Samantha Dubugras Sá; Blanca Susana Guevara Werlang

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. Ipiranga, n. 6681, Prédio 11, 9º andar, 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: B.S.G. WERLANG. E-mail: <bwerlang@pucrs.br>

RESUMO

O objetivo deste trabalho foi caracterizar o perfil dos indivíduos que cometeram homicídio, seguido de suicídio em Porto Alegre num período de oito anos. As informações sobre esse evento foram localizadas em matérias jornalísticas, inquéritos policiais e entrevistas com informantes. Nos 14 casos localizados, o evento parece ser um fenômeno de gênero, já que os homens são os assassinos/suicidas, e mulheres e crianças, as vitimas. O método mais utilizado para o homicídio e o suicídio foi a arma de fogo. A casa da vítima foi o local em que o homicídio e o suicídio foram efetuados, na maior parte das vezes, no período da manhã. Em cinco casos, os precipitadores do evento foram ciúme, ameaça ou término da relação amorosa. O agressor era um sujeito que tinha problemas com seu grupo de apoio primário, com indicativos de impulsividade, agressividade, depressão, dependência de álcool e antecedentes criminais, principalmente, por violência contra a família.

Unitermos: homicídio; suicídio; homicídio seguido de suicídio.

ABSTRACT

This paper intended to characterize the profile of individuals who have committed homicide followed by suicide in Porto Alegre, during an 8-year period. The information about the events were gotten by newspaper articles and police inquiries researches, and through informants' interviews. In the 14 cases located, the event seems to be a gender-related phenomenon, as men were the killers, while women and children were the victims. The most used method for both the homicide and suicide was gunshot. The victim's home was the place where most homicides and suicides were committed, usually during the morning. In five cases, the event triggers were jealousy, threats or end of a relationship. The aggressor had problems in his primary support group, signs of impulsiveness , aggressiveness, alcohol abuse and criminal records, especially due to violence against his own family.

Uniterms: homicide; suicide; homicide following suicide.

O homicídio seguido de suicídio é um tipo impactante de crime que envolve uma situação na qual uma pessoa tira a vida de outra(s) e, em um período de no máximo 24 horas, se suicida. Na literatura internacional isto também é denominado de "morte diádica", "suicídio estendido" ou ainda "suicídio ampliado". Alguns estudos têm sido realizados sobre essa temática, principalmente nos Estados Unidos e Europa. No Brasil, até onde nos foi dado pesquisar, nenhum trabalho foi publicado a esse respeito.

O comportamento suicida pode ser definido como todo ato pelo qual um indivíduo causa lesão a si mesmo, qualquer que seja o grau de intenção letal e de consciência do verdadeiro motivo desse ato. Para Litman (1987, 1988) a intenção é a chave psicológica para compreender o suicídio e existem estágios no desenvolvimento da intenção, que se inicia, na maior parte das vezes, com a idéia de morte, que se desloca para o desenvolvimento de um plano ou projeto, que passa a ser implementado por ensaios realísticos ou imaginários, culminando em uma ação autodestrutiva exitosa.

Essa ação letal fatal, segundo Shneidman (1999, 2001), deve ser considerada como um ato intencional individual, em que uma pessoa se sente atormentada por uma dor psicológica insuportável que lhe sugere a autodestruição como a melhor solução. De fato, com o ato suicida, o sujeito demonstra ter um propósito, um objetivo em mente, consistente em por fim a uma situação de vida que lhe causa sofrimento.

Menninger (1970) considera que, pelo menos três desejos poderiam contribuir para o ato suicida: o desejo de morrer, o desejo de matar e o desejo de ser morto. O autor destaca que o desejo de matar pode estar dirigido não só para um objeto interno, traduzido no extermínio da própria vida, como também para um objeto externo, já que a experiência clínica reiteradamente confirma que o suicídio freqüentemente se destina a destruir a vida dos sobreviventes (entes queridos).

Esse desejo de matar parte da idéia de que todo suicídio "é antes de tudo um homicídio" (p.36), relembrando Menninger que, na língua alemã, o significado literal da palavra é "homicídio de si próprio". Mas, se há "no suicídio um eu que se submete ao homicídio e parece desejoso de fazê-lo" (p.36), deve haver uma explicação para isso. Para o autor, o desejo de matar seria resultante da destrutividade primária: sob certas condições, os impulsos destrutivos, investidos em um ou mais objetos, se desprendem deles, permitindo que o impulso homicida, libertado, se aplique "sobre a pessoa de sua origem, como objeto substituto, realizando, assim, um homicídio deslocado" (p.57).

O homicídio, a sua vez, é como refere Albergaria (1988), um crime cometido por agressividade e por reação primitiva, isto é, como expressão de um estado crônico de tensão ou excitação, ou como vingança, ódio acumulado. Esse autor considera a agressão no comportamento homicida a partir do agente agressor, para depois examinar o agente agredido e, finalmente, obter uma visão, a partir de um observador, ou de um terceiro.

Assim é possível encontrar três representações diferentes para um mesmo evento. Uma, do ponto de vista do agressor, quando se deve considerar a intencionalidade dolosa do ato, ou seja, a tentativa intencional de transmitir estímulos nocivos a outrem. Outra, a partir da vítima, considerado o seu sentimento de estar sendo agredida e, finalmente, a visão do observador, cujos sentimentos críticos são perceptíveis acerca da possibilidade de ter havido nocividade no ato e, também, a intencionalidade (subjetiva) do agressor, que tem suas características próprias.

No homicídio seguido de suicídio a ação de matar e a intenção de morrer se concretizam pela conjunção de vários elementos, consubstanciando-se em uma categoria, certamente carregada de desejos e tendências predominantemente agressivos, acompanhados das circunstâncias que envolvem ou contextualizam o próprio evento.

Vários estudos internacionais (Adinkrah, 2003; Cooper & Eaves, 1996; Felthous & Hempel, 1995; Felthous et al., 2001; Morton, Runyan, Moracco & Butts, 1998; Soares, 2002) relatam que o homicídio seguido de suicídio ocorre, principalmente, entre pessoas relacionadas intimamente, dentro de suas próprias casas, precipitado por discórdias familiares. As vítimas costumam ser mulheres, com idade inferior à do agressor, e o método mais utilizado para o homicídio e para o suicídio é a arma de fogo. A maioria dos homicidas é marido, ex-marido, namorado ou ex-namorado da vítima.

Estudos que compararam pessoas que cometiam homicídio com outras que somente se suicidavam (Cooper & Eaves, 1996; Fishbain, Rao & Aldrich, 1985) concluíram que o perpetrador de homicídio seguido de suicídio possui características mais assemelhadas àqueles que cometem somente suicídio do que dos que matam sem atentar contra a própria vida. O homicida-suicida tem sido descrito como sendo do sexo masculino, deprimido, sem trabalho fixo e com problemas de relacionamento conjugal.

Assim, Berman (1996) lembra que no homicídio seguido de suicídio é necessário haver motivação para o evento, além da presença de hostilidade, assim como um nível de dominação e dependência entre agressor e vítima. Esse autor considera ser possível distinguir três tipos de homicídio seguido de suicídio: 1) homicídios nos quais o suicídio não estava planejado, ocorrendo por sentimento de remorso; 2) pactos suicidas, nos quais agressor e vítima realizam uma combinação de homicídio seguido da morte do agressor, e 3) homicídio seguido de suicídio como unidade, em que tanto o homicídio quanto o suicídio são planejados e executados pelo agressor.

Tomando como referência dados epidemiológicos dos comportamentos violentos, a incidência de homicídio seguido de suicídio pode ser considerada baixa. Em razão disto o homicídio seguido de suicídio não tem recebido muita atenção dos pesquisadores, que se preocupam mais com um ou outro evento separadamente, negligenciado o exame das duas ocorrências. Todavia o impacto desse evento na família e na comunidade é substancial. Costuma envolver duas ou mais vítimas, resultando, muitas vezes, na morte de mais de um membro da mesma família, provocando traumas psicológicos e promovendo o aumento de transtornos intrafamiliares (Lecomte & Fornes, 1998; Morton et al., 1998; Stack, 1997).

No Brasil, não há estatísticas sobre homicídio seguido de suicídio, e em termos de inquéritos policiais não existe um código específico para locar esse evento, ficando os dados perdidos entre as ocorrências de homicídios e suicídios, o que dificulta a caracterização do fenômeno em questão. Em função disso, justifica-se este estudo que tem como objetivo geral caracterizar o perfil sociodemográfico e clínico (características de personalidade) dos indivíduos que cometeram homicídio seguido de suicídio na cidade de Porto Alegre no período de julho de 1996 a julho de 2004.

Método

Trata-se de um estudo retrospectivo quantitativo em que a amostra foi constituída por 14 casos de homicídio seguido de suicídio. As informações sobre os casos foram, primeiramente, identificadas em matérias jornalísticas, nos bancos de dados dos dois periódicos de maior circulação de Porto Alegre, jornais Zero Hora e Correio do Povo, compreendendo o período de julho de 1996 a julho de 2004. As matérias forneciam informações gerais sucintas sobre o fato.

Obtida a autorização necessária para o acesso às informações constantes nos inquéritos policiais, foi possível iniciar sua localização, permitindo identificar aspectos sociodemográficos bem como as principais características do homicídio seguido de suicídio. Pôde-se também identificar os informantes (familiares, amigos e/ou conhecidos) vinculados aos casos, possibilitando, dessa forma, realizar contato com eles.

Com o intuito de enriquecer os dados oficiais encontrados nos inquéritos policiais e esclarecer alguns pontos, tais como características da vítima e do agressor, o relacionamento existente entre ambos e, ainda, as circunstâncias em que ocorreu o homicídio seguido de suicídio, procurou-se realizar, sempre que possível, uma Entrevista Semi-Estruturada para Autópsia Psicológica (ESAP) (Werlang & Botega, 2003a, 2003b) com informantes (amigo, parente e/ou conhecido) próximos do agressor ou da vítima.

A Entrevista Semi-Estruturada para Autópsia Psicológica é uma estratégia de avaliação que possibilita compreender os aspectos psicológicos de uma morte em particular. É uma entrevista semi-estruturada constituída por 69 questões distribuídas em quatro módulos. O primeiro, precipitadores e/ou estressores, avalia eventos imediatos que acionaram a vítima para o suicídio. O segundo módulo, motivação, refere-se às razões psicológicas, ambientais e familiares que podem determinar o comportamento suicida ao longo da vida. O terceiro, letalidade, investiga se a ação foi letal e auto-infligida e por último o quarto módulo, intencionalidade, avalia a consciência e a voluntariedade no planejamento e objetivação do ato.

O primeiro contato com os informantes foi realizado por correio, mediante correspondência (que informava sobre o estudo), seguida por uma chamada telefônica para marcar a entrevista. Para os casos em que o informante não possuía telefone, solicitou-se que ele procurasse entrar em contato com a pesquisadora. Esses contatos tiveram como objetivo explicitar o estudo e obter o consentimento da participação dos informantes. No caso de aceitação, foram combinados dia, hora e local para o encontro.

Antes da realização da entrevista, lia-se o Consentimento Livre e Esclarecido, eram fornecidas novas informações sobre o estudo e pedia-se autorização para gravar em áudio a entrevista. No total foram realizadas cinco entrevistas, todas com um membro da família, na residência. A duração variou de 45 minutos a uma hora e 30 minutos. A gravação foi transcrita e integrada ao restante dos documentos (matéria de jornal e inquérito policial), sendo posteriormente analisada. Para análise dos dados foi utilizado procedimento estatístico de análise descritivo e quantitativo.

Resultados

Os 14 casos de homicídio seguido de suicídio localizados nos jornais de Porto Alegre foram rastreados nas 25 delegacias de polícia da cidade, tendo sido encontrados os respectivos inquéritos em 11.

Neste estudo, em todos os casos, o agressor era homem e atendia a condição para ser incluído na pesquisa, por ter cometido suicídio em até vinte e quatro horas após a prática do homicídio. Diante das características demográficas (Tabela 1), pode-se observar - com base nas matérias de jornais e nos inquéritos policiais - que os 14 casos localizados resultaram em 16 vítimas (14 adultos e 2 crianças), uma vez que em dois episódios houve mais de uma vítima. Quanto à raça, 50,0% dos agressores e 68,7% das vítimas são de cor branca. A idade dos agressores variou de 23 a 59 anos, com média de 37 anos e 6 meses; entre as vítimas, a idade variou de 9 a 52 anos, com média de 32 anos e 3 meses. Vítimas e agressores em uma percentagem de 57,1% e 75,0%, respectivamente, eram oficialmente solteiros. No momento em que o homicídio seguido de suicídio ocorreu as partes envolvidas encontravam-se separadas ou em processo de rompimento da relação amorosa, sendo as vítimas 25,0% ex-parceiras, 18,7% parceiras, 12,5% ex-namoradas, 12,5% ex-esposas, 6,25% namoradas, e 6,25% esposas. Em relação à escolaridade, ambos (agressor, 64,2% e vítima, 56,2%) tendem a ter o 1º grau incompleto. Com respeito à situação ocupacional, 35,7% dos homicídio seguido de suicídio estavam desempregados enquanto 56,2% das vítimas exerciam alguma atividade laboral (trabalho não especializado).

Quanto às características das ocorrências de homicídio seguido de suicídio (Tabela 2), metade verificou-se no período da manhã, ocorrendo predominantemente no inverno (35,7%). A casa da vítima foi o local onde tanto o homicídio quanto o suicídio foram efetuados na maior parte das vezes (75,0% dos homicídios e 50,0% dos suicídios). O método amplamente utilizado tanto para o homicídio como para o suicídio foi a arma de fogo (87,5% dos homicídios e 85,7% dos suicídios). Somente em um caso o homicídio foi efetuado com método diferente do suicídio: foi utilizada arma de fogo para matar e o suicídio deu-se por enforcamento. Houve ainda um caso em que o meio utilizado tanto para o homicídio como para o suicídio foi uma arma branca (faca de açougueiro).

Depois de serem analisados todos os dados dos inquéritos policiais dos 14 casos de homicídio seguido de suicídio, foram encaminhadas cartas para 25 informantes (familiares e/ou conhecidos do agressor e/ou da vítima, que tinham prestado depoimento) seguidas por uma chamada telefônica, quando possível. Das cartas enviadas, 8% foram devolvidas pelo correio por não existir o número ou a rua indicada no endereço que constava no inquérito policial ou porque a pessoa não residia mais no endereço; 32% não possuíam telefone e não fizeram contato com a pesquisadora como solicitado na correspondência encaminhada; em 20% dos casos o número de telefone constante no inquérito policial estava errado e não foi possível, por outra forma, fazer contato com essas pessoas; 20%, após o contato telefônico, recusaram participar da pesquisa e, por fim, cinco (20%) procurados aceitaram participar da pesquisa. Com esses informantes foi realizada a ESAP.

Foram entrevistadas, portanto, cinco pessoas relacionadas a cinco (35,7%) casos de homicídio seguido de suicídio, ou seja, um informante (mãe, irmã, irmão ou filho) de cada um desses casos. As entrevistas foram individuais, na maioria das vezes, na casa do informante, por sua própria escolha.

Analisando os dados obtidos com a ESAP, foram identificados mais alguns dados sociodemográficos e definidos, com mais clareza, os fatores precipitadores para o evento (Tabela 3), que foram, principalmente, ciúme, ameaça ou término da relação.

Sobre os aspectos referentes às razões psicológicas que podem determinar o comportamento suicida ao longo da vida (motivação) e à consciência e voluntariedade no planejamento, preparação e objetivação (intencionalidade) do homicídio seguido de suicídio, pode-se observar (Tabela 4) que em todos esses cinco casos, o agressor tinha problemas com seu grupo de apoio primário, predominando neles aspectos de personalidade como impulsividade, agressividade, sintomas de depressão, abuso ou dependência do álcool, e, ainda, história de violência doméstica e antecedentes criminais por agressão a terceiros e, principalmente, por violência contra a família.

Discussão e Considerações Finais

Nos casos de homicídio seguido de suicídio perante a lei, não há o que ser feito, pois o criminoso encontra-se morto juntamente com sua(s) vítima(s). Mas, em termos de prevenção e de ajuda aos envolvidos indiretamente (familiares, conhecidos da vítima e do agressor), estudos como este podem servir de auxílio para que, em futuro próximo, se chegue a estratégias que visem a evitar esse tipo de evento bem como a amenizar o sofrimento das pessoas.

É interessante observar que as características dos 14 casos pesquisados, em muitos aspectos, são similares aos de estudos internacionais (Adinkrah, 2003; Buteau, Lesage & Kiely, 1993; Felthous et al., 2001; Morton et al., 1998; Palermo, 1994; Silverman & Kennedy, 1993). Assim verificou-se que a ocorrência de homicídio seguido de suicídio em Porto Alegre é relativamente pequena se comparada ao suicídio e ao homicídio separadamente. Os eventos se deram, principalmente, entre pessoas que se conheciam, familiares ou íntimos, já que as mulheres (87,5%), em sua grande maioria, foram vítimas dos seus cônjuges, e as crianças (12,5%), vítimas de seus pais ou dos parceiros das suas mães. Os agressores são homens mais velhos que suas vítimas. Os homicídios ocorreram sempre durante a separação ou no período máximo de um ano após o rompimento da relação, podendo-se concluir que o período de ruptura e separação inicial é o mais perigoso do ponto de vista da mulher, pois o ciúme e o temor de perder a companheira transformam-se constantemente no estopim de crime do tipo passional.

O homicídio seguido de suicídio, ao menos em Porto Alegre, parece ser de fato um crime passional, podendo ser entendido, segundo a manifestação de Palermo (1994), como um "suicídio ampliado", em que o ciúme exacerbado, com traços paranóides de um agressor frágil e dependente, ambivalente e agressivo, tem a auto-afirmação e a dureza típicas de sujeitos machistas, sendo apenas uma "fachada" sob a qual se esconde uma pessoa débil, incapaz de enfrentar uma rejeição inesperada ou uma mudança radical de vida, o que a leva a cometer suicídio, após eliminar a extensão de si mesmo.

Chama a atenção o fato de o homicídio seguido de suicídio ocorrer quase que exclusivamente entre familiares, pois apesar de se saber que ao lado das pulsões amorosas sempre estão as agressivas, acredita-se que a família deva ser um ambiente acolhedor, em que haja tolerância, apego, empatia e compreensão. Parece que predominam nas famílias nas quais ocorrem esses dramas a desconfiança, a hostilidade e a agressividade, que acabam contribuindo para a ruptura e a destruição da estrutura familiar.

De modo geral, pode-se pensar que o sistema social atual não leva em conta a alta potencialidade lesiva do conflito doméstico, onde a violência ocorre em âmbito privado, aumentando gradativamente e sendo, normalmente, reiterativa e implicando constante e crescente risco de vida para a vítima.

Levando-se em conta as variáveis raça, escolaridade, situação ocupacional e religião, constata-se que a maioria dos agressores nos 14 casos estudados se caracterizou pela presença de indivíduos brancos, com escassa educação formal e com situação ocupacional tida como precária em termos de produtividade econômica. Pode-se observar ainda que os cinco sujeitos dos casos em que foram realizadas entrevistas não possuíam uma crença religiosa, denunciando a ausência de vínculos com uma instituição social-religiosa. Cabe lembrar que essas variáveis são apontadas na literatura especializada como fatores preditores associados ao risco de suicídio.

Interessante lembrar que estudiosos do suicídio (Litman, 1987; Shneidman, 1999; Werlang, & Botega, 2003b) relatam que sujeitos do sexo masculino cometem suicídio com uma freqüência maior do que as mulheres; sendo entre indivíduos brancos a taxa maior do que entre não brancos. Constatam, ainda, o alarmante aumento dos índices de suicídio de pessoas jovens (entre 15 e 44 anos). Nos casos deste estudo, a média de idade do homicídio seguido de suicídio foi de 37,6 anos (mínima 23, máxima 59); essa faixa etária corresponde a um período também considerado produtivo para a economia de uma nação.

O método mais freqüentemente utilizado nos casos ocorridos em Porto Alegre tanto para os homicídios como para os suicídios foi a arma de fogo (87,5%). Nesse sentido, sabe-se que essa opção se manifesta preferentemente nos casos de homicídio, diferente do que ocorre no suicídio, em que sua escolha varia, de acordo com país, região, época, poder aquisitivo, profissão, raça e até mesmo estado mental do indivíduo. O uso de armas de fogo pode ser explicável para o homicídio seguido de suicídio por ser o método de morte mais letal e efetivo, além da facilidade que as pessoas têm para obter tais armas, muitas vezes com o objetivo de se proteger diante da crescente onda de violência, mas que acaba por propiciar dramas familiares de grande impacto.

As ocorrências de homicídio seguido de suicídio se deram, com maior freqüência, no período da manhã, predominantemente em sexta-feira ou sábado e no inverno; grande parte das vítimas morreu em sua própria casa (75%), sendo também o local escolhido, na metade dos casos, para o suicídio do agressor. Nos dados divulgados pela Divisão de Planejamento e Coordenação da Polícia Civil de Porto Alegre (2003), as ocorrências de homicídio são descritas como sendo, na sua maioria, à noite, no domingo, em via pública, e praticados com arma de fogo. Já nos estudos sobre suicídio, não há um consenso a respeito da maior incidência do dia da semana, horário e local de ocorrência do fato, mas como lembra Werlang (2003b), habitualmente o lugar escolhido é familiar ao indivíduo e isolado, possivelmente para o fim de não vir a ser socorrido. Presume-se ainda que o dia da semana e o horário escolhido também no homicídio seguido de suicídio devam ter relação com intenções de privacidade.

Como não foi possível realizar entrevistas com informantes relacionados aos 14 casos, não se pôde obter dados completos de todos os casos.

Elementos sobre o agressor - relacionados a problemas com o grupo de apoio primário, características clínicas ao longo da sua vida, abuso de álcool e/ou drogas, história de violência física e verbal, antecedentes criminais e intencionalidade/planejamento para o evento - só puderam ser efetivamente analisados nos cinco casos em que foram feitas entrevistas com informantes, utilizando-se a ESAP.

Em tais casos, foi possível verificar que os agressores são indivíduos que ao longo da vida tiveram problemas com a sua família de origem, possuíam dificuldades de relacionamento, apresentando como características de personalidade impulsividade, agressividade e sintomas de depressão, abusando ou dependendo de álcool, com antecedentes criminais por agressões físicas e verbais dentro de seu próprio lar, motivados por ciúme de suas companheiras.

Uma história de relacionamentos familiares turbulentos é uma ameaça para a auto-estima dos envolvidos, o que contribui para o desenvolvimento de um comportarmento violento, levando, muitas vezes, a incidentes como o homicídio seguido de suicídio (Stack, 1997), o que está de acordo com a história de agressões físicas e verbais que resultaram em antecedentes criminais por violência doméstica, nos sujeitos analisados neste estudo.

Quanto à agressividade e à falta de controle de impulsos, sabe-se que um dos fatores causadores de manifestações agressivas é a rejeição, a insegurança e a carência afetiva, pois a privação de afeto pode levar, muito freqüentemente, a atitudes reivindicativas, imaturas e pouco adaptativas, como forma de atrair a atenção, de livrar-se ou vingar-se da situação angustiosa, como foi verificado na história desses cinco sujeitos em que os fatores precipitadores do homicídio seguido de suicídio foram, principalmente, o ciúme em excesso e o término da relação por parte de suas companheiras.

Pode-se observar, também, através das entrevistas dos cinco casos, que em todos eles o agressor fazia uso abusivo do álcool. Lecomte e Fornes (1998), ao examinarem a influência do uso de álcool nos homicídios seguidos de suicídios ocorridos na França, constataram que a maioria dos agressores, de 12% a 50%, possuía vestígios de álcool no exame de sangue realizado por ocasião da necropsia. Sujeitos dependentes de álcool estão não só propensos ao suicídio como também a abusarem de outras drogas, a exibirem comportamentos impulsivos, agressivos e criminosos, como se observou nesses casos de homicídio seguido de suicídio. O efeito desinibitório do álcool também se associa ao menor controle dos impulsos.

Não se sabe precisamente por que esses homens cometeram suicídio logo após o homicídio perpetrado. O que, entretanto, se pode observar nos casos de homicídio seguido de suicídio ocorridos em Porto Alegre é que os agressores/suicidas parecem ter características mais semelhantes aos suicidas do que aos que cometem homicídio unicamente, como apontado também nos achados de Fishbain et al. (1985), West (1966) e Cooper e Eaves (1996).

O que pareceu então permear todos os casos de homicídio seguido de suicídio na cidade de Porto Alegre no período de julho de 1996 a julho de 2004 foi que tanto os homicídios quanto os suicídios foram planejados (intencionalidade assinalada por Litman, 1897, 1988 e a unidade descrita por Berman, 1996) e executados pelo homicídio seguido de suicídio sem a participação de qualquer outra pessoa. Pode-se pensar, ainda, que o evento homicídio seguido de suicídio possui um caráter íntimo e relacional e que o sentimento de propriedade perdida ou em vias de se perder parece pesar tanto na decisão de matar quanto na de morrer.

Conclui-se que a violência é uma constante na vida de um universo cada vez maior de pessoas, atingindo a todos, de uma forma ou de outra. Para uns, a idéia de salvação está em preservar-se, gradeando portas e janelas. Para outros, porém, não há escapatória porque a ameaça da violência está por detrás dessas grades, dentro dos próprios lares, como, de resto, se pode ver materializado nos casos aqui estudados.

Recebido em: 29/4/2005

Versão final reapresentada em: 19/10/2006

Aprovado em: 16/11/2006

Apoio financeiro: CNPq (Bolsa de Mestrado).

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  • 1
    Artigo elaborado a partir da dissertação de S.D. SÁ, intitulada "Homicídio seguido de suicídio na cidade de Porto Alegre" . Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007

    Histórico

    • Recebido
      29 Abr 2005
    • Revisado
      19 Out 2006
    • Aceito
      16 Nov 2006
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