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Produção científica brasileira sobre comportamento organizacional no terceiro setor

Brazilian scientific production on organizational behaviour in the nonprofit sector

Resumos

Este trabalho revisa a produção científica brasileira sobre comportamento organizacional no terceiro setor. Utilizou-se um levantamento pré-existente de pesquisas empíricas sobre micro comportamento organizacional, publicadas em 15 periódicos nacionais de Psicologia e Administração, no período de 1996 a 2012. Do total de 629 artigos sobre o tema, apenas 31 apresentaram estudos realizados no terceiro setor. O achado sugere que esse segmento econômico encontra--se ainda sub-representado. "Interações sociais" é o tema que tem sido mais estudado nesse setor, seguido por "afeto". No entanto, alguns assuntos relevantes para a pesquisa em comportamento organizacional foram pouco pesquisados nacionalmente no terceiro setor, como "motivação" e "significado do trabalho". É preciso compreender esse setor como promotor de contextos organizacionais peculiares que devem ser considerados para o desenvolvimento de teorias gerais sobre o fazer humano no trabalho.

Comportamento organizacional; Revisão de literatura; Terceiro setor


This paper presents a review of the Brazilian scientific production on organizational behaviour in the nonprofit sector. A pre-categorized data set from empirical studies on micro organizational behaviour, which were published between 1996 and 2012 in 15 Brazilian Psychology and Business journals, was used. Out of 629 articles on micro organizational behaviour, only 31 addressed nonprofit organizations. This finding suggests that this economic sector is still underrepresented. "Social interactions" is the most commonly studied topic in this sector, followed by "affect". However, some topics relevant to research on nonprofit organizational behaviour have been insufficiently investigated in Brazil. These topics include "motivation" and "meaning of work". It is important to acknowledge that the nonprofit sector includes unique organizational settings that should be taken into account for the development of the general theories about human behaviour in the workplace.

Organizational behavior; Literature review; Nonprofit sector


Por volta de 1970, passou-se a estudar siste-maticamente o fazer humano nas organizações - como comportamentos, relações entre pessoas e grupos, disposições, motivos, percepções, crenças, reações, atitudes, significados, valores e sentimentos (Zanelli & Bastos, 2004Zanelli, J. C., & Bastos, A. V. B. (2004). Inserção profissional do psicólogo em organizações e trabalho. In J. C. Zanelli, J. E. Borges-Andrade, & A. V. B. Bastos (Eds.), Psicologia, organizações e trabalho no Brasil (pp.466-491). Porto Alegre: Artmed.) -, nomeadamente o comportamento organizacional (Borges-Andrade & Pagotto, 2010Borges-Andrade, J. E., Coelho Jr., F. A., & Queiroga, F. (2006). Pesquisa sobre micro comportamento organizacional no Brasil: o estado da arte. Anais do II Congresso Brasileiro de Psicologia Organizacional e do Trabalho (Vol.1, p.1), Brasília..). Uma concepção clássica diferencia esse campo do saber em três subáreas de estudo: o comportamento organizacional, a gestão de recursos humanos e as relações de trabalho. Entretanto, a literatura recente aponta para a ampliação e a flexibilização das fronteiras que separam esses subdomínios (Gondim, Borges-Andrade, & Bastos, 2010Gondim, S. M. G., Borges-Andrade, J. E., & Bastos, A. V. B. (2010). Psicologia do trabalho e das organizações: Produção científica e desafios metodológicos. Psicologia em Pesquisa, 4(2), 84-99.). Isso se deve ao reconhecimento de uma interdependência entre eles, ou seja, entende-se que não se pode pensar o trabalho sem a sua gestão e tampouco sem considerar o seu contexto. Assim, o comportamento organizacional micro é definido pelo interesse nas atitudes e nos comportamentos individuais e na relação destes com os sistemas organizacionais (Staw, 1984Staw, B. M. (1984). Organizational behavior: A review and reformulation of the field's outcome variables. Annual Review of Psychology, 35, 627-666.).

A atenção para as especificidades da pesquisa nesse tipo de contexto tem levado ao crescimento do interesse de pesquisadores em explorar ambientes de trabalho específicos, como é o caso do terceiro setor. De acordo com o manual elaborado pelo Instituto Pro Bono (2005)Instituto Pro Bono. (2005). Manual do terceiro setor. São Paulo: Autor. , o esse setor é composto por pessoas jurídicas que estão entre o primeiro (empresarial) e o segundo (estatal), as quais possuem objetivos sociais não voltados ao lucro e prestam serviços em áreas de relevante interesse da sociedade.

Essa tendência de pesquisa tem se desenvolvido bastante nos últimos anos, acompanhando o crescimento do setor terciário (O'Neill, 2007). Isso pode ser ilustrado pelo surgimento, no contexto internacional, de uma corrente da administração voltada especificamente para o terceiro setor, conhecida como nonprofit management (O'Neill, 2007), e pela publicação de estudos em periódicos científicos especializados da área, como o Nonprofit and Voluntary Sector Quarterly, o International Journal of Nonprofit and Voluntary Sector Marketing, o Journal of Nonprofit & Public Sector Marketing, o Nonprofit Management and Leadership e o International Journal of Voluntary and Nonprofit Organizations.

A definição geral de terceiro setor traz muita diversidade para a área, mas a definição das Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil) do Instituto Pro Bono (2005) pode delimitar o campo e possibilitar a comparação com a produção de conhecimento internacional. Em consonância com a classificação utilizada pela Divisão de Estatística da Organização das Nações Unidas, o instituto citado considera como Fasfil as organizações que sejam, simultaneamente: 1) privadas; 2) sem fins lucrativos, embora possam gerar lucro aplicado em suas próprias atividades; 3) legalmente constituídas; 4) autoadministradas ou capazes de gerenciar suas próprias atividades; 5) voluntárias, no sentido de serem livremente constituídas por quaisquer sócios/fundadores.

Dessa maneira, essas fundações e associações podem contar tanto com a colaboração de trabalhadores formalmente reconhecidos pela Consolidação das Leis do Trabalho quanto com voluntários. A Lei nº 9608 (Brasil, 1998Brasil. Presidência da República. (1998). Dispõe sobre o serviço voluntário e dá outras providências. Recuperado em dezembro 8, 2015, de https://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9608.htm
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) dispõe sobre o serviço voluntário e o compreende como atividade não remunerada, prestada por pessoa física a uma entidade pública de qualquer natureza, ou a uma instituição privada de fins não lucrativos, a qual tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade.

O terceiro setor possui ainda algumas características que o difere dos outros contextos organizacionais. Algumas dessas especificidades estão relacionadas ao propósito/missão, aos valores, à aquisição de recursos, ao resultado, ao ambiente legal, ao perfil do trabalhador, à governança e à complexidade organizacional (O'Neill, 1998). No que se refere especificamente à área de comportamento organizacional, a Society for Industrial and Organizational Psychology publicou recentemente um livro que reúne princípios, direcionamentos, ferramentas, dicas e abordagens relacionados ao conhecimento científico sobre o trabalho no terceiro setor (Olson-Buchanan, Bryan, & Thompson, 2013Olson-Buchanan, J., Bryan, L. K., & Thompson, L. F. (Eds.). (2013). Using industrial-organizational psychology for the greater good: Helping those who help others. New York: Routledge.). A publicação em questão dedica-se a discutir o trabalho fora dos contextos organizacionais tradicionalmente estudados, enfatizando que áreas como o setor terciário são ainda poucos explorados pelos pesquisadores interessados em compreender aspectos relacionados ao trabalho. Dessa forma, entender a motivação de trabalhadores envolvidos com o esse setor, por exemplo, é necessário para compreender e gerir o trabalho nesse contexto (Lopina & Rogelberg, 2013Lopina, E. C., & Rogelberg, S. G. (2013). Recruitment, retention, and motivation of volunteers in the nonprofit sector: A volunteer socialization perspective. In J. Olson-Buchanan, L. K. Bryan, & L. F. Thompson (Eds.), Using industrial-organizational psychology for the greater good: Helping those who help others (pp.290-313). New York: Routledge.).

Clary, Snyder e Stukas (1996)Clary, E. G., Snyder, M., & Stukas, A. A. (1996). Volunteers' motivations: Findings from a national survey. Nonprofit and Voluntary Sector Quarterly, 25(4), 485-505. http://dx.doi.org/10.1177/0899764096254006.
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identificaram seis motivos básicos pelos quais as pessoas se envolvem com esse tipo de trabalho, sendo a necessidade de externalização dos valores pessoais o principal, e o pertencimento a um grupo social o segundo mais importante. Entender esses motivos é essencial para uma adequada atribuição de tarefas nesse tipo de organização (Omoto & Snyder, 1993Omoto, A. M., & Snyder, M. (1993). AIDS volunteers and their motivations: Theoretical issues and practical concerns. Nonprofit Management & Leadership, 4(2), 157-176. http://dx.doi.org/10.1002/nml.4130040204.
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). Indivíduos altamente motivados pelo desejo de pertencerem a um grupo social, por exemplo, encontram maior satisfação em funções que envolvem relações interpessoais dentro das organizações do terceiro setor (Omoto & Snyder, 1993).

No Brasil, a construção do conhecimento científico sobre comportamento organizacional parece ser ainda pouco explorada nas organizações que compõem esse contexto. A partir de um levantamento da literatura científica nacional sobre comportamento organizacional, Borges-Andrade e Pagotto (2010) destacam como limitação da produção o pouco interesse dos estudiosos pela área. Em pesquisa recente realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2009, foram identificadas no Brasil 4 . 846 . 639 empresas e outras organizações formalmente constituídas e registradas. Desse total, 19 . 596 eram da administração pública, 4 . 328 . 665 empresas privadas e 498 . 378 entidades sem fins lucrativos. Os setores da economia nos quais o comportamento organizacional tem sido mais estudado no Brasil são o público, com 47% das pesquisas, seguido pelo privado, com 42% (Borges-Andrade & Pagotto, 2010). Embora o terceiro setor represente 20% das entidades registradas, apenas 7% dos artigos sobre comportamento organizacional lhe dizia respeito.

O predomínio dos setores público e privado nas pesquisas nacionais sobre o assunto em questão (Borges-Andrade & Pagotto, 2010) confirma que a área de comportamento organizacional tem se construído no país, majoritariamente, sobre contextos diferentes daqueles que podem ser encontrados por trabalhadores do terceiro setor. Tendo em vista essa baixa representatividade e considerando-se suas especificidades, afirma-se a necessidade de um maior desenvolvimento da pesquisa sobre o fazer humano nesse tipo de organização. Para isso, é preciso identificar e sistematizar o que já existe nacionalmente em termos de conhecimento sobre o comportamento organizacional no setor terciário, de modo que seja possível apontar lacunas e sugerir rumos estratégicos para a pesquisa no país. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar o estado da arte da produção científica brasileira sobre comportamento organizacional no terceiro setor e, a partir disso, sugerir uma agenda de pesquisa para área.

Método

Foi utilizado como ponto de partida para esta pesquisa um banco de dados pré-existente no qual encontravam-se classificados 629 relatos de pesquisa, publicados em 15 periódicos de Psicologia e Administração, no período de 1996 a 2012. Esse levantamento foi construído colaborativa mente ao longo de vários anos, sendo atualizado periodicamente por docentes e discentes do programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Brasília, da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Salgado de Oliveira. Todos os colaboradores foram previamente treinados para serem capazes de fazer o levantamento e classificar os artigos segundo critérios previamente estabelecidos, de forma a garantir sistematicidade e padronização das informações.

Destaca-se que haviam sido incluídos nesse levantamento apenas relatos de pesquisas empíricas as quais apresentassem ao menos uma variável critério de micro comportamento organizacional. Cada um dos artigos do banco foi classificado pelos colaboradores em relação a aspectos como: finalidade do estudo (gerar conhecimento, instrumento ou tecnologia), origem dos dados (primária ou secundária), tipos de instrumentos utilizados (questionário/escala, entrevista, observação, análise documental, teste/prova ou outro), setor estudado (público, privado ou terceiro setor), dentre outros, descritos em maiores detalhes por Borges-Andrade, Coelho Jr. e Queiroga (2006).

A fim de identificar o atual cenário brasileiro de produção científica sobre comportamento organizacional no terceiro setor, o presente estudo fez inicialmente um recorte específico desse banco de dados, selecionando o total de 31 artigos categorizados originalmente como "pesquisas realizadas com amostras do terceiro setor". Em um segundo momento, utilizaram-se os dados apresentados no próprio banco de dados para realizar análises quantitativas comparativas entre os 31 estudos selecionados e as demais pesquisas do levantamento. Adicionalmente, cada um dos 31 artigos foram acessados integralmente e em maior profundidade, sendo exploradas, além das variáveis estudadas, as discussões levantadas em cada trabalho.

Resultados

A Tabela 1 mostra a frequência de publicações sobre micro comportamento organizacional no terceiro setor por periódico e a porcentagem que representam no total de artigos do banco de dados utilizado. Destaca-se que nenhuma revista apresentou mais do que cinco artigos com amostras desse tipo. Além disso, quando considerados os totais de publicações sobre micro comportamento organizacional de cada um dos periódicos, as porcentagens que esses artigos representam variaram entre 3,13% a 15,15%. Observa-se, na tabela, que a revista Estudos de Psicologia (Campinas) tem a porcentagem mais elevada de artigos sobre o terceiro setor (15,15%), destacando-se perante os demais periódicos, uma vez que a segunda maior porcentagem é de 9,26% (Organizações & Sociedade) e todas as outras revistas possuem menos do que 7,00% dos artigos voltados ao setor em questão.

Tabela 1
Frequência de estudos empíricos sobre comportamento organizacional micro no terceiro setor - publicados em periódicos de Psicologia e Administração, no período de 1996 a 2012 - por periódico e correspondente porcentagem em relação ao total de estudos empíricos sobre comportamento organizacional micro no periódico

A Figura 1 apresenta a frequência de estudos interessados em explicar cada uma das categorias temáticas das variáveis de comportamento organizacional no terceiro setor. O tema "interações sociais nas equipes e nas organizações de trabalho" foi o mais estudado nesse contexto, sendo encontrado em oito artigos. Neles, foram estudadas variáveis relacionadas a interações membro-membro, comunicação, negociação, liderança, poder e conflito nas organizações. O segundo tema mais estudado foi "afeto no trabalho" (seis artigos). Nestes, foram estudadas variáveis relacionadas ao prazer, ciúme, emoções e satisfação.

Figura 1.
Frequência de estudos empíricos sobre comportamento organizacional micro no terceiro setor - publicados em periódicos de Psicologia e Administração, no período de 1996 a 2012 - por categorias temáticas das variáveis critério.

No que diz respeito ao cenário metodológico, destaca-se que, em relação à natureza do estudo, a maior parte dos artigos consistem em pesquisas com desenho (83,9%) e não em relato de experiência. Além disso, a abordagem qualitativa foi a mais utilizada (58,1%) não havendo equilíbrio com a quantitativa (35,5%). Os estudos que combinam ambas as abordagens, por sua vez, totalizaram 6,5% do total de publicações no terceiro setor. Em relação à coleta de dados, entrevistas foram utilizadas em 18 dos 31 artigos analisados, questionários/escalas em 15, análise documental em seis e observação também em seis.

Por fim, a partir da análise aprofundada de cada um dos 31 artigos considerados, foi possível identificar que 17 discutiram os resultados encontrados à luz das especificidades desse contexto organizacional, ao passo que os outros não relacionaram explicitamente os achados com as características do setor estudado. Nos artigos que não consideraram as peculiaridades do terceiro setor na discussão dos resultados, os temas mais estudados foram: "bem-estar e saúde", em quatro artigos, "afeto", em três, "cognição" e "contratos psicológicos", cada um em dois artigos.

Nas publicações que consideraram as especificidades do contexto organizacional do terceiro setor, reflexões sobre o comportamento organizacional nesse contexto são apresentadas na discussão dos resultados. Almeida, Souza e Carlotto (2009)Almeida, K. M., Souza, L. A., & Carlotto, M. S. (2009). Síndrome de Burnout em funcionários de uma fundação de proteção e assistência social. Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, 9(2), 86-96., por exemplo, encontraram que a identificação com o conteúdo do trabalho relaciona-se com o sentimento de desenvolvimento e realização profissional em colaboradores de uma fundação de proteção e assistência social. Os autores atribuíram isso ao papel vocacional das tarefas nesse contexto. Silva e Carvalho Neto (2012)Silva, A. S., & Carvalho Neto, A. (2012). Uma contribuição ao estudo da liderança sob a ótica weberiana de domi-nação carismática. Revista de Administração Mackenzie, 13(6), 20-47., por sua vez, identificaram que líderes assalariados no terceiro setor sentem necessidade de equilibrar carisma e burocratização na sua forma de gestão. O segundo elemento é percebido por eles como necessário à adequação às exigências do ambiente legal e administrativo aos quais estão sujeitas as organizações, bem como no sentido de prestar contas pelos recursos investidos.

Discussão

O recorte feito para este estudo mostrou que apenas 31 artigos, do total de 629 do banco de dados original, consistiam em estudos realizados no terceiro setor. Essa parcela de pesquisas fica aquém do espaço ocupado pelo terceiro setor no contexto organizacional brasileiro, corroborando o que foi destacado por Borges-Andrade e Pagotto (2010): o setor em questão encontra-se sub-representado nas pesquisas nacionais sobre comportamento organizacional.

Em termos gerais, o perfil temático dos estudos sobre comportamento organizacional que utilizaram amostras do terceiro setor não difere do cenário de pesquisa sobre comportamento organizacional em geral descrito por Borges-Andrade e Pagotto (2010). Temas semelhantes têm suscitado interesse tanto de pesquisadores que se voltam aos contextos organizacionais tradicionais quanto daqueles que utilizam amostras do setor terciário.

No que diz respeito ao cenário metodológico, os estudos nesse contexto têm seguido a tendência geral de pesquisa em micro comportamento organizacional no Brasil, em que observa--se pouco uso de experimentos (Borges-Andrade & Pagotto, 2010). Ainda em relação ao método, diferenciando-se um pouco da tendência geral em pesquisa sobre comportamento organizacional no Brasil (Borges-Andrade & Pagotto, 2010), a abordagem qualitativa foi a mais utilizada. O fato das entrevistas representarem o método mais utilizado para a coleta de dados não é compatível com os artigos de micro comportamento organizacional em geral - os quais utilizam mais questionários (Borges--Andrade & Pagotto, 2010) -, mas é consistente com a predominância da abordagem qualitativa. Por fim, nota-se que a análise documental possui uma maior representatividade nos estudos do terceiro setor do que nas publicações gerais sobre comportamento organizacional (Borges-Andrade & Pagotto, 2010), o que talvez seja justificado pela maior transparência e consequente facilidade de acesso a documentos nesse tipo de organização.

Dessa maneira, embora a maior parte dos artigos analisados apresente uma discussão dos resultados que considera as especificidades do contexto organizacional do terceiro setor, há ainda uma parcela de estudos que as ignora. Isso, possivelmente, conduz a falhas ou lacunas na construção do conhecimento sobre comportamento organizacional. Nesses artigos, discussões mais profundas poderiam ser suscitadas ao se considerar as especificidades do contexto organizacional do terceiro setor, como o propósito desse tipo de organização, os valores enaltecidos, a forma de aquisição de recursos, os resultados esperados e o ambiente legal (O'Neill, 1998). Nesse sentido, resultados relacionados a temas como "bem-estar", "significado do trabalho" e "contratos psicológicos", os quais foram frequentemente encontrados nesses artigos, poderiam apresentar reflexões diferentes no setor terciário quando comparado com organizações públicas e privadas.

Agenda de Pesquisa Nacional para o estudo do comportamento organizacional no terceiro setor

De uma forma geral, a produção nacional de comportamento organizacional no terceiro setor segue o padrão observado no cenário geral de pesquisa sobre o assunto. De maneira semelhante, são necessários delineamentos de pesquisa mais complexos, como experimentos, e estudos que permitam estabelecer relações de causalidade entre as variáveis. A pesquisa nacional nesse contexto diferencia-se em alguns aspectos específicos, como o melhor aproveitamento da análise documental, a qual deve ainda ser mais explorada, permitindo uma diversificação maior dos métodos de pesquisa (Günther, 2011).

Algumas preferências temáticas desse tipo de pesquisa acompanham a tendência internacional da área, como é o caso do estudo do afeto nas organizações. No entanto, alguns temas relevantes para a pesquisa em comportamento organizacional foram pouco pesquisados nacionalmente no terceiro setor, como motivação, criatividade e solução de problemas, significado do trabalho, dos seus produtos e identidade no trabalho. Tendo em vista que o vínculo trabalhista assalariado não se reproduz em grande parte das organizações desse setor, é importante buscar compreender se a motivação dos trabalhadores funciona de forma semelhante ao que é observado nas organizações do primeiro e do segundo.

Além disso, é necessário entender se a compatibilidade entre os valores do indivíduo e os das organizações, tão relevantes nesse setor (O'Neill, 1998), são centrais para o desenvolvimento de contratos psicológicos. É preciso, também, compreender o que motiva a criatividade e a solução de problemas no contexto do terceiro setor, para que se possam subsidiar práticas que levem a uma melhor performance dessas organizações, as quais necessitam de flexibilidade e inovação para lidar com cenários muitas vezes complexos (O'Neill, 1998). Também é interessante investigar se o significado do trabalho, dos seus produtos e da identidade é o mesmo para os atores desses tipo de organização e para aqueles que atuam com base no vínculo trabalhista assalariado tradicional.

A necessidade de se pesquisar esses temas específicos nas organizações do terceiro setor é justificada pelas peculiaridades desse contexto. Entretanto, é importante que sejam realizados, mais frequentemente, estudos relacionados a todos os temas de comportamento organizacional nessa área, de forma a rever as teorias que foram tradicionalmente construídas em organizações do primeiro ou do segundo setor.

Ao analisar a produção nacional nesse sentido, é possível notar que, embora algumas variáveis tenham sido estudadas nesse contexto, os resultados não são explicados à luz desse tipo de organização. Muitos artigos a esse respeito tomaram o contexto talvez por conveniência ou facilidade de acesso aos participantes. Em contrapartida, a produção científica internacional tem avançado bastante na compreensão da realidade organizacional do terceiro setor, assumindo que valores, sistemas financeiros, leis, atores e metas possuem características diferentes das organizações tradicionalmente pesquisadas. A caracterização desse setor como promotor de um contexto organizacional peculiar é central nas publicações dos periódicos científicos especializados, sendo os resultados das pesquisas discutidos à luz das especificidades dessa realidade. Isso contribui para o desenvolvimento de teorias mais complexas e coerentes para o setor.

É importante que os pesquisadores de comportamento organizacional e agentes envolvidos com o terceiro setor no Brasil voltem-se ao que tem sido produzido internacionalmente nesse campo. Entretanto, faz-se também necessário explorar sua especificidade no Brasil. A complexidade dos serviços prestados por suas organizações pode sujeita-las a variações dos ambientes externos, tornando importante compreender não apenas as teorias gerais do terceiro setor, mas também estudar o cenário brasileiro. Com isso, será possível investigar semelhanças e distinções entre a realidade brasileira e a estrangeira.

Por fim, ressalta-se a importância de se revisar a literatura internacional sobre o assunto, a fim de comparar o desenvolvimento da área nesse tipo de organização com aquele estabelecido para organizações mais tradicionais, do primeiro e do segundo setor. De forma a não sub-representar um campo de pesquisa que tem se tornado cada vez mais fértil no estudo das organizações e do fazer humano nesses contextos, as revisões de comportamento organizacional devem garantir que sejam incluídos nas análises os periódicos especializados no terceiro setor, bem como aqueles que consideram amostras desse contexto.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2014
  • Revisado
    24 Mar 2015
  • Aceito
    07 Abr 2015
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