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Entre a caridade, a filantropia e os direitos sociais: representações sociais de trabalhadoras do care1 1 Trabalho do care é um conceito sociológico e abordagem importante nos estudos da Sociologia do Trabalho e Psicologia Social do Trabalho, que se refere a todo trabalho que envolve cuidar do outro com implicações subjetivas para quem trabalha (babá, enfermeira, empregadas domésticas e até prostituição, por exemplo). Difere do conceito de cuidado, termo mais utilizado pela área da saúde, especialmente a Enfermagem (cuidado, cuidados paliativos, cuidados preventivos, etc.), que não trata das implicações subjetivas do trabalho para o trabalhador e remete mais diretamente à tecnologia envolvida no cuidado em saúde.

Between charity, philanthropy, and social rights: Social representations of female care workers

Resumo

Este artigo analisa as representações sociais de cuidadoras, sobre o trabalho de cuidado, em um serviço de acolhimento institucional para crianças e jovens. Com base na noção de trabalho do care e na Teoria das Representações Sociais, foram identificados os dispositivos legais e as políticas que regulam o funcionamento cotidiano da instituição, buscando compreender como está configurado o trabalho das cuidadoras, os significados que elas atribuem ao trabalho e a forma como o realizam em relação aos seus sentimentos e motivações. Ancoradas na identidade e nas habilidades consideradas tipicamente femininas e culturalmente difundidas na sociedade, as representações das cuidadoras apontam as contradições do trabalho de cuidado nos abrigos institucionais, cuja trama subjetiva intrínseca tanto lhe é essencial quanto pode colidir com as normas que o regulamentam e, ainda, reproduzir um modelo de divisão do trabalho que estabelece conexão direta entre cuidado e gênero feminino.

Palavras-chave:
Assistência social; Política social; Psicologia social; Serviço social

Abstract

This article analyzes the social representations of female caregivers in terms of the care services provided in a residential facility for children and youth. Based on the concept of care work and the Theory of Social Representations, regulations and policies which govern the daily operations of this institution were identified aiming at understanding how they shape the work of caregivers, the meanings they attach to the work offered, and how they work with regard to their own feelings and motivations. Anchored in the identity and skills that are considered typically feminine and are widespread and culturally accepted in our society, the representations of the caregivers reveal contradictions in the care services provided in institutional facilities, whose intrinsic and subjective features can be either essential or go against the rules that regulate these services or even stimulate and promote a division of labor model that establishes a direct association between caregiving and feminine gender role.

Keywords:
Social assistance; Public policy; Social psychology; Social work

No Brasil, os dispositivos legais criados nas últimas décadas provocaram mudanças substantivas na forma de tratar a problemática de crianças e jovens em situação de risco e vulnerabilidade social, assim repercutindo no trabalho dos que se dedicam cotidianamente ao cuidado com essa população. Esse tipo de trabalho deixou de ser ação caritativa e filantrópica para tornar-se prestação de serviços na área de assistência social regulada por lei. Porém, o discurso que valoriza a caridade e a filantropia continua sendo socialmente reafirmado pela cultu-ra, por meio dos valores e das lições de moral e boa conduta, dentre outras formas. Além disso, esse é o discurso difundido pelos meios de comunicação de massa, o que afeta as representações e as prá-ticas sociais das pessoas inseridas nas instituições de cuidado.

Estudos recentes sobre os serviços de acolhi-mento institucional para crianças e jovens no Brasil destacam pontos relevantes para o entendimento do processo de consolidação das leis na prática cotidiana dos profissionais, como: a distância entre, de um lado, a legislação que garante os direitos, e, de outro, as práticas institucionais que reproduzem ações assistencialistas, naturalizantes e padroni-zadoras em relação à família, ao trabalho e à infân-cia (Nascimento, Lacaz, & Travassos, 2010Nascimento, M. L., Lacaz, A. S., & Travassos, M. (2010). Descompassos entre a lei e o cotidiano nos abrigos: percursos do ECA. Revista Aletheia, 31, 16-25. Recu-perado em outubro 6, 2013, de Recu-perado em outubro 6, 2013, de http://pepsic.bvsalud. org/pdf/rpot/v12n2/v12n2a06.pdf
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); a relação entre as formas de sofrimento psíquico e o uso de estratégias defensivas pelas cuidadoras (Lima, 2012Lima, S. C. C. (2012). O trabalho do cuidado: uma análise psicodinâmica. Revista Psicologia, Organizações e Trabalho, 12(2), 203-216. Recuperado em janeiro 26, 2016 de Recuperado em janeiro 26, 2016 de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script= sci_arttext&pid=S1984-66572012000200006&lng= pt&nrm=iso&tlng=pt
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); a influência direta, embora ambígua, da prática dos cuidadores sobre o desenvolvimento das crianças e jovens abrigados, visto que tais pro-fissionais representam um referencial de socialização para estes, mas devem fazê-lo sem substituir a famí-lia de origem (Moré & Sperancetta, 2010Moré, C. L. O., & Sperancetta, A. (2010). Práticas de pais sociais em instituições de acolhimento de crianças e adolescentes. Psicologia & Sociedade, 3(22), 519-528. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-718220100003 00012
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); a ausên-cia de projeto político-pedagógico que oriente o processo educativo nos abrigos (Izar, 2013Izar, J. G. (2013). A práxis educativa e o projeto político--pedagógico em abrigos para crianças e adolescentes. Revista de Ciências da Educação, 15(28), 80-88.). Embora a literatura aponte as dimensões subjetivas rela-cionadas ao trabalho nessas instituições, há uma lacuna no que se refere à análise do trabalho de cuidado que reconheça os vieses de gênero, e que evidencie o processo subjetivo intrínseco do fazer e a sua importância para a objetivação da política de assistência social no Brasil. Tendo em vista a impor-tância social desse trabalho e o papel das instituições de cuidado na sociedade contemporânea, é rele-vante compreender o modo como o trabalho nos abrigos vem sendo realizado, por meio do olhar sobre a subjetividade dos trabalhadores envolvidos nesse campo. Que trabalho é esse? Que represen-tações sociais os trabalhadores constroem sobre ele e sobre os dispositivos legais que o regulamentam?

O objetivo deste artigo é analisar as repre-sentações sociais de cuidadoras sobre a política de assistência social e sobre o trabalho que realizam em um serviço de acolhimento institucional para crianças e jovens (doravante denominado simples-mente Casa, como a ele se referiam as entrevis-tadas).

Com base na noção de trabalho do care (Hi-rata & Guimarães, 2012Hirata, H., & Guimarães, N. A. (2012). Cuidado e cuida-doras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas.) e na Teoria das Repre-sentações Sociais (Jovchelovitch, 2008Jovchelovitch, S. (2008). Vivendo a vida com os outros: intersubjetividade, espaço público e representações sociais. In P. Guareschi & S. Jovchelovitch (Orgs.), Textos em representações sociais (pp.63-83). Petrópolis: Vozes.), a pesquisa foi realizada em duas fases. Na primeira, foi reali-zado um levantamento documental que focalizou a história das instituições de acolhimento para crian-ças e jovens e o processo recente de construção da política de assistência social no Brasil. Os respon-sáveis pela coordenação da Casa disponibilizaram documentos acerca dos dispositivos legais e das políticas que a configuram, regulando o seu fun-cionamento cotidiano e normatizando o trabalho das cuidadoras. Tais informações subsidiaram o tra-balho de campo realizado na segunda fase, durante o ano de 2014, por meio de observações da rotina de trabalho e realização de entrevistas semiestru-turadas com as cinco cuidadoras da Casa. Estas pro-curaram apreender as suas representações sociais sobre o trabalho, considerando o fazer em relação às normas instituídas e aos seus sentimentos e mo-tivações.

A análise, realizada por meio de leituras sis-temáticas das entrevistas transcritas na íntegra, identificou núcleos temáticos de representações nos discursos das cuidadoras. As informações oriundas das entrevistas, das observações e da análise docu-mental foram trianguladas e confrontadas com a literatura disponível sobre o tema.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (Parecer nº 538.217) e aten-deu rigorosamente a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Brasil, 2012Brasil. Ministério da Saúde. (2012). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõem diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Recuperado em outubro 6, 2013, de Recuperado em outubro 6, 2013, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
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).

Entre o público e o privado: trabalho do care e representações sociais

Pensar o trabalho na sociedade contempo-rânea implica refletir sobre certas contradições que envolvem as dimensões políticas, econômicas, so-ciais e culturais que sustentam o sistema produ-tivo vigente e repercutem na subjetividade dos tra-balhadores, em especial os que são excluídos do mercado de trabalho formal e que passam a atuar em novos setores, dentre os quais o de cuidado.

Para tratar como "novo" esse setor da eco-nomia, é necessário destacar quais são as novidades. Trata-se de atividade remunerada que: é típica de países desenvolvidos e em desenvolvimento, cuja população demanda esse tipo de serviço, geral-mente exercido na informalidade por trabalhadores migrantes e imigrantes, dado que estes têm maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal; possui provedores específicos - mulheres -, e receptores diversos - idosos, crianças, pessoas com necessidades especiais (físicas e/ou psicológicas); adquire importância devido ao aumento da popu-lação que necessita de cuidados (idosos e crianças), da presença feminina no mercado de trabalho e da crescente abertura de novos setores de serviços públicos e privados que demandam o cuidado e a atenção ao outro (Hirata & Guimarães, 2012Hirata, H., & Guimarães, N. A. (2012). Cuidado e cuida-doras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas.). Esse é, ainda, um trabalho cujo substrato essencial são as emoções humanas.

Zelizer (2012Zelizer, V. (2012). A economia do care. In H. Hirata &N. A. Guimarães (Orgs.), Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care (pp.15-28). São Paulo: Atlas .) aponta que um dos principais conflitos que emergem no trabalho do care diz respeito à remuneração, o que é também uma ques-tão ética fundamental: o dinheiro vale mais do que a relação de cuidado ou a relação de cuidado é o principal interesse daqueles que cuidam? A autora aponta que o ideal seria a existência de um equilíbrio entre a qualidade do cuidado oferecido e a remu-neração adequada do cuidador. Porém, sabe-se que isso nem sempre ocorre quando se trata de relação de trabalho na sociedade contemporânea, seja ele formal ou informal.

Molinier (2012Molinier, P. (2012). Ética e trabalho do care. In H. Hirata & N. A. Guimarães (Orgs.), Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care (pp.29-43). São Paulo: Atlas .) também reflete sobre a di-mensão ética do trabalho do care, cuja origem está na experiência moral de pessoas que cuidam dos outros, o que não é exclusividade das mulheres e nem é preocupação de todas elas. Assim, o autor retira do conceito o peso biológico e cultural, porque se trata de um trabalho que pode ser mais espe-cializado (enfermagem) ou menos especializado (babás, empregadas domésticas) e que ocorre em diferentes âmbitos e tipos de relações sociais.

Considerando que o trabalho do care envol-ve a compreensão e avaliação das emoções de quem cuida e de quem recebe o cuidado, Soares (2012Soares, A. (2012). As emoções do care. In H. Hirata & N. A. Guimarães (Orgs.), Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care (pp.44-59). São Paulo: Atlas ., p.49) destacou: "... nem todo trabalho emocional é, necessariamente, trabalho de cuidados, mas todo trabalho de cuidados envolve, sempre, o trabalho emocional". Também para Oliveira (2012Oliveira, J. A. (2012). As emoções no trabalho e a segre-gação ocupacional no gênero feminino. Revista Brasi-leira de Sociologia da Emoção, 11(31), 32-52.), o tra-balho do care proporciona vivências subjetivas e intersubjetivas constitutivas da identidade dos su-jeitos, mas se destaca por implicar, particularmente, a utilização de aspectos privados das emoções humanas para uso público, já que o trabalhador não necessita apenas lidar com as emoções ine-rentes ao trabalho, mas usá-las como instrumento para vender ou compor um serviço remunerado. É um tipo de trabalho que exige ações voltadas para suprir uma necessidade ou o bem-estar do outro, mesmo que em detrimento do próprio trabalhador.

No que se refere à análise categorial, Bourgeaud-Garciandía (2009) atenta para três questões intrínsecas ao trabalho do care: 1) a invi-sibilidade, dada a falta de reconhecimento social das profissões do care, cujo trabalho se realiza em ambiente privado, que exige discrição, e cujas prá-ticas só se tornam visíveis quando falham; 2) o afeto, elemento ambíguo, pois, ao mesmo tempo que é um indicador de valor das relações, pode desca-racterizar o trabalho como atividade que requer remuneração; e 3) a qualificação, porque a natureza do care questiona as formas de avaliação de êxito desse tipo de trabalho: ele pode ser medido, trans-mitido ou aperfeiçoado? Segundo a autora, todos podem exercer o trabalho do care, não apenas as mulheres.

Em síntese, no trabalho do care, as situações de lidar com as emoções e construir identidades, que são processos subjetivos de âmbito privado, ocorrem nas relações que o sujeito trabalhador esta-belece com os outros no espaço público, que, por sua vez, é estruturado por normas formais e infor-mais, o que confere dimensões subjetivas parti-culares para esse tipo de trabalho. Portanto, com-preender como se dão essas relações e as suas dimensões subjetivas é uma forma de construir conhecimentos sobre o tema, o que pode dar maior visibilidade à profissão e contribuir para melhorar as relações e condições do trabalho, além de in-formar o processo de elaboração e implantação de políticas públicas de assistência social, para que, de fato, sejam respeitados tanto os direitos dos tra-balhadores quanto os dos usuários do serviço.

Para tanto, é importante explicitar os me-canismos por meio dos quais as emoções, como substrato fundamental do trabalho de cuidado, par-ticipam da construção da subjetividade dos tra-balhadores e das representações sociais que eles constroem sobre o trabalho que realizam. Neste estudo, a Teoria das Representações Sociais foi um recurso útil para entender essas relações.

Jovchelovitch (2008Jovchelovitch, S. (2008). Vivendo a vida com os outros: intersubjetividade, espaço público e representações sociais. In P. Guareschi & S. Jovchelovitch (Orgs.), Textos em representações sociais (pp.63-83). Petrópolis: Vozes.) entende que as relações de alteridade que se dão no espaço público são terreno privilegiado para o cultivo e estabelecimento das representações sociais. O "nós", síntese da rela-ção eu-outro, torna público o que está no âmbito privado. É na atividade dos sujeitos em espaço público - os quais, posicionados em lugares sociais distintos, lutam não só para compreender, mas também para transformar as suas relações -, que emergem as representações sociais. Como produtos e produtoras dos discursos e fazeres cotidiano, as representações sociais circulam em diferentes es-paços socializados, como as instituições, as ruas, os meios de comunicação de massa, os movimentos sociais, as heranças históricas e culturais da huma-nidade. A busca de compreensão e significação do estranho gera um movimento contínuo de relações entre os sujeitos e a estrutura social que mantém e/ou transforma o instituído, revelando o caráter dual das representações sociais: estas ora desafiam, ora reproduzem; ora superam, ora repetem; ora atuam na formação, ora são formadas pela vida social.

A análise das representações sociais das cuidadoras da Casa sobre o seu trabalho, entendido como uma modalidade de trabalho do care, uma vez que sua essência é a mobilização de subjeti-vidades, e consideradas as dimensões individual e social nele implicadas, pode propiciar um novo olhar sobre o modelo assistencial para crianças e jovens, bem como sobre seus dispositivos legais e equipa-mentos operacionais no Brasil.

Assistência social e proteção de crianças e jovens no Brasil

No Brasil Colônia, o atendimento às crianças abandonadas era realizado principalmente pelas Santas Casas de Misericórdia, as quais se orientavam pela benevolência e fé católica. No século XIX, a mistura entre crenças religiosas e morais, além de não solucionar a questão do abandono, padronizou as práticas institucionais para garantir maior rigor sobre a higiene e prevenção de doenças e promoveu a transmissão dos discursos dominantes.

Segundo Paula (2005Paula, F. A. (2005). Concepções de atendimento à criança pequena: caridade, filantropia, assistência e educação infantil. Revista Línguas & Letras, 6(11), 235-250.), na metade do século XX, surgiram grupos políticos, médicos e jurídicos que criticavam o modelo caritativo confessional e defendiam os ideais utilitaristas e liberais conso-lidados na Primeira República. Como contraponto às atuações dispersas, moralizantes e efêmeras da caridade, o movimento filantrópico procurou substi-tuir a fé pela ciência e postular uma assistência mais organizada e controlada pelo Estado. As ações hi-gienistas, disseminadas para sustentar o processo de industrialização, objetivavam organizar os corpos e o espaço, no sentido de atender as novas exigên-cias sociais, políticas, morais e econômicas do Brasil republicano. A disputa entre essas duas vertentes foi sendo superada por meio da incorporação mútua de discursos e técnicas: a caridade assumiu os obje-tivos filantrópicos de prevenir as desordens, e a filantropia preservou os preceitos religiosos. Assim, tais movimentos passaram a se orientar por um mesmo objetivo: a manutenção do status quo, por meio da dominação e tutela sobre o pobre e as ver-bas públicas a ele destinadas.

Pereira (2012Pereira, P. A. P. (2012). Utopias desenvolvimentistas e política social no Brasil. Revista Serviço Social & Sociedade, 112, 729-753. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-66282012000400007
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) mostra que, a partir dos anos de 1930, a assistência social passou a ser concebida como questão de ordem pública, porém, contradi-toriamente, as políticas sociais ocuparam lugar mar-ginal nos interesses desenvolvimentistas dos governos. Nos anos noventa, uma das contradições da política social brasileira é que a promulgação da Constituição Federal de 1988 - fruto do processo de redemocratização que ampliou e universalizou o leque de direitos sociais -, ocorreu simulta-neamente à implantação dos princípios neoliberais. Tais princípios negam os direitos universais ao valorizar a racionalização e a livre concorrência que, na prática, dificultam a materialização de certos di-reitos sociais, tornando "letra morta" os princípios e dispositivos legais que os asseguram.

Entre esses dispositivos estão o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990Brasil. Presidência da República. (1990). Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências Recuperado em outubro 6, 2013, de Recuperado em outubro 6, 2013, de http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
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), cujo Artigo 3º prevê que toda criança e todo jovem de-vem ter acesso aos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (Brasil, 2011) que, vinte anos depois, definiu que o amparo às crianças e jovens carentes é um dos objetivos da Assistência Social. As famílias que enfrentam situações de violação de direitos de-vem receber acolhimento provisório, em instituições que tenham estrutura física adequada, higiene, salubridade, segurança, acessibilidade e privacidade, para contribuir na reconstrução dos vínculos fami-liares e comunitários rompidos e no fortalecimento das potencialidades familiares.

O Serviço de Acolhimento Institucional, que abarca as modalidades de abrigo institucional, casa-lar, casa de passagem ou residência inclusiva, é um dos que compõem a Proteção Social Especial de Alta Complexidade, segundo a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. Tais entidades inte-gram o SUAS como prestadoras complementares de serviços socioassistenciais e como cogestoras, por meio da participação nos conselhos de as-sistência social (Brasil, 2009Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009a). Tipificação nacional das entidades socioassistenciais. Brasília: Autor.a). Independentemente da natureza público-estatal ou não estatal, tais serviços devem pautar-se nos pressupostos do ECA, do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes a Convivência Familiar e Comunitária, da Política Nacional de As-sistência Social, da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS e do Projeto de Dire-trizes das Nações Unidas sobre Emprego e Condi-ções Adequadas de Cuidados Alternativos com Crianças (Brasil, 2009Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009b). Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes (2ª ed.). Brasília: Autor .b).

A Tipificação Nacional das Entidades So-cioassistenciais descreve e especifica a aplicação dos serviços de acolhimento institucional, que devem abrigar até vinte crianças e/ou jovens, em espaço adequado, onde os educadores/cuidadores tra-balhem em turnos fixos para garantir a estabilidade da rotina diária. O Manual de Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adoles-centes, doravante chamado apenas Manual, oferece parâmetros para operacionalizar a política de as-sistência social no que se refere aos recursos huma-nos dos serviços de acolhimento (número mínimo de profissionais necessários, carga horária mínima, cumprimento das atribuições e principais ativida-des). As orientações objetivam a adequação gra-dativa dos serviços de acolhimento, e os parâmetros devem ser ajustados à realidade e cultura locais, considerando a história de cada serviço, sem perder a qualidade dos acolhimentos já realizados.

Ocorre que esses instrumentos jurídicos ope-ram em uma ordem social permeada por relações de poder que reproduzem desigualdades e cujos discursos e regras morais produzem versões da realidade histórica e social que legitimam a ordem. Sendo a Casa um espaço onde essas relações sociais estão presentes, torna-se importante compreender o modo como elas se dão, assim como as represen-tações sociais que produzem e são produzidas no seu cotidiano.

A Casa onde foi desenvolvido o presente estudo insere-se na Proteção Social Especial de Alta Complexidade do SUAS, e é parte da rede de aten-dimento socioassistencial do município onde se localiza. Foi criada em 1995 pelo esforço de grupos religiosos, poder judiciário, prefeitura municipal e membros da sociedade civil. Tem como foco a pres-tação de serviços sem fins lucrativos e o desen-volvimento permanente, continuado e planejado de atividades de atendimento e assessoramento para defesa e garantia dos direitos de crianças e jovens em situação de risco e vulnerabilidade social. Em 2014, a população atendida advinha de casos de destituição do poder familiar, por serem os pais portadores de doença mental grave ou por estarem envolvidos com tráfico de drogas, violência ou abuso familiar, agravados pela pobreza. A estrutura física era semelhante a uma residência, de acordo com as condições indicadas pela Tipificação Nacional das Entidades Socioassistenciais (Brasil, 2009Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009a). Tipificação nacional das entidades socioassistenciais. Brasília: Autor.a). Estavam em atendimento permanente seis usuários com ida-de entre seis e 15 anos, matriculados em escolas públicas, dois deles com demandas específicas por serem portadores de transtorno mental. Os prin-cipais recursos financeiros adivinham de programas municipais, estaduais e federais, complementados com rendas oriundas de eventos e de contribuições espontâneas da sociedade.

Em conformidade com a legislação, a equipe de trabalho era formada por dez profissionais, todas do sexo feminino, embora essa não fosse uma exi-gência formal: uma coordenadora, duas profis-sionais de nível superior (psicóloga e assistente so-cial), cinco cuidadoras e duas auxiliares de cuidadora (limpeza e cozinha), que cumpriam jornada orga-nizada em turnos de aproximadamente sete horas e trinta minutos, durante seis dias da semana. Du-rante a semana mantinha-se uma rotina fixa e, nos finais de semana, realizavam-se atividades de lazer e convívio com as famílias.

A política de assistência social e o trabalho das cuidadoras

Para compreender a relação que as cuida-doras estabeleciam entre a política de assistência social e o cotidiano de trabalho na Casa, foi neces-sário ir além do saber objetivo sobre a legislação que regulamenta a atividade (Brasil, 2009Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009b). Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes (2ª ed.). Brasília: Autor .b) e utilizar as suas próprias histórias de vida como a estampa dessa relação. A partir do diálogo estabelecido sobre como se deu a inserção na instituição, as formas utilizadas para aprender a função, as dificuldades e os prazeres da profissão e os significados atribuídos à legislação, foram identificadas algumas inter-secções entre o cotidiano de trabalho e a forma co-mo tem sido operacionalizada a política de assistên-cia social.

Ser cuidadora não foi uma escolha. A ne-cessidade de trabalhar e o pertencimento a uma rede de relações comunitárias possibilitou encontrar um trabalho condizente com a qualificação profis-sional das entrevistadas, cujas experiências de tra-balho anterior restringiam-se ao trabalho domés-tico, remunerado ou não. Contrariando o que pre-coniza o Manual, o processo de contratação era informal, mediado principalmente pela comunidade religiosa que participou da criação da Casa, à se-melhança do que acontecia nos antigos abrigos geridos por voluntários, religiosos e leigos. "Eu esta-va querendo trabalhar, precisando, eu procurei a esposa do presidente... como a gente já é, trabalha em casa, é dona de casa, mãe, então, você acaba se identificando um pouco com o serviço de cuidar de criança" (Cuidadora J). A mudança na legislação assistencial vem transformando essa concepção, ao considerar o papel educativo do cuidador e a ne-cessidade de prepará-lo para tanto: "Então, por isso que eu falo que todos que trabalham lá precisam ter uma preparação. Aí, se não se enquadrar, fazer o quê? Você procura outra coisa" (Cuidadora J).

No entanto, o processo de preparação para a função também contrariava o prescrito pelo Ma-nual, que preconiza o processo de capacitação em fases (introdutória, prática e formação continuada), com base na ideia de que o cuidado não é natural ao gênero feminino, mas ocorre pela experiência, pois a compreensão da história de vida e do sofri-mento dos atendidos são ferramentas fundamentais para a realização desse trabalho. Mas, como na Casa o sistema de recrutamento e seleção de cuidadoras era informal e não havia obrigatoriedade de expe-riência prévia nem treinamento específico, era a partir da vivência cotidiana na instituição, da rela-ção estabelecida com as outras cuidadoras e fun-cionários e das suas próprias experiências de vida que elas, gradativamente, passavam a compreender a função: "Quando eu entrei, eu não entrei direto cuidadora, eu entrei nos serviços gerais. Aí conforme passou o tempo, a coordenadora falou 'olha, você não quer passar como cuidadora agora?'. Aí acabei ficando, sabe? Gostei da experiência" (Cuidadora C). Ser auxiliar de cuidadora era um meio de capa-citação, uma espécie de "estágio" feito nas ativi-dades de limpeza ou na cozinha, que permitia obser-var e perceber o que é ser cuidadora. Mas também era forte a crença de que há algo preexistente, como dom ou vocação, que favorece o vínculo com esse tipo de trabalho e com as crianças. "Acho que é um dom que a gente tem, já tinha, sabe?" (Cuida-dora A).

Na Casa, as estratégias utilizadas para pro-mover a formação continuada realizavam-se por meio de três instrumentos: um livro de plantões no qual se descrevia a rotina do turno, os telefonemas (em casos urgentes) e as reuniões esporádicas. "A gente precisa porque vai mudando muito e a gente às vezes se perde diante dos problemas, não é? Diante das dificuldades, vai se perdendo e ficando sem saber para que lado ir" (Cuidadora A). Porém, as cuidadoras queixaram-se de que as reuniões estavam longe de ser espaços de escuta segura e troca construtiva de experiências. "E aí tem aquele que concorda, tem aquele que discorda, tem aquele que no dia a dia é uma coisa e aí na frente vai falar tudo diferente, que não é aquilo, sabe? É com-plicado" (Cuidadora J). O relato demonstra que os conflitos internos expressavam-se no processo co-municativo e que havia necessidade de fortalecer a equipe no sentido de pensar uma ação coletiva e organizada, porque a falta de equacionamento das divergências poderia acarretar problemas para o cotidiano de trabalho, especialmente para o pro-cesso educativo das crianças e jovens.

As mudanças propostas pelo SUAS no âm-bito da política de proteção à criança e ao jovem direcionam-se para a criação de um ambiente de proteção e segurança, lúdico e construtivo, o que ressalta a importância do projeto político--pedagógico nas instituições de cuidados. Mas, na Casa, a ausência de um projeto comum apenas possibilitava uma prática reativa às necessidades momentâneas, o que remonta ao modelo institu-cional assistencialista:

A rotina da Casa é como a de uma casa qualquer, não é? É como uma mãe que precisa cuidar dos afazeres domésticos e das crianças ao mesmo tempo. Como o trabalho precisa ser feito e as crianças acabam ficando sozinhas (Cuidadora E).

Aí bate mais o que você deixou de fazer: você poderia ter feito mais. Mas, às vezes, por toda essa pressão que a gente vive o tempo inteiro lá, de cobrança, você perde tempo com outras coisas, sabe? De você não poder brincar um pouquinho junto com eles e de viver aqueles momentos mais praze-rosos (Cuidadora S).

Os principais entraves vivenciados no dia a dia estavam associados à percepção das cuidadoras de haver um distanciamento subjetivo entre os profissionais envolvidos no processo de acolhimento institucional, que é mais amplo e complexo do que o cuidado em si, posto que envolvesse uma rede de serviços municipais: o Conselho Tutelar, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social e o Ministério Público.

Porque eu vejo assim: lá no fórum é docu-mento. Papel. Escutar a gente falar é uma coisa, ler lá é outra coisa. É frio. Você ver a criança, conversar... nós vivemos ali com eles, a gente vê. Tem um sentimento. A gente vê o choro de quando eles chegam, a gente vê quando os pais vão visitar, o amor. Você vê, você sente. Papel não. Então 'ah não, o pai é assim, a mãe é assim, assim, assado, melhor não morar junto'. O que eles sabem? O que eles conhecem? A frieza, o lado frio (Cuidadora A).

Para as entrevistadas, o olhar racional, obje-tivo e neutro dos profissionais que não tinham con-tato com os aspectos afetivos, a história e a iden-tidade de cada uma das crianças/jovens, ao contrário de ser uma vantagem para exercer a função de forma eficaz e sem "subjetivismos", era frio e impes-soal e resultava em práticas que poderiam afetar a vida dos que já eram tão vulneráveis. Conhecer a história desses sujeitos, envolver-se e deixar-se afetar não atrapalhava o processo, mas era uma maneira de entender a realidade dos que necessitavam retomar a vida com autonomia. "... . As mudanças não são fáceis, a gente tem consciência disso, mas eu penso assim: é aquela história do beija-flor lá, cada um faz um pouquinho. Um faz um pouquinho, outro faz um pouquinho, dá resultado, sabe?" (Cuidadora A).

Em suma, a falta de capacitação profissional adequada e as deficiências na comunicação que enfraqueciam a equipe, o fato de a Casa tornar-se moradia e não espaço provisório de abrigamento devido à morosidade do sistema judiciário para solucionar o problema dos abrigados, a falta de um projeto político-pedagógico que orientasse o processo educativo, como foi apontado por Lima (2012Lima, S. C. C. (2012). O trabalho do cuidado: uma análise psicodinâmica. Revista Psicologia, Organizações e Trabalho, 12(2), 203-216. Recuperado em janeiro 26, 2016 de Recuperado em janeiro 26, 2016 de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script= sci_arttext&pid=S1984-66572012000200006&lng= pt&nrm=iso&tlng=pt
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) e Izar (2013Izar, J. G. (2013). A práxis educativa e o projeto político--pedagógico em abrigos para crianças e adolescentes. Revista de Ciências da Educação, 15(28), 80-88.), eram fatores que resumiam o trabalho das cuidadoras ao mínimo necessário para a manutenção da rotina diária na Casa.

Trabalho e cuidado

No trabalho do care, cria-se uma complexa rede de interações com diferentes dimensões, abrangendo relações e emoções característicos do cuidado e afetando de diferentes maneiras os sujeitos envolvidos. Soares (2012Soares, A. (2012). As emoções do care. In H. Hirata & N. A. Guimarães (Orgs.), Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care (pp.44-59). São Paulo: Atlas .) propõe a análise de duas dimensões desse tipo de trabalho: a di-mensão relacional, caracterizada pela utilização de um conjunto de qualificações sociais que buscam o equilíbrio adequado da relação entre quem cuida e quem é cuidado, espécie de "diplomacia" que, no contexto específico, evita que ocorram embaraços no dia a dia de trabalho; e a dimensão emocional, caracterizada pelo movimento interno das emoções que levam o sujeito à ação ou reação, podendo ser pensada como a gestão da expressão das emoções. Essa dimensão diz respeito às regras de sentimento compartilhadas socialmente para que uma atividade seja realizada.

Ambas as dimensões e as suas características foram identificadas nos relatos das cuidadoras da Casa. Um aspecto é crucial para compreender o significado que o trabalho de cuidado tinha para as trabalhadoras: por possuir uma história de vida complexa, o outro demanda um tipo de cuidado especial, o que torna a interação única. "A gente tenta entender o vazio que essas crianças devem sentir por não estarem com suas famílias. São crian-ças marginalizadas, diferentes, carregam essa mar-ca. Afinal, nós todos somos diferentes, não somos iguais, temos as nossas marcas" (Cuidadora J). A relação cuidadora-cuidado deveria levar em consi-deração "o vazio e as marcas" dos sujeitos.

Soares (2012Soares, A. (2012). As emoções do care. In H. Hirata & N. A. Guimarães (Orgs.), Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care (pp.44-59). São Paulo: Atlas ., p.47) utiliza o conceito de qua-lificações sociais para explicar esse aspecto essencial do trabalho de cuidar, visto que, segundo o autor, trata-se da "... capacidade de evitar o embaraço para si e para o outro". As qualificações sociais são atitudes e comportamentos "invisíveis", difíceis de serem mensurados ou avaliados, e que, na prática, só são apreendidos quando ausentes na interação, porque perturbam e comprometem a qualidade do atendimento, como revelam as falas das cuidadoras: "Tem que ter muita paciência com criança, prin-cipalmente. O passado deles de abandono, de maus tratos, então, tem que ter muita calma e muita paciência para lidar com eles" (Cuidadora E) e "Coisas que acontecem lá dentro, da vida pessoal, da vida íntima deles, é sigilo, como é na sua casa" (Cuidadora C).

Calma, paciência e discrição são as qualifi-cações sociais que diferenciam o trabalho das cuida-doras do trabalho das auxiliares de cuidadoras. "En-tão, o quanto não é muito mais fácil eu pegar aqui e começar a lavar do que eu ter que apartar uma briga aqui de quatro crianças" (Cuidadora A). A falta dessas qualificações provoca reações, tendo em vista a delicadeza da problemática vivenciada pelas crianças/jovens. Elas entendiam que a interação é uma troca: quem cuida recebe o mesmo que oferece a quem está sendo cuidado. "É, na verdade, é uma resposta que ele está dando aí, não é? De algo que você está dando para ele, não é?" (Cuidadora E). Tais qualificações são condizentes com os princípios e as práticas preconizadas pela política de assistência social, pois são justamente aquelas que podem favorecer a integridade dos sujeitos: "Você não tem esse direito. Tá, são crianças difíceis, são crianças complicadas. Tá, mas eu não tenho esse direito de denegrir mais ainda essa imagem que já é dene-grida" (Cuidadora A).

Fica evidente o reconhecimento da especifi-cidade do tipo de interação que ocorre no trabalho de cuidado e as qualificações sociais necessárias para realizá-lo. Porém, a falta de preparação e de orientação para o trabalho de equipe - uma casa com "várias mães" para suprir o "vazio" -, permitia que algumas práticas contrariassem os norteadores de um trabalho de cuidado justo e igualitário. As menções sobre o cuidado pautado por um "lado profissional não humano" demonstravam haver fissuras nas representações do grupo, que o pro-cesso de seleção e capacitação institucional não lograva sanar. A existência dessas fissuras sugere que poderia haver na equipe quem realizasse o trabalho apenas pelo interesse na remuneração, o que representava um "não-cuidado". "Porque eu acho que aí entra mais a parte mesmo do ganhar, não é? Do 'eu entro lá para ganhar meu dinheiro'. Mas não dá, não é? Não pode funcionar assim... você não está lidando com máquina, entendeu?" (Cuidadora J).

No entanto, os discursos eram uníssonos ao apontar a necessidade de ter "jogo de cintura" para lidar com as situações mais delicadas e que exigem certa diplomacia, o que foi corroborado pelas obser-vações feitas da rotina das trabalhadoras na Casa. Ressalta-se que, durante o tempo de permanência no campo empírico, não foram observadas situações de conflito explícito ou que exigissem mudança radical na rotina para serem contornadas. Porém, é importante destacar que o trabalho de campo não está sob o controle total do pesquisador e que as instituições e os seus agentes preparam-se para a chegada de quaisquer visitantes, selecionando os momentos mais propícios e adequados para recebê--los, assim como também selecionam as infor-mações que fornecem.

Lá a gente toca ter um pouquinho mais de jogo de cintura. Por quê? Porque nós não somos a mãe, não somos o pai, não somos os irmãos, nós não somos a família deles. E, queira ou não, eles sabem que nós ganha-mos para fazer esse trabalho. Então, não é que você está sendo empregado deles, mas é que não custa você ter um jeitinho: 'olha, o seu quarto não está bem arrumado, vai lá arrumar'. Agora, dependendo de como você falar, você não vai ter o retorno, e aí aquilo vira o rebu (Cuidadora A).

Portanto, as qualificações da dimensão rela-cional, estão associadas a um tratamento huma-nitário que ocorre por meio de pequenas ações. O cuidado, entendido como troca humana, transpassa os momentos de interação, e a busca de equilíbrio é realizada por meio de um "jogo de cintura", um "jeitinho" que é o que está na base do trabalho do care. "Então, é todo esse trabalho que a gente tem que ter, você entendeu? Dando equilíbrio para a situação. Daí tem que ter esse jogo aí de cintura sabe? Controlando um, controlando outro, socorre um, socorre outro" (Cuidadora J).

Para Soares (2012Soares, A. (2012). As emoções do care. In H. Hirata & N. A. Guimarães (Orgs.), Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care (pp.44-59). São Paulo: Atlas .), há uma estreita as-sociação entre a dimensão relacional e a dimensão emocional, ocorrendo simultaneidades e sobre-posições. Para abordar as emoções das cuidadoras da Casa, utilizou-se a caracterização de Soares (2012, p.49) de trabalho emocional, definido como a "... compreensão, avaliação e gestão das próprias emoções, assim como das emoções do outro, para que o trabalho possa ser realizado". Segundo o autor, os trabalhadores do care são unânimes em afirmar que é impossível não existir envolvimento com quem é cuidado ou impedir o surgimento do amor, emoção típica desse tipo de trabalho. Envol-vimento e amor são essenciais no cuidado e, mesmo quando o trabalho é institucionalizado e remu-nerado, essas emoções escapam à mercantilização.

Na Casa, o amor estava na base da troca característica do trabalho de cuidado bem feito: as cuidadoras ofereciam amor, e as crianças/jovens o expressavam ao valorizar a presença da cuidadora e os cuidados do dia a dia:

Os momentos em que você vê que eles gos-tam da gente, que eles sentem essa falta. Então, quer dizer: tem uma troca ali. Então, você está dando amor para eles, que é o mais importante, não é? (Cuidadora C).

É difícil? É. Mas não é impossível, desde que você faça com muita dedicação, muito amor aquilo (Cuidadora E).

Por um lado, o amor - expresso pela vontade de "dar aquela espiadinha" no quarto para ver se eles estão cobertos e dormindo bem, colocar ordem no guarda-roupa ou fazer um prato diferente para o almoço de domingo -, estava entre as principais emoções que ajudavam a construir uma relação de confiança entre cuidadora-cuidado. "Poder chegar e confiar. Que qualquer que seja a situação que ele esteja vivendo, ele poder colocar. Então é a con-fiança. É o amor, a confiança. É fundamental, não é?" (Cuidadora E). A relação baseada no amor e na confiança resultava em um trabalho gratificante para as cuidadoras, motivo de satisfação e orgulho por terem feito um "bom trabalho", e na retribuição das crianças e dos jovens: "Isso é gratificante. É sinal de que você tem peso, você tem importância. E se você tem importância é porque algo de bom você fez na vida dessa criança" (Cuidadora C).

Por outro lado, o trabalho emocional tam-bém acontecia em face das dificuldades do coti-diano de trabalho: "Aí a cabeça. Eu falo que ainda mais na nossa função... É o psicológico da gente. Dependendo dos acontecimentos, tem dia que, se corre tudo bem, você vai embora tranquila. Mas o psicológico, quando a coisa foge do controle..." (Cuidadora S). Se os momentos de prazer surgiam quando o cuidado era aceito, em oposição, quando o cuidado era rejeitado, as cuidadoras entristeciam--se por não concretizarem o vínculo emocional. Elas reconheciam que as suas atitudes e expressões pro-duziam respostas emocionais nas crianças e jovens e, quando eles se afastavam, para elas era sinal de decepção e de trabalho fracassado.

É, tem sim os momentos de prazer... . Você sabe, poder cuidar deles quando eles aceitam isso. O que entristece a gente é quando eles não aceitam, quando eles não deixam você chegar perto deles, eles criam aquela rebeldia (Cuidadora E).

Tanto é que a gente fica meio dividida. É difícil, porque como você lida com a cabe-cinha deles, às vezes você se decepciona. Porque a gente vê que eles tomam rumos que a gente não gostaria que eles tomassem (Cuidadora S).

Outra dimensão importante do trabalho emocional realizado pelas cuidadoras era o esforço suplementar para separar as vivências da Casa da-quelas das suas próprias casas. O sentimento pelas crianças e pelos filhos era o mesmo: "O que a gente quer para os nossos filhos a gente quer para eles. O que a gente quer? A gente quer que eles saiam daqui pessoas dignas, honestas, trabalhadoras" (Cuidadora A). Mas esse sentimento não podia ser compartilhado na própria casa, porque provocava reações nos familiares: "Mãe, você só falava da Casa nome da instituição. Mãe, não pode!" (Cuidadora J) e ainda "Pronto! Não pode falar da Casa... . Falou da Casa... , ela já se ofendeu!" (Cuidadora S). A jornada intensiva do trabalho organizado em turnos, a dupla jornada das mulheres que continuavam trabalhando mesmo depois de deixar o local de trabalho, e o tempo de folga insuficiente para repor o cansaço e reorganizar as emoções, eram aspectos que dificultavam o gerenciamento de subjetividades semelhantes vividas em espaços distintos.

Considerações Finais

As representações sociais das cuidadoras sobre o trabalho na Casa apontam que a paciência, a calma e a discrição são as qualificações sociais necessárias para a realização do trabalho de cuidado e que o amor é sentimento fundante da relação de troca que se estabelece entre cuidador e cuidado. O amor é o centro de uma complexa trama de sen-timentos que se desenrola dentro e fora do tra-balho, confunde os âmbitos da vida pública e pri-vada e obscurece a dimensão formal da relação de trabalho, uma vez que, em nome dessa expressão de cuidado, a instituição nem sempre cumpre o prescrito na legislação. Do ponto de vista das cuida-doras, o amor é também medida de eficiência e eficácia do trabalho, ao ser ou não correspondido pelos sujeitos cuidados.

Ancoradas na identidade e nas habilidades consideradas tipicamente femininas e historica-mente difundidas na sociedade, essas representa-ções apontam as contradições do trabalho de cuida-do nos abrigos institucionais: por ser incondicional, à semelhança do amor de mãe, o amor tanto é essencial nesse tipo de trabalho quanto pode colidir com as normatizações que o regulamentam e re-produzir um modelo de divisão do trabalho que, necessariamente, articula cuidado e gênero fe-minino.

Visualizar o trabalho de cuidado como uma experiência que independe de gênero pode fazer com que a sua intencionalidade no campo da as-sistência social se reaproxime do compromisso ético e político de realização plena de um direito social conquistado. Esse trabalho, pensado e realizado como processo educativo que valoriza o afeto, pode contribuir para tornar os profissionais das insti-tuições de cuidado mais resistentes aos valores reprodutores de desigualdades sociais.

Agradecimentos:

Ao apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e à contribuição das trabalhadoras do serviço de acolhimento institucional estudado.

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    Trabalho do care é um conceito sociológico e abordagem importante nos estudos da Sociologia do Trabalho e Psicologia Social do Trabalho, que se refere a todo trabalho que envolve cuidar do outro com implicações subjetivas para quem trabalha (babá, enfermeira, empregadas domésticas e até prostituição, por exemplo). Difere do conceito de cuidado, termo mais utilizado pela área da saúde, especialmente a Enfermagem (cuidado, cuidados paliativos, cuidados preventivos, etc.), que não trata das implicações subjetivas do trabalho para o trabalhador e remete mais diretamente à tecnologia envolvida no cuidado em saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2016
  • Revisado
    07 Mar 2016
  • Aceito
    15 Abr 2016
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