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Implicações da teoria da evolução para a psicologia: a perspectiva da psicologia evolucionista

Implications of the theory of evolution for psychology: the evolutionist psychology perspective

Resumos

A idéia de que o comportamento humano está baseado em instintos mostrou-se popular entre os psicólogos há cem anos. Na atualidade, os psicólogos evolucionistas vêm postulando que o comportamento é fortemente influenciado por fatores hereditários, e que os mesmos objetivam ampliar a aptidão. O principal propósito deste estudo foi introduzir e discutir a teoria evolucionista e suas implicações para a área de psicologia. Os autores revisaram artigos e livros sobre o tema. Este artigo pode contribuir para o desenvolvimento de um novo paradigma para a etologia e para a psicologia comparativa no âmbito da psicologia brasileira.

Evolução; Mente humana; Psicologia


The idea that human behavior is based on instincts was popular among psychologists about 100 years ago. At the present time, the evolutionist psychologists postulate that behavior is strongly influenced by inherited factors, and that the aim of every human being is to enhance his own fitness. The main aim of this study is to introduce and to discuss the evolutionist theory and its implications for the area of Psychology. The authors reviewed articles and books on this subject. This paper can contribute to the development of a new paradigm for ethology and comparative psychology in the context of Brazilian psychology.

Theory of evolution; Human mind; Psychology


ARTIGOS

Implicações da teoria da evolução para a psicologia: a perspectiva da psicologia evolucionista

Implications of the theory of evolution for psychology: the evolutionist psychology perspective

Rafael Gimenes LopesI; Sílvio VasconcellosII, III

IPsicólogo Clinico, Clínica Reviver. Paranaguá, PR, Brasil

IIFaculdades de Taquara, Curso de Psicologia. Taquara, RS, Brasil

IIIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Curso de Especialização em Ciências Penais. Av. Ipiranga, 6681, 90619-900, Porto Alegre, RS, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: S. VASCONCELOS. E-mail: <silvv@pop.com.br>

RESUMO

A idéia de que o comportamento humano está baseado em instintos mostrou-se popular entre os psicólogos há cem anos. Na atualidade, os psicólogos evolucionistas vêm postulando que o comportamento é fortemente influenciado por fatores hereditários, e que os mesmos objetivam ampliar a aptidão. O principal propósito deste estudo foi introduzir e discutir a teoria evolucionista e suas implicações para a área de psicologia. Os autores revisaram artigos e livros sobre o tema. Este artigo pode contribuir para o desenvolvimento de um novo paradigma para a etologia e para a psicologia comparativa no âmbito da psicologia brasileira.

Unitermos: Evolução. Mente humana. Psicologia.

ABSTRACT

The idea that human behavior is based on instincts was popular among psychologists about 100 years ago. At the present time, the evolutionist psychologists postulate that behavior is strongly influenced by inherited factors, and that the aim of every human being is to enhance his own fitness. The main aim of this study is to introduce and to discuss the evolutionist theory and its implications for the area of Psychology. The authors reviewed articles and books on this subject. This paper can contribute to the development of a new paradigm for ethology and comparative psychology in the context of Brazilian psychology.

Uniterms: Theory of evolution. Human mind. Psychology.

Conforme se pode observar na maioria dos textos sobre psicologia, das mais diversas linhas, a ênfase das escolas tradicionais é voltada para o papel do ambiente, das relações familiares e da cultura como construtores da mente humana. Longe de desconsiderar a importância de teorias que são predominantemente ambientalistas, a psicologia evolucionista surge como uma reação ao paradigma dominante. Ela preocupa-se com o que os antepassados do homem teriam lhe deixado, como herança biológica, sobre o seu funcionamento mental. Sua proposta é a de investigar a "unidade psíquica da humanidade", ou seja, "a hipótese de trabalho da psicologia evolucionista é de que os diversos órgãos mentais que constituem a mente humana ... são típicos da espécie" (Wright, 1996, p.9).

Os psicólogos evolucionistas partem do princípio de que o ser humano nada mais é do que uma espécie animal, cujo nível de sofisticação comportamental mostra-se igualmente vinculado a um processo evolutivo e, sendo assim, sujeito às leis naturais, tal como ocorre nas demais espécies. Pode-se dizer, nesses termos, que a Psicologia Evolucionista tem seus fundamentos em basicamente dois ramos da ciência ou, tal como ressalta Pinker (1997, p.34):

A Psicologia Evolucionista reúne duas revoluções científicas. Uma é a revolução cognitiva das décadas de 50 e 60, que explica a mecânica do pensamento e emoção em temos de informação e computação. A outra é a revolução na biologia evolucionista na década de 60 e 70, que explica o complexo design adaptativo dos seres vivos em termos de seleção entre replicadores1 1 Replicador é o termo que Richard Dawkins utiliza no seu best-seller intitulado "O gene egoísta", para designar os genes. .

Com essa combinação, tal proposta atingiu "... sua promessa parcialmente cumprida de fazer uma ciência totalmente nova" (Wright, 1996, p.xix). Para Pinker (1997, p.34), "... a ciência cognitiva ajuda-nos a entender como uma mente é possível e que tipo de mente possuímos. A biologia evolucionista ajuda-nos a entender por que possuímos esse tipo de mente específico".

Essa nova área da psicologia baseia-se principalmente na biologia Evolucionista, e na Psicologia cognitiva, ou seja, a ciência que "... trata do modo como as pessoas percebem, aprendem, recordam e pensam sobre a informação." (Sternberg, 2000, p.22). A teoria evolucionista da mente "... oferece a esperança de comreendermos o projeto ou propósito da mente - não em algum sentido místico ou teleológico, mas no sentido do simulacro de engenharia que impregna o mundo natural" (Pinker, 2004, p.81).

Com base nas explicações de Tooby e Cosmides (1992), pode-se inferir que essa abordagem possui premissas fundamentais:

1) Há uma natureza humana universal, mas essa universalidade existe primariamente no nível de mecanismos psicológicos evoluídos, não de comportamentos culturais expressos.

2) Esses mecanismos psicológicos evoluídos são adaptações construídas pela seleção natural ao longo do tempo evolutivo.

3) A estrutura evoluída da mente humana é adaptada ao modo de vida dos caçadores coletores do Pleistoceno2 2 Pleistoceno corresponde ao período entre 1,8 milhão e 11 mil anos atrás. e não necessariamente às circunstâncias modernas.

O pressuposto da modularidade da mente

Atualmente se sabe, por intermédio da arqueologia, que durante a evolução humana o cérebro humano aumentou consideravelmente, sendo que a tarefa da psicologia evolucionista é verificar quais as implicações desse aumento para o funcionamento mental do ser humano. Pinker (2004, p.81) afirma que existem quatro disciplinas que podem auxiliar na compreensão de como as características biológicas e psicológicas se relacionam. A genética comportamental, as neurociências e a ciência cognitiva são três delas. A quarta disciplina é a psicologia evolucionista, que o autor define como "... a quarta ponte entre a biologia e a cultura ... o estudo da história filogenética e das funções adaptativas da mente".

Essa disciplina baseia-se na idéia de que a mente é um conjunto de módulos e que esses, por sua vez, são estruturas que fundamentam o funcionamento cognitivo, apresentando, ainda, especificidades quanto ao processamento de determinadas informações (Duchaine, Cosmides & Tooby, 2001). Seu pressuposto essencial é o de que tais módulos foram construídos pela seleção natural, ao longo da pré-história humana, para que os antepassados pudessem lidar, de maneira mais eficiente, com os problemas de sobrevivência e de reprodução que enfrentaram durante suas existências. A evolução teria, portanto, se encarregado de privilegiar algoritmos3 3 De acordo com Teixeira (1998, p.20) algoritmo é um "... processo ordenado por regras, que diz como deve se proceder para resolver um determinado problema. Um algoritmo é, pois, uma receita pra se fazer alguma coisa". que acabaram por conferir uma maior adaptabilidade para o organismo (Symons, 1992).

De acordo com esse mesmo entendimento, os algoritmos presentes nos módulos mentais do homem existem hoje porque foram úteis no passado evolutivo. Eles auxiliaram as pessoas a lidarem mais eficientemente com os desafios que enfrentaram. Portanto, a mente humana está adaptada ao modo de vida de seus ante-passados, pois "... no caso dos seres humanos, o desenho foi feito em um ambiente social muito diverso do ambiente contemporâneo" (Wright, 1996, p.160).

O homem evoluiu na época dos caçadores coletores, não na era dos computadores e das viagens espaciais. Além disso, o período em que o ser humano começou a abandonar as práticas de coleta e caça para gerar os alicerces da sociedade moderna representa, conforme salienta Zimmer (2003), apenas 1% de toda a história evolutiva dos hominídeos. Muitas das adaptações ocorridas podem representar, na atualidade, dificuldades diante de um contexto que, embora não tenha evoluído com base em uma perspectiva teleológica, alterou-se (Vasconcellos, 2005).

O postulado de que existem módulos inatos, guiando atitudes e preferências, não quer dizer que a aprendizagem é pouco importante. Mas significa que a capacidade de aprendizagem, ou o próprio ato de aprender "... é possibilitado pelo mecanismo inato projetado para efetuar o aprendizado. Afirmar que existem vários módulos inatos é afirmar que existem várias máquinas de aprender inatas, cada qual aprendendo segundo uma lógica específica" (Pinker, 1997, p.44). Pode-se dizer, nesse sentido, que a abordagem evolucionista "... fica tão à vontade com explicações de criação, como com as explicações da natureza" (Ridley, 2004, p.309).

De acordo com a psicologia evolucionista, os módulos do cérebro humano possuem informações sobre as situações que se revelaram estáveis durante seu tempo evolutivo; esses módulos possuiriam algoritmos próprios, tendo servido para operar de maneira mais eficaz que a daqueles que não os possuíam, nas tarefas cotidianas. Segundo Wright (1996, p.11).

Os milhares e milhares de genes que influenciam o comportamento humano - genes que constroem o cérebro humano e governam os neurotransmissores e os hormônios, definindo assim nossos órgãos mentais - têm sua razão de existir. E a razão é que estimularam nossos antepassados a transmitir seus genes à geração seguinte.

Apesar de alguns módulos terem sido descobertos, "sem dúvida existem outros ainda por descobrir" (Wright, 1996, p. 173).

A existência dos módulos especializados em resolver determinadas situações pressupõe "... a existência de uma natureza humana universal, constituída de mecanismos psicológicos, produtos da evolução. Esses mecanismos são adaptações resultantes de um processo de seleção natural ao longo do tempo evolucionário, ou seja, o modo de vida de nossos ancestrais caçadorescoletores da era pleistocena" (Moura, 2005, p.3).

A evolução do cérebro e a psicologia evolucionista

A competição entre os indivíduos nos níveis intra e interespécies também pode ser uma forma de seleção, em um processo semelhante à corrida armamentista, na qual ambos os lados produzem equipamentos cada vez mais capazes de superar o outro. Tal competição ocorre tanto nas atividades de sobrevivência, como de busca por comida, quanto na procura por parceiros sexuais. É bastante plausível que tal "corrida" tenha ocorrido no passado evolutivo do homem. Segundo Leakey (1994, p. 138), "... a construção de cérebros maiores pode ser vista como conseqüência de corridas armamentistas". Dessa maneira, indivíduos que possuíam cérebros maiores e com mais módulos especializados nas tarefas que viriam a enfrentar tiveram mais vantagens do que os outros e, conseqüentemente, se tornaram antepassados da espécie.

Mithen (2002), de um modo mais específico, apregoa que esse processo de modularização pode ter se iniciado há 35 milhões de anos, no decorrer da própria evolução dos primatas, quando já não bastava uma inteligência geral para lidar com os desafios do ambiente. O autor salienta, no entanto, que um processo de redescrição representacional, capaz de integrar o funcionamento de módulos distintos, deu-se em um período bem mais recente.

Embora essa seja a diferença mais óbvia entre os humanos modernos e seus ancestrais, não foi apenas o tamanho do cérebro que foi modificado, mas a "organização geral também mudou", conforme afirma Leakey (1994, p.139). Isto pode ser observado em marcas que o cérebro deixa na superfície interna do crânio. Essas marcas são capazes de fornecer pistas acerca da neuroanatomia dos antepassados do homem. Foram realizados estudos sobre os crânios antigos e afirma que "... o cérebro do australopitecíneo é essencialmente semelhante ao do macaco em sua organização" (Leakey, 1994, p.139). Ou seja, há pelo menos dois milhões de anos, com o surgimento do Homo Habilis, o cérebro se modificou em relação ao dos antropóides e, desde então, evoluiu em complexidade. Evidentemente, essas alterações deixaram importantes influências comportamentais e cognitivas na espécie, pois o cérebro é o órgão responsável pelo comportamento e pelas faculdades mentais (Buss, 1991).

Portanto, também de acordo com o paradigma evolucionista, é provável que as alterações no cérebro tenham trazido aos antepassados do homem diferenças comportamentais e cognitivas relevantes e vantajosas, em relação aos seus competidores. "Talvez as mais profundas diferenças entre o homem e os outros animais sejam comportamentais" (Pilbeam, 1977, p.94).

Em entrevista à Revista Superinteressante, o psicólogo evolucionista Miller (2002) afirmou: "... o que estamos compreendendo agora é que boa parte do nosso comportamento é produzida por circuitos do cérebro que evoluíram, originalmente, para que os nossos ancestrais se tornassem sexualmente atrativos".

De acordo com Miller (2001, p.15), a psicologia evolucionista "... vê a natureza humana como um conjunto de adaptações biológicas e tenta descobrir quais eram os problemas de vida e de reprodução que essas adaptações visavam a solucionar ao longo da evolução." Para esta ciência, as características mais importantes da mente humana foram construídas pela seleção natural, ao longo do processo evolutivo que deu origem aos humanos modernos. Da mesma maneira que o corpo humano possui diversos órgãos para realizar funções diferentes, sua mente possui vários "órgãos mentais", ou módulos, que foram especialmente projetados pelo(s) mesmo(s) processo(s) de engenharia que criou/criaram as demais características.

É importante definir o conceito de mente, para que se possa ter mais clareza daquilo que se pretende falar. Pinker (1997 p.168) a define da seguinte maneira: "... a mente é um órgão, um dispositivo biológico", e continua, "... a mente é o que o cérebro faz" (p.32, 1997). Para Fernandez (s/d, p.1): "... a mente é um estado funcional do cérebro (coisa que implica negar qualquer dualismo, que como o cartesiano, outorga à mente um estatuto ontológico separado do biológico, próprio do cérebro e independente dele)".

Desta maneira, referir-se à mente com base em um entendimento evolucionista não implica em afirmar que ela é algo destituído de materialidade. Não se trata de uma "fumacinha" invisível no espaço, mas da própria funcionalidade do cérebro. Nesses termos, conforme ressalta Miller, "... a mente humana é uma coleção de adaptações biológicas" (Miller, 2001, p.33).

Pinker destaca esse entendimento ao afirmar que "... a mente é um sistema de órgãos de computação, projetados pela seleção natural para resolver os tipos de problemas que nossos ancestrais enfrentavam em sua vida de coletores de alimentos, em especial entender e superar em estratégia os objetos, animais, plantas e outras pessoas" (Pinker, 1997, p.32).

Portanto, de acordo com uma perspectiva evolucionista, o que evoluiu foi a mente e não o comportamento, pois este "... não é apenas emitido ou evocado e também não provém diretamente da cultura ou da sociedade. Ele emerge de uma luta interna entre módu-los mentais com diferentes destinações e objetivos" (Pinker, 2004, p.67). E tal luta sofre interferência de diversos fatores, pois ocorre "... uma complexa interação entre (1) genes, (2) a anatomia do cérebro, (3) o estado bioquímico deste, (4) a educação que a pessoa recebeu na família, (5) o modo como a sociedade tratou este indivíduo e (6) os estímulos que se impõem à pessoa" (Pinker, 1997, p.64). Desse modo, as raízes biológicas da natureza humana expressa nos genes demonstram ser um significativo elo entre evolução e comportamento.

A seleção sexual

Conforme afirmado anteriormente, a seleção natural é capaz de produzir seres dos mais diferentes tipos. Entretanto, existe outra forma de seleção, embora esta segunda forma esteja contida dentro da primeira. Para autores como o psicólogo evolucionista Geoffrey Miller, a seleção sexual é de extrema importância para a compreensão da mente humana. Sua acepção é de que "... talvez as capacidades mais distintivas da mente humana tenham evoluído pela seleção sexual como indicadores de aptidão" (Miller, 2001, p.118).

Na seleção sexual, os indivíduos selecionam-se entre si. Eles competem com outros indivíduos de sua espécie por oportunidades sexuais. Não se trata de seleção que acarretará em adaptação ao ambiente, mas são os próprios integrantes de um determinado grupo taxonômico que irão selar o destino de sua espécie. Em outras palavras, os indivíduos selecionam os seus parceiros sexuais e, se os critérios pelo qual o fazem são genéticos, logo eles deixarão para sua prole não apenas os critérios para a seleção do parceiro, mas também as próprias características que foram usadas como critério. Segundo Miller (2001, p.18), "... a seleção natural surge pela competição para a sobrevivência e a seleção sexual surge pela competição para a reprodução". A lógica da seleção sexual pode ser resumida da seguinte maneira: "... genes constroem cérebros e corpos, que escolhem os genes que constroem os cérebros e corpos da próxima geração que, por sua vez, escolhem os genes que escolhem os genes" (Miller, 2001, p.81).

No passado, no tempo em que ocorreu a evolução da espécie, é bastante provável que as pessoas escolhessem os indivíduos com maior capacidade cognitiva. "O que distingue os humanos é que seu comportamento de sedução revela muito mais sobre suas mentes" (Miller, 2001, p.119). Assim, a seleção sexual ajuda a explicar o porquê de um cérebro grande que apresentou uma constância de crescimento, à medida que o tempo passava. "Durante a evolução humana, a seleção sexual parece ter mudado seu alvo primário do corpo para a mente" (Miller, 2001, p.21).

Tornou-se importante perceber se o cérebro era saudável e, para isso, precisava-se verificar, com atenção, tudo aquilo de que o portador de tal cérebro fosse capaz. Miller (2001, p.118) chama esta idéia de teoria do cérebro saudável. De acordo com esse mesmo entendimento, arte, imaginação, dentre outras capacidades cognitivas, podem ter surgido pela seleção sexual, pois apenas um cérebro saudável, que não fosse portador de uma mutação perigosa, seria capaz de produzir tais feitos. "Os machos que detinham maior cérebro eram mais bem-sucedidos porque eram criativos, sabiam usar melhor as ferramentas, conseguiam entender melhor as complexas relações sociais e, por isso, adquiriam melhor status, permitindo mais acasalamentos e herdeiros" (Maia, s/d, p.24).

Alguns estudiosos afirmam que a cultura estacionou a evolução e, portanto, as características humanas são apenas produtos da sociedade e da época em que se situam. De acordo com a perspectiva evolucionista, uma compreensão desse tipo negligencia o fato de que a cultura é apenas um produto da evolução, que precisou de um cérebro capaz de criá-la, e tal cérebro é produto da evolução (Tooby & Cosmides, 1992). Conforme Pinker (2001, p.93), "... a cultura depende de um conjunto de circuitos neurais responsável pela proeza que denominamos aprendizado".

Pode-se dizer que a posição dicotômica e simplista natureza x cultura vem sendo superada pela psicologia evolucionista. Para a referida abordagem, o mais adequado é considerar natureza e cultura, na formação da mente humana, como ambos importantes. Se algumas idéias tiverem base genética, é possível que tenham sido selecionadas, pois "... antes da evolução da linguagem, nossos ancestrais não podiam perceber facilmente os pensamentos uns dos outros, mas, após sua chegada, o próprio pensamento tornou-se sujeito à seleção sexual" (Miller, 2001, p.20).

De um modo geral, a psicologia evolucionista afirma que grande parte das práticas de cortejo que homens e mulheres utilizam hoje em dia foi selecionada, pois "... embora a seleção natural adapte as espécies aos seus ambientes, a seleção sexual molda cada sexo em relação ao outro sexo" (Miller, 2001, p.49). Com base nessa perspectiva, os mecanismos psicológicos foram se ajustando em cada um dos sexos.

Cooperação e emoções

Durante a pré-história, os hominídeos geralmente caçavam para a obtenção de alimentos. Com o surgimento do homo erectus, a caça se tornou uma maneira muito importante de subsistência, pois seus cérebros grandes exigiam um suprimento extra de energia. Esta necessidade levou-os a consumir carne, o que proporcionava uma alimentação mais energética, capaz de manter o cérebro grande, que precisava de mais energia que o anterior. De acordo com Leakey (1994, p.13):

O homo erectus foi a primeira espécie humana a utilizar o fogo; a primeira a incluir a caça como uma parte significativa de sua subsistência; a primeira capaz de correr como os humanos modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra de acordo com um padrão definido; a primeira a estender seus domínios além da África.

Conforme esse entendimento, a seleção modificou o corpo humano para a locomoção bípede, bem como para outras alterações. "Os circuitos para as emoções também não foram deixados intactos" (Pinker, 1997, p.391), pois "a evolução dos seres humanos consistiu principalmente de adaptação mútua" (Wright, 1996, p.10).

Para fabricar instrumentos com um padrão, era necessário que um membro ensinasse ao outro o modo de fazê-lo. Para caçar com sucesso, era necessária a existência de cooperação entre os membros do grupo que iria consumir o alimento. Dessa maneira, podem ter evoluído a cooperação e os sentimentos em relação aos outros, pois, "... amizade, afeição, confiança - são sentimentos que, muito antes de se assinarem contratos, muito antes de se redigirem leis, mantinham as sociedades coesas" (Wright, 1996, p.168). Sentimentos como estes podem ter surgido devido a alguma das duas formas de seleção, por exemplo, "... a gratidão faz as pessoas pagarem os favores sem pensar muito que é isto que estão fazendo" (Wright, p.160).

É provável que alguns sentimentos estivessem associados à troca de favores, como a partilha de alimentos (Ridley, 1996). Outros, como o sentimento de ter sido injustiçado, poderiam ser uma resposta à não cooperação de outrem, ou a um favor não retribuído. Conforme afirma Wright (1996, p.176):

Em uma espécie dotada de linguagem, uma maneira eficaz e pouco trabalhosa de premiar pessoas boas e punir as más é afetar sua reputação. Espalhar a notícia de que alguém foi desonesto com você é uma retaliação poderosa, pois leva as pessoas a não serem altruístas com ele, receosas de se verem prejudicadas.

Assim, aqueles que foram prejudicados por outrem teriam uma boa maneira de retaliar os trapaceiros ao denegrir a reputação destes, dizendo algo a seu respeito que faria com que as outras pessoas passassem a rejeitá-los. Por outro lado, o módulo da amizade teria evoluído para fortalecer alianças proveitosas entre indivíduos. As pessoas, quando recebem um favor, normalmente sentem-se pressionadas a retribuir.

A lealdade pode ter evoluído por motivos semelhantes aos da amizade. Em um contexto social, no qual era possível encontrar colaboradores e trapaceiros, as emoções seriam de grande utilidade para realizar esta diferenciação, para os hominídeos dos tempos antigos, pois "A disseminação de seus genes dependia do contato com seus vizinhos: por vezes, ajudando-os, outras desconhecendo-os, outras explorando-os, outras amando-os, outras odiando-os - possuindo a sensibilidade para distinguir quem merece que tipo de tratamento, e quando merece" (Wright, 1996, p.10).

Desse modo, "... o comportamento altruísta acabou, portanto, sendo favorecido pela lógica evolucionista e emergindo em estrutura cerebral que se tornou apta a levar em conta os custos e benefícios do seu emprego" (Vasconcellos & Gauer, 2004). O altruísmo ou ajuda mútua não apenas foi selecionado para auxiliar a sobrevivência dos antepassados do ser humano, mas também serviu como uma condição para a evolução de outros sentimentos. Por exemplo,

... comportamentos chamados de morais, que eram provavelmente freqüentes entre nossos ancestrais, são geralmente acompanhados de sentimentos. Eles são a culpa e o remorso quando consideramos que tratamos o outro de maneira injusta, a gratidão quando recebemos um favor, a indignação e a compaixão quando vemos algo que consideramos inadequado ou injusto (Oliva et al., 2006).

Durante a pré-história da humanidade, uma das características ambientais que foram constantes foi o ambiente social, a convivência em grupo. Isto pode ter acarretado a mudança quantitativa e qualitativa do cérebro. Desse modo, não por acaso, os estudos de Dunbar (1996), comparando diferentes espécies de primatas, evidenciam existir uma correlação significativa entre o tamanho do neocórtex com o tamanho dos grupos nos quais os indivíduos tendem a estar inseridos.

Já Humphrey (1994) postula que a consciência surgiu como um modelo diante da própria necessidade que o homem sente de entender o que se passa com os indivíduos que o cercam. Para Pilbeam: (1977, p.94) "... a complexidade e organização do cérebro estão diretamente relacionados ao fato de que o cérebro do Homo Sapiens está grandemente ampliado quando comparado com os cérebros de outros primatas".

A característica mais marcante, ao se comparar os humanos atuais com os hominídeos antepassados, é o tamanho do cérebro. O impacto da convivência em grupo e das situações com as quais seus antepassados se depararam teve conseqüências muito importantes para a espécie.

"Na década de 1990, os psicólogos evolutivos chegaram ao consenso de que a inteligência humana evoluiu, em grande parte, em resposta a desafios sociais, em vez de ecológicos ou tecnológicos" (Miller, 2001, p.22). O cérebro aumentou cerca de três vezes em tamanho desde os Australopithecus. Não apenas isso se modificou, mas a disposição do tecido nervoso também. Os segmentos frontais do cérebro foram os que mais se desenvolveram.

Por que um cérebro desse tamanho teria se desenvolvido, se não fosse para abarcar informações úteis ao modo de vida dos antepassados, já que pelo menos uma parte deste foi constante por um longo período?

Considerações Finais

Vivemos numa época muito propícia para realizar a tarefa de diálogo interdisciplinar entre diferentes abordagens, pois com os recentes avanços das Neuro-ciências e da Genética, somados aos conhecimentos já acumulados pelas diferentes correntes da Psicologia será possível compreendermos melhor nossa mente e nosso comportamento. A Psicologia Evolucionista é uma forte candidata a servir de ponte entre os conhecimentos sobre o ser humano, pois quanto mais nós entendermos sobre nosso passado evolutivo, melhor nós entenderemos nossos cérebros e nosso comportamento. Para isso, faz-se necessário olharmos com mais atenção para a evolução humana e verificarmos que o cérebro não pode ter evoluído sem motivo. Certamente, existiram forças que fizeram com que esse mesmo órgão apresentasse o aumento gradual que, hoje, a Arqueologia é capaz de apontar. Pode-se destacar ainda o fato de que o triplicamento do cérebro sugere uma amplificação das capacidades cognitivas.

A teoria da evolução surgiu na metade do século XIX, gerou muita polêmica, mas após muitas evidências terem sido encontradas a seu favor, ela está plenamente aceita nas ciências naturais. Com o avanço recente e acelerado das ciências biológicas, podemos esperar o surgimento de novas teorias e descobertas a respeito da relação cérebro-cognição-comportamento-evolução, e, sem dúvida, essas novas idéias poderão auxiliar de maneira decisiva a compreensão que temos de nós mesmos.

De um modo geral, pode-se concluir que as idéias evolucionistas podem propiciar uma nova maneira de pensar a Psicologia, fundamentando-se em princípios diferenciados, que por sua vez, sugerem a sua própria solidez. Afinal, a teoria da evolução pode ser considerada uma das teorias mais poderosas de uma outra ciência - a Biologia. Nesta, a teoria de Darwin fortificou-a, tornando os fatos e descobertas antes dispersos, compreensíveis. Dessa forma, estaremos realizando a previsão que Darwin fizera mais de 150 anos atrás: "a Psicologia se assentará em um novo alicerce".

Recebido em: 29/8/2006

Versão final reapresentada em: 1/11/2007

Aprovado em: 18/4/2007

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  • 1
    Replicador é o termo que Richard Dawkins utiliza no seu best-seller intitulado "O gene egoísta", para designar os genes.
  • 2
    Pleistoceno corresponde ao período entre 1,8 milhão e 11 mil anos atrás.
  • 3
    De acordo com Teixeira (1998, p.20) algoritmo é um "... processo ordenado por regras, que diz como deve se proceder para resolver um determinado problema. Um algoritmo é, pois, uma receita pra se fazer alguma coisa".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Aceito
      18 Abr 2007
    • Recebido
      29 Ago 2006
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