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As representações do "erro" na aprendizagem da escrita numa classe de alfabetização de jovens e adultos

Some representations of error in the learning of writing in the young and adult literacy classroom

Resumos

Este trabalho, fruto de pesquisa de cunho etnográfico e colaborativo na área da Lingüística Aplicada, descreve algumas representações sobre o "erro" no processo de aprendizagem da escrita numa classe de alfabetização de jovens e adultos em uma escola da rede municipal de Vitória da Conquista, Bahia. Tais representações, como se percebeu na análise, simbolizam, para os atores sociais envolvidos (alfabetizadora e alfabetizandos), a (re) produção de uma imagem de "escrita correta", sob a qual se forma uma rede de sentidos em torno de uma "língua escrita correta" nos eventos de letramento escolar.

erro; letramento; norma lingüística


This paper is based on an ethnographic and collaborative research conducted in the area of Applied Linguistics. It describes some representations of "error" in the writing learning process of the young and adult literacy students at a school in Vitória da Conquista, Bahia. Data results show that the representations for both the teacher and the young and adult learners are reproductions of a "correct writing" image produced in the literacy events of the classroom.

error; literacy; linguistic norm


ARTIGOS

As representações do "erro" na aprendizagem da escrita numa classe de alfabetização de jovens e adultos* * Os dados analisados neste artigo foram coletados durante a realização de uma pesquisa desenvolvida no curso de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que culminou com a dissertação de mestrado intitulada - Os significados do "erro" na aprendizagem da escrita numa classe de alfabetização de jovens e adultos- sob a orientação da Professora Drª. América Lúcia Silva Cesar.

Some representations of error in the learning of writing in the young and adult literacy classroom

Josilene Domingues Santos Pereira

Professora Substituta de Lingüística no Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários (DELL) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

RESUMO

Este trabalho, fruto de pesquisa de cunho etnográfico e colaborativo na área da Lingüística Aplicada, descreve algumas representações sobre o "erro" no processo de aprendizagem da escrita numa classe de alfabetização de jovens e adultos em uma escola da rede municipal de Vitória da Conquista, Bahia. Tais representações, como se percebeu na análise, simbolizam, para os atores sociais envolvidos (alfabetizadora e alfabetizandos), a (re) produção de uma imagem de "escrita correta", sob a qual se forma uma rede de sentidos em torno de uma "língua escrita correta" nos eventos de letramento escolar.

Palavras chave: erro; letramento; norma lingüística.

ABSTRACT

This paper is based on an ethnographic and collaborative research conducted in the area of Applied Linguistics. It describes some representations of "error" in the writing learning process of the young and adult literacy students at a school in Vitória da Conquista, Bahia. Data results show that the representations for both the teacher and the young and adult learners are reproductions of a "correct writing" image produced in the literacy events of the classroom.

Keywords: error; literacy; linguistic norm.

INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada numa escola da rede municipal de Vitória da Conquista- BA, onde funcionava, até o ano de 2006, o Programa de Alfabetização - REAJA (Repensando a Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos). O objetivo central desta pesquisa, de cunho etnográfico e colaborativo1 1 A propósito, cf. os trabalhos de Erickson (1984, 1986) e Cameron et alli (1992). , na área da Lingüística Aplicada, foi descrever os significados produzidos pelos alfabetizandos e pela professora em relação às imagens sobre o "erro" e a escrita numa das classes de alfabetização do referido Programa.

Neste trabalho, procuro demonstrar como as representações dos sujeitos envolvidos (alunos e professora) em relação ao "erro" e à escrita nos eventos de letramento escolar na interação em sala de aula interferem nas negociações interpretativas durante o processo de aprendizagem da escrita. Parto, então, do pressuposto segundo o qual os significados são construídos na interação social. Essa interação é constituída pelos participantes e se configura em circunstâncias históricas, culturais e institucionais específicas (BAKHTIN, 2004[1977]).

Por essa razão, a rede de significações que tentarei apresentar foi construída por meio das experiências de campo, considerando os significados do "erro" para os alfabetizandos e para a professora, como também as minhas representações que são fruto de uma formação lingüística. Assim, para adentrar nesse jogo de representações recíprocas, utilizo-me das considerações esboçadas em Castoriadis (2000 [1982]) sobre Imaginário Social, com o qual se forma a rede de sentidos sobre o "erro", sobre a escrita e, conseqüentemente, sobre a(s) norma(s) lingüística(s) que servem de referência para os agentes sociais qualificarem de "erradas" ou "certas" as suas produções lingüísticas, a dos colegas e, no caso da professora, a de seus alunos.

1. AS NOÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

O tema alfabetização produz sempre uma série de questões (psicológicas, sociais, históricas, culturais, lingüísticas, políticas, educacionais) no meio sócio-acadêmico, revelando o caráter multidisciplinar que envolve todo o processo alfabetizador.

O que vem a ser a alfabetização? Quais as suas dimensões? Quais os significados e implicações da alfabetização nas sociedades? Como alfabetizar? Por que alfabetizar?...São perguntas que reafirmam o caráter multifacetado do processo alfabetizador. Para dar conta desse caráter multifacetado, uma nova noção vem sendo acrescentada ao conceito de alfabetização, o letramento ou letramentos como apontam Barton (1994) e Street (1984).

Para a compreensão do conceito de alfabetização, utilizarei a definição apresentada por Tfouni (2004 [1995], p.9): "(...) aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para a leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem.(...), em geral, por meio do processo de escolarização (...) a alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual". A alfabetização, desse modo compreendida, diverge da idéia de letramento, pois este focaliza os aspectos sócio-históricos do processo de aquisição da escrita, os usos, as funções e os efeitos da escrita nas sociedades, no âmbito coletivo, à medida que trata das relações entre os indivíduos e a escrita no contexto social.Dessa maneira, poder-se-ia afirmar que alfabetização e letramento são conceitos que se distinguem.

É possível, contudo, inferir que os conceitos de alfabetização e letramento interagem e se complementam (cf. SOARES, 2001), pois se, por um lado, a alfabetização como processo de codificação e decodificação do sistema de escrita difere da idéia de letramento, por outro, alfabetização e letramento se interpenetram, haja vista que a continuidade e ampliação dos níveis de letramento dependem da alfabetização. É, por esse aspecto, que podemos dizer que eles são processos interligados, apesar de estarem separados enquanto natureza e abrangência.

A palavra letramento é uma tradução da palavra inglesa literacy (cf. SOARES, 2001) e significa estado ou condição daquele que aprende a ler e a escrever, como conseqüência de ter se apropriado da escrita e de suas práticas sociais. De acordo com Street (1984), devem-se considerar duas concepções distintas nos estudos do letramento: o Modelo Autônomo de Letramento e o Modelo Ideológico de Letramento.

O Modelo Autônomo de Letramento estabelece uma relação causal entre aquisição da escrita e progresso, civilização, liberdade individual e mobilidade social, atribuindo-se à escrita o "poder" de transformação cognitiva, social e cultural dos indivíduos. Dessa forma, este modelo se caracteriza pela 'autonomia' da escrita, concebida como um produto completo em si mesmo, cujo processo de interpretação está determinado pelo funcionamento lógico-interno do texto escrito. Assim sendo, a escrita é concebida como uma ordem de comunicação superior em relação à oralidade, o que promove uma dicotomização entre oralidade e escrita. Além dessa dicotomização, tal concepção acaba (re) produzindo o etnocentrismo, visto que as comunidades ágrafas são caracterizadas como primitivas, porque não utilizam um sistema escrito nos eventos comunicativos (cf. OLSON, 1995), reforçando também o grafocentrismo, pois, ao atribuir poderes à escrita, descarta as práticas orais, ilegitimando-as em função dos 'atributos' da escrita (transformação social, cognitiva e cultural), das relações de poder perpassadas pelas práticas sociais realizadas por meio da escrita (GNERRE, 1987).

Esse modelo, no contexto escolar, promove práticas de letramento2 2 Aqui, as práticas de letramento devem ser entendidas como as atividades que envolvem a leitura e a escrita no contexto interacional na sala de aula. em que oralidade e escrita são situadas em pólos dicotômicos, corroborando para, no processo de aprendizagem da escrita, vários conflitos interculturais, em virtude da situação diglóssica3 3 Por diglossia, quero expressar, no contexto da alfabetização de jovens e adultos, o conflito entre "duas línguas", ou melhor "dois discursos": o oral e o escrito. Este dominante, aquele subalterno, revelando status sócio-político diferentes, já que às práticas orais se interpõem às práticas escritas, significando a legitimação destas em detrimento daquelas (KLEIMAN, 2001). , que caracteriza os eventos comunicativos no contexto específico da alfabetização de jovens e adultos. Assim, a língua oral e a língua escrita não são consideradas duas modalidades de um mesmo objeto - a linguagem verbal- , mas como objetos diferentes, não relacionados. Dessa maneira, não há como os alunos se apoiarem nas experiências lingüísticas da oralidade com o intuito de tentar compreender o funcionamento da escrita.

Já os estudos que se baseiam no Modelo Ideológico de Letramento, segundo Street (1984, p. 95), buscam entender o letramento em termos de práticas sociais concretas e as teoriza a partir das ideologias nas quais os diferentes eventos de letramento se inserem no contexto sócio-cultural. Com base neste modelo, portanto, não existe um letramento, mas múltiplos letramentos, os quais são culturalmente determinados. Ainda segundo o autor, os estudiosos que contribuem para este modelo reconhecem os significados das práticas de letramento construídos pelos participantes no processo de socialização e se preocupam com as instituições sociais em que as interações ocorrem. Neste sentido, tais estudos descartam afirmações gerais sobre as conseqüências do letramento, encontradas no Modelo Autônomo já assinalado, pois têm como objetivo compreender os significados do letramento para grupos sociais específicos inseridos em contextos histórico-culturais. Logo, a escrita assume significados específicos para um grupo social por meio de contextos e instituições nos quais ela for adquirida.

A compreensão desse postulado permite afirmar que uma pessoa pode ser letrada sem necessariamente ser alfabetizada, pois um adulto ainda não-alfabetizado pode, de certa forma, ser considerado letrado, em virtude do seu envolvimento com a leitura e a escrita no dia a dia, como, por exemplo, quando um adulto ouve a leitura de jornais, dita alguma carta para que alguém a escreva, vai ao banco e utiliza o caixa eletrônico etc.

Assim, parto também do seguinte pressuposto: o adolescente, o jovem, o adulto e o idoso não-alfabetizados, ao ingressarem na escola, já têm contato com a escrita nas mais diversas relações sociais, usando o seu "grau de letramento" para interagir socialmente, visto que eles passam a resolver problemas típicos de uma sociedade que elegeu a escrita como forma de comunicação imprescindível na interação social. Por isso, é importante reconhecer que o termo analfabeto não é sinônimo para iletrado, porque não existe em nossa sociedade o letramento "grau zero" (iletramento). Na verdade, o que há são "graus de letramento". Isto significa dizer que o acesso à escrita, pela instituição escolar, será mais um meio de desenvolver e ampliar os níveis de letramento desses alunos, quando (re) iniciam no processo de escolarização.

No contexto escolar, esse modelo contribui para a análise da escrita como um objeto não-neutro, associado ao jogo de dominação, de poder, de exclusão social (TFOUNI, 1988), desnaturalizando, assim, os postulados do Modelo Autônomo. Como salientam Clark e Ivanic (1997), qualquer orientação pedagógica no trabalho com a escrita deve considerar como pré- requisito a sua natureza político-social. Essa natureza deve revelar, nos eventos interativos em sala de aula, a ligação entre a escrita e as instituições, como também as condições histórico-sociais dentro das quais os interlocutores estão situados.

2. PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES: DELINEANDO FRONTEIRAS

Para a compreensão dos significados do "erro" no contexto da alfabetização de jovens e adultos, defrontei-me com muitas questões, que me guiavam para caminhos ora intercambiáveis, ora excludentes. Um "verdadeiro" labirinto se mostrou diante de mim: O que vem a ser "erro" para os alfabetizandos e para a alfabetizadora? Como as noções desses participantes casam-se com o que a Ciência Lingüística considera erro? Esses caminhos se divergem ou se interpenetram? Relacionam-se, em que ponto eles se enlaçam? Qual(ais) norma(s) lingüística(s) serve(m) de parâmetro para os alfabetizandos e para a professora qualificarem de "erro" suas produções orais e escritas? É a norma-padrão, idealizada nas gramáticas normativas? São as normas sociais de prestígio (MATTOS E SILVA, (2001 [1996])? Por que erro sem aspas e "erro" com aspas? O que está nas entrelinhas desse meu jogo semântico? Qual(ais) viés(es) teórico(s) posso utilizar para interpretar os fatos?

A partir dessa gama de questões, que foram surgindo da minha convivência no campo e dos diálogos com as leituras realizadas, fui me dando conta da imensa "teia de aranha", ou, em outras palavras, da rede de complexas relações que recobrem a noção de "erro", mais precisamente do que vem sendo considerado "erro" em nossas escolas e que, de certo modo, encontra-se enraizado na sociedade com infinitas ramificações por todas as classes sociais.

Dessa constatação, passei a considerar não somente os saberes produzidos no campo da Lingüística, mais especificamente da Sociolingüística em sua interface com a abordagem histórico-cultural (VYGOSTKY, 1998) nas relações de ensino-aprendizagem, mas também e, principalmente, com os sistemas de crenças, as imagens, os rituais, os mitos, cristalizados na rotina do cotidiano da escola, e que fazem parte, no macrocontexto, das concepções que os agentes sociais (alunos e professora) têm das relações de ensino-aprendizagem, e que, no microcontexto, dizem respeito às práticas pedagógicas que fomentam esse sistema de relações e acabam por "naturalizá-los" a ponto de se tornarem, para esses agentes, "verdades universais", (re) produzindo conceitos sob os quais se formam e se perpetuam, no caso específico deste trabalho-"a noção de erro"-.

Essa situação me direcionou para um campo de investigação denominado Imaginário Social, tal como aparece nas postulações de Castoriadis (2000 [1982]). Para o autor (2000, p. 142), o Imaginário Social é, tout court, um sistema simbólico, que consiste em:

(...) ligar a símbolos (a significantes) significados (representações, ordens, injunções ou incitações para fazer ou não fazer, conseqüências- significações, no sentido amplo do termo) e fazê-los valer como tais, ou seja a tornar esta ligação mais ou menos forçosa para a sociedade ou grupo considerado.

Em outras palavras, é uma rede de sentidos, resultante das atividades da imaginação e da razão. Nessa rede de sentidos, encontram-se sonhos, desejos, interesses, fantasias, intuições, raciocínios, onde se funda todo o processo simbólico.

É válido ressaltar que, para Castoriadis (2000 [1982]), o Imaginário Social não é um reflexo da realidade, é um fragmento, um amálgama de construções simbólicas, instituídas histórica e culturalmente, ao permitir a produção de uma conjunção de interpretações das experiências individuais, mas vividas e construídas na coletividade.

2.1 O que os alfabetizandos e a professora consideram "erro"?

As formas lingüísticas, geralmente percebidas como "erro", nessa comunidade escolar, dizem respeito aos próprios usos da língua com os quais os alfabetizandos e a professora se comunicam nas interações que ocorrem na instituição escolar, mas também em eventos comunicativos no lar, como o caso peculiar registrado na entrevista, de uma alfabetizanda de 44 anos, casada com um homem letrado4 4 O marido da referida alfabetizanda nasceu na zona rural assim como ela, porém, muito cedo, deixou a sua comunidade para morar e estudar na cidade de Vitória da Conquista, onde cursou Contabilidade. Ele também estudou Direito, embora não tenha terminado o curso. Atualmente trabalha no DETRAN. Além disso, é importante salientar que todos os seus três irmãos possuem alto nível de escolaridade, sendo que dois atuam como professores no ensino superior. .

De um modo geral, o erro, em relação à fala, para os alfabetizandos, equivale às formas lingüísticas estigmatizadas socialmente, como, por exemplo, no trecho a seguir, em que a alfabetizanda considera como sendo sua fala "repleta" de "erros".

Excerto 15 5 Todos os dados gravados serão transcritos tomando como base a norma ortográfica, contudo serão adotadas as seguintes convenções: Pausa será indicada por [...]; cortes no trecho transcrito (...); comentários do analista (( )); prolongamentos de vogal [::]; truncamentos [/]; ênfase na fala [letras maiúsculas]. Abaixo de cada trecho transcrito, o leitor encontrará informações sobre a letra inicial do nome(L), a idade (I), o gênero (S) dos sujeitos pesquisados, como também o tipo de instrumento usado na coleta dos dados (E- entrevista; NC- notas de campo; RV- relatos verbais), além da data em que foi feita a coleta. (...) às vezes tem hora que eu fico assim angustiada... que eu falo uma palavra errada... ele fala A. não é assim... pra você ter uma idéia do que eu cometo de erros... eu eu falava LEITE eu falava LEITO... pode/... de noite eu falava de noito... nós vamos... nós vai... então era assim e ele ia e corrigia A. não é assim... não é nós vai É NÓS VAMOS... não é leito... É LEITE e começou sabe/... aí falou assim pra mim um dia... A. por que você não volta à aula/... volta à escola... começa a estudar... e eu não...NÃO que eu tem vergonha... e o tempo foi passando né (...)

(L:A; I:44; S:F; E.; 06/04/2005)

O trecho revela uma auto-imagem negativa, pois a alfabetizanda tenta negar, inclusive, sua própria identidade lingüística, por caracterizar sua fala como "inexistente, algo absurdo", já que, em função da escolarização recente, ela entende que não comete mais esses "erros".

A percepção do "erro" parece estar relacionada às formas estigmatizadas socialmente, haja vista que, ao analisarmos os seus próprios exemplos "... de noito, nos vai, leito...", nota-se que eles, geralmente, denotam formas que são estigmas, porque são estigmatizados os indicadores que denotam a procedência sociocultural do alfabetizando (meio rural, pouca escolaridade, baixo nível socioeconômico).

Para a professora, que assume o papel de ensinar a ler e a escrever, o "erro" está diretamente relacionado com a escrita, sendo que, para ela, o "erro" é a escrita não-ortográfica. Conforme ela afirma na entrevista, o erro é o erro ortográfico. A associação entre o "erro" e a escrita pela professora também pôde ser comprovada em outros registros, como, por exemplo, nos relatos verbais, em que ela "assume" a tese para os alunos de que "ninguém fala errado":

Excerto 2

(...) um dia...o aluno C. me perguntou sobre o porquê das pessoa... do norte... do sul... falarem do jeito deles...que é tão diferente do da gente..ele me perguntou ...é errado professora?... eu disse a ele... ninguém fala errado... Oh C. não existe errado... é a cultura deles... das pessoas do norte...do sul... do nordeste...todo mundo fala e não fala errado... é a cultura C. (...).

(Prof.; I:59; S:F; RV.; 31/10/04)

Por outro lado, apesar de a professora assumir essa posição, conflitos interculturais, provenientes do confronto entre as formas lingüísticas utilizadas pelos alunos e a "norma ortográfica", são freqüentes, visto que os alfabetizandos, ao se depararem com as formas lingüísticas escritas e expostas pela professora no quadro e/ou nas atividades escolares, criam a imagem de que "suas falas são erradas", como se pode perceber no evento comunicativo abaixo:

Excerto 3

M: Gente... tô morrendo de dor de cabeça...

J: Faz um chá de vacidera e nanuscada e toma...

M: Anota aí pra mim... J....

J: Professora... escreve aí vacidera e nanuscada que é pra ela aqui copiar... ((a professora foi até o quadro e escreveu ERVA-CIDREIRA e NOZMOSCADA))

J: ((o aluno olhava para o quadro fixamente, seus olhos ficaram arregalados, denotando surpresa diante das formas lingüísticas apresentadas pela professora))NÃO... professora é pá escrever vacidera e nanuscada...

A: Pois é J... Olha aqui ((soletrando)) ER-VA-CI-DREI-RA e NOZ-MOS-CA-DA...

J: NÃO... mas num escreve assim não... eu falei errado?

P: De maneira nenhuma... J... essa maneira que você falou é a maneira que nós falamos... é a nossa linguagem... é a nossa cultura... é o que você aprendeu... a gente fala de um jeito... mas a escrita tem que ser de outro...

J: OBA... valeu... agora aprendi duas palavra nova...

Dois aspectos podem ser notados neste evento comunicativo. O primeiro aspecto a ser salientado é a dicotomização entre fala e escrita quando a professora diz que: "... a gente fala de um jeito... mas a escrita tem que ser de outro...", permitindo ao aluno pensar a escrita como um objeto ainda mais distanciado da sua realidade, pois o aluno pode questionar: "Como é mesmo que se deve escrever se a escrita tem que ser de um jeito diferente do que eu falo?". Isto pode ser evidenciado na própria assertiva do aluno, quando ele notifica à professora que tinha aprendido duas palavras novas.

O segundo aspecto, que também corrobora para essa dicotomização, é a situação diglóssica (KLEIMAN, 2001; BORTONI-RICARDO, 1984) em função das formas lingüísticas apresentadas pela professora no quadro (erva-cidreira e noz-moscada) e das formas lingüísticas utilizadas pelo alfabetizando (vacideira e nanuscada), produzindo conflitos interculturais, pois quando o aluno diz: "NÃO... mas num escreve assim não...", revela a sua resistência a um uso lingüístico que não é o seu, já que ele não se identifica com ele. O conflito intercultural se salienta também em função das expressões fisionômicas do alfabetizando (o aluno olhava para o quadro fixamente, seus olhos ficaram arregalados...) quando a professora escreveu as duas palavras no quadro.

Como salienta Kleiman (1993,p. 417), em se tratando da introdução do adulto na cultura letrada, esse processo "é um problema dentro de um quadro educacional já extremamente problemático, caracterizado pelo fracasso generalizado", uma vez que a interação na sala de aula é marcada por conflitos, porque tem como objetivo a aquisição de práticas discursivas por parte do alfabetizando como necessárias à sobrevivência na sociedade tecnologizada, aliada a uma atitude, na práxis pedagógica, de não-inclusão dos saberes (lingüísticos, culturais, sociais) dos alfabetizandos em função da valorização de saberes privilegiados numa sociedade letrada.

Além disso, deve-se considerar a obliteração do hibridismo das produções escritas dos alunos em virtude da tentativa de "modelar a escrita", pois as práticas de letramento escolares seguem um "molde legitimado de escrita": as convenções lingüísticas, a posição gráfico-visual no papel, que diferencia uma carta de uma receita médica, por exemplo, a organização gráfico-visual das letras no papel, a constituição dos parágrafos etc.. O hibridismo, neste trabalho, será entendido de duas formas:

(A) a interferência de traços típicos da oralidade na escrita, denotando a procedência sociocultural do alfabetizando, como por exemplo, pranta, poblema,nós vai, alembrar, abroba etc.;

(B) as formas lingüísticas escritas que revelam desvio às normas ortográficas vigentes, como, por exemplo, conçiencia, inçatisfeito, precizando, fautar etc.;

Ambas as formas constituem exemplos de escrita não-legitimada, "e portanto muda e sem visibilidade na esfera pública" (SIGNORINI, 2001), já que, a letra (A) retrata formas estigmatizadas socialmente e a letra (B) constitui, no imaginário social, exemplos que caracterizam desvio em relação às normas ortográficas vigentes, que, como tais, representam formas autorizadas, já que são, concomitantemente, produto de elaboração das instituições de poder (escola, igreja, estado, mídia dentre outras), e funcionam como formas que caracterizam os sujeitos que pertencem a essas instituições.

Como essas formas eram obliteradas nas relações de ensino-aprendizagem? A professora, no excerto a seguir, exemplifica essa questão ao relatar o seu trabalho de correção das produções escritas dos alunos:

Excerto 4

(...) mesmo que ele ((o aluno)) faça uma tarefa errada você não pode dizer que está errada... você passa um tracinho de caneta azul BEM pequenininho pra chamar a atenção... ou melhor você pega uma caneta e anota o que ele errou e não fala pra ele que ele errou pra você preparar o seu plano de aula em cima daquele ERRO dele... qual é a dificuldade que ele teve (...)

(Prof.I:59;S;F;E; 11/09/2004)

Nota-se, no trecho acima, a preocupação da alfabetizadora em querer corrigir os "erros", os quais, para ela, são: "o esquecimento de letras, como nh em palavras como ninho, grafadas pelos alunos como nio, ou ainda o acréscimo de grafemas em razão da pronúncia da palavra, como em família, geralmente grafada como familha, a junção de palavras, como em por exemplo, grafada como- poresemplo-, para que os alunos não sintam "constrangimentos".

Há ainda os "erros" que denotam a procedência sociocultural dos alfabetizandos, como em pranta, poblema, os quais, segundo a alfabetizadora, devem ser valorizados na fala, pois pertencem à cultura do alfabetizando. No caso desses exemplos com relação à escrita, o esforço da professora consistia em colocá-los no quadro conforme as convenções ortográficas, a fim de que, como ela salienta, "...no momento da escrita... na hora de escrever a palavra no papel... você ((a pesquisadora)) deve entender que a pronúncia ele pode falar... mas na escrita não...não coloca no quadro como eles fala... porque aí fica mais difícil aprender a escrever correto...". Daí, talvez, um fato interessante: nos textos coletados, durante a pesquisa, esses exemplos não aparecem nas produções escritas dos alunos.

Diante dessa exposição, não se trata, é claro, de defender a "abolição" do ensino da ortografia nas escolas.Quero apenas demonstrar qual o significado dessas ações na alfabetização de jovens e adultos. O que parece haver é um confronto entre uma escrita não-autorizada (caracterizada pela "interferência" de um uso oral da língua não prestigiado socialmente ou ainda de uma escrita "desviada" das normas ortográficas vigentes) e uma escrita autorizada, com a qual o ensino passa a "criar um fosso ainda maior", já que a escrita desses alunos (pouco ou não-escolarizados) "costuma ser percebida como não existente enquanto objeto significativo, como não atuante em nenhum contexto comunicativo" (SIGNORINI, 2001, p.98). Por isso, a "correção", o "apagamento", tanto por parte da professora ou, como no trecho a seguir, pelo próprio alfabetizando:

Excerto 5

P: (...) Depois que você voltou pra escola... você sentiu que houve mudança no seu modo de ler e escrever em relação ao que você produzia antes?

A: (...) com certeza.. que antes eu num conseguia fazer uma frase... vamos supor assim.... se você me desse uma palavra... carro por exemplo... aí eu ia ficar assim meia aérea... eu num ia saber como fazer uma frase... hoje eu já faço sozinha... a frase né... é:: separar as silaba... eu achava assim muito difícil... hoje eu já separo as silaba facilmente... às vezes eu dou umas erradinha sabe? ((risos)) (...).

P: O que são... pra você... essas erradinha?

A: É:: que às vezes... tem essa palavra aqui... não separa não e o meu tá separado ... VICHE... tá errado... deixa eu desmanchar aqui ((risos)).. aí eu conSERto né... por exemplo CARRO... eu achava que os dois "erres" tinha que ficar junto né... e não fica né... e aí eu separei que tinha que ficar separado (...) VICHE deixa eu desmanchar... aí eu desmanchei tudo...

(L: T; I:16; S:M; E.; 07/05/2005)

Percebe-se logo como a concepção da professora sobre "escrita certa", já assinalada acima, conduz a uma visão de "escrita certa" pela alfabetizanda. A imagem da alfabetizanda está ligada às práticas de letramento nessa escola, onde se valoriza uma mecânica da escrita, pois, como a alfabetizanda expõe, em função da escola, ela já sabe fazer frases, separar sílabas, caracterizando muito mais uma maneira de ver a escrita do que as convenções lingüísticas em sentido estrito. Aqui, a "escrita ortográfica", fruto de um imaginário social, assume outras configurações, pois basta analisarmos os exemplos da referida aluna: "... eu num conseguia fazer frase... se você me desse uma palavra... carro por exemplo...aí eu ia ficar assim meia área...", ou seja, nessa classe, o que parece ser um consenso entre os atores envolvidos do que vem a ser "escrever certo" é colocar as palavras em ordem para formar uma frase, é separar as sílabas, pensando onde e como as sílabas devem ficar sobre o papel. Note que o "erro" é justamente não separar as sílabas conforme a convenção, não colocar as palavras em ordem para formar uma frase. Essa imagem leva os alfabetizandos a valorarem a escrita como "certa" ou "errada", pois, para esses alunos, "a escrita tem de ser certa, o que vale é escrever certo", "é escrever como a professora".

Além disso, deve-se observar que essa concepção de escrita e de "erro" se pauta na prática educativa da professora, pois "escrever certo" é não colar uma palavra na outra, não esquecer uma letra, saber construir frases, como se pode notar na fala da alfabetizadora a seguir :

Excerto 6

(...) quando você dá uma atividade que depende do raciocínio dele e da escrita... ele transcrever aquilo que eles pensam... então eles começam a cobrir a tarefa... botar o braço assim por cima... pra você não ver como ele tá escrevendo... uma palavra faltando uma letra ou colando uma palavra na outra (...) ou a dificuldade deles na construção de frases...

(Prof.;I:59;S:F;E;14/08/2005)

O trecho acima nos mostra que o "erro", para a professora, parece estar vinculado a um modo cultural dominante de visualizar a escrita em nossa sociedade, o qual é representado pelas convenções lingüísticas, pois há uma valorização pela presença "de todas as letras" que compõem a palavra, mas também pelo distanciamento entre palavras, ordenamento das palavras para a construção de frases. É esse o consenso entre os atores envolvidos, é essa a imagem de "escrita certa", ou seja, uma escrita com a qual tanto os alfabetizandos como a alfabetizadora passam a negociar e criar redes de sentidos para o processo de aprendizagem da escrita.

Dessa descrição, uma pergunta deve ser feita: Qual(is) norma(s) lingüística(s) serve(m) de parâmetro para os alfabetizandos e para a professora qualificarem de "erro" as produções orais e escritas nos eventos de letramento escolar? Para responder a essa questão, fiz um estudo detalhado da posição de vários autores (REY, 2001 [1983]; MATTOS E SILVA, 2001 [1996]; ALÉONG, 2001 [1983]; CASTILHO, 2002 [1978]) sobre os conceitos de norma6 6 Cumpre ressaltar que a exposição sobre a necessidade de relativização do conceito de norma apóia-se nos domínios da sociolingüística, mais especificamente da sociolingüística interacional (PHILIPS, 2002[1976]); GUMPERZ, 2002[1982]). Desse modo, não tratarei da concepção coseriana de norma, pois a proposta do autor (a visão tripartida de sistema/ norma /fala) se respalda na defesa de um sistema funcional (língua) homogêneo, invariável e autônomo (COSERIU, 1967, p.11- 113). e a relação desses conceitos com os julgamentos sociais a que eles se vinculam.

2.2 Relativizando os conceitos de norma: a(s) norma(s) no cotidiano da interação social

Não pretendo com este subtítulo esboçar nenhuma proposta teórica sobre o conceito de norma lingüística, mas tentarei apresentar como a(s) norma(s) lingüísticas(s), no intercâmbio social, redundam em "múltiplas interinfluências" (FARACO, 2002), conforme a posição social dos interactantes nos contextos7 7 Aqui a palavra contexto é entendida como "criação conjunta de todos os participantes presentes ao encontro e emergente a cada novo instante interacional" (RIBEIRO; GARCEZ, 2002, p.8). da interação social.

Para tanto, tive que fazer um "balanço" entre os estudos produzidos sobre a norma lingüística no interior das academias e o que, de fato, os alfabetizandos e a professora consideram a(s) norma(s) de referência para as suas produções escritas e orais. Por isso, o resultado da análise me levou a trabalhar com "quatro normas lingüísticas" que aparecem nos registros das experiências de campo.

I) Um caso peculiar, já citado neste trabalho, é o da alfabetizanda A., de 44 anos, casada com um homem letrado, cuja fala serve de "norma" para essa alfabetizanda;

II) Outra "norma" de referência se estabelece na relação entre professora e pesquisadora, pois para aquela tanto a produção oral como a escrita desta são qualificadas de "certas", "melhores";

III) A terceira, mais ligada às relações de ensino-aprendizagem na classe, tem a ver com uma "norma letrada", que não se refere simplesmente a algumas convenções lingüísticas, mas, principalmente, a uma maneira letrada de lidar com a escrita, como, por exemplo, "o desenho da escrita no papel- da esquerda para a direita", "a colocação do dedo sobre o papel para formar a margem e dar início à escrita", "a luta do lápis com a borracha e o papel", "a escrita das letras enfileiradas, conforme apresentada no quadro de giz";

IV) Esta última diz respeito à leitura da pesquisadora sobre os dados, a qual reflete a influência do seu imaginário, pautado numa formação lingüística descritiva.

Mas antes de demonstrar o funcionamento da relação entre "as três normas" na classe estudada, convém trazer algumas questões, referendadas no item IV acima, fruto do imaginário que compõe o viés da pesquisadora: O que vem a ser norma? Como ela vem sendo tratada pelos lingüistas?

Como afirma Rey (2001 [1983]), por trás da definição desse termo, deve-se considerar, pelo menos, duas noções, a fim de que não se utilize, ao mesmo tempo, o termo norma em sentidos contraditórios. A ambigüidade é, geralmente, desfeita com o uso de qualificativos como normal e normativo para, respectivamente, os conceitos (1) e (2) abaixo:

(1) O termo NORMA vai se referir ao que é freqüente, normal, relativo a uma observação objetiva e estatística;

(2) O termo NORMA refere-se ao que é normativo, atinente a um sistema de valores que correspondem a determinadas intenções subjetivas em conformidade a uma regra de juízo de valor.

Enquanto que no conceito (1), o termo norma vai estar diretamente ligado aos usos, demarcando grupos sociais em uma determinada sociedade, o conceito (2) é uma idealização que funciona como uma espécie de lei ao prescrever para os usuários da língua como estes devem se expressar nas modalidades oral e escrita, servindo, dessa maneira, como uma referência para a correção das formas lingüísticas.

É importante ressaltar neste ponto como esses conceitos aparecem nas representações dos alunos e da professora em relação à "norma lingüística" e, conseqüentemente, ao "erro". Para tanto, trago algumas "cenas" vivenciadas no campo:

CENA 1: Norma lingüística na relação professora e pesquisadora

Geralmente, quando a professora me entrega o seu diário para que eu faça a leitura, ela me diz: "(...) olha... você lê tudo e vê se tá certo... não mostra sua professora ((orientadora)) antes de ler não... você corrige viu?... porque você sabe eu num me formei como ocorre com o normal das pessoas... eu já alfabetizei adulta... à noite... com muitas dificuldades pra sustentar os filhos... pois naquela época eu lavava roupa pra fora...

(NC/ 04/07/2005)

CENA 2: Norma lingüística na relação professora/ pesquisadora e alunos

Para os alunos, a(s) norma(s) da professora/ pesquisadora na escrita serve(m) de parâmetro para os alunos "balizarem" sua escrita como certa ou errada. Aqui também é necessário falar da desconsideração da norma lingüística dos colegas (adolescentes, jovens, adultos) por parte dos idosos. A todo o momento, os idosos parecem querer provar aos colegas que "são capazes de aprender". É como se no imaginário deles tivesse a "reprovação estampada" dos colegas em relação às suas produções escritas, à maneira morosa de fazerem as atividades...

(NC/ 25/10/2004)

Na entrevista com a alfabetizanda A.., nota-se claramente a "norma" que serve de referência para ela: a "fala" do marido, o qual, inclusive, insiste tanto na correção das formas lingüísticas utilizadas pela alfabetizanda, que ela chega a pensar que não sabe falar, quando pede ao esposo: "... então... faz assim... começa a me ensinar a falar...":

CENA 3: Norma lingüística na relação alfabetizanda e esposo

A: (...) eu tenho medo de começar a falar muito errado... e ele falava assim pra mim A . fala assim... vê como é que eu falo... e você começa a falar pra você não tá falando assim muito errado... você é tão bonita... uma pessoa que tem assim uma classe e começa a falar errado... você fica HORROROSA... um dia ele me falou isso... você fica HORROROSA quando você fala nós vai... aí eu falei ai meu Deus do céu e eu tava apaixonada por ele... falei oh R. então faz assim... começa a me ensinar a falar... ele falou A . não é assim e começou a me dar dica né... aí sempre quando eu tava conversando... sempre começava a prestar atenção de como eu TINHA que falar... mas isso não mudou o amor da gente... ele continuava apaixonado por mim quando como me conheceu aos dezessete anos (...)

(L:A; I:44; S:F; E.; 06/04/2005)

Ao analisar as três cenas acima, logo percebemos como os intercâmbios interativos interferem na negociação das interpretações pelos participantes (GUMPERZ, 2002) ao qualificarem determinadas produções orais e escritas como "certas" ou "erradas". No caso específico dessas cenas, uma característica comum pode ser notada: as relações de poder entre os interactantes servem como variante na eleição da norma lingüística que serve de referência e funciona como uma espécie de "fronteira" entre eles.

A variante relações de poder marca os grupos e a distinção entre eles, sendo que, neste caso, o poder pode ser caracterizado de três formas.

Na cena 1, tem-se o nível de escolarização como "balizador" das imagens do que é "certo" e "errado" no que se refere à língua, pois a professora credita à pesquisadora o papel de "corrigi-la", a fim de que a "orientadora" não "possa perceber os seus erros de português". Note-se, também, por um outro viés, que a professora tenta "evitar" que a orientadora leia os seus textos antes da minha "idealizada correção", pois, para ela, a "vergonha seria maior", já que a orientadora posiciona-se num nível de escolarização superior ao meu.

Na cena 2, tem-se também, numa análise mais superficial, o fator escolarização como "divisa" entre os que sabem "escrever certo" (a professora/ a pesquisadora) e os que não sabem (os alunos) tal como eles imaginam, por isso "ir direto na professora" significa "ultrapassar essa divisa", significa "passar a ter poder", já que a sua escrita passa a ser um "simulacro" da escrita da professora e da pesquisadora. Porém, num nível menos aparente, tem-se aqui uma "subordinação" tanto da professora quanto da pesquisadora em relação a um padrão de língua imposto, visto que ambas se preocupam com uma "escrita ortográfica", que é, na verdade, uma escrita "tida como correta porque é fruto de uma convenção socialmente estabelecida".

Além disso, deve-se atentar também, na cena 2, para "o ritual de escrita" percebido nas práticas de letramento escolar. Esse "ritual" também serve de parâmetro para os alunos qualificarem de "certas" ou "erradas as produções lingüísticas", cabendo à professora, como sujeito autorizado, "regrar" os rituais. Por isso é que somente a professora pode "orientar a fazer aquele dever". Isto confirma mais uma vez que, mais do que saber escrever uma palavra, obedecendo a uma norma ortográfica, há um "dever para fazer" como uma parte do rito, como parte de uma "norma", em que é preciso "usar o caderno e fazer o dever", pois o não-cumprimento do ritual sugere ao aluno que ele fez "de maneira errada", demonstrando que é esse ritual da escrita escolar que lhe serve de referência, que lhe interessa, apesar das dificuldades.

No contexto da cena 3, além do fator escolarização, há o fator gênero, utilizado pelo esposo da alfabetizanda A. como meio de exercer "poder social, cultural e lingüístico", no que diz respeito às manifestações lingüísticas de sua esposa, já que, considerando fatores históricos e culturais, a sociedade ainda reproduz a figura da mulher como "sujeito menor", que devia obediência ao marido, e que era, portanto, submetida às suas decisões. Nota-se, pois, como os comportamentos lingüísticos dos falantes estão submetidos às regras culturais, interacionais, que "atribuem" valoração de "certo" ou "errado" à "norma lingüística" dos seus interlocutores em função de suas posições sociais, do poder que delas advêm (escolaridade, gênero).

Todavia, é preciso questionar se, do ponto de vista lingüístico, as imagens que esses atores sociais fazem do "certo" ou "errado" em relação à língua são, de fato, erros lingüísticos (e aqui sem aspas). Para apresentação das considerações sobre o erro no campo da Lingüística, faz-se necessário remetermo-nos primeiramente aos conceitos (1) e (2) acima esboçados.

A associação do conceito (1), apresentada por Rey (2001[1983]), com as conceituações de Mattos e Silva (2001[1996], p.14), nos remete às normas sociais ou normais (normas que definem grupos sociais que constituem a rede social de uma determinada sociedade), que se subdividem em:

1.A) Normas "sem prestígio social" ou estigmatizadas;

1.B) Normas "de prestígio social", equivalentes ao que se denomina norma culta, quando o grupo de prestígio que a utiliza é da classe dominante e, nas sociedades letradas, aqueles de nível alto de escolaridade.

Dessa maneira, não se poderá denominar de "erro" os desvios a essas normas, visto que esses desvios são compreendidos como "inadequações de uso" (MATTOS E SILVA, 2001) ou de "diferenças lingüísticas" (POSSENTI, 1996). As normas sociais se atentam para a descrição dos usos lingüísticos, e, por essa noção, deve-se compreender que, geralmente, numa comunidade rural brasileira, por exemplo, o normal, o freqüente é a não-concordância entre sujeito e verbo, como no caso da alfabetizanda A., com o uso da expressão nós vai, a qual denota a procedência sociocultural da aluna, que, na convivência com o esposo (usuário da norma culta em função do seu grau de escolaridade), passa a ser desprestigiada em virtude do significado sociocultural que a norma lingüística do marido representa na sociedade, indicando o alto grau de escolaridade do esposo em relação à sua esposa que é analfabeta. Como se pôde notar, nestes casos, do ponto de vista lingüístico, o que há são diferenças lingüísticas e não erros lingüísticos.

O imaginário, dessa forma, sobre o "certo" e o "errado" em relação à língua para os alfabetizandos e para a professora da classe não são erros lingüísticos. Daí então o meu jogo semântico com o uso das aspas para indicar que o "erro" para os alfabetizandos e para a alfabetizadora não é erro do ponto de vista da Ciência Lingüística, quer se considere como referência as normas sociais, quer se considere a norma-padrão, haja vista que esta última caracteriza como "erro lingüístico" a(s) forma(s) lingüística(s) utilizada(s) pelo interlocutor que não estão de acordo com as formas lingüísticas eleitas como exemplo de "boa linguagem", geralmente apresentadas nas gramáticas normativas e que vem sendo denominadas de NORMA-PADRÃO8 8 Neste trabalho, o termo norma-padrão deve ser compreendido a partir da associação ao conceito (2) de Rey (2001[1983]) com o de Mattos e Silva (2001[1996], p.14), "conceito tradicional, idealizado pelos gramáticos pedagogos, diretriz até certo ponto para o controle da representação escrita da língua, sendo qualificado de erro o que não segue esse modelo...". .

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da análise realizada, foi possível concluir que duas "normas" servem de referência para esses atores sociais qualificarem de erradas as suas produções lingüísticas, a dos colegas e a dos alunos, no caso da professora:

A) Normas lingüísticas (strictu sensu) de prestígio social, representadas pela fala e pela escrita da pesquisadora, do esposo da alfabetizanda e da professora;

B) "Normas letradas ritualizadas", referentes ao modo específico que compõem os rituais de uma cultura letrada nesta sala de aula.

Assim, a reprodução do imaginário social sobre o significado sócio-cultural das "normas" funciona como uma espécie de avaliação para esses agentes sociais, no momento em que eles passam a qualificarem como "erradas" as suas produções orais e, principalmente, escritas, reproduzindo, nos contextos interativos, a "uma imagem de escrita certa", além dos valores socioculturais atribuídos às práticas letradas em nossa sociedade.

Neste sentido, uma série de valores socioculturais se agrega às formas lingüísticas. Esse fato conduz a uma importante contribuição para os estudos sobre o ensino-aprendizagem da escrita na alfabetização de jovens e adultos, pois levar em conta as representações da professora e dos alunos em relação aos significados do "erro" significa considerar as perspectivas sociais e situadas da linguagem escrita, as quais são necessariamente praticadas pela comunidade escolar e, que, de certa maneira, corroboram decisivamente para a aprendizagem da escrita nessa classe de alfabetização.

Além disso, é válido ressaltar que, para a professora, que assume o papel de ensinar a ler e a escrever, a aprendizagem da escrita parece estar associada a uma imagem de "escrita convencional", a uma escrita que "tem de ser certa", seguindo tantos as normas ortográficas vigentes quanto as "normas letradas ritualizadas", (re)produzidas na instituição escolar. Dessa forma, a análise revelou que essa prática educativa corrobora para uma concepção de escrita que se distancia da realidade sociolingüística dos alfabetizandos, pois permite a criação de uma imagem de "escrita certa", em virtude da diferença entre o que o aluno fala daquilo que lhe é proposto para escrever.

Por essa razão, deve-se considerar, como a base para o processo de ensino-aprendizagem da escrita, a diversidade lingüística e a diversidade sociocultural, haja vista que aprender uma cultura escrita legitimada não pode significar a negação dos sujeitos, de sua cultura, sob pena de continuarmos a reproduzir as imagens de um "poder escriturístico autorizado" (DE CERTEAU, 1994), as quais induzem, nessa classe de alfabetização, à perpetuação do sentimento de "incapacidade do aprender a escrever" e do "medo de escrever", distanciando ainda mais esses sujeitos dos processos de apropriação do discurso letrado autorizado em nossa sociedade.

Recebido: 26/09/07

Aceito: 06/05/08

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  • *
    Os dados analisados neste artigo foram coletados durante a realização de uma pesquisa desenvolvida no curso de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que culminou com a dissertação de mestrado intitulada -
    Os significados do "erro" na aprendizagem da escrita numa classe de alfabetização de jovens e adultos- sob a orientação da Professora Drª. América Lúcia Silva Cesar.
  • 1
    A propósito, cf. os trabalhos de Erickson (1984, 1986) e Cameron et alli (1992).
  • 2
    Aqui, as práticas de letramento devem ser entendidas como as atividades que envolvem a leitura e a escrita no contexto interacional na sala de aula.
  • 3
    Por diglossia, quero expressar, no contexto da alfabetização de jovens e adultos, o conflito entre "duas línguas", ou melhor "dois discursos": o oral e o escrito. Este dominante, aquele subalterno, revelando
    status sócio-político diferentes, já que às práticas orais se interpõem às práticas escritas, significando a legitimação destas em detrimento daquelas (KLEIMAN, 2001).
  • 4
    O marido da referida alfabetizanda nasceu na zona rural assim como ela, porém, muito cedo, deixou a sua comunidade para morar e estudar na cidade de Vitória da Conquista, onde cursou Contabilidade. Ele também estudou Direito, embora não tenha terminado o curso. Atualmente trabalha no DETRAN. Além disso, é importante salientar que todos os seus três irmãos possuem alto nível de escolaridade, sendo que dois atuam como professores no ensino superior.
  • 5
    Todos os dados gravados serão transcritos tomando como base a norma ortográfica, contudo serão adotadas as seguintes convenções: Pausa será indicada por [...]; cortes no trecho transcrito (...); comentários do analista (( )); prolongamentos de vogal [::]; truncamentos [/]; ênfase na fala [letras maiúsculas]. Abaixo de cada trecho transcrito, o leitor encontrará informações sobre a letra inicial do nome(L), a idade (I), o gênero (S) dos sujeitos pesquisados, como também o tipo de instrumento usado na coleta dos dados (E- entrevista; NC- notas de campo; RV- relatos verbais), além da data em que foi feita a coleta.
  • 6
    Cumpre ressaltar que a exposição sobre a necessidade de relativização do conceito de norma apóia-se nos domínios da sociolingüística, mais especificamente da sociolingüística interacional (PHILIPS, 2002[1976]); GUMPERZ, 2002[1982]). Desse modo, não tratarei da concepção coseriana de norma, pois a proposta do autor (a visão tripartida de sistema/ norma /fala) se respalda na defesa de um sistema funcional (língua) homogêneo, invariável e autônomo (COSERIU, 1967, p.11- 113).
  • 7
    Aqui a palavra
    contexto é entendida como "criação conjunta de todos os participantes presentes ao encontro e emergente a cada novo instante interacional" (RIBEIRO; GARCEZ, 2002, p.8).
  • 8
    Neste trabalho, o termo norma-padrão deve ser compreendido a partir da associação ao conceito (2) de Rey (2001[1983]) com o de Mattos e Silva (2001[1996], p.14), "conceito tradicional, idealizado pelos gramáticos pedagogos, diretriz até certo ponto para o controle da representação escrita da língua, sendo qualificado de erro o que não segue esse modelo...".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      06 Maio 2008
    • Recebido
      26 Set 2007
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