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Leitura fenomenológica mundana do adoecer em pacientes do Serviço de Fisioterapia do Núcleo de Atenção Médica Integrada, Universidade de Fortaleza

The physiotherapy service of Núcleo de Atenção Médica Integrada, Universidade de Fortaleza, Brazil patients' illness phenomenological approach

Resumos

Este artigo busca revelar os significados da experiência de adoecer numa perspectiva mundana, isto é, a partir da noção de que a vida humana, e conseqüentemente a doença, encontra-se implicada no mundo sensível, na história e na cultura. Através de um trabalho de campo, realizado no Serviço de Fisioterapia do Núcleo de Atenção Médica Integrada da Universidade de Fortaleza, no qual se combinou a utilização dos métodos etnográfico e fenomenológico, buscou-se a superação da compreensão unicamente biológica do adoecer humano, enfocando o mundo da experiência vivida como campo privilegiado de revelações de sentido do estar doente. Os resultados mostram que o adoecer é uma vivência de despotencialização e exclusão social, mas que pode ser também uma oportunidade de revisão da vida, bem como de obter ganhos secundários.

adoecer; experiência vivida; fenomenologia mundana


This article aims to disclose the meanings of the getting ill experience in a worldly perspective that is, based on the notion of human life and consequently, pathology, implied in the sensible world, in the history and in the culture. Through a fieldwork carried out in the Serviço de Fisioterapia do Núcleo de Atenção Médica Integrada da Universidade de Fortaleza, which combined the ethnographical and phenomenological methods, beyond the biological understanding about human illness, focusing the world of the experiences as a privileged field for meanings of been ill. The results show that getting ill is an experience of despotencialization and social exclusion, but it can be also an opportunity for life review, as well as secondary gains.

getting ill; lived experience; worldly phenomenology


ARTIGOS

Leitura fenomenológica mundana do adoecer em pacientes do Serviço de Fisioterapia do Núcleo de Atenção Médica Integrada, Universidade de Fortaleza1 1 Artigo elaborado a partir das atividades desenvolvidas na disciplina Psicopatologia Fenomenológica e Cultura, ministrada pela Profa. Dra. Virginia Moreira no ano de 2004 no Programa de Mestrado de Psicologia da Universidade de Fortaleza, UNIFOR.

The physiotherapy service of Núcleo de Atenção Médica Integrada, Universidade de Fortaleza, Brazil patients' illness phenomenological approach

Virginia Moreira; Fernanda Nícia Nunes Nogueira; Márcio Arthoni Souto da Rocha

Universidade de Fortaleza, Programa de Mestrado de Psicologia. Av. Washington Soares, 1321, 60811-341, Fortaleza, CE, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: V. MOREIRA. E-mail: <virginiamoreira@unifor.br>

RESUMO

Este artigo busca revelar os significados da experiência de adoecer numa perspectiva mundana, isto é, a partir da noção de que a vida humana, e conseqüentemente a doença, encontra-se implicada no mundo sensível, na história e na cultura. Através de um trabalho de campo, realizado no Serviço de Fisioterapia do Núcleo de Atenção Médica Integrada da Universidade de Fortaleza, no qual se combinou a utilização dos métodos etnográfico e fenomenológico, buscou-se a superação da compreensão unicamente biológica do adoecer humano, enfocando o mundo da experiência vivida como campo privilegiado de revelações de sentido do estar doente. Os resultados mostram que o adoecer é uma vivência de despotencialização e exclusão social, mas que pode ser também uma oportunidade de revisão da vida, bem como de obter ganhos secundários.

Unitermos: adoecer; experiência vivida; fenomenologia mundana.

ABSTRACT

This article aims to disclose the meanings of the getting ill experience in a worldly perspective that is, based on the notion of human life and consequently, pathology, implied in the sensible world, in the history and in the culture. Through a fieldwork carried out in the Serviço de Fisioterapia do Núcleo de Atenção Médica Integrada da Universidade de Fortaleza, which combined the ethnographical and phenomenological methods, beyond the biological understanding about human illness, focusing the world of the experiences as a privileged field for meanings of been ill. The results show that getting ill is an experience of despotencialization and social exclusion, but it can be also an opportunity for life review, as well as secondary gains.

Uniterms: getting ill; lived experience; worldly phenomenology.

Chegamos ao Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) da Universidade de Fortaleza (Unifor). Prédio imponente, moderno, uma estrutura que chama a atenção dentro da realidade de uma cidade como Fortaleza. Internamente, é muito diferente dos hospitais públicos no nosso país. Acesso controlado. Tudo limpo, arejado. Ficamos perdidos. Há ainda pouca comunicação visual no prédio recém-inaugurado. Para onde devemos nos direcionar? O ambiente parece frio. O granito do piso parece ressaltar a necessidade de calor humano, verde, vida. Vozes, rumores, burburinhos. Mulheres, crianças que buscam informações. Alguns usuários mais experientes passam rapidamente o cartão de acesso e se dirigem aos elevadores amplos e velozes. Pessoas apressam o passo, outras parecem estar como nós, à procura.

Rumo ao primeiro andar descobrimos a fisioterapia. Outra recepção. Pessoas sozinhas, pessoas acompanhadas. Uns chegando, uns se achando, uns à espera, outros que se despedem. Aparecem pessoas de jaleco branco que cumprimentam alguns presentes e adentram juntos no espaço interno do setor. Parece que, finalmente, chegou a vez de alguns. Na espera, um contínuo movimento de idas e vindas. Bancos de madeiras dispostos perpendicularmente possibilitam conversas animadas entre aqueles que se põem de frente para os outros. Enquanto uns falam, outros fazem crochê e muitos só observam. Cadeiras de rodas são empurradas, muletas em uso, expressões de dores, expressões de cansaço, expressões de cuidado, expressões de alívio. Falas ansiosas: "moça, trouxe o papel do médico; vou ser atendido?" Pessoas debilitadas fisicamente procuram esse serviço. Aguarde, por favor.

Permissão concedida, entramos em um grande salão onde se encontram várias salas com muitos equipamentos, macas e materiais diversos. Muitos profissionais, muitos pacientes. O ambiente parece leve, agradável, com muitas conversas durante a aplicação dos procedimentos. Risos. Em meio ao sofrimento físico, parece haver espaço para a descontração. "Ai, dói, tudo!" "É bicicleta, mas não é brincadeira." "Como vai sua filha? E o final de semana?" "Não vá faltar de novo!".

A comunicação flui. Escutam-se queixas, recomendações, orientações, prescrições. Percebe-se proximidade física, corpos ou partes do corpo que são tocadas, pressionadas, massageadas. Movimentos contínuos, substâncias e aparelhos que intermedeiam intimidade, cumplicidade, parceria. Onze horas! O lugar que estava repleto vai se esvaziando e ficando silencioso. Pacientes e profissionais deixam o local para que amanhã tudo recomece.

Este estudo teve como objetivo revelar os significados da experiência de adoecer numa perspectiva mundana, isto é, a partir da noção de que a vida humana, e conseqüentemente a doença, encontra-se implicada no mundo sensível, na história e na cultura (Moreira, 2002). Através de um trabalho de campo, realizado no Serviço de Fisioterapia do NAMI - Unifor, onde se combinou a utilização dos métodos etnográfico e fenomenológico, buscamos contribuir para a superação da compreensão unicamente biológica do adoecer humano, enfocando o mundo da experiência vivida como campo privilegiado de revelações de sentido do estar doente.

O NAMI - UNIFOR

O Núcleo de Atenção Médica Integrada, integra o campus universitário da Universidade de Fortaleza e foi criado em 1978 com o objetivo de prestar assistência na área de saúde aos moradores da comunidade do Dendê, próxima ao campus. Atualmente ocupa um prédio recém-inaugurado de estrutura arquitetônica moderna, localizado numa área de 14 mil metros quadrados, com espaço previsto para ampliação. Possui subsolo, térreo e três andares; em cada pavimento funcionam serviços de saúde diferenciados, com salas preparadas para atendimentos, ensino, discussão de casos clínicos e gestão dos serviços.

O Núcleo de Atenção Médica Integrada presta prioritariamente assistência à saúde às comunidades carentes vizinhas, constituindo-se um espaço destinado ao ensino e à aprendizagem de alunos do Centro de Ciências da Saúde e de outros centros da Unifor, bem como ao desenvolvimento de trabalhos de pesquisa, intercâmbio científico e extensão. Na sua missão institucional, portanto, o NAMI tem a dupla finalidade de elevar a qualidade da formação profissional, oferecendo aos estudantes universitários um campo rico de experiências práticas ao mesmo tempo em que cumpre sua responsabilidade social ao contribuir com o acesso e a melhoria da saúde e qualidade de vida de populações mais carentes.

Atualmente, o Núcleo de Atenção Médica Integrada é mantido pela Fundação Edson Queiroz e mantém convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS), sendo uma unidade de referência não apenas no âmbito da Regional VI, mas também de toda a rede de saúde de Fortaleza e do Estado do Ceará. Desenvolve ações de saúde em nível de atenção primária, promovendo, diagnosticando, tratando e reabilitando de forma integrada e interdisciplinar. Nas novas instalações funcionam serviços como ambulatório médico e de enfermagem, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia, laboratórios de análises clínicas e academia de ginástica. Está em implantação o serviço de nutrição, com a criação de uma cozinha experimental. O curso de odontologia, mesmo pertencendo ao Centro de Ciências da Saúde, ainda não integra essas novas instalações do NAMI.

A clientela do NAMI é constituída pelos moradores da Comunidade do Dendê e de outros bairros menos favorecidos da cidade de Fortaleza, além da comunidade acadêmica, isto é, professores, alunos e funcionários da Universidade de Fortaleza.

A nova gestão do NAMI se propõe a desenvolver um modelo de gestão mais sistêmico e que enfatize o processo de interdisciplinaridade e promova a integração entre os cursos de saúde e áreas correlatas da Unifor. Esse modelo, ainda em construção, pretende se apoiar em uma estrutura organizacional horizontalizada, de funcionamento matricial, ágil, focada em uma ação integrada e no trabalho de equipe de todos os serviços da área de saúde.

O Serviço de Fisioterapia

O Serviço de Fisioterapia, que é o campo de pesquisa deste trabalho, tem por objetivo prevenir e tratar as lesões cinéticas funcionais decorrentes de traumas e de doenças através de mecanismos terapêuticos próprios.

O serviço conta com uma estrutura de pessoal composta de 76 alunos do curso de fisioterapia, professores de disciplinas aplicadas e supervisores do estágio ambulatorial, sete profissionais contratados, dois bolsistas e quatro funcionários de apoio administrativo, além da responsável técnica pela coordenação do serviço. Suas áreas de atuação são: fisioterapia preventiva, fisioterapia motora, fisioterapia respiratória, neurológica, reumatológica e pediátrica. As fisioterapias cardiovascular e ginecológica estão previstas para serem futuramente implantadas.

As instalações físicas mostram-se adequadas, dispondo-se de um ginásio com aparelhos, materiais, cabines e salas para atendimento dos pacientes nos procedimentos de cinesioterapia, eletroterapia, crioterapia, mecanoterapia, massoterapia. No andar de baixo, anexo a uma academia de ginástica, localiza-se a piscina onde são realizadas as sessões de hidroterapia.

As instalações físicas, apesar de adequadas em tamanho, possuem uma divisão interna que parece acarretar pouca funcionalidade entre os procedimentos. A aparelhagem disponível também é insuficiente, o que ocasiona situações de sobrecarga em muitos deles. Alguns aparelhos também são antigos e questionáveis quanto à confiabilidade.

Na fisioterapia, atende-se em média cem pacientes por dia, não se dispondo ainda de estatísticas formais que detalhem esses atendimentos. O serviço conta com uma demanda reprimida em virtude de a estrutura oferecida não dar conta do volume da procura. Se houver vagas, isto é, profissionais disponíveis, o paciente é atendido. Em caso negativo, ele é encaminhado para outros locais de atendimento, como a ABCR e outros serviços públicos em Fortaleza. No início do semestre começa o atendimento da clientela; a partir de maio, a agenda dos profissionais que atendem no NAMI já começa a ficar preenchida.

Vale ressaltar que o Serviço de Fisioterapia atende tanto a pacientes traumaortopédicos (pacientes agudos), que se movimentam mais rapidamente pelo serviço, como pacientes de reabilitação neurológica (pacientes crônicos) que permanecem mais tempo no serviço, até para evitar regressões no quadro. Para esses pacientes, são realizados trabalhos de grupos nas manhãs de sábado com o propósito educativo, interativo e terapêutico. Eles também podem tirar férias em junho e julho, retornando em agosto.

É norma do serviço que só sejam atendidos pacientes com guias de encaminhamentos de outros profissionais médicos, não necessariamente do próprio NAMI. Quando os pacientes chegam ao serviço com seus encaminhamentos e exames, o caso é registrado pela recepção, que verifica a agenda dos profissionais e marca a avaliação fisioterapêutica. Só após essa avaliação, procede-se ao agendamento do tratamento necessário. Normalmente, quem faz a avaliação fisioterapêutica já se responsabiliza pelo tratamento necessário.

Cada paciente possui uma ficha de atendimento que contém informações sobre o diagnóstico, tipo de tratamento e controle de freqüência ao serviço. Quem falta três vezes consecutivas, sem justificativa, é cortado do atendimento. Entretanto essa norma é flexível tendo em vista as condições socioeconômicas dos pacientes.

Os profissionais vêm à recepção buscar seus pacientes, o que denota uma boa acolhida e favorece a construção de uma boa relação terapêutica. Cada paciente possui, no mínimo, um profissional e um aluno responsáveis pelo seu tratamento. É ressaltado o nível de capacitação dos profissionais da equipe técnica, o compromisso com a profissão e com a melhoria da saúde, além de um preparo para lidar com a clientela mais carente.

Fundamentação teórica

Segundo Sloan (2002), desde a década de 1960 a relação entre cultura e pensamento, ou, mais recentemente, cognição, tem mudado as concepções de cultura como externa ou interagindo com o pensamento, em direção às concepções que enfatizam a inseparabilidade radical de cultura e cognição. Essa inseparabilidade tem sido conceituada de diferentes maneiras: vendo a cultura como inerente à mente, cultura como um conjunto de práticas emergindo da interação entre pensamento e ação ou cultura como produto dos esforços da pessoa para interpretar ativamente a realidade. Para esse autor, os processos culturais são partes e parcelas na construção da individualidade e da autonomia na medida em que os indivíduos trabalham criativamente com combinações de símbolos ou discursos que estão facilmente disponíveis para eles nas interações e comunicações sociais do dia-a-dia.

Brandão (2002) afirma que a cultura é um conceito fundamental para compreender o homem e a sociedade da qual ele faz parte, sendo a cultura e a linguagem humana os meios de criação e recriação do mundo. Estando a cultura fora e dentro de nós, a partir do fato que nos tornamos humanos por intermédio de outros seres humanos, transformamos o meio social e os contatos inter-humanos ou intersubjetivos estabelecidos nesse meio social, o qual é constantemente reformulado por nossos atos históricos, conscientes, grupais, comunitários, sociais e universais. Assim, a assimilação da cultura e a possibilidade de sua decifração passa a ser uma condição sine qua non para nos tornarmos humanos e partilharmos com outros os múltiplos sentidos que a cultura possa vir a ter em nossa existência compartilhada.

Compreendemos, no entanto, que a cultura é um constante pensar e fazer humano, no qual a ação sistemática do homem sobre o meio natural, imprimindo-lhe uma transformação, uma recriação, nos torna seres em contínuo processo de conquista dos diversos mundos e dimensões que criamos para compreendermos o sentido da vida e da humanidade que existe em nós. Para entender melhor essa assertiva, apresentamos o comentário de Brandão (2002, p.28) ressalta que a vida e a consciência da vida são o que ela própria ou um Deus nos ofertou ... . A cultura é o que devolvemos a Deus ou à vida como a nossa parte no mistério de uma criação de quem somos bem mais os persistentes inventores do que aqueles que vieram assistir ao que fizeram antes de havermos chegado. Os outros seres vivos do mundo são o que são. Nós somos aquilo que nos fizemos e fazemos ser. Somos o que criamos para efemeramente nos perpetuarmos e transformarmos a cada instante. Tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado, quando tomamos as coisas da natureza e as recriamos como os objetos e os utensílios da vida social, representa uma das múltiplas dimensões daquilo que, em uma outra, chamamos de: cultura (Brandão, 2002, p.22).

A cultura nos possibilita dar sentido, nome e significado às coisas do mundo à nossa volta e a nossas ações e de outros que compartilham os mesmos sentidos e significados, permitindo um pensar consciente e reflexivo sobre as múltiplas possibilidades de olhar o mundo em transformação cultural. Trata-se de um olhar interno, particularizado, e ao mesmo tempo um olhar externo, coletivizado, onde ao se transformar o interno transforma-se o externo e vice-versa em mútuas reformulações do eu e do social, vislumbrando, em última instância, o significado de ser homem no mundo.

Brandão (2002, p.23) continua a esclarecer esse assunto quando afirma que ao emergirmos com a nossa consciência reflexiva - e nossas inteligências múltiplas - do signo e do ato ao símbolo e ao significado, logo ao gesto, descobrimos que o importante não é tanto o que transformamos materialmente da natureza. O que importa é a nossa capacidade e também a nossa fatalidade de atribuirmos significados múltiplos e transformá-los ao que fazemos, ao que criamos, aos modos sociais e pelos quais fazemos e criamos, e finalmente, a nós mesmos significado".

O viver em sociedade só é possível pela intermediação da cultura, que nos dá a possibilidade de decodificar os símbolos e signos, que nos permite pertencer a uma sociedade, confirmar uma identidade individual, social e principalmente a partilhar, conviver, trocar e interagir no meio cultural e humano. Assim como diz ainda Brandão: "viver uma cultura é estabelecer em mim e com os meus outros a possibilidade do presente. A cultura configura o mapa da própria possibi-lidade da vida social" (2002, p. 24).

A cultura é um legado humano para os humanos, porém não é um dado de posse de um sujeito ou de um grupo de sujeitos ou de um povo; é uma herança universal, onde a existência de sua diversidade mostra a multiplicidade de formas que ela pode assumir, estando longe de se fazer a serviço das fôrmas e sim da libertação das consciências. Assim sendo, a cultura é da humanidade e para a humanidade, e sempre pode levantar a possibilidade de olhar o mundo com outras "lentes culturais" e de fazer "um outro mundo possível". Em outras palavras, a cultura é uma das dimensões constitutivas da mundaneidade humana, que é concomitantemente objetiva e subjetiva, bem como a situação e a endogeneidade quando se refere ao fenômeno patológico (Moreira, 2002).

Portanto um olhar cultural pretende vislumbrar as diversas facetas da cultura social, econômica e intersubjetiva possíveis de serem estudadas, onde os sujeitos colaboradores estão inseridos. É possível, então, descrever densamente os fenômenos observados e apreender as múltiplas possibilidades de uma leitura cultural desses fenômenos. Uma leitura cultural da experiência de adoecer no Serviço de Fisioterapia do NAMI/UNIFOR pretende utilizar-se dessa lente para compreender o fenômeno de adoecer naquele contexto específico.

A visão de doença

Para Canguilhem (2000) o fato patológico só pode ser representado como tal - isto é, como alteração do estado normal - em relação à totalidade orgânica; e, em se tratando do homem, em relação à totalidade individual consciente, em que a doença torna-se uma espécie de mal. Ser doente é, realmente, para o homem, viver uma vida diferente, mesmo no sentido biológico da palavra. O mesmo autor compreende, a partir de uma análise semântica do termo normal, que há uma ambigüidade no uso desse termo. Ele tanto pode ser usado para se referir a um fato - emprego descritivo - como pode ser usado para remeter a um valor - emprego avaliativo. Ou seja, para ele, normal é aquilo que é como deve ser - valor - ou normal é aquilo que é como na média - fato.

Essa duplicidade de usos é uma fonte usual de mal-entendidos na medida em que os usos se confundem numa mesma circunstância de emprego do termo normal sem que aqueles que o empregam se dêem conta disso. Canguilhem (2000) entende que a doença passa a ser uma experiência de inovação positiva do ser vivo e não apenas um fato diminutivo ou multiplicativo. O conteúdo do estado patológico não pode ser deduzido - exceto pela diferença de formato - do conteúdo da saúde: a doença não é uma variação da dimensão da saúde; ela é uma nova dimensão da vida.

Para uma pessoa que está doente o adoecer sempre lhe é uma experiência muito singular, ainda que ela possa compartilhar com freqüência essa experiência com outras pessoas que passam por uma situação semelhante. A postura mais comum é focalizar a doença sobre o doente e prescrever-lhe a partir de um determinado diagnóstico uma terapêutica específica. Poucas vezes são consideradas as condições socioculturais singulares em que essa pessoa vive a fim de compreender como ela adoeceu e como ela se sente estando doente. Essa visão reforça a perspectiva biologicista, na qual o caráter endógeno da doença prevalece em detrimento das outras dimensões constitutivas do ser humano. Os vários quadros psicossomáticos, por exemplo, são tratados prioritariamente com remédios porque se parte do pressuposto que na medida em que a droga atua no nível biológico a doença está curada, o que confirmaria seu caráter unicamente biológico (Moreira, 2002). Contudo mesmo o endógeno, tal como compreendido na perspectiva fenomenológica de Tellenbach (1999), não é apenas de ordem física ou biológica, mas também de ordem psíquica, incluindo a história e a cultura.

Adoecer não é algo fácil, ainda mais quando é preciso utilizar-se de um serviço de saúde pública no Brasil. As longas filas, o enorme tempo entre marcar uma consulta e ser atendido por um profissional, a dificuldade de acesso a medicamentos, tudo isso contribui para uma produção da doença como algo que gera inúmeros outros sofrimentos além daqueles específicos que a doença determina. Por outro lado, o serviço prestado no NAMI tem oferecido uma qualidade muito superior ao que é comum na região, segundo depoimentos dos pacientes, tal como veremos adiante. No entanto esse serviço ainda é restrito a uma população reduzida da cidade, que pode dispor dele. Sem dúvida, a comunidade atendida pelos serviços oferecidos no NAMI ganha muito com sua existência, mas ele ainda é um contraponto mínimo diante de todo o serviço de saúde oferecido a populações de baixa renda na cidade de Fortaleza.

Os profissionais do NAMI demonstram uma consciência muito clara da importância de seu papel para as pessoas das comunidades atendidas. Nitidamente, trata-se de um trabalho de assistência em saúde com uma clara responsabilidade social apresentada aos estudantes estagiários como parte identificatória de seu papel profissional. Cria-se assim uma cultura de compromisso com a saúde de pessoas que não têm nenhum acesso ao sistema privado de atendimento e que não podem dispor de uma maior qualidade, senão quando estão sendo atendidas no NAMI.

Outro aspecto importante característico desse serviço é sua natureza multidisciplinar, que tem como base uma visão também múltipla do processo de adoecer. Com isso, a compreensão de saúde se amplia e os doentes podem ganhar mais com isso, visto que os profissionais têm uma visão mais ampla do processo em que o paciente se encontra e sabe da importância de uma intervenção ampla, capaz de dar conta de tantas dimensões do adoecer que os pacientes trazem consigo.

Método

Neste estudo foi combinado o método etnográfico com o método fenomenológico, que privilegia a redução ou retorno às coisas mesmas, destacando-se a vivência singular do fenômeno. Esse método, apoiado no aprofundamento feito por Merleau Ponty, ressalta a importância de uma compreensão fenomenológica mundana, na qual a cultura é uma de suas dimensões (Moreira, 2002); encontramos aí uma possível aproximação com a prática de pesquisa etnográfica que se utiliza de uma lente cultural. A metodologia utilizada contempla, então, os métodos etnográfico e fenomenológico, pois se acredita que a combinação de ambos os métodos facilitará a compreensão da experiência vivida em sua mútua constituição com o contexto sociocultural.

De acordo com André (1999), a etnografia é a tentativa de descrição da cultura. Para ela "a etnografia é um esquema de pesquisa desenvolvido pelos antropólogos para estudar a cultura e a sociedade. Etimologicamente, a palavra etnografia (etno = povo, grafia = retrato) significa retrato de um povo. Para os antropólogos, o termo tem dois sentidos: (1) um conjunto de técnicas que eles usam para coletar dados sobre valores, hábitos, crenças, práticas e comportamentos de um grupo social; e (2) um relato escrito resultante do emprego dessas técnicas" (p.27). Geertz (1978) utiliza o termo "descrição densa", que ele tomou emprestado do filósofo Gilbert Ryle, para designar o que pretende a etnografia, entendendo a cultura como um sistema de símbolos construídos, um contexto, algo dentro do qual os símbolos podem ser inteligivelmente - ou densamente - descritos. Creswell (1998) corrobora esse ponto de vista ao afirmar que uma etnografia é uma descrição e uma interpretação de um grupo ou sistema cultural.

A pesquisa etnográfica segue alguns passos metodológicos que a caracterizam. Tal como afirma André (1999) os requisitos seriam, por exemplo, uma longa permanência do pesquisador em campo, o contato com outras culturas e o uso de amplas categorias sociais na análise de dados. No caso deste estudo, foram utilizadas a observação e a observação participativa, técnicas integrantes do método etnográfico.

O método fenomenológico busca a compreensão da experiência vivida, sendo o objetivo maior de toda pesquisa fenomenológica a busca do significado da experiência. O foco da pesquisa é direcionado para a compreensão do significado dos fenômenos, não se estabelecendo qualquer tipo de definição rígida e a priori acerca do tema. Busca-se alcançar o significado de um fenômeno para um sujeito que é encarado como protagonista de sua própria vivência. Na realidade, trata-se de um resgate da dimensão do vivido humano, do mundo subjetivo e privado em sua interseção com o objetivo e o coletivo, tal como entendido com uma lente merleau-pontyana.

A metodologia fenomenológica de pesquisa sofre variações segundo o pensamento filosófico que a sustenta (Moreira, 2004). No caso de um método fenomenológico mundano, conforme afirma Merleau-Ponty (1945/1996) na sua Fenomenologia da Percepção, trata-se de descrever, e não de explicar nem de analisar. Segundo ele, tudo o que se sabe do mundo, mesmo devido à ciência, se sabe a partir de uma visão singular ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam. E conclui dizendo que todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido; se quisermos pensar na própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, convém despertarmos primeiramente essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda.

Foi, portanto, buscando a descrição do mundo vivido de pessoas que estavam vivendo ou tratando a experiência de adoecer que esta pesquisa se desenvolveu. Foram entrevistados oito sujeitos colaboradores, sendo três funcionários e cinco pacientes adultos, que se dispuseram a participar. Os sujeitos-colaboradores foram selecionados durante a imersão no campo - Serviço de Fisioterapia do NAMI, em Fortaleza - no período de dois meses com cerca de duas visitas semanais ao local durante o ano de 2004. Era explicado que a pesquisa era uma atividade de uma disciplina do curso de mestrado em Psicologia da UNIFOR, e que, para aprender sobre a experiência de adoecer, pensávamos que o próprio doente, bem como o profissional de saúde, que lida cotidianamente com a doença, eram as pessoas mais indicadas para conversarmos.

Foram realizadas entrevistas fenomenológicas que tinham como objetivo buscar compreender o significado da experiência vivida do adoecer. Através dessas entrevistas semi-estruturadas os participantes eram solicitados a falar de sua experiência de adoecer ou de conviver com a doença a partir da pergunta: Como é para você a experiência de adoecer? Como em uma conversa, as perguntas seguintes eram formuladas a partir da própria fala do sujeito-colaborador, sempre buscando facilitar a descrição da experiência vivida de adoecer. Além das entrevistas fenomenológicas, para melhor apreender e retratar a realidade cultural do NAMI e o fenômeno pesquisado - a experiência de adoecer - foram coletados dados no campo através de observação direta e observação participante, com conversas informais individuais e coletivas com pacientes e profissionais durante os dois meses de visita ao NAMI.

Discussão

A partir do trabalho de campo, tivemos a oportunidade de nos aproximar da realidade do NAMI, especificamente de seu Serviço de Fisioterapia, observando e captando o ambiente, sua movimentação, as interações entre as pessoas que freqüentam o lugar, usuários, profissionais, estudantes, funcionários e gestores, relacionando-se com os mais variados propósitos e vivendo subjetivamente e intersubjetivamente a experiência de adoecer.

A imersão nesse contexto possibilitou sua caracterização, passando o foco da investigação a ser direcionado para a compreensão da experiência de adoecer. Interessava-nos descobrir o que acontece quando as pessoas percebem que há algo errado com elas; o que isso significa; o que sentem, o que pensam, como agem nesse momento em suas vidas; que impactos vivenciam; que sentidos encontram nessa experiência; quais crenças, expectativas, medos e fantasias são ativados; como encaram o fato de buscar ajuda; que trajetórias percorrem até serem atendidos; como percebem o atendimento que recebem; buscando respostas para essas questões buscou-se obter significados sobre a realidade do NAMI no Serviço de Fisioterapia e apreender os elementos culturais presentes na vivência de ser atendido ali.

Foram definidas três categorias para análise a partir dos temas emergentes das entrevistas e das observações realizadas no campo: 1) quem adoece e procura o NAMI; 2) o que se vive na experiência de adoecer; 3) significados da experiência de adoecer. A seguir discutimos cada um desses temas, ilustrados por alguns fragmentos dos depoimentos dos sujeitos-colaboradores.

Quem adoece e procura o NAMI

Constata-se que os usuários do NAMI e do Serviço de Fisioterapia são, na sua maioria, moradores da Comunidade do Dendê, que, pela localização, pela gratuidade dos serviços, pelo acesso facilitado à saúde e pela qualidade do atendimento recebido dirigem-se à instituição e utilizam os seus diversos serviços.

Escolhi vir para cá porque é mais próximo de casa e porque já fui atendido em outros lugares, mas aqui o ambiente é de primeiro mundo.

Moro na favela da Água Fria. Freqüento o NAMI há muito tempo. Aqui descobri uns miomas no útero e pude fazer minha cirurgia.

Moro aqui pertinho, na favela do Dendê. Não teria condições de pagar transporte para ir em outro posto.

Entre os usuários também se encontram alunos e funcionários da universidade que por facilidade de acesso e pela qualidade dos serviços optam pela sua utilização.

Sou funcionário da Universidade e é a segunda vez que necessito dos serviços no NAMI. Tenho direito a um outro plano de Saúde privado, mas prefiro aqui, pois o atendimento é superior.

Faço curso de Engenharia Mecânica; nem sabia que como estudante teria direito. Vim para cá porque minha mãe tinha uma conhecida que trabalha aqui. Aqui ganho tempo e o acesso é mais rápido já que venho depois da aula.

Essa última fala nos leva a indagar até que ponto os serviços do NAMI estão sendo divulgados adequadamente dentro da comunidade acadêmica, sobretudo para os alunos e funcionários que não pertencem ao Centro de Ciências da Saúde.

Percebemos que as instalações físicas modernas e imponentes do NAMI não contribuem para acentuar contrastes socioculturais junto à clientela oriunda de classes socioeconômicas desfavorecidas. Ao contrário, as pessoas parecem sentir-se muito bem nesse espaço.

Trabalho como Mestre de Obras e sei que o material utilizado na construção é de primeira qualidade. A tinta da pintura de fora é caríssima, o piso é de granito, estes espaços são para circulação de ar e não sentirmos calor, mesmo sem ar condicionado nesta recepção. Parece que estamos dentro de uma academia e não em um hospital.

Me sinto muito bem aqui. É tudo muito limpo e organizado. Utilizo outros serviços médicos daqui como consultas na ginecologia. Também tenho pressão alta e pego os remédios na farmácia.

Evidenciam-se o compromisso e o importante papel social que o NAMI desempenha para essa comunidade. As pessoas sentem-se gratas e privilegiadas por disporem de um centro de saúde tal qual o NAMI.

Este lugar é uma benção para o bairro.

Sou solteira, desempregada. Não tenho ninguém por mim. Se não fosse as consultas e estes remédios já teria morrido. Não tenho condições de pagar transporte para ir em outro lugar.

A Comunidade do Dendê tem muito que agradecer ao NAMI. Aqui temos um atendimento especial. São professores, estagiários que ficam bem próximos aos pacientes.

Em um país e em uma cidade onde a questão da saúde é tão precária, realmente é algo diferenciado poder usufruir serviços com qualidade e acesso facilitado. A clientela do NAMI traz, aliados às dificuldades de saúde, problemas que remetem à sua condição material de vida, tais como falta de trabalho, moradia, más condições de alimentação, exposição à violência, entre outros.

O que seria de nós sem este Posto de Saúde? Estava nós atolado na lama da favela. Porque pobre é pra sofrer. Nem ambulância chega aonde eu moro. Se alguém precisar, morre lá mesmo.

Dentre os diversos motivos e queixas que levam as pessoas a demandarem o atendimento fisioterapêutico, ressaltam-se as dores ou distúrbios cinéticos gerados por alterações genéticas ou resultantes de acidentes, traumas ou doenças adquiridas.

Vim agora trazer minha mãe que tem um problema no braço e há muitos dias que não dorme, só chora. Hoje é a segunda vez que ela vem e já está melhor.

Vim para o NAMI porque sinto fortes dores na coluna. Tenho tanta dor que não posso andar.

Em janeiro sofri um acidente praticando meu esporte preferido, o dirt (prática de bicicleta em barrancos de barro, lama), quebrei a rótula do joelho, tive que me submeter à cirurgia para colocar pinos. Ainda não consigo dobrar o joelho e o médico me encaminhou para a Fisioterapia.

As falas dos entrevistados evidenciam suas dores físicas; entretanto, mais que isso, percebe-se que ali estão pessoas que se sentem adoecidas, que sofrem e devem ser compreendidas como um todo, como um ser de experiência e fonte de emoções, pensamentos e comportamentos. Trata-se de perceber a doença muito além de uma afecção. O contato com os pacientes do NAMI revela o quanto a experiência de adoecer está constituída pelo mundo, pela cultura de uma classe social de baixa renda, de um bairro específico da cidade de Fortaleza, pela realidade social do país onde as pessoas estão acostumadas à precariedade do sistema de saúde e pelos elementos subjetivos ou endógenos que se encontram em cada singularidade, em sua interseção com o mundo.

O que se vive na experiência de adoecer

Estudar a experiência do adoecer é avaliar um complexo mundo de significados; é considerar do paciente o relato dos seus sentimentos, cognições e comportamentos; é ir além da descrição dos sintomas físicos. Ao centrar a atenção na experiência da doença e tentar perceber de que forma ela foi vivenciada subjetivamente, capta-se a expressão do vivido através dos relatos obtidos, emergindo eixos centrais de discussão que nos levam a compreender a doença como experiência subjetiva, implicada em um contexto maior. Vejamos algumas falas que dizem dessa vivência, e que constituem um recorte das inúmeras possibilidades que a experiência de adoecer traz à tona através das pessoas que vivenciam o impacto do adoecimento.

É uma dor que vai e volta. È uma dor cansada. Sentar incomoda, deitar incomoda, ficar em pé incomoda. Atrapalha a vida.

Lembro que senti uma raiva grande da minha filha e para não lhe dar uma panelada na cabeça, precisei me controlar. Nesta hora, senti um tremor forte nos lábios e nas mãos. Duas semanas depois, senti todo meu corpo se paralisar, uma forte dor nas costas não deixava eu me mexer. Mas continuei minha vida, só agora, dois anos depois o médico mandou fazer exames e disse que eu tinha tido uma A.V.C. Nem acreditei ... . Até hoje quando tenho raiva as dores nas costas aparecem.

É triste estar doente, é deprimente para quem é acostumado a trabalhar.

Tenho medo, sinto-me ameaçado: e se eu não melhorar?

Entrei em desespero. Nunca tinha entrado em um hospital antes. Fiquei internado três dias, tive alta e depois voltei para outro hospital para fazer a cirurgia". Foram quinze dias sem se mover. Ia ao banheiro com a ajuda da minha mãe.

O que se diz da experiência de adoecer denota a singularidade do humano, seus modos de adoecer e todo o sofrimento subjetivado que está implicado nesse processo, no qual existem exigências sociais e de subsistência. Adoecer pode significar ter que parar de trabalhar e todas as conseqüências possíveis dessa situação. Nesse sentido, adoecer pode ser uma situação desestabilizadora do equilíbrio psíquico e emocional, despertando na pessoa vivências de ansiedade, fantasias de impotência diante de uma situação de vulnerabilidade. A experiência de adoecimento representa, acima de tudo, uma experiência de ameaça e desamparo. Ameaça à integridade corporal, social, emocional, à auto-estima. Ameaça, em suma, à própria identidade como cidadão. A pessoa mostra-se geralmente confusa e aturdida com o impacto da doença e com as conseqüências refletidas na sua vida pessoal, familiar e social. A pessoa quer sair disso, quer voltar a ser o que era e como era, assusta-lhe ser e/ou estar diferente.

Estou com uma grande inflamação no joelho e me sinto limitado em minhas atividades físicas. Não posso correr, não posso jogar futebol, nem fazer meus exercícios.

Depois do acidente tive que ficar muito tempo em casa, sem poder sair. Este acidente atrapalhou todos os meus planos. Não pude tirar minha carteira de motorista, tive também que adiar o estágio. Faltei muita aula e não podia fazer as coisas que mais gostava.

Para me movimentar ficava sentada em uma cadeira que era levada para os cantos. Muitas vezes não consigo trabalhar e tenho que faltar ao serviço.

Constata-se que o adoecer gera impactos na vida prática, promove mudanças nas rotinas, levando a uma ruptura da realidade cotidiana da pessoa. Planos são adiados, atividades são interrompidas e o exercício dos papéis sociais torna-se comprometido, exigindo da pessoa enferma um esforço adaptativo para o qual mobiliza uma substancial parcela de suas energias.

Ressalta-se que uma das perdas mais temidas na experiência de adoecer parece ser a perda do emprego ou do trabalho. Em um contexto social nordestino brasileiro, onde predomina o alto índice de desemprego e subemprego, o adoecer constitui uma ameaça à sobrevivência e à própria identidade psicológica que se alicerça nas relações de trabalho. O trabalhador passa a não poder adoecer, nem sequer a faltar ao trabalho, pelo medo de vir a ficar desempregado.

O médico quis me dar um atestado para me liberar do trabalho por alguns dias. Não quis deixar de trabalhar. Trabalho há 22 anos e sempre evitei faltar. Continuei trabalhando normalmente, mesmo sentindo dor. Mas isso não foi porque a firma obrigou, não. Eu que quis.

Será que vou ter que me afastar do trabalho? Preciso estar presente. Além da doença, ainda tenho sempre esta preocupação. Este medo não vem da empresa, está dentro de mim. Sei que vivemos muita concorrência, quero estar presente para garantir meu emprego. Existem muitos lá fora para ocupar meu lugar.

Paradoxalmente, a relação que se estabelece com o trabalho e as condições que lhe são inerentes e oferecidas ao trabalhador podem ser fonte de doenças profissionais e outras formas de sofrimento físico e mental. O ambiente de trabalho gera doenças (Codo & Sampaio, 1995) e ao mesmo tempo não acolhe aquele que adoece:

Tenho doença de costureira. Trabalho numa confecção e sofro de dor nas costas e na coluna. O patrão não entende minhas faltas porque não consigo ir trabalhar. Ele até tem o mesmo problema de coluna, mas como ele é rico, ele pode.

Outro aspecto a ser refletido é a busca da assistência e a necessidade de suporte profissional. O pedido de ajuda profissional parece vir como forma de partilhar a confusão, aliviar medos, livrar-se do desconhecido e receber esperanças de melhoria na condição de saúde.

Que alívio! Estou a duas semanas e já me sinto bem melhor. A cada dia que passa a dor está melhorando.

Já fui ao Hospital Geral, mas fiquei decepcionada com o atendimento médico. O doutor me perguntou se eu queria operar. Eu lhe perguntei se operando eu iria ficar boa. Ele disse que não podia garantir. Mas fiquei decepcionada. Que médico é este que estudou e não sabe dizer o que é melhor? Se uma cliente me pergunta coisas da sua roupa, eu sei responder porque é a minha profissão. Não voltei mais lá.

Nesse momento, a relação entre o fisioterapeuta e o paciente adquire uma importância vital, caracterizando-se por ser de muita intimidade, proximidade e contatos físicos. Os profissionais realizam seus atendimentos em um ambiente onde se possibilita a conexão com cada singularidade, parecendo sensíveis à dimensão psicológica e sociocultural da clientela, o que favorece a acolhida do desamparo do paciente e o desequilíbrio que a experiência de adoecer gera. Cabe, portanto, ao fisioterapeuta uma importante parcela de responsabilidade no manejo terapêutico do paciente, cabendo-lhe definir os limites e potenciais de sua atuação a partir de uma compreensão múltipla das várias dimensões do processo do adoecer.

Só tenho elogios à forma como sou atendida. Tanto os profissionais, como os estudantes são atenciosos, conversam com a gente.

No NAMI o atendimento é especial. Não nos sentimos sozinhos. Na clínica particular é um profissional para um salão cheio de pacientes.

Emerge uma discussão sobre a confiança que deve permear toda relação terapêutica e as expectativas de cura depositadas nos profissionais de saúde. Até que ponto são trabalhados os sentimentos de onipotência dos profissionais? O que se faz com a clara necessidade de dialogar e empreender esforços comuns com outras especialidades na tentativa de favorecer o paciente?

Significados do adoecer

A partir do que se vive na experiência de adoecer, os sujeitos encontram sentidos para a compreensão do que é singular e universal nessa experiência. Esses significados articulam a experiência da doença e seu contexto de produção representando o que ocorre na interface entre o mundo e o indivíduo.

Na perspectiva da antropologia médica, a doença é entendida como uma realidade culturalmente constituída. Fazem-se importantes, portanto, as investigações sobre como os significados do adoecer interagem com o social, o psicológico e o biológico para produzir distintas formas de doenças e trajetórias de doenças, já que a doença e o sofrimento humano não podem ser compreendidos a partir de uma única perspectiva (Good,1994; Kleinman,1995).

Neste estudo, encontramos os seguintes significados para a experiência de adoecer:

a) A experiência de adoecer como vivência de despotencialização e exclusão social

Tive que pedir minhas contas. Estou de aviso. O patrão não aceitou meus atestados e descontou os dias. Lá em casa tá todo mundo desempregado.

Esta doença mudou muita coisa na minha vida. Perdi o emprego. Sou doméstica e meus patrões me demitiram porque eu não tinha mais condição de trabalhar como doméstica. Nem um móvel eu podia empurrar. Além de ser empregada doméstica eu ainda fazia salgados para fora. Hoje não consigo mais. Não sei o que vou fazer da vida. Meu trabalho era tudo que eu tinha. Precisa ter muita fé em Deus para a gente ir levando.

Tenho um filho que conseguiu um emprego. Na minha casa são seis adultos e um bebê. Tudo está nas costas dele. Me dá um desespero... .

A experiência de adoecer pode trazer perdas significativas e representar uma vivência de despotencialização. Emergem falas que se referem à falta de um trabalho como propósito de vida, condição de subsistência, de construção da subjetividade e realização humana. Não ter emprego é estar excluído socialmente. É não estar inserido em um modelo econômico capitalista no qual o valor de cada pessoa se dá por sua capacidade produtiva. Sem trabalho não há auto-estima, dignidade, cidadania.

A despotencialização, segundo Moreira e Sloan (2002), significa um estado psicológico caracterizado pela incapacidade de viver significativamente e pela falta de esperança, de perspectivas. O indivíduo doente se sente sem poder, sem vontade de viver; vive uma experiência de opressão, sem capacidade de desenvolver projetos de vida.

b) A experiência de adoecer como possibilidade de revisão da vida

Vivi a experiência de me sentir totalmente dependente. Tive medo de não poder voltar a fazer as coisas que sempre fiz. Acho que amadureci e passei a dar valor a algumas coisas que antes nem ligava.

Acho que não vou voltar para o Dirt. Meu pai não vai deixar. Ele já não gostava antes do acidente, agora então... Mas posso encontrar outro esporte.

Só quem passa por isso é quem sabe. Minha vida agora tem que mudar. Trabalhar como antes, nem pensar...

A vivência do adoecer pode ser tão impactante e marcar significativamente o indivíduo doente a ponto de provocar mudanças na sua vida, sobretudo nas suas relações consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Passar por um momento de fragilidade pode possibilitar uma experiência interior de reflexão, que aumenta a capacidade de tolerar, conter e elaborar os próprios limites e empreender uma revisão do estilo de vida.

c) A experiência de adoecer como benefício secundário

Estou melhorando com este tratamento. Mas gosto muito de vir para cá. É meu programa.

Quando venho para cá, relaxo, fico tranqüila. Não perco por nada meu horário.

Há seis anos sinto esta dor. Melhora, piora, melhora e a gente vai levando...

Queria me aposentar já que trabalhar não vou mais conseguir. Mas me disseram que por já ter sido dada baixa na carteira não tenho mais direito.. .

Essas falas evidenciam que o adoecimento pode dar origem também ao que se denomina benefício secundário, representado por vantagens que o indivíduo obtém a partir da doença. A expressão mais freqüente são as vantagens pecuniárias - pleiteadas junto à instituições de assistência social ou de seguridade social. Entretanto outros ganhos psicológicos podem mobilizar a permanência e a acomodação à situação de adoecimento.

Segundo relato dos profissionais, a reabilitação cria dependência. O cliente tem dificuldade de se desligar e esse fato exige a execução de um trabalho de preparação para o desligamento, reconhecido como um momento difícil para muitos pacientes, os quais, na sua maioria, são pessoas portadoras de inúmeras carências materiais, sociais e afetivas.

Como se trata de uma clientela muito carente, o momento de ser cuidado, de sair de casa e vir ao NAMI, passa a ser um evento social, algo diferenciado na vida dessas pessoas.

Essa análise demonstra que a exploração das perspectivas e experiências subjetivas dos pacientes possibilitam uma riqueza de dados relevantes para a biologia, psicologia e sociologia da doença, fornecendo importantes indícios para o clínico e para o pesquisador. Essa postura introduz a perspectiva do paciente e de seu contexto sócio-histórico, transcendendo o modelo biomédico tradicional.

Considerações Finais

Estudar a experiência do adoecer é avaliar um complexo mundo de significados e considerar no relato do doente seus sentimentos, cognições e comportamentos além da descrição dos sintomas físicos. Para além do aspecto biológico, o adoecer humano é um fenômeno sociocultural e deve ser compreendido em seus múltiplos contornos: biológico, psicológico, ideológico, histórico e sociocultural.

O sistema público de saúde no país, apesar de todos os avanços que os princípios do Sistema Único de Saúde preconizam, não disponibiliza ainda para a população serviços de saúde de forma acessível e universalizada. Nesse sentido, o NAMI vem ocupar um espaço fundamental para contribuir com a promoção da saúde e com a melhoria da qualidade de vida de populações mais carentes na cidade de Fortaleza. No Serviço de Fisioterapia do NAMI pode-se observar a humanização do atendimento e interação profissional-paciente com o claro intuito de potencializá-lo como protagonista de seu existir. Há um reconhecimento e uma valorização do humano, muito próprio nesse setor, algo nem sempre presente em outros núcleos de atenção médica. Talvez facilitados pelo tipo de atuação que desenvolvem, com o toque físico sendo privilegiado, a relação estabelecida fica em evidência e se torna uma aliada na condução dos processos de restabelecimento da saúde naquele ambiente. As pessoas que recorrem ao Serviço de Fisioterapia do NAMI sabem que vão encontrar profissionais qualificados não só para prestar um atendimento técnico diferencial, mas principalmente pessoas capazes de se sensibilizar com o estado em que se encontram e de ajudá-las a passar por toda essa situação. Fato interessante é a resistência de alguns pacientes que recebem alta, mas insistem em não querer deixar o atendimento no setor.

Sobre os resultados do estudo realizado, faz-se necessário evidenciar que a unidade social investigada, o Serviço de Fisioterapia, representa apenas um dos vários setores que integram o NAMI. Dessa forma, a realidade pesquisada não deve ser universalizada para toda a realidade do sistema NAMI, tendo em vista às especificidades do referido setor. Correr-se-ia o risco de se enviesar ou tornar tendenciosas conclusões embasadas na generalização da análise realizada. Sendo esta uma pesquisa qualitativa, não se pretende que seus resultados sejam generalizados. Sugerimos, portanto, que outros estudos qualitativos sejam realizados sobre a experiência vivida do adoecer.

Apesar de suas limitações, acreditamos que este estudo pode contribuir para melhorar a qualidade do atendimento no serviço público de saúde, a partir de uma visão mais completa do adoecer, que transcende o modelo biomédico. Assinala a importância de uma visão mais humanizada no atendimento ao paciente, com foco na pessoa mundana que ele é. A boa qualidade da relação entre o profissional de saúde e o paciente existe no Serviço de Fisioterapia do NAMI/UNIFOR diferencia esse serviço do encontrado em geral no serviço público de saúde. Os resultados desta pesquisa foram também divulgados junto ao próprio NAMI, no sentido de contribuir para a continuidade e a qualidade do trabalho ali desenvolvido.

Do ponto de vista metodológico, o trabalho de campo no NAMI nos levou à descoberta da possibilidade de integração valiosa da perspectiva etnográfica com a fenomenológica. Constata-se o quanto é valioso e necessário uma imersão em um determinado contexto, observando e captando o cotidiano, hábitos, costumes e práticas, seus eventos e padrões de interação para lançar algum olhar sobre qualquer fenômeno.

Como achados relevantes deste estudo descobrimos que a experiência de adoecer denota a singularidade do humano em sua mútua constituição com o contexto sociopolítico, histórico e econômico onde se insere, nesse caso, um bairro de periferia no Nordeste do Brasil, uma realidade cultural carente e de desemprego. Neste mundo, adoecer pode vir a significar um sofrimento que transcende o sintoma, implicando um sofrimento adicional pelo medo de ficar desempregado, excluído socialmente. Como significados elaborados, a experiência de adoecer foi identificada como uma vivência de despotencialização e exclusão social, como uma possibilidade de benefício secundário a despeito das várias perdas envolvidas e, ainda, como uma oportunidade de mudanças e revisão da vida. Entendemos que esses resultados encontram-se na interseção da singularidade de cada sujeito-colaborador com a universalidade da realidade cultural em que ele vive. É assim que este estudo supera o modelo biomédico tradicional, criando um novo caminho para a compreensão do adoecimento humano: o mundo da experiência vivida - o lebenswelt.

Recebido em: 13/10/2005

Versão final reapresentada em: 29/8/2006

Aprovado em: 10/10/2006

Gostaríamos de agradecer a direção do NAMI e, mais especificamente, os profissionais do Serviço de Fisioterapia pela abertura e colaboração neste estudo.

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    Artigo elaborado a partir das atividades desenvolvidas na disciplina Psicopatologia Fenomenológica e Cultura, ministrada pela Profa. Dra. Virginia Moreira no ano de 2004 no Programa de Mestrado de Psicologia da Universidade de Fortaleza, UNIFOR.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007

    Histórico

    • Aceito
      10 Out 2006
    • Revisado
      29 Ago 2006
    • Recebido
      13 Out 2005
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