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Hibridismo e plasticidade na constituição dos gêneros do discurso

Hybridism and plasticity in the constitution of discourse genres

Resumos

O trabalho que apresentamos baseia-se no pressuposto de que a diferenciação entre gêneros primários e gêneros secundários do discurso ainda constitui um dos pontos pouco esclarecidos entre nós da concepção bakhtiniana concernente aos gêneros do discurso. Temos, como objetivo, apontar para a elucidação dessa teorização a partir de conceituações presentes, por um lado, entre os psicólogos russos Luria (1986), Vigotski (2001) e Elkonin (1998), por outro, na Teoria da Enunciação (CULIOLI, 1997; VOGÜÉ, 1989). Apresentamos, de início, reflexões de alguns autores a respeito da diferenciação traçada pelo filósofo russo. Em seguida, a partir de algumas poucas sugestões presentes em sua obra, apontamos para possíveis esclarecimentos com base nos enfoques sócio-histórico e enunciativo. Esses aportes apontam para fenômenos de plasticidade e hibridização na constituição dos gêneros.

gêneros primários; gêneros secundários; hibridismo


I understand the differentiation between primary and secondary genres contains elements not completely clear concerning Bakhtine's conception of discourse genres. Therefore, after presenting the reflection of some authors about such a distinction, I have proposed an enlargement of the few suggestions present in the Russian philosopher's theory, taking into consideration the conceptions of Russian psychologists Luria (1986), Vigotski (2001) and Elkonin (1998). I have also brought some enlightenment from the Theory of Enunciation (CULIOLI, 1997; VOGÜÉ, 1989). Such different approaches point to phenomena of plasticity and hybridity in the constitution of genres.

primary genres; secondary genres; hybridity


ARTIGO ARTICLE

Hibridismo e plasticidade na constituição dos gêneros do discurso

Hybridism and plasticity in the constitution of discourse genres

Maria Sílvia Cintra Martins

UFSCar, São Carlos (SP), Brasil, <msilviam@ufscar.br>

RESUMO

O trabalho que apresentamos baseia-se no pressuposto de que a diferenciação entre gêneros primários e gêneros secundários do discurso ainda constitui um dos pontos pouco esclarecidos entre nós da concepção bakhtiniana concernente aos gêneros do discurso. Temos, como objetivo, apontar para a elucidação dessa teorização a partir de conceituações presentes, por um lado, entre os psicólogos russos Luria (1986), Vigotski (2001) e Elkonin (1998), por outro, na Teoria da Enunciação (CULIOLI, 1997; VOGÜÉ, 1989). Apresentamos, de início, reflexões de alguns autores a respeito da diferenciação traçada pelo filósofo russo. Em seguida, a partir de algumas poucas sugestões presentes em sua obra, apontamos para possíveis esclarecimentos com base nos enfoques sócio-histórico e enunciativo. Esses aportes apontam para fenômenos de plasticidade e hibridização na constituição dos gêneros.

Palavras-chave: gêneros primários; gêneros secundários; hibridismo.

ABSTRACT

I understand the differentiation between primary and secondary genres contains elements not completely clear concerning Bakhtine's conception of discourse genres. Therefore, after presenting the reflection of some authors about such a distinction, I have proposed an enlargement of the few suggestions present in the Russian philosopher's theory, taking into consideration the conceptions of Russian psychologists Luria (1986), Vigotski (2001) and Elkonin (1998). I have also brought some enlightenment from the Theory of Enunciation (CULIOLI, 1997; VOGÜÉ, 1989). Such different approaches point to phenomena of plasticity and hybridity in the constitution of genres.

Keywords: primary genres; secondary genres; hybridity.

INTRODUÇÃO

O artigo que apresentamos comporta resultados parciais da pesquisa de pós-doutorado que empreendemos com base no Projeto "Dos Atos de Fala às Práticas de Letramento"1 1 Bolsa Fapesp 04/15.539-3. Pesquisa produzida no âmbito do Projeto Temático "Formação do Professor: Processos de Retextualização e Práticas de Letramento" (Fapesp 02/09.775-0). . Baseamo-nos, em princípio, no pressuposto, presente em autores como Barton e Hamilton (1998), Barton e Ivanic (1991), Street (1993), da necessidade de se fazer o levantamento das práticas de letramento não-escolares em contraste com as práticas escolares institucionais. Levamos em consideração, nesse caso, as práticas de letramento não-escolares de adultos em fase de inserção em práticas letradas de prestígio. Tendo partido da diferenciação estabelecida por Bakhtin (1997) entre gêneros primários e gêneros secundários do discurso, deparamo-nos, também nesse caso, com a insuficiência, já apontada por Dahlet (1997), de descrições que nos permitam uma compreensão mais adequada dos fenômenos linguísticos envolvidos nas questões epistemológicas propostas pelo filósofo russo.

Com o objetivo de trazer contribuições para a elucidação dessa diferenciação entre gêneros primários e gêneros secundários do discurso, vamos, de início, no item 1 - A distinção bakhtiniana entre gêneros primários e gêneros secundários do discurso - apresentar a questão tal qual aparece na obra de Bakhtin, seguida da reflexão de alguns autores a respeito do mesmo tema. No item 2 - Aportes das abordagens sócio-histórica e enunciativa - exploraremos a abordagem sócio-histórica desenvolvida na escola de Vigotski, com vistas a trazer novos aportes para a compreensão da questão. Exploraremos, também, elementos da Teoria da Enunciação que nos parecem significativos para a elucidação do tema a partir do enfoque das ciências da linguagem. Compreendemos que ambos os enfoques, o sócio-histórico e o enunciativo, contribuem para que se possam vislumbrar com mais clareza os fenômenos de hibridização e de plasticidade presentes na constituição dos gêneros do discurso.

1. A DISTINÇÃO BAKHTINIANA ENTRE GÊNEROS PRIMÁRIOS E GÊNEROS SECUNDÁRIOS DO DISCURSO

1.1 Os gêneros do discurso na obra de Mikhail Bakhtin

É no capítulo "Os gêneros do discurso" que Bakhtin (1997) pondera a respeito da importância teórica que reside na distinção entre os gêneros primários e secundários do discurso. Segundo ele, a natureza de cada enunciado deve ser definida pela análise dessas duas espécies de gêneros, uma vez que a consideração apenas dos gêneros primários conduziria à simplificação extrema da linguagem, própria da linguística behaviorista. Nesse sentido, o autor pondera:

Não há razão para minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a conseqüente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do enunciado. Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre o gênero de discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário (complexo). Os gêneros secundários do discurso - o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc.- aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro deles e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios - por exemplo, inseridas no romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta, conservando sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do romance, só se integram à realidade existente através do romance considerado como um todo, ou seja, do romance concebido como fenômeno da vida literário-artística e não da vida cotidiana. O romance em seu todo é um enunciado, da mesma forma que a réplica do diálogo cotidiano ou a carta pessoal (são fenômenos da mesma natureza); o que diferencia o romance é ser um enunciado secundário (complexo).

[...] A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação dos gêneros secundários de outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado (e, acima de tudo, o difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões do mundo) (BAKHTIN, 1997, p. 281-282).

Vamos iniciar nossas reflexões a partir dessas citações com vista a compreender melhor a diferenciação proposta pelo filósofo russo, para depois experimentar outras formas de análise que possam vir a completá-las.

A réplica do diálogo cotidiano e a carta pessoal são fornecidas como exemplos de gêneros primários do discurso. Estes são definidos, por um lado, em função de sua constituição "em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea"; por outro, por "sua relação imediata com a realidade". Vale notar, de início, que os exemplos fornecidos pelo autor contemplam tanto a linguagem oral quanto a escrita, de modo que seria equivocada a equiparação dos gêneros primários com a linguagem oral, por um lado, e dos gêneros secundários com a linguagem escrita, por outro. Vale lembrar, ainda, que não é porque o autor afirma que os gêneros secundários "aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída", que poderíamos deduzir que os gêneros primários não podem aparecer nessas situações, ou que eles só são típicos das organizações sociais consideradas primitivas ou relativamente menos evoluídas. Da mesma maneira, não é porque o autor afirma que, "durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies" que devemos deduzir que, nas assim denominadas "circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída", os gêneros primários só terão, de alguma forma, sobrevivido em sua assimilação aos gêneros secundários.

O romance, o teatro, o discurso científico e o discurso ideológico são fornecidos como exemplos de gêneros secundários ou complexos do discurso. Estes são definidos, por um lado, em função de sua aparição relativamente mais tardia, em circunstâncias de uma comunicação cultural tida como "mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica"; por outro, pelo fato de que, durante o processo de sua formação, absorvem e transmutam os gêneros primários de todas as espécies. É digno de nota o trecho "a inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação dos gêneros secundários de outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado (e, acima de tudo, o difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões do mundo)", que aponta para a relação entre língua e ideologia, lembrando-se que, para o autor, devemos levar em consideração a ideologia do cotidiano, assim como a ideologia em sentido estrito, ou seja, aquela das instituições, presente na própria constituição dos gêneros secundários do discurso. De toda maneira, seria, também, simplista - assim nos parece - a identificação dos gêneros primários com a esfera da ideologia do cotidiano e dos gêneros secundários com a esfera da ideologia das superestruturas, mesmo porque essas esferas estão em estado constante de inter-relação e de influência recíproca.

1.2 A reflexão de alguns autores a respeito da diferenciação dos gêneros

Sem pretender fazer um levantamento exaustivo, apresentamos, a seguir, a ponderação de alguns autores a respeito da relação entre gêneros primários e secundários do discurso, de forma a fornecer um quadro ao mesmo tempo sucinto e representativo da forma com que vem sendo tratada a questão em pauta.

Em "Langage, genres et mondes", François (1998) propõe a distinção entre "discurso", "corpus" e "texto". Segundo o autor, o "discurso" diz respeito à situação mais natural ou espontânea: uma pessoa se comunica com outra em dada situação. Seja oralmente ou por escrito, o discurso está na dependência de seu contexto: "Ao mesmo tempo (duplo desdobramento), o discurso ou tal momento do discurso criam um contexto ou um conflito de contextos inesperados" (FRANÇOIS, 1998, p. 103). O "corpus" refere-se ao já dito ou escrito independentemente de suas relações com uma situação. Nesse caso, temos uma significação estabilizada em que as palavras são tratadas como "quase-coisas". Já o "texto" funciona fora de sua relação primeira de intercâmbio ou de comunicação.

No mesmo trabalho, François propõe que vejamos, na oposição entre discursos e textos, os dois polos da "inversão semiótica" presentes nos termos bakhtinianos "gêneros primários" e "gêneros secundários". Reconhecendo a dificuldade de se compreenderem com clareza os trechos da obra do filósofo russo que destacamos acima, François entende que a oposição estabelecida por Bakhtin remete, em princípio, à oposição entre gêneros simples e gêneros complexos, presente, por exemplo, no contraste entre questionar e conduzir uma pesquisa, relatar um acontecimento e pôr em cena uma história. Ao mesmo tempo, remete, também, à oposição entre funcionamentos semióticos: "No essencial, os gêneros primários são flagrados na prática social; os gêneros secundários 're'-constituem o universo humano" (FRANÇOIS, 1998, p. 120).

De toda maneira, é problemática, para François, a definição de qual seria a linguagem prototípica, uma vez que estamos sempre retomando palavras alheias ou recolocando as nossas. É nesse sentido que o autor pondera que mesmo a criança, ao retomar de forma imitativa suas próprias ações ou ações alheias, está transitando do gênero primário do sentido, existente na prática social, ao gênero secundário do sentido, num tipo de retomada teatral: "Incessantemente, a modificação das palavras do outro ou das próprias palavras em palavras minhas produzirá mudanças mais ou menos previsíveis" (FRANÇOIS, 1998, p. 122).

Trata-se, no caso, da diferença entre o momento em que a linguagem se integra na atividade e dos gestos corporais (característico, no caso, dos gêneros primários), e o momento em que ela se torna autônoma, seja para existir à parte, ou para contribuir na mudança da própria percepção do real (próprio dos gêneros secundários). Segundo François, no entanto, "não encontramos jamais uma camada mínima de sentido: a mãe que embala seu filho com palavras diz a ele mais do que 'o estritamente necessário' para adormecê-lo" (FRANÇOIS, 1998, p. 143).

Brait (2000) refere-se a essa mesma conversão do discurso em seu exemplo da placa de trânsito fotografada pelo poeta José Paulo Paes. Nesse caso, a autora aponta para a diferença entre "gênero discursivo" e "tipologia textual". Entendemos que o exemplo fornecido por Brait é típico da assimilação do gênero primário no gênero secundário do discurso.

Rojo (2001), por outro lado, faz o histórico da construção de uma perspectiva didática para o ensino de línguas. A autora relata a maneira com que a distinção bakhtiniana entre gêneros primários e secundários se tornou importante para a reflexão que se travava, na época (1994), no grupo de pesquisadores em Linguística Aplicada, por ela coordenado, na PUC-SP:

[...] era de relevância para o grupo a distinção, proposta por Bakhtin (1953/1979), entre gêneros primários e gêneros secundários, estes últimos entendidos como de circulação social pública e como tramados em circunstâncias sociais de produção mais complexa.

Entendíamos, então, que os gêneros primários (cotidianos e de circulação em esferas privadas de interação) poderiam, em larga medida, já estar no DR (Desenvolvimento Real) dos estudantes do ensino fundamental e que a tarefa da escola, neste nível, seria a de, a partir deles (interação em sala de aula), passar a construir com os estudantes os gêneros secundários dos discursos (orais e escritos), mais complexos e de circulação nas esferas sociais públicas para as quais o ensino fundamental (doravante EF) pretende preparar seus alunos (ROJO, 2001, p. 174-175).

Schneuwly (2004), que é mencionado por Rojo em seu artigo (aliás, traduzido por ela de forma provisória), parte, por sua vez, da tese de que o gênero do discurso é um "instrumento". Com base em Marx e Engels (1979), para quem a apropriação de instrumentos de produção produz o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos próprios indivíduos, e transferindo a reflexão dos filósofos alemães para o campo concernente à apropriação escolar dos gêneros complexos, o psicólogo suíço pondera:

Os instrumentos encontram-se entre o indivíduo que age e o objeto sobre o qual ou a situação na qual ele age: eles determinam seu comportamento, guiam-no, afinam e diferenciam sua percepção da situação na qual ele é levado a agir. A intervenção do instrumento, objeto socialmente elaborado, nesta estrutura diferenciada dá à atividade uma certa forma; a transformação do instrumento transforma evidentemente as maneiras de se comportar numa situação (SCHNEUWLY, 2004, p. 23).

A partir dessa concepção dos gêneros enquanto instrumentos, Schneuwly passa a considerar as diferenças propostas por Bakhtin entre gêneros primários e secundários do discurso. Partindo dos mesmos trechos destacados por nós da obra do autor russo, o psicólogo suíço chega às conclusões que esquematizamos a seguir:

1) Os gêneros primários comportam as seguintes dimensões:

a) interação que se dá na dependência da situação de enunciação - contrariamente ao que acontece com os gêneros secundários, não controlados diretamente em situação, o que, evidentemente, não significa que sejam descontextualizados, mas sem contexto imediato;

b) funcionamento imediato do gênero como entidade global controlando todo o processo como uma só unidade;

c) nenhum ou pouco controle metalinguístico da ação linguística em curso;

d) "[...] são o nível real com o qual a criança é confrontada nas múltiplas práticas de linguagem. Eles instrumentalizam a criança (é claro que aqui se coloca todo o problema do ensino e do desenvolvimento e o problema das interações sociais para a aprendizagem) e permitem-lhe agir eficazmente em novas situações (o instrumento se torna instrumento de ação)" (SCHNEUWLY, 2004, p. 30).

2) Os gêneros secundários caracterizam-se por:

a) funcionamento psicológico por entidades mais separadas, necessitando outros mecanismos de controle mais potentes: "A diferença específica residiria no tipo de relação com a ação, seja ela lingüística ou não: a regulação se dá na e pela própria ação de linguagem no gênero primário; dá-se por meio de outros mecanismos, a definir, no gênero secundário" (SCHNEUWLY, 2004, p. 30)2 2 Nesse ponto, Schneuwly cita, em rodapé, a contribuição de Bronckart (1993) para a diferenciação entre gêneros primários e gêneros secundários: "Segundo Bakhtin, podemos distinguir textos primários (ou livres), que estabelecem uma relação 'imediata' com as situações nas quais são produzidos, e textos secundários (estandartizados), que estabelecem uma relação 'mediata' com sua situação de produção. Enquanto os discursos primários seriam assim 'estruturados na ação', os discursos secundários (narração, discurso teórico etc.) dela se separariam e seriam submetidos a um estruturante próprio, convencional, de natureza especificamente lingüística [...]". ;

b) modos diversificados de referência a um contexto linguisticamente criado: "Com a complexificação dos gêneros e, sobretudo, com sua autonomização no que diz respeito ao contexto, aparece, cada vez mais, a necessidade de criar uma coesão interna, um fechamento interno por assim dizer do texto. Entre outras maneiras, isto se faz lingüisticamente pela criação de instrumentos lingüísticos que referem a um contexto lingüisticamente criado pelo texto" (SCHNEUWLY, 2004, p. 30-31). O autor refere-se aos complexos sistemas de retomadas anafóricas, aos organizadores textuais e aos sistemas temporais, assim como aos diferentes tipos de "topogramas", no que se refere à escrita (cf. ANIS, 1988);

c) "[...] quanto mais um gênero é autônomo com relação a uma situação imediata, mais o aparelho lingüístico criado na língua para falar dele se enriquece e se complexifica. [...] Poderíamos quase dizer que os gêneros secundários criam seus duplos: gêneros, especializados por domínio, que servem à prescrição, avaliação, mas também ao controle de sua produção" (SCHNEUWLY, 2004, p. 31). Schneuwly refere-se, nesse caso, à metalinguagem das crianças de mais de 10 anos, em especial no processo de produção escrita, as quais demonstram uma capacidade crescente de controlar seu próprio processo de produção de linguagem por meio de gêneros apropriados a esse fim;

d) o psicólogo suíço levanta a hipótese de que "a gestão eficaz dos gêneros secundários pressupõe a existência e a construção de um aparelho psíquico de produção de linguagem que não funciona mais na 'imediatez' (comunicação verbal espontânea, diz Bakhtin), mas que pode se basear na gestão de diferentes níveis relativamente autônomos (não se trata aqui de um modelo de modularidade inata, mas construída, fruto do desenvolvimento). Isto significa a existência de níveis de decisão, de operações discursivas transversais em relação aos gêneros" (SCHNEUWLY, 2004, p. 31-32).

2. APORTES DAS ABORDAGENS SÓCIO-HISTÓRICA E ENUNCIATIVA

2.1 A evolução do significado entre os psicólogos russos

Passamos, agora, à exploração de outras vertentes que possam vir a enriquecer a reflexão que apresentamos acima. Lembramos que alguns aspectos que apresentaremos são também destacados por Schneuwly, particularmente aqueles que se referem à obra de L. S. Vigotski e à inter-relação entre conceitos espontâneos e conceitos científicos, à qual o psicólogo suíço faz rápida menção e que exploramos, aqui, de forma mais detalhada.

2.1.1 Luria: o caminho da estrutura simpráxica até a estrutura sinsemântica da palavra

Psicólogo russo pertencente à escola de Vigotski, Luria (1986) dá sequência à postulação vigotskiana (VIGOTSKI, 2001) de que o significado das palavras evolui no decurso do desenvolvimento infantil, chamando-nos a atenção, de toda a maneira, para o fato de que a ontogênese nunca repete a filogênese, uma vez que o desenvolvimento da linguagem na ontogênese da criança transcorre no processo de assimilação da experiência geral da humanidade e da comunicação com os adultos (cf. LURIA, 1986, p. 29). O autor alerta para a longa história que se dá no processo de aquisição da linguagem infantil, estando as primeiras palavras estreitamente ligadas à ação da criança e à sua comunicação com os adultos. Nesse contexto inicial, o significado da palavra depende da situação, da entonação e dos gestos que a acompanham. Apenas progressivamente, a palavra vai adquirindo autonomia. Assim, até por volta dos 2 anos de idade, as palavras possuem caráter difuso e estão fortemente enlaçadas com a prática. Nesse sentido, Luria pondera:

[...] a observação da ontogênese facilita-nos fatos complementares que permitem considerar que a palavra nasce de um contato simpráxico, separando-se progressivamente da prática, e converte-se em um signo autônomo, que designa um objeto, uma ação ou uma qualidade (e mais adiante uma relação). É neste momento que ocorre o verdadeiro nascimento da palavra diferenciada como elemento do complexo sistema de códigos da língua (LURIA, 1986, p. 29).

A partir disso e em confirmação da tese de Vigotski, Luria conclui que o significado da palavra se desenvolve, uma vez que, apesar de conservar a mesma referência objetal, a palavra adquire novas estruturas semânticas, ou seja, há uma alteração no sistema de enlaces e generalizações nela encerrados. Junto com esse fato e como decorrência dele, há uma mudança na estrutura sistêmica da palavra: "Ou seja, por trás do significado da palavra, em cada etapa, estão presentes diferentes processos psíquicos" (LURIA, 1986, p. 51). Esses dois aspectos estão intimamente relacionados. No que diz respeito ao que Luria denomina a estrutura do significado, temos uma progressão desde as etapas iniciais do desenvolvimento infantil, em que o significado da palavra ainda é amorfo, difuso, genérico e não possui uma firme referência objetal: "[...] o significado é muito difuso e, mesmo designando um determinado traço, faz referência a distintos objetos que apresentam este traço comum e se inserem na situação correspondente" (LURIA, 1986, p. 49). Nessa etapa, a palavra conserva um estreito vínculo com a situação prática. A partir do momento em que a palavra já começa a adquirir uma referência objetal mais estável, há, de toda maneira, uma continuidade na evolução de sua estrutura de significado, no que concerne à sua função generalizadora e analítica.

O autor cita como exemplo a palavra "armazém", que não tem o mesmo significado para uma criança de 3 anos, para uma de 7, para um estudante secundário, ou para um economista. Junto com a evolução na estrutura do significado, há uma mudança nos sistemas de processos psíquicos que estão por trás da palavra. Assim, na criança pequena, predomina o laço afetivo; na idade pré-escolar, predomina a memória de uma imagem concreta imediata; para o economista, estão presentes os enlaces lógicos.

2.1.2 Elkonin e a ênfase para os papéis sociais

Elkonin (1998), outro psicólogo russo também pertencente à escola de Vigotski, faz um estudo aprofundado sobre o jogo: diversos tipos de jogos infantis, sua origem, seu significado, sua aplicação na educação. Para ele, a palavra aparece como um elemento do jogo. O estudioso chama a atenção para a maneira com que o elemento humano e as ações humanas são assimilados no jogo, e como este só se constitui, realmente, na sua atribuição de papéis, quando são claramente visualizadas ações do mundo circundante da criança. A imitação está presente, tão importante quanto a ficção. Só a visualização de objetos é insuficiente para a constituição do jogo, uma vez que não é a partir deles que se constrói a ação fictícia, mas a partir da imitação das ações presentes no mundo adulto.

Nas sociedades primitivas que Elkonin menciona, em que não há uma fronteira nítida entre adultos e crianças, e as crianças participam, desde muito cedo, do trabalho adulto, da mesma forma como se detectou que as crianças brincam pouco e que seus jogos não são "protagonizados"3 3 Entenda-se por "jogo protagonizado" a reconstituição da atividade dos adultos em condições lúdicas específicas, com a substituição de um objeto por outro e com ações por eles condicionadas. Mais conhecido entre nós como "faz-de-conta" infantil. , também é comprovada ausência de linguagem propriamente conceitual.

A evolução da sociedade primitiva traz consigo diversas alterações: altera-se a divisão do trabalho; transita-se do matriarcado para o patriarcado; complicam-se as ferramentas e as atividades adultas; lentamente, as crianças são afastadas das esferas mais complicadas e de maior responsabilidade da atividade dos adultos, reduzindo-se, cada vez mais, as atividades laborais em que podiam participar em igualdade junto com os adultos. Anteriormente, alguns instrumentos, como a enxada, podiam ser oferecidos à criança em forma reduzida e, com ela, esta executava serviço semelhante ao do adulto (o que, aliás, ainda pode ser encontrado na zona rural mesmo na região Sudeste de nosso país). O aparecimento de instrumentos mais complexos, como o rifle ou o arado, trouxe como consequência o fato de que a miniatura já não pudesse ter serventia prática, passando a ser utilizada, apenas, para a simulação. A inserção das crianças no trabalho produtivo dos adultos declina com a gradual complexidade das ferramentas, mesmo porque esse avanço técnico torna os adultos mais capazes de proporcionar o sustento das famílias por si próprios. A infância prolonga-se e abre-se o espaço para o "jogo protagonizado", que, dessa forma, pode ser explicado como resultado da mudança do lugar da criança no sistema de relações sociais. A imitação está presente desde os jogos mais elementares, percebendo-se uma evolução a partir de jogos sem enredo, compostos de episódios desconexos, que vão adquirindo, com o avanço da idade, um argumento determinado. Há, paralelamente, uma evolução, de episódios fragmentários que refletem a vida pessoal ou do meio imediato para representações de caráter social. É nesse sentido que, segundo Elkonin, o aspecto evolutivo mais importante dos jogos é o desenvolvimento do argumento, intimamente relacionado com o papel. Há uma passagem gradual (com base no tema e no papel) de ações domésticas (como cozinhar, lavar etc.) para significações histriônicas baseadas nessas ações. Ao lado dessas ações protagonizadas, aparecem as relações entre as personagens e, finalmente, surge o papel propriamente dito. Com o avanço da idade, a palavra desvencilha-se do nexo necessário com o objeto e com a ação. Simultaneamente e não por acaso, as regras do jogo adquirem o aspecto de entidade convencional, enquanto, anteriormente, se encontrava uma ligação necessária entre a regra e o argumento do jogo.

É interessante observar, aliás, que a elaboração maior da linguagem se dá simultaneamente à assunção de um papel, fato que nos leva a postular, em todos os níveis, que, na medida em que se assumem determinados papéis4 4 Desenvolvemos em outro lugar (MARTINS, 2007) a questão da inter-relação entre linguagem e construção de papéis sociais. , se adquire um grau mais complexo de elaboração linguística, o que podemos traduzir em termos da apropriação de gêneros do discurso diferenciados e das estruturas composicionais e estilos verbais (recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais) que lhes são próprios.5 5 Bronckart (1999, p. 30) pondera que "a unidade verbal considerada por Vygotsky foi a palavra [...]" e alerta-nos que Vigotski "[...] não identificou as unidades verbais maiores que Bakhtin paralelamente começava a conceitualizar com a expressão gêneros do discurso". Notamos que o mesmo acontecia com Luria e Elkonin, os quais, de toda maneira, apontam, sem assim denominá-lo, para a constituição de um gênero, ao levar em consideração a construção dos argumentos dentro do jogo de faz-de-conta infantil.

2.1.3 A dialética entre conceitos espontâneos e conceitos científicos

Vigotski (2001) postula direções opostas no desenvolvimento de conceitos espontâneos e conceitos científicos: o desenvolvimento dos conceitos científicos dá-se a partir de outro polo, de outra extremidade, uma vez que o primeiro passo na sua aquisição é a definição verbal e o uso em operações não-espontâneas, de tal forma que esse ponto de partida, em termos cognitivos, corresponde ao ponto de chegada dos conceitos espontâneos. Isso significa que a criança só adquire consciência de seus conceitos espontâneos, sendo capaz de defini-los e de operar com eles com facilidade, relativamente tarde. Assim, embora o conceito "irmão" seja saturado de experiência, a criança terá dificuldade para resolver problemas abstratos, que envolvam, por exemplo, o irmão do irmão. Por outro lado, embora responda corretamente questões de teor dissertativo sobre "escravidão", "guerra civil" etc., esses conceitos são esquemáticos, carecem de um conteúdo rico, próprio da experiência pessoal. Por isso tudo, Vigotski concluiu que o desenvolvimento dos conceitos espontâneos se dá de baixo para cima, enquanto, com os conceitos científicos, acontece o oposto, vão de cima para baixo, até atingir um nível mais concreto. A formação do conceito espontâneo dá-se a partir de uma situação concreta, enquanto o conceito científico envolve, já desde o início, uma mediação.

Traça-se, assim, uma dialética complexa, muito mais complicada do que a mera suposição de um desenvolvimento linear, em que os patamares, os estágios se sucedem, simplesmente, uns aos outros. Em vez disso, temos dois processos, por um lado, opostos, porém, por outro, intimamente relacionados, uma vez que é necessário que o conceito espontâneo tenha atingido certo nível de desenvolvimento, para que a criança esteja em condições de assimilar um conceito científico equivalente. Por exemplo, segundo Vigotski, conceitos de história só poderão ser assimilados depois que o conceito espontâneo que envolve a diferenciação entre presente e passado estiver suficientemente desenvolvido. Os conceitos científicos se enraízam, ganham vitalidade com a força dos conceitos espontâneos; os conceitos espontâneos se fortalecem, tornam-se mais conscientes e produtivos com a ajuda dos conceitos científicos6 6 Tratamos em outro lugar (MARTINS, 2004) da metodologia do "método inverso" proposta por Vigotski e que está implícita na relação entre conceitos espontâneos e conceitos científicos. .

Por meio de experimentos, Vigotski constatou que não há correspondência entre a fase de desenvolvimento do pensamento infantil e o grau de generalidade dos conceitos, podendo haver uma convivência de conceitos com diferentes graus de generalidade (sejam "planta", "flor", "rosa"). No entanto, embora não haja uma correspondência exata, é fato que cada fase tem um nível específico de generalidade, no sentido de uma relação específica entre conceitos superordenados e subordinados, o que envolve uma combinação específica dos elementos concretos e abstratos. Dessa maneira, no estágio do pensamento por complexos, "flor" e "rosa", por exemplo, coexistem num mesmo plano, não havendo relação de subordinação.

No estágio pré-sincrético, todos os conceitos estão no mesmo nível. Referem-se diretamente aos objetos e delimitam-se entre si da mesma forma que os objetos no mundo real. Sendo assim, o pensamento verbal depende do pensamento perceptivo, determinado pelo objeto. O aparecimento de um primeiro conceito generalizado, como "mobília", é, por sua vez, um sintoma tão significativo de progresso, quanta a primeira palavra usada com significado. Os níveis superiores de desenvolvimento conceitual são governados pela lei de equivalência de conceitos: qualquer conceito pode ser formulado por meio de outros conceitos. Há generalizações sobre generalizações, e os novos conceitos, de um nível superior, transformam aqueles de nível inferior. Naturalmente, não há uma reestruturação dos conceitos um a um, separadamente: sendo uma nova estrutura incorporada, em uma nova "medida de generalidade", ela se espalha para os conceitos anteriores (geralmente, como resultado de instrução, de educação sistemática).

Entre outros aspectos, vale lembrar a conotação que adquire, na concepção vigotskiana, o termo "transformação", com sua visada dialética da história, vista diferentemente do enfoque tradicional linear, que prevê etapas sucessivas. Nesse caso, a "transformação" não implica a substituição de uma etapa por outra, ou a mera superação, no sentido do abandono do que existia anteriormente e sua substituição por uma nova forma. O que temos, de preferência, é o "Aufhebung", no sentido que Marx (1974) atribuiu a essa palavra, que envolve mudanças qualitativas sem, no entanto, que se preveja o abandono completo do que existia anteriormente.

2.2 Contribuições da Teoria da Enunciação

No item anterior, recorremos a três psicólogos da escola de Vigotski - os quais, assim como Bakhtin, se baseiam na abordagem sócio-histórica, muito embora, como já destacamos, não tenham desenvolvido uma visada mais elaborada a respeito da linguagem como o fez o filósofo russo. Para nossa consideração dos gêneros do discurso na conceituação bakhtiniana, entendemos que as reflexões dos psicólogos russos nos ajudam a vislumbrar com mais clareza a forma de evolução dos gêneros primários para os secundários através dos seguintes pontos:

1) passagem da linguagem em estreita relação com a realidade objetiva (de caráter simpráxico) para a linguagem autônoma (de caráter sinsemântico);

2) essa passagem está associada a uma construção diferenciada dos papéis sociais, fato que, em outros termos, podemos entender como inerente às questões identitárias: ao pronunciar diferentemente sua linguagem, o ser humano está construindo diferentemente sua identidade social. A linguagem aparece, nesse sentido, como constituinte e constitutiva da construção da identidade social;

3) tal construção pode dar-se de forma imitativa e pertence, por natureza, às esferas sociais de atividade humana;

4) Vigotski, em particular, aponta para a maneira com que, no âmbito da aprendizagem, as estruturas consideradas por ele como mais complexas exercem influência sobre as menos complexas e, simultaneamente, nos mostra como as estruturas elementares são de suma importância para dar vitalidade e consistência às estruturas complexas. Como se centra em palavras isoladas, sua reflexão não adquire toda a complexidade da reflexão bakhtiniana, porém fornece importante contribuição para o melhor entendimento desta. É assim que, na linha da reflexão vigotskiana, a prática escolar dos gêneros não precisaria, por princípio, seguir uma ordenação que fosse do mais simples ou primário para o mais complexo ou secundário: a convivência precoce com gêneros complexos pode contribuir para a mobilização de estruturas mais simples.

De toda forma, ainda consideramos esses aportes insuficientes do ponto de vista da descrição de fenômenos linguísticos propriamente ditos, e foi essa insatisfação que nos conduziu a buscar elementos de descrição linguística na Teoria da Enunciação desenvolvida por Antoine Culioli. Se, no caso do recurso aos psicólogos da escola de Vigotski, nossa opção se deu como busca de estudiosos pertencentes a uma mesma vertente epistemoló-gica - a sócio-histórica, que, no caso, une Bakhtin aos psicólogos russos -, nossa preferência pelo linguista francês dá-se pela abordagem dinâmica e operatória que nos fornece a respeito da linguagem. O dinamismo, a gradualidade, a visada processual, nesse caso, nos parecem mais próximos daquilo que julgamos necessário descrever nos fenômenos apontados por Bakhtin.

2.2.1 O desdobramento de formas linguísticas e as prol iferações

Linguista francês que dá continuidade à construção de uma Teoria da Enunciação na linha da reflexão iniciada por Émile Benveniste (1995), Antoine Culioli (1997a, p. 43-57) sugere a existência do que denomina "desdobramento de formas"7 7 O autor refere-se a esse fenômeno através de expressões diversas: desdobramento, construção de um espaço semântico, camadas de significado, proliferação, deformação, relação transcategorial. na construção das representações linguísticas. A partir de um exemplo retirado do vietnamita, o autor mostra como se dão esses desdobramentos, através de um processo complexo de modalização (que implica a passagem a um outro patamar de abstração), em que o significado se vai tornando mais complexo pela inclusão de novos elementos, assim como pela manutenção dos anteriores. É assim que o marcador vietnamita phai, o qual o linguista oferece como exemplo para sua reflexão, remete, num primeiro momento, à mão direita, ou seja, a um dos membros de uma assimetria fundada sobre a representação do próprio corpo, estendendo-se à representação de espaço. Trata-se, assim, de uma construção a partir de uma referência subjetiva. Com base nesse emprego, passa-se a uma outra ordem de representação que implica uma abstração, ou uma sobreposição de camadas (passagem a um metanível): a construção de uma "forma de formas" com a introdução de uma propriedade suplementar, num processo de modelização interna que constrói e conserva uma propriedade invariante (a diferenciação assimétrica, nesse caso), acrescentando-lhe uma propriedade e dando lugar para uma nova utilização de phai, para indicar o que é verdadeiro, correto, adequado, apropriado. Phai passa a significar "ter razão", opondo-se a trai (= esquerda, estar errado). Nessa passagem, o marcador adquire um valor apreciativo, estabelecendo-se, assim, uma figura complexa: de um lado, temos uma posição neutra que categoriza os possíveis; de outro, duas orientações possíveis, divergentes, ponderadas uma em relação à outra. Com um novo desdobramento, phai será utilizado como marcador de negativização, em enunciados não-verbais, abrindo espaço para um fenômeno sintático. A próxima camada revelará a modalidade deôntica ("dever"). Novamente, temos conservação e acréscimo: por um lado, conservam-se os dois ramos da bifurcação, ou seja, conserva-se a forma abstrata (p/p'); por outro, cria-se um espaço de valores em que a forma é imersa. Nos empregos anteriores, não havia a dinâmica que agora se instaura através de uma distância temporal, de uma agentividade, criada pela introdução de valores suplementares. Construíram-se ramificações, com uma posição indicando o bom caminho, um telos benéfico, e outra que representa algo a evitar, mau, prejudicial. Trata-se, assim, da modalidade deôntica à qual se acrescenta uma valoração teleonômica. Há, com tudo isso, superposição de representações e proliferação: o lado direito, construído inicialmente, passa a remeter, por deformação, ao que é adequado, ao que é verdadeiro; por outra deformação, passa-se ao deôntico: ao que é bom, desejável, correto. Num último emprego, passa-se à diátese, nova ordem de categorização: phai passa a ser "sofrer", com "valor detrimental", na relação agentiva ("algo acontece a alguém"). Há, com isso, uma superposição de sistemas de representação de ordens diferentes, de que decorre uma relação transcategorial entre teleonomia, agentividade e modalidade.

Segundo Culioli, esse exemplo nos mostra a maneira como a cognição, a subjetividade e a própria variedade das situações de utilização linguística modelam (modelizando), através de nossa atividade epilinguística, as representações e os marcadores - sempre nos lembrando de que é no contato contínuo com os outros que reformulamos nossas enunciações. Detendo-se primordialmente no uso adulto da linguagem, o autor leva em consideração relações primitivas que compõem uma classe fechada:

- relações espaciais, como interior/exterior, em que se reconhecem ocorrências discretas, num recorte de tipo quantitativo ligado a formas de localização situacional contingente. Nesse caso, a negação adquire o valor de ausência, inexistência ("Há- ou não há - uma mesa nesta sala.");

- relações intersujeitos, como agentividade;

- relações de referenciação (repérage), como identificação ou diferenciação, numa delimitação qualitativa em relação a um centro organizador do domínio nocional. Nesse caso, a negação adquire estatuto de valoração subjetiva negativa, no sentido de mau, falso ("Não acho que isso é um passarinho.").

As delimitações quantitativo/qualitativo formam um gradiente em que se definem as propriedades (ou modos de construção referencial) de "discreto", "denso" e "compacto": discreto, em que o qualitativo coincide com o quantitativo definido pelo extralinguístico; denso, em que há ou uma delimitação qualitativa, ou quantitativa, induzida do exterior; compacto, em que a delimitação é puramente qualitativa, interna à noção.

A reflexão de Antoine Culioli, na linha da Teoria da Enunciação, fornece-nos, dessa forma, elementos para a microanálise linguística, algo de que carece a reflexão bakhtiniana. Através da categoria da "referenciação" (répérage), o autor chama a atenção para a maneira com que as palavras remetem ora para o patamar da enunciação, ora para elementos do próprio enunciado, porém, justamente porque prevê um gradiente contínuo provido de mobilidade, lembra-nos de que a referenciação está em construção constante, na dependência da relação que se trava entre os interlocutores. Assim, além de nos fornecer elementos para a análise linguística, fornece-nos uma teoria forte no sentido de nos deixar sempre atentos para o fato de que não há parâmetros estáveis.

2.2.2 As propriedades do denso, do discreto e do compacto

Também na linha culioliana da Teoria da Enunciação, Sarah Vogüé (1989) chama-nos a atenção para os fenômenos de recategorização presentes na linguagem: a categorização dos itens lexicais não se faz de forma fixa e definitiva, mas como uma base de cálculo, a partir da qual se pondera o valor de certa ocorrência no enunciado. Há categorizações de base e recategorizações no plano enunciativo, e o efeito obtido dá-se como resultado do percurso entre ponto de partida e ponto de chegada.

Tendo estabelecido um paralelo entre o comportamento dos nominais (enquanto portadores das propriedades do denso, do discreto ou do compacto) e aquele dos processos verbais, a autora aponta para a existência de três estratégias, correspondentes a três estruturas enunciativas:

- localizador/processo: constatação da verificação de um processo numa situação dada, própria do funcionamento denso e da "estratégia da narrativa" (récit, de caráter descritivo). Trata-se de um recorte de uma porção do mundo. Nada é comentado, não há qualificação, nada é dito por ninguém;

- agente (causa)/processo/visada (padrão). Há uma constatação da qual se deduz uma estabilização qualitativa. Trata-se do comportamento do discreto. Literalmente, algo se diz dentro da "estratégia da história" definida por Benveniste (1995): ninguém fala e os acontecimentos parecem falar por si próprios. Há um desdobramento, há elos causais. Na categoria da história, as palavras (no funcionamento do discreto) pronunciam-se por si mesmas, qualificam o mundo, não se contentando, apenas, com designá-lo. Nesse caso, percebe-se que houve uma qualificação prévia, uma modalização em que esse modal já aparece integrado no léxico, sendo, portanto, pré-enunciativo. Por isso mesmo, na categoria da história, é possível prescindir de um locutor: as palavras dizem-se por si mesmas;

- tema/proposta: atribuição de uma propriedade a um suporte, própria do comportamento compacto e da "estratégia do discurso" - um enunciador predica a propriedade em questão a propósito do que serve de tema de seu discurso. Nesse caso, o enunciador se expõe diante do interlocutor.

As propriedades de discreto, denso e compacto, aplicáveis aos nomes e extensivas aos processos, longe de conduzir a classificações fixas, sugerem parâmetros ou polos de acordo com os quais os verbos se articulam, porém não de forma definitiva, mesmo porque vários mecanismos enunciativos podem suscitar recategorizações. Se fôssemos pensar em termos evolutivos (algo que não faz parte da preocupação dos autores em questão), poderíamos levantar a hipótese de uma evolução a partir da "estratégia da narrativa" (récit), passando pela "estratégia da história" até chegar à "estratégia do discurso". A estratégia da narrativa baseia-se na designação e na constatação de processos realizados; a estratégia da história envolve relações causais; a estratégia do discurso envolve atribuições de propriedades por parte de um sujeito enunciador. É, na verdade, no acompanhamento do desenvolvimento ontogenético da linguagem infantil que podemos ponderar sobre esse processo evolutivo e pressupor que ele deve ter-se dado em termos filogenéticos.

Podemos, de toda forma, evidenciar o fato de que, nas sociedades complexas, nos encontramos diante de textos que apresentam a imbricação das propriedades em questão, mesmo porque, como pondera a autora francesa, há uma transição contínua de uma para outra propriedade e presenciamos os fenômenos constantes de recategorização.

3. ALGUMAS CONCLUSÕES PROVISÓRIAS

A afirmação de Bakhtin (1997, p. 285) de que "quando há estilo, há gênero" aponta, à sua maneira, para esta mobilidade que vimos tentando destacar: para o fato de que as construções sintático-semânticas presentes em cada texto denunciam, continuamente, a presença de novos gêneros em construção. Nessa constatação, se é fato que podemos determinar a passagem dos gêneros primários para os secundários na linha de evolução filogenética, essa transição não pode ser tão simples na prática cotidiana dos gêneros do discurso, uma vez que será possível surpreender elementos característicos dos gêneros primários em uso nos gêneros secundários - mesmo porque, conforme vimos, estes se constroem pela assimilação daqueles. Além disso, no uso cotidiano que fazemos da linguagem, estamos continuamente transitando entre diferentes estilos verbais, entre formas diferentes de referenciação, em tal medida que a própria determinação do gênero em uso pode tornar-se problemática.

Compreendemos, assim, que os aportes que apresentamos provindos da Teoria da Enunciação contribuem para que alertemos para os fenômenos de instabilidade, de plasticidade e de hibridização presentes na linguagem. Nesse sentido, se podemos, junto com Luria (1986) e Bronckart (1999), postular a evolução, na linha filogenética, dos gêneros primários, em íntima relação com a realidade circundante, para os gêneros secundários em que os discursos adquirem progressiva autonomia em relação a essa realidade, na abordagem ontogenética os fatos não se dão num recorte tão preciso, mesmo porque as crianças estão continuamente em contato com a sociedade adulta e com sua prática cotidiana dos gêneros secundários. É assim que cogitar na assimilação dos gêneros primários aos secundários não se deve resumir, apenas, aos fatos de citação ou de paródia; de forma mais profunda e muitas vezes imperceptível, aspectos próprios dos gêneros primários (em termos de filogênese) reaparecem nos gêneros secundários e contribuem para a contínua mobilidade e hibridização manifesta nos diversos gêneros. É para isso que apontam as propriedades do discreto, do denso e do compacto - assim como sua contínua recategorização.

Recebido: 7/6/2006

Aceito: 26/9/2008

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  • 1
    Bolsa Fapesp 04/15.539-3. Pesquisa produzida no âmbito do Projeto Temático "Formação do Professor: Processos de Retextualização e Práticas de Letramento" (Fapesp 02/09.775-0).
  • 2
    Nesse ponto, Schneuwly cita, em rodapé, a contribuição de Bronckart (1993) para a diferenciação entre gêneros primários e gêneros secundários: "Segundo Bakhtin, podemos distinguir textos primários (ou livres), que estabelecem uma relação 'imediata' com as situações nas quais são produzidos, e textos secundários (estandartizados), que estabelecem uma relação 'mediata' com sua situação de produção. Enquanto os discursos primários seriam assim 'estruturados na ação', os discursos secundários (narração, discurso teórico etc.) dela se separariam e seriam submetidos a um estruturante próprio, convencional, de natureza especificamente lingüística [...]".
  • 3
    Entenda-se por "jogo protagonizado" a reconstituição da atividade dos adultos em condições lúdicas específicas, com a substituição de um objeto por outro e com ações por eles condicionadas. Mais conhecido entre nós como "faz-de-conta" infantil.
  • 4
    Desenvolvemos em outro lugar (MARTINS, 2007) a questão da inter-relação entre linguagem e construção de papéis sociais.
  • 5
    Bronckart (1999, p. 30) pondera que "a unidade verbal considerada por Vygotsky foi a palavra [...]" e alerta-nos que Vigotski "[...] não identificou as unidades verbais maiores que Bakhtin paralelamente começava a conceitualizar com a expressão
    gêneros do discurso". Notamos que o mesmo acontecia com Luria e Elkonin, os quais, de toda maneira, apontam, sem assim denominá-lo, para a constituição de um gênero, ao levar em consideração a construção dos argumentos dentro do jogo de faz-de-conta infantil.
  • 6
    Tratamos em outro lugar (MARTINS, 2004) da metodologia do "método inverso" proposta por Vigotski e que está implícita na relação entre conceitos espontâneos e conceitos científicos.
  • 7
    O autor refere-se a esse fenômeno através de expressões diversas: desdobramento, construção de um espaço semântico, camadas de significado, proliferação, deformação, relação transcategorial.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      26 Set 2008
    • Recebido
      07 Jun 2006
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