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Mãe é a que cria: o significado de uma maternidade substituta

Being a mother means being a carer: the meaning of foster motherhood

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender o significado da figura materna na promoção de saúde mental em uma relação mãe-filho, provisória e substituta, como o estabelecido em programa de família acolhedora. Participaram dessa pesquisa quatro das seis mulheres que compõem o universo de mães substitutas do Programa de Famílias Acolhedoras, promovido pela Secretaria da Ação Social do Estado do Ceará, e as crianças e adolescentes acolhidos por elas. A metodologia caracterizou-se por realização de grupo focal com as mães acolhedoras, complementada pelo uso de desenho com as crianças e adolescentes. Para a composição dos dados dos sujeitos, utilizaram-se documentos da instituição coordenadora do programa, e para a análise dos discursos, adotou-se a hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur. A relação estabelecida entre a mãe acolhedora e a criança ou adolescente cuidado foi compreendida como uma relação geradora de vínculo e fundamentada em sentimentos afetuosos.

Adolescente; Criança; Comportamento de apego; Acolhimento familiar; Saúde mental


The main goal of this research is to understand the importance of the mother figure for a child's mental health in a foster situation. Taking part in this study were four of the six mothers who work for the Foster Families Program promoted by the Ceará state government, and their respective foster children. The investigation method was characterized by means of a focal group including the foster mothers, which was supplemented by the use of drawings with the children. Documents from the program's coordinating institution were used in order to build the subjects' profile. Hermeneutic Phenomenology, based on Paul Ricoeur's theory, was used to analyze the discourses. Thus, the relationship established between the foster mother and the child or adolescent in her care can be interpreted as one which generates a bond and which is based on affection and attachment.

Adolescent; Child; Attachment behavior; Foster parents; Mental health


Mãe é a que cria: o significado de uma maternidade substituta1 1 Artigo elaborado a partir da dissertação de C.M. CAVALCANTE, intitulada "Relações interpessoais na atenção à saúde mental de crianças residentes em lares substitutos". Universidade Estadual do Ceará. 2006.

Being a mother means being a carer: the meaning of foster motherhood

Cinthia Mendonça CavalcanteI; Maria Salete Bessa JorgeII

IUniversidade Estadual do Ceará, Grupo de Pesquisa em Saúde Mental, Família, Práticas de Saúde e Enfermagem. Fortaleza, CE, Brasil

IIUniversidade Estadual do Ceará, Programa de Mestrado e Doutorado em Saúde Pública. Av. Paranjana, 1700, 60740-903, Campus do Itaperi, Fortaleza, CE, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: E-mails: <fcinthia@hotmail.com>, <masabejo@uol.com.br>

RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender o significado da figura materna na promoção de saúde mental em uma relação mãe-filho, provisória e substituta, como o estabelecido em programa de família acolhedora. Participaram dessa pesquisa quatro das seis mulheres que compõem o universo de mães substitutas do Programa de Famílias Acolhedoras, promovido pela Secretaria da Ação Social do Estado do Ceará, e as crianças e adolescentes acolhidos por elas. A metodologia caracterizou-se por realização de grupo focal com as mães acolhedoras, complementada pelo uso de desenho com as crianças e adolescentes. Para a composição dos dados dos sujeitos, utilizaram-se documentos da instituição coordenadora do programa, e para a análise dos discursos, adotou-se a hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur. A relação estabelecida entre a mãe acolhedora e a criança ou adolescente cuidado foi compreendida como uma relação geradora de vínculo e fundamentada em sentimentos afetuosos.

Unitermos: Adolescente. Criança. Comportamento de apego. Acolhimento familiar. Saúde mental.

Abstract

The main goal of this research is to understand the importance of the mother figure for a child's mental health in a foster situation. Taking part in this study were four of the six mothers who work for the Foster Families Program promoted by the Ceará state government, and their respective foster children. The investigation method was characterized by means of a focal group including the foster mothers, which was supplemented by the use of drawings with the children. Documents from the program's coordinating institution were used in order to build the subjects' profile. Hermeneutic Phenomenology, based on Paul Ricoeur's theory, was used to analyze the discourses. Thus, the relationship established between the foster mother and the child or adolescent in her care can be interpreted as one which generates a bond and which is based on affection and attachment.

Uniterms: Adolescent. Child. Attachment behavior. Foster parents. Mental health.

No Brasil, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), "toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária " (art. 19). No entanto, esse é um direito ainda não plenamente assegurado a um grande número de crianças brasileiras desde os séculos passados.

Segundo Orlandi (1985), na antigüidade era muito comum usar crianças como objetos de rituais de magia e sacrifício. O infanticídio, o abandono, castigos e espancamentos eram práticas usuais cometidas contra crianças nessa época (Àries, 1981; Perrot, 1992; Trindade, 1999; Silva, Silva, Nóbrega & Ferreira Filha, 2004). Com efeito, até o século XVII a criança era conceituada como algo sem valia e quase sem importância. Representava para a família um grande sacrifício, e facilmente se tornava vítima do abandono (Martins & Szymansky, 2004). A partir desse século, porém, começou a haver uma mudança no sentimento em relação à infância mas, apesar de esse sentimento ter tomado outra conotação, o abandono no século XVIII ainda chegava a números absurdos. Todavia, conforme Trindade (1999), o século XIX apresentou algumas transformações desse conceito, pois, pelo menos, a segurança das crianças era assegurada, ainda que por meio do dever moral e da caridade de determinadas instituições. Estas, como consta nos arquivos dos asilos que datam desse século, enfrentavam inúmeras dificuldades para o atendimento ao sempre crescente número de crianças abandonadas. O abandono, por sua vez, não era percebido como crime. Desse modo, tornava-se um acontecimento rotineiro, um mal sem muitas conseqüências. Diante de tal prática, veio a resposta da Igreja, que foi a utilização dos mosteiros como locais de abrigo para os chamados enjeitados ou expostos. As crianças deixadas nesses locais recebiam alimentação, educação, roupas e "salvação", no entanto, não tinham opção de vocação, e deveriam fazer os votos de pobreza, obediência e castidade (Silva et al., 2004).

Atualmente, o entendimento de infância em nada se assemelha ao do passado, mas esse novo olhar não tem sido suficiente para assegurar às crianças o direito básico de serem educadas no seio da sua família de origem. Ante esta realidade, torna-se importante a criação de medidas alternativas destinadas a lhes garantir a convivência familiar, mesmo em família substituta. Silva (2005, p.290) corrobora estas afirmações. Como assevera, "meninos e meninas afro-descendentes foram e ainda são condenados a viver em abrigos até a maioridade, assumindo o abrigo a função de um substitutivo para a família".

Os abrigos ou orfanatos, como são popularmente conhecidos, devem ser de caráter excepcional e provisório (ECA, art. 101, parágrafo único). Esta lei, contudo, não condiz ainda com a realidade da assistência brasileira. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Diretoria de Estudos Sociais (DISOC) (IPEA/DISOC, 2003), grande parte das instituições de abrigo são administradas por entidades religiosas e/ou assistenciais regidas por suas próprias crenças, e não necessariamente se aproximam dos princípios do ECA. Ainda segundo a pesquisa, apenas pouco mais de 20 mil crianças têm sido atendidas em abrigos da Rede de Serviços e Ações Continuadas (SAC) da assistência social, os quais, obrigatoriamente, devem prezar pelo cumprimento dos objetivos do ECA. Mesmo assim, conforme se constatou, menos de 1% das instituições da Rede SAC desenvolvem programas voltados à manutenção da convivência familiar. Um exemplo desse tipo de programa é o de famílias acolhedoras, o qual trabalha com famílias substitutas, e cujo objetivo é o estabelecimento de convivência familiar na impossibilidade ou espera pela adoção, respeitando, assim, os princípios e objetivos do ECA no tocante ao direito à família e garantindo o caráter provisório da instituição de abrigo, a qual deverá ser utilizada "... como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade" (ECA, art. 101, inciso VII).

O intuito do Programa de Famílias Acolhedoras não é usá-las como substitutas da família de origem, mas utilizá-las como forma primeira de acolher a criança ou o adolescente em situação de abandono e/ou risco. Dessa forma, viabiliza o processo de transição mediante um atendimento individual humanizado, ao contrário das frias relações geralmente ocorridas nas instituições.

Como se percebeu, o cuidar gerado em instituições de abrigo ou orfanatos não substitui o cuidar de uma relação tão importante e que gera características tão essenciais para o bem-estar emocional e o desenvolvimento de relações interpessoais. Um exemplo convincente sobre o assunto é o de Spitz (1945), no seu clássico trabalho, ao estudar em um orfanato as relações vinculares por meio da observação de bebês supridos em suas necessidades básicas (alimentação, vestuário, entre outras), mas privados de afeto. Eles não eram sequer embalados ou segurados no colo. Esses bebês acabavam desenvolvendo o que o autor denominou de "síndrome do hospitalismo", caracterizada por dificuldades no desenvolvimento físico, falta de apetite e perda de interesse em se relacionar, levando ao óbito a maioria dos bebês. Conforme concluiu Spitz (1945), esse resultado era conseqüência da falta de afeto.

Essa falta de afeto não produz somente efeitos fisiológicos, pois seus reflexos na saúde mental daqueles que experienciam a vida em instituições desde muito jovens são também muito graves. Segundo Abreu (2001), em um estudo realizado com crianças e adolescentes residentes em orfanatos, estes têm seis vezes mais chances de desenvolver transtornos psiquiátricos do que aqueles que vivem com suas famílias. No referido estudo, os transtornos mais comuns foram depressão e deficiência mental (encontrados tanto em crianças que viviam em instituições como em suas famílias), hiperatividade, ansiedade e transtorno de conduta (encontrados somente na população residente em instituição).

Como assegura Vicente (2000, p.52), "a família natural ou substituta é sempre melhor do que qualquer instituição de internação, pois a institucionalização tem historicamente produzido crianças analfabetas e sem perspectivas de vida autônoma".

Algumas pesquisas têm sido realizadas na tentativa de verificar e comparar os efeitos gerados tanto pelas instituições de abrigo quanta pelas famílias acolhedoras. Por exemplo, em estudo elaborado pela Beijing Normal University, Shang, Liu e Cheng (2001) mostraram que as crianças residentes em lar acolhedor (programa relativamente recente naquele país) apresentaram diferença significativa em termos de desenvolvimento emocional e social, em relação àquelas que estavam nas instituições. E as crianças residentes em famílias acolhedoras disseram estar mais satisfeitas com a vida do que as crianças residentes em orfanatos.

Outro estudo, desenvolvido por Barth (2002), da Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos, observou os efeitos gerados pelo cuidar em crianças residentes em instituições do tipo abrigo e crianças em lares acolhedores. Conforme concluiu, as instituições, além de serem menos seguras, menos estáveis e menos capazes de produzir efeitos positivos para as crianças, também se mostraram mais dispendiosas do que o sistema de famílias acolhedoras.

No Ceará, a Secretaria da Ação Social, em colóquio técnico da Rede Nacional de Abrigos, apresentou alguns resultados sobre as diferenças entre crianças residentes em abrigos e aquelas residentes em famílias acolhedoras, em vários aspectos (Carreirão, 2005). Entre esses, relatou-se o emocional, por mostrar que crianças em famílias acolhedoras recebem afeto e têm semblante alegre e auto-estima mais elevada do que as residentes em abrigos.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em conjunto com a Lei Orgânica de Ação Social (LOAS), assegura essa forma de cuidar em alguns municípios, e atribui ao poder público a responsabilidade não só de prover uma receita para as famílias substitutas, mas também ajuda médica, educacional e psicológica. Desse modo, facilitaria a adaptação das crianças à nova situação e as auxiliaria na superação de traumas (IPEA/DISOC, 2003). Ademais, com essa ação, o Estado apóia os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como base a saúde como direito de todos e dever do Estado, agindo em prol da saúde mental.

O conceito de saúde mental é abrangente; portanto, não se restringe apenas à ausência de um diagnóstico psiquiátrico. Nesse sentido, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde mental como "a capacidade de estabelecer relações harmoniosas com os demais e a contribuição construtiva nas modificações do ambiente físico e social" (Espinosa, 1998, p.16). Dessa forma, ao falar de saúde mental, subtende-se o estabelecimento de vínculos saudáveis, nos quais se pode ser protagonista da construção do meio em que se vive. No entanto, para esses vínculos se estabelecerem, as relações primárias que se constituem nos primeiros cuidados recebidos pelo bebê devem ser harmoniosas. Isto é confirmado por Bowlby (2002), ao afirmar que "A qualidade dos cuidados parentais que uma criança recebe nos seus primeiros anos de vida é de importância vital para a sua saúde mental futura". Não só isso, mas o vínculo afetivo desenvolvido entre mãe e filho, por meio desses cuidados primários, será essencial e responsável pelas relações que a criança venha a desenvolver com outros (Silva et al., 2004).

A palavra vínculo origina-se do latim e significa algo que junta, une, ou liga as pessoas. Por conseguinte, quando há vínculo há ligação, relação. Ocorre, segundo Campos (2003), uma interdependência, e por isso a construção de um vínculo depende de uma interação complementar. No sentido do cuidado, o vínculo se inicia quando existe um que necessita e outro que se dispõe a ajudar. Pela relação de dependência, a mãe (ou pessoa que faria seu papel), por ser aquela que satisfaz as primeiras necessidades fisiológicas, principalmente de alimento e conforto, torna-se a primeira relação afetiva de intimidade do indivíduo (Freud, 1949). Como afirma McAdams (1989), o ato de sugar o leite se constitui na forma primeira e mais primitiva de conhecer o outro na sua intimidade. Portanto, a necessidade fisiológica gera contato, que produz conhecimento, intimidade e, conseqüentemente, afeto. Assim, "o sujeito tem de aceitar como condição indispensável da vida esta extrema dependência inicial que marcará para sempre seu desenvolvimento psicológico" (Kusnetzoff, 1982, p.35).

Ao se falar, entretanto, da relação da criança com sua mãe, refere-se a uma situação adequada e ideal para um desenvolvimento infantil sadio. Porém, nem sempre é possível ser a relação primária estabelecida com a mãe biológica. Desse modo, se a criança tiver uma pessoa que cuide dela de forma permanente, o desenvolvimento também poderá acontecer de maneira satisfatória, como mostra Kusnetzoff (1982, p.34):

Embora seja indiscutível que o primeiro objeto com o qual o ser humano se relaciona é sua mãe, nem sempre esta mãe precisa ser sua, nem esta sua precisa ser mãe. Este pequeno trocadilho quer frisar que a mãe ... é mais que um conceito, é uma função, que ocupará um lugar com determinadas significações para cada criança em particular.

Assim, é muito comum que, em alguns momentos, em vez do termo mãe, ou mãe substituta, seja utilizado o termo "cuidador" ou "cuidadora" para se referir à função materna, pois esta não necessariamente está diretamente vinculada à figura da mãe biológica.

De acordo com o demonstrado por estudos de Ainsworth, Blehar e Wall (1978), Rothbard e Shaver (1994), Bowlby (2002), e tantos outros, o vínculo inicial originado dos cuidados maternos primários tem influência direta sobre o desenvolvimento da personalidade nas áreas social, emocional e interpessoal. Ou seja, as marcas geradas em um indivíduo por meio dos vínculos firmados nos primeiros anos de vida, ou da não firmação desses vínculos, podem trazer conseqüências sérias no desenvolvimento de sua personalidade e, por conseguinte, no estabelecimento de sua saúde mental. Assim, no intuito de prevenir esses efeitos, dever-se-ia poder evitar a privação materna. Isto, de forma geral, parece ser algo difícil. No entanto, como acredita Bowlby (2002), pode ser feito se for possível evitar o que ele chama de fracasso familiar ou divisão da família, e garantir ser a criança cuidada por familiares. Mas, para isso, devem ser criadas condições com vistas à assistência médica, social e econômica dos cuidadores responsáveis.

A literatura é uníssona em relação aos efeitos negativos desta privação sobre indivíduos oriundos de orfanatos. Tais efeitos chegam a ser nocivos à saúde mental do indivíduo e produzem conseqüências sobre a sociedade. No entanto, na literatura acadêmica brasileira, sob o enfoque da psicologia, há escassez de trabalhos sobre o sistema de lar substituto (Prada, 2002) e, de forma específica, sobre o Programa de Famílias Acolhedoras.

Diante dessa limitação, este estudo objetivou compreender o significado da figura materna na promoção de saúde mental em uma relação mãe-filho, provisória e substituta, como o estabelecido no Programa de Famílias Acolhedoras.

Método

A matriz institucional do abrigo onde foi realizada a pesquisa é constituída da Secretaria da Ação Social do Estado do Ceará/Ministério Público, Justiça da Infância e Adolescência, Defensoria Pública, Delegacia Especializada e Conselho Tutelar. Funcionam no local dois sistemas operacionais: abrigo e lar substituto. Todavia, a pesquisa foi desenvolvida apenas no âmbito do lar substituto, o qual se fundamenta no Programa Família Acolhedora. Este tem sido efetivado pelo governo do Ceará desde junho de 1985 até o momento.

Foram sujeitos dessa pesquisa as crianças residentes em lar acolhedor e suas mães substitutas, no total de quatro mães acolhedoras e oito crianças/adolescentes entre quatro e 21 anos. No total, o programa era composto por seis mães e dez crianças/adolescentes, porém apenas quatro mães aceitaram fazer parte da pesquisa, pois as outras duas estavam impossibilitadas fisicamente de comparecer à reunião inicial e às sessões de grupo focal. No referente às crianças/adolescentes, participaram do estudo todas as que estavam sendo cuidadas pelas quatro mães, no total de oito crianças/adolescentes.

Conforme recomendado pelas normas éticas, os participantes não foram identificados por seus nomes. As mães escolheram para si nomes de sua preferência, tais como: Renata, Regina, Isabella e Júlia. Em relação às crianças/adolescentes, foram-lhes atribuídos nomes de personagens de histórias infantis, como: Homem Aranha (10 anos), Cinderela (13 anos), Super-Homem (15 anos), Ursinho Gummy (4 anos), Batman (17 anos), Robin (18 anos), Shrek (21 anos) e X-Man (10 anos). Renata cuida de Super-Homem há nove anos; Regina é mãe de Robin há dez anos; Isabella cuida de Shrek há oito anos, e de X-Man e Batman há sete anos; e Júlia tem sido mãe acolhedora de Cinderela há dez anos, de Homem Aranha há oito anos e de Ursinho Gummy há três meses.

Três das mães acolhedoras eram casadas e uma era solteira. A religião predominante no grupo era católica, mas havia uma evangélica. Quanto ao nível de escolaridade, a maioria tinha o fundamental, enquanto o perfil sócio-econômico de todas elas era de renda baixa, proveniente da aposentadoria ou do trabalho do cônjuge, e complementada pela ajuda dos filhos e da quantia recebida do governo pelo trabalho de mãe acolhedora. Sobre o tempo de participação no programa, a maior parte delas está desde o início. Assim, a mais nova tem nove anos de experiência como mãe acolhedora, e a mais velha está desde o início, isto é, há mais de vinte anos.

Quanto ao perfil das crianças e adolescentes, é importante ressaltar que a maioria está no programa há mais de sete anos, e foram inseridos nele por demonstrar necessidades especiais e/ou problemas de comportamento. Em virtude das dificuldades apresentadas, o nível de escolaridade é o Fundamental. Apenas três deles estiveram em outras famílias acolhedoras: Shrek, Batman e Super-Homem. Os demais estão na mesma família desde o ingresso no programa. Quanto às necessidades especiais, na sua maioria, derivam das situações de exposição e risco vividas por eles na gestação ou na primeira infância, e variam entre físicas e mentais. Dois deles são portadores de Síndrome de Down.

No referente às técnicas de coleta dos discursos utilizadas nesse estudo, mencionam-se grupo focal e análise de desenhos das crianças. Além disso, para auxiliar na complementação dos dados dos sujeitos, procedeu-se ao levantamento documental de arquivos e relatórios institucionais. Após este levantamento, fez-se uso dos seguintes documentos: registro de atendimento do serviço social, registro de atendimento da psicologia, registro de atendimento da pedagogia, prontuário de saúde física e relatório S.O.S. Criança, que contém os registros das experiências vividas pela criança ou adolescente antes de chegar ao abrigo.

Nesse estudo, o grupo focal aconteceu na instituição coordenadora do programa, em cinco sessões de grupo, com duração de uma hora e meia. Nele, as mães participantes discutiram sobre temas que trataram de suas experiências e percepções como cuidadoras de crianças/adolescentes em famílias acolhedoras.

Por ser o desenho um meio pelo qual a criança expressa sua vivência emocional (Souza, Camargo & Bilgacov, 2003), esse estudo utilizou a produção de três desenhos, elaborados na casa da família acolhedora e surgidos a partir da interação da criança ou adolescente com a pesquisadora. Como orientação, a pesquisadora pedia que as crianças desenhassem, primeiro, elas mesmas, e depois, suas famílias (sem direcionar se a de origem ou a biológica) e, por fim, suas mães (nas mesmas condições). Esta técnica foi usada de forma complementar, para melhor compreensão da relação mãe-filho.

Os registros foram feitos por gravação em fitas cassetes, mediante consentimento do grupo. Com base nos dados coletados, foi elaborado um relatório do grupo focal, que compreendeu a descrição dos resultados e sua análise. Em relação às crianças e aos adolescentes, os discursos foram gravados com o consentimento do responsável, no caso, a diretora do abrigo.

Para iniciar a obtenção dos primeiros discursos, trabalhou-se com amostragem conceitual e, para a coleta e análise dos mesmos, utilizou-se o processo de saturação teórica.

A fenomenologia hermenêutica de Paul Ricoeur foi o método utilizado para construir e reconstruir a realidade estudada mediante a interpretação e confronto de diversos pontos de vista dos sujeitos do estudo, estabelecendo uma articulação entre o referencial teórico e os dados empíricos obtidos.

Segundo o autor, a interpretação se dá entre a vivência do sujeito e a linguagem, e acontece por meio de determinados conceitos, como distanciamento, apropriação, explicação e compreensão (Ricoeur, 1991; 1995). Pelo distanciamento, há uma objetivação do texto, livrando-o, assim, das intenções do autor e dando-lhe vida própria, já que o mesmo texto pode ter vários significados e ser interpretado de formas diferentes por pessoas diferentes (Geanellos, 1998). Quanto à apropriação, acontece quando a pessoa que lê o texto apropria-se do seu significado e o transforma em algo seu (Caprara & Veras 2005). A articulação entre explicação e compreensão se dá no plano do "sentido da obra" (Ricoeur, 2000). Portanto, segundo Geanellos (2000), o processo interpretativo ocorre em etapas nas quais a experiência de vida é expressa por meio da verbalização coletada mediante entrevistas e transcrita em textos e, a seguir, interpretada.

Nesse percurso metodológico, os discursos gerados pelo grupo focal e desenhos foram gravados em fitas de áudio e transcritos. Após esse primeiro momento, depois de exaustivas leituras, fez-se uma primeira interpretação superficial, no intuito de compreender o conteúdo em termos gerais e identificar os temas principais (Caprara & Veras, 2005). Analisaram-se esses temas a partir de pré-compreensões que influenciam a interpretação, e fez-se o diálogo entre os temas e os autores que os abordam (Ricoeur, 1995). Portanto, foi construído um diálogo entre a experiência das pesquisadoras sobre alguns episódios percebidos nos fragmentos dos discursos e a abordagem teórica em discussão. Nesse momento final do processo, houve a intenção de compreender a relação entre o todo e as partes do texto, tal como pontuado por Caprara e Veras (2005).

Resultados e Discussão

Apesar da existência de vários motivos que levam uma criança a necessitar de abrigamento, um só fundamenta a presença dela em um programa como a Família Acolhedora: a ausência de um cuidador, seja ele permanente ou provisório.

Inegavelmente, muitas são as conseqüências que uma criança sofre diante de uma experiência como essa, sobretudo em idade tão tenra. Como principais, mencionam-se a carência afetiva e o sentimento de insegurança, entre outros.

Nesse sentido, como acredita Júlia, uma das mães acolhedoras, a necessidade e a carência materna trazidas pela criança que tem experienciado a situação de abandono são alguns dos fatores importantes a determinar esse novo vínculo: "E o que eu acho mais importante... é que eles chegam na casa da gente e chamam logo a gente de mãe... mãe... . Ai, isso daí é que toca mais a gente".

Essa necessidade é confirmada no desenho de uma criança de quatro anos (Figura 1), cuidada por Júlia há três meses. Ao desenhar sua família, embora de forma confusa, esta criança desenha primeiramente a mãe acolhedora e a chama de mãe: "É a minha mãe, esse é o óculos... . É a Júlia" (Ursinho Gummy).


Como afirma Campos (2005), o vínculo impõe uma relação de reciprocidade. A necessidade materna da criança sensibiliza a mãe acolhedora, que aceita essa função e, assim, corresponde ao papel que lhe é atribuído. Para Pichon-Riviére (1995, p.81), "... quando o ambiente ou os outros nos adjudicam um determinado papel, podemos assumi-lo de forma inconsciente. Nas relações sociais ocorre um intercâmbio permanente entre a assunção e a adjudicação de um determinado papel".

Segundo se observou, as crianças e os adolescentes participantes desse programa poderiam ser classificados em estado parcial de privação materna, pois, apesar de alguns terem passado por privação total anteriormente, no momento da pesquisa já estavam recebendo cuidados de uma mãe substituta. Desse modo, a necessidade materna, um comportamento esperado na teoria de Bowlby nesses casos, é muito encontrada nas crianças em família acolhedora.

Renata, uma das mães acolhedoras mais novas no serviço, também percebe que a necessidade que as crianças têm de uma mãe influencia a relação, levando-as a ficarem mais próximas e a se preocuparem com a mãe acolhedora por medo de perdê-la, ou de serem abandonadas como foram pela mãe natural. Dessa forma, segundo Renata, o abandono é um tema sempre presente na vida dessas crianças, e as rodeia como um fantasma que pode voltar a qualquer momento: "A necessidade de uma mãe é tão grande que, às vezes, eles não vivem a vidinha deles, com medo de perder a gente, e da gente jogar eles novamente na creche... o abandono mexeu demais e mexe até hoje com ele. Ele morre de medo de me perder".

Regina, uma das mães acolhedoras há mais tempo no serviço, percebe que a expectativa de ter uma mãe é, de certa forma, preenchida pela família acolhedora, pois, como acredita, a mãe acolhedora cumpre a função materna em termos de afeto, carinho e cuidado. Ao contrário do ocorrido na situação de abrigo, a mãe promove o ambiente necessário ao bom desenvolvimento da criança. Isto não é possível no abrigo, mesmo com toda estrutura profissional: "... a criança fica abandonada pela mãe... . Sem mãe e sem lar. Aí quando vem pra cá, aí vai pro lar substituto, aí vai pra aquele apoio do lar, da mãe... . Quando ela chega no abrigo, ela ainda está assim, meio assustada... . Ainda se acha abandonada de qualquer maneira. Mas, quando ela vai pro lar substituto ela já tem um lar, já tem uma mãe... . Uma mãe já ajuda muito, dá carinho... . Assim, você sabe que aqui tem toda assistência, mas não é que nem tá num lar".

Nesse entendimento, Renata compreende que a família acolhedora tem uma função provedora de saúde diferente da instituição de abrigo, que pode gerar mais dificuldade para a criança já com marcas sérias de sua situação de origem: "É claro que um abrigo é diferente de um lar. A creche, pra mim, é tipo um hospital. Entra uma num plantão... A criança se sente segura porque está num plantão, a pessoa que tá é legal, bem boazinha, entra outra já num... . Quer dizer a tia tal eu não gosto, a da noite é boazinha. Aí vai mudando e isso vai confundindo a cabeça da criança".

Um desenho de Batman (Figura 2) apóia a fala de Renata, pois compara sua vida no abrigo, descrita como triste e integrante de um passado ao qual ele não deseja retornar, com a vida presente na família acolhedora, na qual ele se sente feliz.


A partir do que se pôde compreender da análise dos resultados, o papel de cuidador é entendido como substitutivo da relação de origem, não somente pelas mães, mas também pelas crianças e adolescentes. Nesse sentido, Júlia relata a importância do seu trabalho no exercício da função materna, ressaltando a percepção das crianças a respeito dessa função: "... ele chegou pra mim e disse: mãe, a minha mãe não é aquela que abandonou eu e minha irmã não. A minha mãe é a senhora. É a senhora que me dá carinho, é a senhora que gosta de mim, é a senhora que me dá apoio". Fica clara a concepção de mãe como aquela que exerce a função do cuidado.

Essa criança da qual Júlia fala foi adotada posteriormente. No entanto, o adolescente cuidado por Regina confirma essa compreensão quando expressa seu agradecimento e reconhecimento à dedicação da sua mãe acolhedora para com ele, apesar de denotar sentimento de mágoa em relação à família de origem, e desejo de compreender melhor os motivos do abandono: "Não foram eles que me deram carinho que nem ela [mãe acolhedora] aí me deu. Não foram eles que cuidaram de mim quando eu tava doente... pode ter tido algum motivo pra ter me abandonado, né? Mas hoje eu agradeço de ter uma vida dessas".

Batman, ao desenhar sua mãe acolhedora (Figura 3), também expressa que a considera como sua mãe em virtude do cuidado a ele dispensado: "A única mãe é essa aqui que eu tenho, mãe é aquela que cria... Foi o único presente que Deus me deu. Não tem uma única mãe boa como essa. Me dá tudo, me dá alegria, me dá felicidade. Às vezes o filho não obedece, mas ela me dá um carão, me dá um castigo, mas ela não é grosseira".


Nesse sentido, Renata declara ter a mesma vivência com a criança por ela cuidada há nove anos, que não somente percebe a mãe acolhedora na função materna, mas pretere a mãe biológica por associá-la à situação de sofrimento causada pelo abandono. Como afirma esta criança, a vida deve ser dada a quem cuida, e quem abandonou merece morrer. Ele diz: "Eu prefiro que a minha mãe morra... A senhora toma conta de mim, a outra me abandonou. Se é da mãe morrer eu prefiro que a outra morra que não cuidou".

Isabella, a mais antiga no programa, considera sua família como a única que as crianças de quem cuida conhecem e, segundo percebe, nesse sentido, a família acolhedora funciona como modelo substitutivo da família de origem: "A família que eles conhecem é a mim, a minha casa, é papai, é mamãe, é a família que eles conhecem, né? ... a família que ele diz que tem sou eu... é a minha mãe, meu pai, a família que eu tenho é vocês. A senhora que me acolheu, a senhora que me deu amor, deu carinho, a mãe que eu conheço é a senhora, mais ninguém, eu não quero outra mãe".

A fala de Isabella é confirmada por Batman, adolescente cuidado por ela: "A única família que eu tenho aqui é essa daqui".

Como observado, todas as crianças e adolescentes representaram as famílias acolhedoras ao serem solicitados a desenharem suas famílias. Nenhum deles trouxe algum aspecto de suas famílias de origem.

A relação é vista por Regina como geradora de uma confiança que parece não ter outro referencial, pois essas são crianças que já passaram por muitas perdas, e seus níveis de segurança e confiança estão abalados. Portanto, essa nova relação surge como suporte e base para depósito de novas esperanças. Regina percebe essa característica quando afirma: "Eles são umas crianças que esperam tudo da gente. Eles só se apóiam na gente".

Renata, mais uma vez, afirma que a relação estabelecida é identificada pelas crianças como substitutiva da relação frustrada com a mãe de origem: "Ele disse que se a mãe dele aparecesse, ele não queria. Ele ia continuar comigo... . Ele disse que se a mãe dele vir... . Eu digo até assim, e se ela estiver estribada e de repente eu estiver numa situação difícil. [Ele disse] não, não eu não quero não, ela pode estar podre de rica... . Eu fujo, mas eu não fico com ela não. Nem com ela, nem na creche".

No entanto, como evidenciado por Renata, embora, a princípio, quando as crianças chegam ao lar acolhedor elas tragam os traumas, os medos e as incertezas causadas pelo abandono, com o passar do tempo e com a segurança vivida no seio da família acolhedora, por meio de um novo modelo familiar, se tornam mais seguras: "Eles também no começo não têm aquela segurança. Têm medo os meninos... . Eles dizem assim: mãe eu tinha medo de tu me abandonar também, de tu me devolver pra creche... . Aí eu vejo assim a gente é um apoio pra eles... . Um apoio bom... . Na compreensão, naquela união... . Tudo isso influi muito, pesa muito e a criança vai mudando. No começo não, mas com o tempo eles vão vendo a diferença. Acho que forma assim uma outra pessoa".

Para discussão e compreensão das produções da pesquisa, é necessário fazer a ponte com certa fundamentação teórica. Primeiro, no que se refere aos sentimentos de insegurança apresentados pela criança, Bowlby (2002) os relaciona ao tipo de relação original que ela desenvolveu e tem desenvolvido com seus cuidadores (sejam eles permanentes ou provisórios). Nery (2003, p.47) corrobora estas palavras ao afirmar:

As marcas afetivas advindas dos primeiros vínculos carregados de um clima emocional desfavorável ao desenvolvimento psicológico contêm alertas internos que bloqueiam a livre expressão do ser e tornam a conduta repetitiva, massificada e irracional em determinados momentos e vínculos.

Assim, a criança que viveu a rejeição e o abandono no vínculo original arrasta o sentimento de insegurança por ele gerado como conseqüência, como marca afetiva, e age, portanto, de maneira insegura nos próximos vínculos, em especial naqueles que relembram a relação primária.

A história da criança que perdeu a mãe influencia sua relação com a mãe acolhedora, pois a experiência de abandono que marcou a relação primária serve de referencial para a relação materna atual. Portanto, como enfatiza Pichon-Riviére (1995, p.49): "o vínculo é sempre um vínculo social, mesmo sendo com uma só pessoa; através da relação com esta pessoa repete-se uma história de vínculos determinados em um tempo e em espaços determinados".

Nesse sentido, Boeding e McManis (1998) complementam que o indivíduo tende a perceber e a interagir em novos relacionamentos de maneiras antigas, independente da qualidade e da segurança do novo relacionamento.

No entanto, a despeito de trazer sentimentos de insegurança para os vínculos posteriores, a necessidade materna é uma das características encontradas em crianças vítimas de privação materna. Em termos gerais, os futuros comportamentos surgidos como conseqüência da privação materna irão depender da forma como a criança experienciou esta privação (Bolby, 2002).

Existe, contudo, outra forma de privação materna, que é parcial, e que acontece à criança mesmo na convivência com sua mãe, quando esta não lhe proporciona os cuidados e o carinho necessário. Já a privação quase total, como denomina o autor, é aquela que acontece muito comumente em "instituições, nas creches residenciais e nos hospitais, onde freqüentemente uma criança não dispõe de uma determinada pessoa que cuide dela de forma pessoal e com quem ela possa sentir-se segura" (Bowlby, 2002, p.4).

Assim, segundo Bowlby (2002), enquanto a privação parcial traz sintomas de angústia, necessidade de amor exagerada, sentimentos de vingança, culpa e depressão, a privação quase total pode influenciar completamente a tendência de desenvolver relações futuras.

Na compreensão de Campos (2005), os atos físicos e concretos do cuidar são interpretados pelo receptor como atos de amor. Desse modo, o cuidar gerado pela mãe acolhedora é percebido pela criança acolhida como amor, e isso fortalece a relação.

Apesar de tudo que experienciou, a criança tende a buscar um ambiente acolhedor, principalmente em momentos de vulnerabilidade, pois:

... aguça-se a necessidade de ... encontrarmos um ambiente facilitador, capaz de nos oferecer a necessária proteção e apoio que nos propicie retomar a linha da continuidade de ser, ameaçada pelo acontecimento e, assim, preservando nossa individualidade, nossa identidade, nosso eu (Campos, 2005, p.71).

Dessa forma, se a criança percebe no lar acolhedor esse ambiente facilitador e provedor de situação de conforto necessário, é natural preferir continuar nele.

Considerações Finais

O amor é, então, o sentimento que fundamenta a maternidade substituta. Conforme observado, tanto nas falas das mães, como nas das crianças, o sentido de mãe é percebido como uma função e não como uma pessoa específica responsável pela gestação biológica. Assim, as crianças olham para a mãe acolhedora e buscam nela o que não encontraram na relação objetal primária. Ao mesmo tempo, transferem-lhe suas rejeições e seus sentimentos de abandono, resultantes da privação inicial. Trazem para a relação com a mãe acolhedora a insegurança gerada na privação inicial com a mãe biológica.

A privação materna ocasiona também a necessidade materna. Diante disto, as crianças e adolescentes procuram na mãe acolhedora o que não encontraram em suas mães biológicas. Isto é, ao mesmo tempo em que a relação com a mãe acolhedora traz, na sua essência, a memória e a possível repetição do ocorrido no vínculo inicial, também provoca uma esperança de transformação.

A busca de um ambiente facilitador parece ser parcialmente saciada na família acolhedora, pois, ao perceberem o ambiente como acolhedor, as crianças e adolescentes passam a se sentir mais seguras e confiantes.

Independente da forma, o papel de mãe se fundamenta no ato de cuidar. Isso é confirmado no testemunho das mães. Segundo estas afirmam, o grande cuidado exigido pelas crianças e adolescentes do programa as induz a se dedicarem mais a elas. Nesse prisma, a função de mãe faz sentido para essa relação e, então, sentem-se mais gratificadas com o amor da criança acolhida, e respondem a esse sentimento com seu amor e dedicação. Ao mesmo tempo, as crianças percebem nessa dedicação e nesse cuidar o vínculo, e o traduzem como amor, comparando-o com o não cuidar da relação objetal primária, percebida como rejeição e desamor.

Assim, como se apreendeu do estudo, a figura materna, mesmo sendo substituta e provisória, traz para crianças que experienciaram abandono e rejeição sentimentos de segurança e afeto, minimizando os efeitos nocivos advindos da privação materna na relação primária. Esta relação trouxe, também, por meio do vínculo afetuoso, benefícios para a saúde mental das crianças e adolescentes participantes desse estudo.

Apesar das limitações, sobretudo em virtude do tamanho da população utilizada, da cultura e do programa analisado, as conclusões são animadoras e corroboram a importância da maternidade substituta como uma relação geradora de vínculos e fundamentada em sentimentos afetuosos. Serve, pois, como matriz para futuras relações harmoniosas do indivíduo e, por conseguinte, contribui para a promoção de sua saúde mental.

Recebido em: 9/4/2007

Versão final reapresentada em: 9/11/2007

Aprovado em: 8/1/2008

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  • 1
    Artigo elaborado a partir da dissertação de C.M. CAVALCANTE, intitulada "Relações interpessoais na atenção à saúde mental de crianças residentes em lares substitutos". Universidade Estadual do Ceará. 2006.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Recebido
      09 Abr 2007
    • Aceito
      08 Jan 2008
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