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O luto pelo filho adulto sob a ótica das mães

The mourning for the adult child from the perspective of mothers

Resumos

Este artigo se propõe a discutir o processo de luto de mães que perderam filhos adultos, dando ênfase aos recursos utilizados por elas no enfrentamento da perda. Realizou-se uma pesquisa qualitativa, na qual foram entrevistadas cinco mulheres: três casadas, uma viúva e uma separada, com idade entre 50 e 75 anos de idade, pertencentes ao segmento socioeconômico médio da população carioca. Da análise das entrevistas emergiram quatro categorias temáticas: estratégias de enfrentamento do luto; continuidade do vínculo com o filho morto; reações iniciais e sentimentos diante da morte do filho; e relacionamento conjugal/parental. Neste trabalho, são discutidas as duas primeiras. Os resultados apontaram a importância do suporte social, da religiosidade e da continuidade do vínculo com o filho morto como poderosos recursos de enfrentamento da perda.

Família; Luto; Mães


The aim of the article is to discuss the mourning of mothers who have lost adult children, emphasizing on the resources used by them for coping with the process of bereavement. A qualitative research was conducted with five women belonging to the middle-socioeconomic segment in Rio de Janeiro, Brazil. The women, three married, a widow and a divorced one, with ages ranging from 50 and 75 years, were interviewed. Four thematic categories emerged from the discourse analysis of the interviews: strategies for coping with mourning; continuity of the bond with the deceased child; initial reactions and feelings in the face of the child's death, and marital/parental relationship. In this study we discuss the two former categories. Results point to the relevance of social support, religiosity, and the continuity of the bond with the deceased child as powerful resources to cope with loss.

Family; Grief; Mothers


Nos últimos anos, o processo de luto vem sendo bastante estudado no Brasil e tem havido grande empenho para reconhecê-lo em nível biopsicossocial, ou seja, como um fenômeno que atinge a todos - indivíduos, famílias e sociedade. O tema tem merecido numerosas pesquisas voltadas para questões conceituais e para o estudo da eficácia da psicoterapia na clínica com pessoas enlutadas.

O luto parental, especificamente, é caracterizado por reações emocionalmente intensas que podem perdurar por meses, anos ou até mesmo nunca cessarem (Malkinson, Rubin, & Witzum, 2006Malkinson, R., Rubin,S., & Witztum, E. (2006). Therapeutic issues and the relationship to the deceased: Working clinically with two-track model of bereavement. Death Studies, 30(9): 797-815.; Rando, 1986Rando, T. (1986). Parental loss of a child. Champaign, IL: Research Press.; M. Stroebe, Hansson, Stroebe, & Schut, 2001Stroebe, M, Hansson, R., Stroebe,W., & Schut, H. (2001). Handbook of bereavement research: Consequences, coping and care. Washington, DC: American Psychological Association.). Estudos anteriores sobre luto pa-rental focalizavam primordialmente as consequências negativas do pesar para os pais, incluindo es-tresse, confusão, sintomas depressivos, divórcio e isolamento social (Rando, 1986Rando, T. (1986). Parental loss of a child. Champaign, IL: Research Press.).

Pouca atenção era dada à identificação de fatores individuais e sociais, que funcionam como valiosos recursos de enfrentamento e que podem influenciar positivamente as respostas de pais à perda de um filho. Segundo Wortman e Silver (2001)Wortman, C., & Silver, R C . (2001) .The myths of coping with loss revisited. In: M. Stroebe, R. Hansson, W. Stroebe, & H. Schut. Handbook of bereavement research: Consequences, coping and care (pp. 405-429). Washington, DC: American Psychological Association., as pesquisas que se concentram em acentuar as respostas negativas do luto parental não reconhe-cem a capacidade humana de lidar com adversidades e ignoram o poder que o pesar tem de agir como elemento catalisador, produzindo mudanças positivas e crescimento pessoal.

Pesquisas qualitativas apontam como a morte de pais, irmãos e filhos promovem uma significativa reorganização de si próprio, para melhor ou para pior (Neimeyer, Baldwin, & Gilles, 2006Neimeyer, R., Baldwin, S., & Gilles, J. (2006). Continuing bonds and reconstructing meaning. Death Studies, 30(8): 715-738.). A perda de uma pessoa significativa geralmente transforma as crenças mais valiosas de si e do mun-do ao redor, desequilibrando as bases que sustentavam aquela pessoa até ali. Parkes (2006)Parkes, C M. (2006). Luto: ensaios sobre a perda na vida adulta (3ª ed.). São Paulo: Summus. denomina "mundo presumido" essas verdades construídas que são severamente abaladas pela morte de pessoas queridas e que precisarão ser reconstruídas para que o enlutado possa reaprender a viver, refazendo suas expectativas e propósitos.

Segundo M. Stroebe, Schut e Stroebe (2007)Stroebe, M., Schut, H., & Stroebe, W. (2007). Heath outcomes bereavement. The Lancet, 370(9603): 1960-73., hoje se percebe a preocupação dos pesquisadores em ampliar a investigação sobre o luto para além da sintomatologia da dor, incluindo a análise de um amplo leque de consequências que uma perda pode ter sobre o indivíduo enlutado. Dentre os aspectos abordados, destacam-se: o relacionamento com os outros, a construção de uma narrativa ou biografia do morto, efeitos positivos relacionados à perda e crescimento pessoal. Nesse sentido, a teoria da construção de significados tem ganhado bastante espaço, e isso se deve, segundo Casellato (2004)Casellato, G. (2004). Luto por abandono: enfrentamento e correlação com a modernidade (Tese de doutorado não-publicada). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo., à busca constante da valorização da subjetividade e da singularidade dos indivíduos em suas experiências sociais, evitando-se padronizações e generalizações. Neimeyer (2001)Neimeyer, R. (2001). Meaning reconstruction & the experience of loss. Washington, DC: American Psychological Association. é um dos pesquisadores contemporâneos que têm estudado o tema da construção de significados na vida do enlutado. O autor defende um novo paradigma para a com-preensão do luto, ao afirmar que a construção de significados é um processo ativo diante da perda. A narrativa escolhida pelo enlutado para contar a sua história de perda e os significados atribuídos a ela são de vital importância para o desenvolvimento de um luto saudável.

Davis (2001)Davis, C. (2001). The tormented and the transformed: Understanding responses to loss and trauma. In: R. Neimeyer. Meaning reconstruction of loss (pp. 137-155). Washington, DC: American Psychological Association. destaca dois fatores importantes no processo de construção de significados: dar sentido à perda e encontrar benefícios. Em pesquisa realizada com 157 pais enlutados, Keesse, Currier e Neimeyer (2008)Keesse, N J, Currier, J. M., & Neimeyer, R. (2008). Predictors of grief following the death of one's child: The contribution of finding meaning. Journal of Clinical Psychology, 64(10): 1145-1163. relatam que aqueles que haviam construído pouco ou nenhum sentido para a morte dos filhos eram mais propensos a relatar maior intensidade de dor. Por outro lado, pais que conseguiram construir algum sentido para suas vidas, após a perda de um filho, relataram ter crescido como pessoas, embora isso não signifique ausência de dor ou estresse. O sentido atribuído à perda os ajuda a lidar mais eficazmente com suas dores e medos. A busca de sentido é um fator co-mum no processo de luto. Quando as perdas são prematuras, súbitas ou violentas, a destruição do "mundo presumido" de um indivíduo pode ser especialmente severo e prolongado, necessitando mais ainda do encontro de sentido para aquela per-da e para a vida que segue (Parkes, 2006Parkes, C M. (2006). Luto: ensaios sobre a perda na vida adulta (3ª ed.). São Paulo: Summus.).

O encontro de benefícios, segundo Davis (2001)Davis, C. (2001). The tormented and the transformed: Understanding responses to loss and trauma. In: R. Neimeyer. Meaning reconstruction of loss (pp. 137-155). Washington, DC: American Psychological Association., pode se dar em três domínios, levando a: 1) crescimento pessoal; 2) ganho de perspectiva e 3) fortalecimento das relações. Há bastante dificuldade em se compreender o encontro de benefícios em consequência da perda de alguém amado. Pais enlutados, geralmente, relatam que a perda do filho foi a pior coisa que poderia ter acontecido a eles. Segundo Frantz, Farrell e Trolley (2001)Frantz, T. T., Farrell, M. M., & Trolley, B C . (2001). Positive outcomes of losing a loved one . In: Neimeyer, R. Meaning reconstruction of loss. Washington, DC: American Psychological Association., há muita discussão no que se refere à dor, às dificuldades e aos efeitos negativos de se perder alguém amado. Por outro lado, tem sido largamente ignorada a observação, aparentemente paradoxal, de que o sofrimento produz resultados positivos, embora não diminua a dor pela perda de uma pessoa amada.

Em relação à perda de um filho adulto, a literatura é, em sua grande parte, estrangeira e escassa. Os pais enlutados de um filho adulto são geralmente deixados de lado em favor da viúva e dos filhos do falecido, que parecem ser os que mais necessitam de apoio e cuidados. Além disso, segundo Rangel (2008)Rangel, A P F N. (2008). Amor infinito: histórias de pais que perderam seus filhos. São Paulo: Vetor., há um acréscimo de problemas quando se trata de pais enlutados mais velhos, como ela observou em sua pesquisa. Fatores como não poder conceber mais filhos, o relacionamento com os netos, noras e genros, a perda do filho como representando também a perda de um amigo, companheiro ou até mesmo um provedor, podem tornar esse luto bastante complexo e não reconhecido pela sociedade.

Partindo desses questionamentos, realizou-se uma pesquisa qualitativa com o objetivo de investigar o processo de luto de mães que perderam filhos adultos. No presente trabalho, buscou-se discutir especialmente o modo de enfrentamento das mães e os recursos utilizados em seus processos de luto.

Método

Participantes

Os dois critérios para inclusão na amostra foram: mães que perderam filhos adultos; e tempo mínimo de um ano após a perda do filho. Trata-se de uma amostra não probabilística de conveniência, o que faz com que os dados coletados não possam ser generalizados para a totalidade da população.

Foram entrevistadas cinco mulheres, com idade entre 50 e 75 anos, que perderam filhos adultos, quando esses tinham entre 22 e 50 anos. As participantes residiam na cidade do Rio de Janeiro e pertenciam ao segmento socioeconômico médio da população carioca (Tabela 1).

Tabela 1
Perfil dos participantes

Instrumentos

Utilizou-se uma entrevista semiestruturada, baseada em roteiro previamente elaborado, porém flexível. O roteiro da entrevista contemplou os seguintes temas: vivência da perda; mudanças ocorridas após a perda; rede de apoio; relação conjugal e/ou parental; perdas anteriores significativas; expectativas para o futuro; visão de mundo.

Procedimentos

As entrevistas foram realizadas individual-mente, pela pesquisadora, gravadas e transcritas na íntegra, com a autorização das participantes. Estas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e seus nomes foram alterados, visando à preservação das suas identidades. A pesquisa obteve a aprovação do Comitê de Ética do Departa-mento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Protocolo nº 004/2012). Das cinco participantes, duas optaram por realizar a entrevista em suas casas, e as outras três optaram por fazê-lo no consultório da pesquisadora. As entrevistas tiveram longa duração, com a média de noventa minutos cada uma, e os temas foram bas-tante aprofundados.

O material discursivo coletado por meio das entrevistas foi analisado e discutido com base no método de análise de conteúdo (Bardin, 2010Bardin, L. (2010). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. ). Da análise das entrevistas emergiram quatro categorias temáticas: estratégias de enfrentamento e elaboração do luto (suporte social, religiosidade e encontro de benefícios); continuidade do vínculo com o filho morto; reações iniciais e sentimentos diante da morte do filho; relacionamento conjugal/parental.

Resultado e Discussão

Estratégias de enfrentamento e elaboração do luto

Suporte social

O suporte social recebido pelas mães foi de grande importância nos primeiros momentos após a perda dos filhos. Esse suporte social, representado por familiares, amigos e grupos de ajuda na internet, permitiu que elas se sentissem seguras e acolhidas para lidar com seus sentimentos (Sluzki, 1997Sluzki, C E. (1997). A rede social na prática sistêmica. Alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psi-cólogo.). Mercedes ressalta a importância da ajuda que recebeu das pessoas do centro espírita que frequentava, da família e de amigos:

Porque eu tive uma educação, religião que me ajudou muito, que me confortou, talvez por isso. A minha sorte é que eu tive uma bengala muito grande, o centro, meus sobrinhos tudo me carregando no colo, minha amiga [nome da amiga]. Mas é duro... (Mercedes).

Helena diz que foi muito ajudada pela família, que é grande e unida, e valoriza muito as visitas que recebeu de sobrinhos e irmãos durante o primeiro mês em que ficou na casa da mãe, em "estado de choque". Ela atribui a força que teve para sobreviver à morte do filho e se reequilibrar emocionalmente a sua "estrutura abençoada". Ela é a única mãe participante deste estudo que procurou ajuda de grupos de apoio a pais enlutados, na internet, no mês seguinte à morte do filho. Ela acessava diariamente os relatos dos outros pais e as orientações dadas para eles. A identificação com outros pais que passavam pela mesma situação contribuiu para o enfrentamento da sua dor:

Eu chorei muito depois... e emoção de sobrinhos pequenos, adolescentes 12, 13 anos, silêncio total, mas o carinho deles... eu tive uma estrutura abençoada, entendeu, eu levantei um mês e pouquinho e fui para o computador que a primeira coisa que eu quis tentar ver se... e aí eu descobri... eu queria grupos, no Rio nada, liguei para pessoas conhecidas e nada, né, aí eu entrei no computador e coloquei luto... enfim... e achei vários, em São Paulo, presenciais, terapeutas especializados em luto, atendimentos mesmo terapêuticos, que aqui não tem, grupos presenciais que eu via que tinha endereço ... depois que eu sobrevivi com o apoio da família, dos amigos e da religiosidade, esses grupos realmente foram assim um combustível para eu caminhar, eu descobri que não era uma E.T. (Helena).

Larissa destaca o papel da sua família, que a visitava frequentemente logo após a perda da filha, e até hoje se faz muito presente:

Ah... família, família em primeiro lugar, dos meus irmãos, toda sexta-feira eles iam lá pra casa, chegava um, toda sexta-feira, ele com a mulher dele, às vezes até dormia, ele morava na Baixada, e a minha cunhada, irmã do meu marido, que é madrinha da [filha mais nova], também, essa era quase 3 vezes por semana, então a minha casa ficou assim, toda hora, de vez em quando chegava um parente, meus dois irmãos, ... esses meus irmãos, a minha cunhada não saía de lá, e os meus vizinhos, vira e mexe chegava alguém lá, toda hora chega um aqui para conversar um pouco, isso dava um conforto (Larissa).

De todas as entrevistadas, Leila parece ter a rede de apoio informal mais precária e apresenta um comportamento de isolamento social. Entretanto, tem ajuda de uma rede formal de apoio, forne-cida pelo hospital que a assiste, onde realiza consultas psiquiátricas e psicológicas:

Foi essa minha comadre, eu fui lá para a casa dela, fiquei lá um mês. ... tem dia que eu não tenho vontade de sair de casa, não abro porta, não abro nada, até meus vizinhos que viram meu sofrimento, tem dias que o pes-soal fica preocupado comigo, tem essa minha vizinha, essa senhora quando tem muitos dias sem abrir porta, ela liga pra minha comadre. Essa comadre é a única pes-soa que eu tenho. Aqui eu não tenho nin-guém, só essa comadre mesmo, meus irmãos moram na Bahia, eu perdi contato com todo mundo (Leila).

Logo após a morte de seu segundo filho adulto, Vilma procurou ajuda de uma amiga psicóloga. Embora tenha recebido apoio da família no início de seu processo de luto, percebia que as pessoas tinham muita dificuldade de se aproximar. O estudo de Laakso e Paunonen-Ilmonen (2002)Laakso, H, & Paunonen-Ilmonen, M. (2002). Mother's experience of social support following the death of a child. Journal of Clinical Nursing, 11(2): 176-185. apresenta relatos de mães que disseram experimentar atitudes negativas de algumas pessoas. Muitos amigos e conhecidos têm dificuldade de encarar o pesar de uma mãe enlutada e falar sobre a morte de seus filhos. Entretanto, Vilma destaca a ajuda de uma conhecida do centro espírita que frequentava, que, surpreendentemente, enviou-lhe semanalmente, durante dois anos, cartas que a consolavam muito:

Eu tive uma amiga que era uma terapeuta, e eu fiz uma terapia de seis meses com ela e depois de seis meses eu não aguentei mais, não quis mais fazer. Minha família me amparou? Sim, telefonando, dando uma força, nós somos cinco irmãos, somos unidos, cada um vivendo a sua vida, mas se falando, incentivando. ... Eu tenho uma pessoa, que frequenta o meu Centro, mas pra você ver... toda semana eu recebia um papelzinho, uma carta pelo correio, toda semana, um papelzinho desse com uma mensagem. Nem está em ordem, agora me lembrei, eu guardei isso... ela não imagina o bem que ela me fazia, toda semana, ela fez isso durante dois anos seguidos, sempre com um papel num colorido diferente, escrito com a mão dela, eu acho que isso é muito importante, ela mandava sempre, sabe ... .Você vê, tinham pessoas que lidavam comigo mais de perto que me evitavam, depois diziam eu evitava você porque eu não sabia o que dizer... (Vilma).

Religiosidade

A análise das entrevistas demonstrou que a religião foi usada como importante recurso no enfrentamento do luto. Além da presença da fé como fator organizador do enfrentamento do luto, a figura de Deus como um ser superior e protetor que controla os eventos da vida esteve presente em todos os discursos das entrevistadas. Conforme salientou Park (2005)Park, C. (2005). Religion as a meaning-making framework in coping with life stress. Journal of Social Issues, 61(4): 707-729., quanto mais estressante é um evento, e quando ele não é passível de ser resolvido, como doença e morte, mais os indivíduos utilizarão o recurso religioso. Vilma assinalou que, apesar da dor, acredita e confia que Jesus vai cuidar dela:

Eu acho que a religião é que me ajudou nisso, eu me lembro, eu digo sempre que Jesus assinou a minha carteira e o emprego é bom, eu ganho bem e não posso perder esse emprego. Então, quando eu perdi o meu filho, principalmente o segundo, que eu fiquei financeiramente desamparada e eu passei por coisas muito difíceis, porque as noras separadas, você imagina né, querida, no mesmo dia, advogado, tudo chegando... eu orei muito a Jesus, e disse agora é por sua conta, agora o senhor que vai cuidar de mim, e aconteceram coisas bem agradáveis pra me ajudar, pessoas, tá, eu tenho fé, pô... (Vilma).

A religião também tem a função de fornecer sentido a um evento tão sem sentido, que é a perda de um filho. A religião funcionaria como um sistema de significado que influencia o enlutado a construir sentido. Esse dado confirma os resultados encontrados por Murphy e Johnson (2003)Murphy, S., & Johnson, C. (2003). Finding meaning in a child's violent death. Death Studies, 27(5): 381-404. em pesquisa realizada com 138 pais que haviam perdido os filhos. Pais que haviam achado algum sentido nas mortes de seus filhos relataram índices mais baixos de stress, maior satisfação conjugal e melhor saúde física do que os outros que não tinham encontrado nenhum sentido. Por meio da religiosidade, Larissa compreendeu que a vida segue uma ordem natural, que envolve nascimento e morte:

Eu acho que eu entendi, eu entendi o desígnio de Deus, o que eu aprendi, a minha religião, é a ordem natural das coisas, quan-do a gente vem, a gente já tem o passaporte para voltar, mas eu não aceitei, eu só entendi (Larissa).

Helena também relata que a fé e suas crenças foram determinantes no processo de enfrentamento, e a ajudaram a construir algum sentido para um evento tão inesperado:

Eu sou religiosa, não tenho religião, sou espiritualista, sempre fui não é de agora, eu acho que se eu não tivesse uma fé, eu não tenho nem fé, eu tenho certezas absolutas, eu acho que se eu não tivesse essas crenças, essas certezas todas, eu acho que eu enlouqueceria (Helena).

Mesmo Leila, que enfrenta um processo de luto mais doloroso devido à recusa da aceitação da morte do filho, que gera sentimentos de raiva e revolta, confia em Deus e acredita que Ele a programou para passar por isso: "Eu não fiquei louca porque Deus me programou para passar por isso. Eu entendo que Deus deu a vida, Deus pode tirar" (Leila).

Encontro de benefícios

Encontrar um aspecto positivo ou algum benefício na experiência da perda de alguém pode levar as pessoas a diminuírem sua necessidade de encontrar um sentido para ela. Aprender alguma coisa sobre si mesmo, ou sobre o que é valioso na vida, pode compensar ou atenuar a necessidade de dar sentido a um evento sem sentido. As pessoas enlutadas podem construir o significado de que cresceram ou se fortaleceram com a perda, o que pode ser um indicativo de elaboração e resiliência (Frankl, 2009Frankl, V E. (2009). Em busca de sentido. São Paulo: Vozes.; Davis, 2001Davis, C. (2001). The tormented and the transformed: Understanding responses to loss and trauma. In: R. Neimeyer. Meaning reconstruction of loss (pp. 137-155). Washington, DC: American Psychological Association.; Neimeyer et al., 2006Neimeyer, R., Baldwin, S., & Gilles, J. (2006). Continuing bonds and reconstructing meaning. Death Studies, 30(8): 715-738.).

De todas as entrevistadas, apenas Leila não consegue enxergar nenhum benefício na perda e relata que sua vida acabou:

Nenhum, não tenho futuro, já falei para dra. [psicóloga] e para o dr. [psiquiatra], não tenho futuro, eu não vejo, não tenho e não quero, não quero um homem perto de mim, não quero, não consigo ver futuro para mim, meu filho era tudo, tudo, pra mim (Leila).

Calhoun e Tedeschi (2001)Calhoun, L. G., & Tedeschi, R G . (2001). Posttraumatic growth: The positive lessons of loss. In: R Neimeyer .. Meaning reconstruction of loss. Washington, DC: American Psychological Association. referem-se aos ganhos decorridos do enfrentamento de uma perda significativa como crescimento pós-traumático. Ele é definido como uma mudança positiva que os indivíduos enlutados experimentam como resultante da luta com uma grande perda ou trauma e que atua em três domínios: transformação do self, dos relacionamentos e da filosofia de vida. Helena diz que a ajuda e o apoio que teve das pessoas à sua volta a ajudaram a encontrar a felicidade e entender melhor a sua dor:

Não tem um limão que não faça uma limonada, não é dizer que... sempre tem... volto a lhe dizer as coisas que mais me tocaram, eu não sei se é esse aspecto que você tá dizendo, eu ver a beleza, a singeleza do afeto do ser humano comigo tá, de crianças muito pequenas, minha sobrinha totalmente espontânea, me possibilitou ter essa experiência, a amizade lá, né, é isso que eu chamo de felicidade não é uma alegria louca, felicidade é isso, é um estado de espírito, um lado positivo me possibilitou entender mais a dor (Helena).

Depois de quatro anos da perda do filho, Mercedes percebeu que ficou mais apressada para encontrar a felicidade: "Então o que aconteceu me fez ter pressa dos acontecimentos e correr atrás da felicidade. Qualquer coisa que possa me fazer feliz eu tô dentro, tô fazendo não tô querendo deixar passar"(Mercedes).

Vilma diz que um dos benefícios encon-trados foi aprender a ser sozinha e se fortalecer sem ajuda de outras pessoas. E fala também acerca da capacidade empática desenvolvida, a capacidade de "entender a dor do outro":

Aprendi a ser sozinha, a me fortalecer por mim mesma, aprendi que não adianta chorar, chorei muito no princípio e aprendi a entender a dor do outro porque eu sei como doeu em mim né, neste sentido... Então pra mim foi um aprendizado, porque eu precisava aprender o que dizer para o outro porque eu conhecia a dor, então eu achei com mais responsabilidade ainda ... fazer uma força para aprender alguma coisa, porque como eu tenho uma religião que acredita em reencarnação, tem um sentido; qual é, eu não sei até hoje, eu não sei qual é o sentido... Eu fico raciocinando, meu Deus, né, Deus não ia ligar a mínima para mim, porque Ele é superior a isso tudo, sabia que ia doer, é como um pai que dá um castigo necessário para um filho sabendo que vai doer, mas é para o bem dele, para o crescimento dele, então neste sentido pen-sei, tá? (Vilma).

Continuidade do vínculo com o filho morto

Todas as mães deste estudo demonstraram ter um vínculo significativo com seus filhos falecidos, que, de alguma maneira, continuam sendo pessoas presentes em suas vidas. Helena relata que, nos primeiros momentos após a perda, o filho estava no primeiro plano de sua vida e permaneceu assim por um ano. Nada a seu redor a interessava. Depois de um ano, segundo ela, conseguiu retomar a vida, e o filho foi colocado no pano de fundo. Essa pers-pectiva corrobora os estudos de Field e Wogrin (2011)Field, N. P., & Wogrin, C. (2011). The changing bond in therapy for unresolved loss: An attachment theory perspective. In: R. Neimeyer, D. Harris, H. Winokuer, & G. Thornton. Grief and bereavement in contemporary society (pp.37-46). New York: Routledge., que defendem que, após o ultrapassamento dos momentos iniciais após a perda, o falecido serve como presença de fundo na orientação ao enlutado para seguir uma nova vida:

Hoje, se você se pergunta "você lembra do [nome do filho], 24 horas por dia", ele tá no segundo plano, ele tá no fundo, uma Gestalt [ela ri] ... . Eu falo muito com o (nome do filho), tá, o [nome do filho] pra mim não é passado, dialogo mesmo, normalmente... primeiro sozinha para não acharem que eu sou louca. Se bem que, quando me pegam, eu tô falando ou com o [nome do filho], também comigo mesma, a melhor pessoa pra me ouvir sou eu mesma, não me critica, me entende, como ninguém, eu falo quando eu tô sozinha até assuntos mais leves, por exemplo tô brincando com o passarinho, aí eu falo aqui [nome do filho] esse passarinho novo..., mas normalmente são essas crises de choro, esse desabafo, aí eu tenho um diálogo com ele mesmo, de saudade mesmo, né... desabafo... (Helena).

Outra maneira, apontada também por Field e Wogrin (2011)Field, N. P., & Wogrin, C. (2011). The changing bond in therapy for unresolved loss: An attachment theory perspective. In: R. Neimeyer, D. Harris, H. Winokuer, & G. Thornton. Grief and bereavement in contemporary society (pp.37-46). New York: Routledge., de continuar o vínculo com o fale-cido é a identificação com suas ideias e valores, que servem como fonte de inspiração e guia. Isso pode ser evidenciado no relato de Larissa, que conta que imita alguns comportamentos da filha, como, por exemplo, ser disponível para os outros e ir aos jogos de seu time de futebol. Esse aspecto corrobora o que é ressaltado por Klass (2006)Klass, D. (2006). Continuing conversation about continuing bonds. Death Studies, 30(9): 843-858., que se refere à incorporação de características do morto, que o enlutado traz dentro de si mesmo:

Eu falei, é difícil para mim, mas eu me coloco no lugar da minha filha, outro dia morreu uma mãe de uma amiga dela, me ligou e me pediu para eu levar o Padre ... . Ele [o filho] falou: "mãe, eu tô fazendo isso porque a minha irmã faria isso". Ela era muito disponível... Eu tô procurando viver como ela gostava, se doando e procurando viver da melhor maneira possível (Larissa).

A maioria das pesquisas (Alam, Barrera, D'Agostino, Nicholas, & Schneiderman, 2012Alam, R., Barrera, M., D'Agostino, N., Nicholas, D. B., & Scneiderman, G (2012). Bereavement experiences of mothers and fathers over time after the death of a child due to cancer. Death Studies, 36(1): 1-22.; Klass, Silverman, & Nickman, 1996Klass, D., Silverman, P., & Nickman, S. L (1996). Continuing bonds: New understandings of grief. Washington, DC: Taylor & Francis.; Rangel, 2008Rangel, A P F N. (2008). Amor infinito: histórias de pais que perderam seus filhos. São Paulo: Vetor.; Stroebe et al., 2001Stroebe, M, Hansson, R., Stroebe,W., & Schut, H. (2001). Handbook of bereavement research: Consequences, coping and care. Washington, DC: American Psychological Association.) aponta que pais conservam objetos de seus filhos mortos, assim como fotografias e vídeos, como forma de continuar o vínculo com eles. Segundo Rangel (2008)Rangel, A P F N. (2008). Amor infinito: histórias de pais que perderam seus filhos. São Paulo: Vetor., os pertences do filho morto são de enorme importância para os pais. A autora destaca que eles frequentemente exibem fotografias e "santinhos" das missas de sétimo dia. As fotografias são oportunidades que os pais têm de lembrar os filhos em vida e apresentá-los a pessoas que não os conheceram. Além de as fotografias serem a prova concreta de que o filho existiu, elas podem também servir para o reconhecimento do status parental dos pais enlutados.

Mercedes trouxe para a entrevista um álbum de fotografias de momentos vividos pelo filho com diversas pessoas, confeccionado pela filha, que foi distribuído na missa de sétimo dia. Ela começa a chorar ao mostrar o álbum, logo no início da entrevista:

... Então a [nome da filha], minha filha, logo no início, ficou muito perturbada, mas, no momento em que ela pôde centrar, ela fez um agradecimento. Mas isso só recebeu pessoas muito íntimas, ... mas me agradou muito, eu fiquei muito feliz. Aí trouxe para você ler. Eu não quero que você faça uma entrevista sem conhecê-lo. Desculpa... [choro] (Mercedes).

Larissa também trouxe para a entrevista um "santinho" que foi distribuído na missa de sétimo dia da filha:

Ela era muito branquinha [nesse momento ela mostra um "santinho" com a foto da filha, que foi entregue na missa de sétimo dia], esse cabelo era lindo, era invejado por todo mundo, meus três filhos são a cara do meu marido, isso aí foi o meu filho que escreveu e esse trabalho foi o marido que fez, foi bastante sofrido, mas eu falei eu quero fazer, porque minha filha adorava festa, eventos, o nome dela era festa (Larissa).

Helena, diferentemente das outras mães, foi a única que não viu o filho no caixão, embora tivesse ido ao cemitério, e nunca mais viu nenhuma foto dele. Outros comportamentos que chamaram atenção foram o fato de ela nunca mais ter retornado a sua casa após a morte do filho e de ter doado todos os móveis, utensílios e roupas. Helena precisou construir vida, identidade e residência novas. Ela comentou que seria impossível retornar àquela vida, na qual o filho esteve presente durante 22 anos.

As minhas roupas particulares que eu tinha, como decidi, eu não quis, eu não conseguia ver nada que tivesse tido a convivência com ele, era muito maior que eu, eu lidar, eu me deparar com alguma coisa que eu tivesse vivido com ele e ele não estar mais ali, aquilo era um terror, se eu fizesse isso era como se eu tivesse 24 horas, eu não tinha força de colocá-lo no fundo, ... cada um reage de um jeito, fotos nem pensar... se eu não posso ver objetos, fotos nem pensar... tenho todas... guardadas, eu disse para o [nome do filho sobrevivente], quando eu morrer, dê o destino que quiser, hoje eu quero tê-las, porque eu não sei se amanhã eu quero ter a casa inteira de porta-retratos, hoje eu não suporto (Helena).

Filed e Wogrin (2011)Field, N. P., & Wogrin, C. (2011). The changing bond in therapy for unresolved loss: An attachment theory perspective. In: R. Neimeyer, D. Harris, H. Winokuer, & G. Thornton. Grief and bereavement in contemporary society (pp.37-46). New York: Routledge. ressaltam a importância de perceber de que maneira se dá a integração com o filho morto por parte das mães. Para esses autores, nem sempre preservar objetos do filho morto é indicativo de um processo de luto bem elaborado; muitas vezes, pode servir para manter a ilusão de um contato com o morto ou até mesmo de seu retorno à vida. Somente uma das mães entrevistadas, Leila, apresenta um comportamento que pode ser indicativo de alguma disfuncionalidade no tocante à conservação intacta dos pertences do filho morto. Essa mãe estava afastada do trabalho por licença médica, com quadro depressivo:

... Primeiro, que se tirar tudo do meu filho de repente de mim, eu não aguento esse tranco, cada um tem... a única coisa que eu dei foram os ternos, casacos, que iam estragar, mas aquelas roupas do dia a dia que meu filho gostava, eu não consigo dar, estão aí até hoje e não vão sair não... as roupas dele estão todas penduradinhas, as gavetas, do jeito que ele deixou, tem gente que acha que isso que faz mal... no dia que ou ele mesmo..., me der aquela vontade... mas os retratinhos dele, aonde for eu levo comigo, é como se eu sentisse mais segurança (Leila).

Klugman (2006)Klugman, C M. (2006). Dead men talking: Evidence of post death contact and continuing bonds. Omega: Journal of Death and Dying, 53(3): 249-262. relata que entre 39 e 90% dos seus entrevistados afirmaram ter algum tipo de experiência de contato pós-morte - eventos interpretados pelo enlutado como relacionados à pessoa falecida, que são parte da sua construção mental a respeito da mesma. Duas mães relataram ter recebido mensagens de seus filhos através de contatos espirituais. Segundo elas, esses contatos serviram como um consolo, já que os filhos diziam estar bem. Por meio do contato espiritual com o filho, Mercedes recebeu uma mensagem para nunca mais chorar, enquanto Vilma sentiu-se bastante con-solada ao receber mensagens do filho.

E aconteceu quando teve uma mensagem do meu filho, que eu chorei muito, e aquele dia ele falou: mãe, eu não quero que nunca mais você chore. Dali pra lá, eu consigo conviver com as coisas, mas não maltrata tanto o meu coração como maltratava, mudei nesta questão, eu ficava guardando as coisas (Mercedes). Ele mandava abraços para a mulher dele, ele dava o nome, o nome dos filhos, o endereço, telefone, isso consola, querida!!! É difícil encontrar alguém assim, eu não sei de mais ninguém aqui, tá! Eu fui... me consolou bastante, eu fui a ela, eu acho que já tinha quase um ano que ele já tinha partido, ele dizia que estava bem, que estava com os avós... dava o nome dos avós que já tinham partido, mandava abraço pra mim (Vilma).

Duas mães fizeram referências ao que Klass et al. (1996)Klass, D., Silverman, P., & Nickman, S. L (1996). Continuing bonds: New understandings of grief. Washington, DC: Taylor & Francis. denominam comportamento de cemitério, que inclui idas ao cemitério e cuidados com o túmulo dos filhos mortos, funcionando como continuação do vínculo. Larissa relata que fez questão de marcar a presença da filha no cemitério:

Porque ela tá ali ..., eu mandei fazer uma placa com o nome dela, isso é coisa que eu não consigo explicar por que eu tô fazendo, eu falei pros meus filhos, todo lugar que ela chegava ela marcava a presença dela, sempre ela marcou a presença dela, então não vou deixar ela aqui anônima, eu sei que ela não tá mais ali, mas eu tenho que marcar... até as amigas dela dizem "tia, eu vou nos Finados, me diz o número aí", aí eu já identifiquei. Ela tinha mania de falar "calma, paciência e elegância, tudo se resolve", ... e aí eu coloquei no lápide dela, ou seja, quem conhece... só não tem foto, aí fiz a plaquinha e é ela mesmo, esse espaço aqui foi dela (Larissa).

Leila também demonstra ter bastante cuidado com o túmulo do filho, embora não o visite constantemente. Mas, quando vai, conversa com ele:

Agora tá bonito. Levei uns vasos, aí comprei mais para botar as flores assim, porque eu prendo com cimento pra ninguém roubar, vou botar lá por causa do aniversário dele, ... eu vou lá no cemitério, botei foto e botei "mamãe", ... porque eu queria na cabeceira para todo mundo ver, quando eu cheguei lá eu pensei "vou lá ver ele", quando eu cheguei tinha o do colega dele, eu falei "meu filho, você sabe que a mamãe morre de ciúme, por que você deixou ele botar na minha frente?", aí meu sobrinho riu e disse "tia, ele deve estar rindo". Eu converso com ele, choro, claro... Já tá lá a foto... botei uns dizeres e "da sua mamãe" (Leila).

Klass (1993)Klass, D. (1993). Solace and immortality: Bereaved parents' continuing bond with their children. Death Studies, 17(4): 343-368. refere-se ao vínculo dos pais com os filhos como uma conexão que transcende a morte. Para ele, independentemente da crença religiosa, os pais deixam de ter uma relação externa com o filho que morreu e mantêm uma representação interna dele, com a qual podem entrar em contato em momentos difíceis, um contato que os conforta e ajuda na construção de significados em seu novo e vazio mundo.

A partir desses resultados, pode-se concluir que é preciso ampliar o leque dos estudos sobre o luto e privilegiar a capacidade e habilidade dos indivíduos e famílias em responder a uma situação traumática. É preciso considerar o luto como um processo dinâmico e flutuante, que varia em natureza, intensidade e duração. Só com esse olhar em relação ao luto é possível, para o profissional de saúde e para a sociedade em geral, perceber as idiossincrasias de cada processo individual, aceitando as diferenças de cada enlutado e desconstruindo a ideia de que exista uma maneira "ideal" ou "correta" de passar por esse processo. Contribui-se, dessa maneira, para não patologizar o processo de luto, encarando-o como um distúrbio transitório, para o qual, em muitos casos, a ajuda profissional é necessária - assim como um olhar profilático que possa evitar complicações na saúde física e emo-cional dos enlutados -, em consequência de um pro-cesso de luto mal elaborado e mal assistido.

Ainda que não seja possível a generalização desses resultados, eles contribuem para corroborar dados de investigações anteriores que apontam o suporte da rede de apoio, como família e amigos, a religiosidade e a possibilidade de continuidade do vínculo com o filho morto como poderosos recursos de enfrentamento à perda. Em relação à rede de apoio, concluiu-se que a sociedade e a família têm papel fundamental na prevenção das complicações do luto e no fomento da resiliência, devendo oferecer recursos e continência para que o indivíduo possa enfrentar frustrações e perdas, atribuir sentido a essas experiências e entrar em contato com seus sentimentos, com a segurança de que irá sobreviver a elas.

A relação entre religião e enfrentamento do luto precisa ser mais pesquisada nos trabalhos atuais e sugere que as crenças religiosas podem facilitar reavaliações positivas, diminuindo, assim, a intensidade do pesar. A partir do discurso das entrevistadas, observou-se que as crenças religiosas serviam de sistema de significados para elas, constituindo ferramenta valiosa no processo de luto.

A continuidade do vínculo com o filho morto foi ilustrada nas narrativas das mães - que possuem uma conexão muito intensa com o filho falecido -, o que não foi indicativo da presença de qualquer patologia psíquica. Ao contrário, verificou-se que a presença do filho ausente foi redefinida e integrada como uma figura importante e significativa em suas vidas.

Este estudo mostrou que, apesar de sofrerem perdas tão dolorosas, as mães são capazes de enfrentá-las pela construção de significados para esse evento, que as obrigou a rever sua própria identidade, sua visão de mundo e os relacionamentos em geral. Isso não significa que não estejam sofrendo muito, mesmo que as perdas tenham ocorrido há mais tempo. Porém, o que cada uma, idiossincraticamente, está fazendo com sua dor aponta a importância de pesquisas na área da resiliência. Experimentar o apoio de amigos e familiares, perceber a vida como um desafio, transformando a dor em luta, crer que é possível retomar o controle da vida, buscar ajuda especializada são valiosas estratégias de enfrentamento, em situações de crise, que merecem ser estudadas mais profundamente. Como a resiliência se revela em situações de crise, ela pode favorecer uma oportunidade de crescimento, através do qual os indivíduos descobrem recursos que desconheciam possuir, e delas emergindo transformados, e não destruídos.

Referências

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  • Artigo elaborado a partir da dissertação de A.M.R. Franqueira, intitulada "Destruídas ou transformadas: o luto pelo filho adulto sob a ótica das mães". Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2013.
  • Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2013
  • Revisado
    10 Dez 2013
  • Aceito
    11 Fev 2014
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