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Ensinar a escrever o texto acadêmico: as múltiplas funções do orientador

Teaching to write the academic text: the multiple functions of the advisor

Resumos

O presente estudo toma as observações de um orientador de mestrado em uma área das ciências humanas que foram encontradas em rascunhos produzidos por duas informantes ao longo de 36 meses de trabalho como objeto de análise. Seu objetivo principal é estudar como a ação de ensinar a escrever o texto acadêmico se configura. Para tal fim, partilhamos a hipótese de trabalho de Pommier (1993), segundo a qual os modos pelos quais alguém aprende a escrever atualizam, de forma metafórica, os caminhos por meio dos quais sua subjetivação se deu. Tendo a psicanálise de orientação lacaniana como campo em que trabalhamos, inserimo-nos na continuidade dos trabalhos que vêm defendendo a possibilidade do agenciamento da singularidade de quem escreve em direção a uma universidade produtiva. A partir da análise dos dados, foi possível depreender cinco diferentes funções exercidas pelo orientador para ensinar suas alunas a escrever um texto acadêmico, a saber: 1) diretor de trabalhos, 2) leitor, 3) coautor, 4) revisor e 5) agente do real. Dessa forma, pudemos ratificar a alegada dificuldade para orientar um trabalho. Pudemos, também, ter uma visão mais detalhada da complexidade de escrever um texto acadêmico.

ensino da escrita; formação de pesquisadores; psicanálise


This article focuses on the remarks of an academic advisor of humanity students that have been found in drafts produced by two young women along 36 months. Its main objective is to study how the action of teaching how to write the academic text takes along. To do so, we use Pommier's hypothesis (1993), to whom the manners adopted by someone as he/she learns how to write follow, metaphorically, the ways by which his/her subjectivation has happened. We work in the field of lacanian psychoanalysis, following those works that defend that it is necessary to administrate the singularity of the one who writes academic papers in order to construct a productive university. After data analysis, it was possible to verify that the academic advisor had to adopt five different functions to teach his students how to write academic texts: 1) advisor, 2) reader, 3) co-author, 4) reviser, and 5) agent of the real. Thus, we could confirm the so said difficulty of supervising writing works, and we also could have a more detailed understanding of the academic writing complexity.

teach how to write; researchers formation; psychoanalysis


ARTIGO ARTICLE

Ensinar a escrever o texto acadêmico: as múltiplas funções do orientador

Teaching to write the academic text: the multiple functions of the advisor

Claudia Rosa RiolfiI; Emary AndradeII

IUSP, São Paulo (SP), Brasil, <riolfi@usp.br>

IIUSP, São Paulo (SP), Brasil

RESUMO

O presente estudo toma as observações de um orientador de mestrado em uma área das ciências humanas que foram encontradas em rascunhos produzidos por duas informantes ao longo de 36 meses de trabalho como objeto de análise. Seu objetivo principal é estudar como a ação de ensinar a escrever o texto acadêmico se configura. Para tal fim, partilhamos a hipótese de trabalho de Pommier (1993), segundo a qual os modos pelos quais alguém aprende a escrever atualizam, de forma metafórica, os caminhos por meio dos quais sua subjetivação se deu. Tendo a psicanálise de orientação lacaniana como campo em que trabalhamos, inserimo-nos na continuidade dos trabalhos que vêm defendendo a possibilidade do agenciamento da singularidade de quem escreve em direção a uma universidade produtiva. A partir da análise dos dados, foi possível depreender cinco diferentes funções exercidas pelo orientador para ensinar suas alunas a escrever um texto acadêmico, a saber: 1) diretor de trabalhos, 2) leitor, 3) coautor, 4) revisor e 5) agente do real. Dessa forma, pudemos ratificar a alegada dificuldade para orientar um trabalho. Pudemos, também, ter uma visão mais detalhada da complexidade de escrever um texto acadêmico.

Palavras-chave: ensino da escrita; formação de pesquisadores; psicanálise.

ABSTRACT

This article focuses on the remarks of an academic advisor of humanity students that have been found in drafts produced by two young women along 36 months. Its main objective is to study how the action of teaching how to write the academic text takes along. To do so, we use Pommier's hypothesis (1993), to whom the manners adopted by someone as he/she learns how to write follow, metaphorically, the ways by which his/her subjectivation has happened. We work in the field of lacanian psychoanalysis, following those works that defend that it is necessary to administrate the singularity of the one who writes academic papers in order to construct a productive university. After data analysis, it was possible to verify that the academic advisor had to adopt five different functions to teach his students how to write academic texts: 1) advisor, 2) reader, 3) co-author, 4) reviser, and 5) agent of the real. Thus, we could confirm the so said difficulty of supervising writing works, and we also could have a more detailed understanding of the academic writing complexity.

Keywords: teach how to write; researchers formation; psychoanalysis.

INTRODUÇÃO

Aprender a escrever o texto acadêmico é um percurso ordinariamente pontuado por impasses das mais diversas ordens. Para contorná-los, o neófito conta com o trabalho do orientador, que não só lê o produto pronto como baliza a sua confecção. Como sua ação de ensinar a escrever o texto acadêmico se configura?

Para responder essa questão, tomamos como objeto de estudo as observações de um orientador de mestrado em uma área das ciências humanas que foram encontradas em rascunhos produzidos por duas informantes, ao longo de 36 meses de trabalho.

O corpus final foi composto por um total de 492 versões, número obtido somando o total de versões produzidas para cada capítulo escrito pelas alunas. Trabalhamos aqui com aquelas em que encontramos observações do orientador (155, ou seja, 31% do total de versões produzidas)1 1 Para um melhor detalhamento a respeito da composição total do corpus, confira Andrade, 2008. .

Tendo como pano de fundo as ações que, uma vez executadas pelo orientador, puderam incidir colaborativamente na confecção do texto de seus alunos, esmiuçamos o ato de orientar por meio da escrita. A partir de exemplos prototípicos, mostramos que o orientador exerceu sua função de cinco modos diferentes, configurando as seguintes posições enunciativas:

1) diretor de trabalhos;

2) leitor;

3) coautor;

4) revisor;

5) agente do real.

Pelo grande número de versões com as quais trabalhamos ao longo da pesquisa, pode-se mensurar o quanto o processo de escrita das duas alunas foi intenso, bem como o quanto foi marcado pela presença constante do orientador. Para organizar e classificar todos os rascunhos produzidos, a metodologia de trabalho utilizada inspirou-se naquela adotada pela área conhecida como crítica genética. Essa linha de investigação remonta a estudos que, desde o início da década de 1970, vêm sendo realizados com o intuito de apreender os procedimentos constitutivos da gênese de uma obra literária. (GRÉSILLON, 1994; GRÉSILLON E WERNER, 1985; WILLEMART, 1993).

É importante considerar que uma dissertação de mestrado consiste em um texto produzido, dentre outros motivos pessoais, para cumprir uma demanda institucional. Assim, aquele que escreve está sob condição de aluno, sob orientação de um professor, obrigado a cumprir prazos e, em certa medida, corresponder às expectativas com relação à qualidade do trabalho, tendo em vista uma equalização entre o produto apresentado e o seu nível de escolaridade.

Aproximamo-nos, portanto, do trabalho desenvolvido por Calil (2008), que se dedica especificamente ao estudo dos manuscritos escolares, compreendidos como todo e qualquer escrito mobilizado por uma demanda escolar, independentemente do suporte em que foi escrito. Pode-se dizer, portanto, que, em certa medida, nosso objeto de estudo é o manuscrito escolar, trabalho no qual aquele que escreve o faz na condição de aluno, tendo a instituição escola como o cenário que contextualiza e situa o ato de escrever (CALIL, 2008, p. 25).

Como destaca o autor, diferentemente do manuscrito literário, que é marcado por seu valor estético, o manuscrito escolar tem condições de produção específicas, seja ele feito em casa ou em sala de aula, quais sejam:

a) escreve-se a partir de uma posição de aluno;

b) escreve-se a partir de uma solicitação externa;

c) há uma forte limitação de tempo para produção;

d) há uma expectativa voltada para a aquisição das normas e regras da língua;

e) existe um tipo de avaliação, uma expectativa que visa equalizar o texto escrito de um aluno e seu nível de escolaridade.

São poucas as pesquisas que se voltam à correção de textos estudando manuscritos, como é o nosso caso. Dentre eles, destacamos o de Calil e Lopes (2007), no qual os autores analisam, numa perspectiva sociointeracionista, duas versões da reescrita da fábula "A formiga boa", que foi escrita por um aluno de segunda série, e o bilhete escrito por sua professora para ajudar o aluno na reescrita da primeira versão.

Em nosso caso, tendo a psicanálise de orientação lacaniana como campo em que trabalhamos, inserimo-nos na continuidade dos trabalhos que vêm defendendo a possibilidade do agenciamento da singularidade de quem escreve em direção a uma universidade produtiva (Cf. BARZOTTO, 1990, 2007; FABIANO, 2004, 2007; RIOLFI, 1999, 2000, 2001, 2006; RIOLFI e ALAMINOS, 2007).

1. O PROCESSO DE ESCREVER UM TEXTO: OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO QUAL PARTIMOS

Partimos do pressuposto de que existe uma especificidade no trabalho da escrita, especificidade esta que o torna fundamentalmente diferente das demais operações que se pode realizar com a linguagem, uma vez que seu exercício tem como resultado a construção de uma ficção textual (RIOLFI, 2003).

Fazer a escrita trabalhar não se resume a encontrar boas idéias, nem a planejar recursos expressivos para bem expressá-las nem a encontrar modos de realizar uma interação eficaz com o outro por meio do texto. Mas, ao ter podido ler o que não sabia que ia escrever, dar a ver, de forma ficcionalizada, a sequência na qual diversos fragmentos (textos lidos, experiências vividas, rumores e falas escutadas) compareceram para formar as idéias que compuseram a ficção textual.

A partir dessa formalização, compreendemos que o trabalho de escrita não consiste em algo que se instala espontaneamente, mas, muito ao contrário disso, necessita ser cuidadosamente causado e acompanhado por aqueles que se propõem a ensinar a escrever.

Posto isso, é necessário mobilizar uma teoria que permita interrogar em que lugar o orientador deve colocar-se na relação com seu aluno, para que seja possível exercer ações formativas. Para tanto, recorremos aqui a "O seminário sobre 'A carta roubada'", proferido por Lacan em 1956, quando o psicanalista privilegiou a problemática da linguagem visando investigar como uma "linguagem formal determina o sujeito" (p. 49).

Para ilustrar sua tese, Lacan recorreu a uma peça da literatura (A carta roubada, de Edgard Allan Poe), para defender que o funcionamento subjetivo está submetido às leis da linguagem. O conto relata a problemática de um chefe de polícia que recebeu a missão de recuperar uma carta recebida pela rainha cujo conteúdo supostamente feriria sua honra perante o rei e todo o povo. Essa carta lhe foi roubada de modo perspicaz por um ministro, o que a colocava em uma posição de estar à mercê da vontade do ladrão.

Incapaz de cumprir a missão, a polícia recorreu ao auxílio do sagaz Dupin, que "calculou" que, sendo o ministro poeta e matemático, sua atitude mais "provável" seria esconder a carta no último lugar que alguém procuraria: justamente no mais evidente, onde os policiais não a procurariam. Em um gesto rápido e cuidadosamente arquitetado, Dupin localizou e recuperou a carta.

Lacan utilizou essa historieta para explicar a submissão do sujeito à ordem simbólica. Sua argumentação deu a ver que, do mesmo modo que ocorreu com a carta, a trajetória do sujeito (aquilo que representa um significante para outro significante) é, em certa medida, decifrável, passível de ser capturada por meio do cálculo analítico. Nesse momento de sua elaboração, portanto, a atenção de Lacan se voltava ao que se repete e como, a partir dessa repetição, o analista pôde construir a lógica de funcionamento de um sujeito. Assim sendo, privilegiou o registro do simbólico diante do imaginário.

Para explicar como a ordem simbólica se reatualiza nas relações intersubjetivas, o psicanalista elaborou o Esquema L, que apresentamos na sequência.

Observando a figura, pode-se ver que o Esquema L é composto por quatro pontos unidos por dois segmentos que se cruzam. A figura deve ser lida da parte direita superior para a esquerda inferior, ou seja, do segmento que vai de a' até a. Trata-se do eixo denominado como relação imaginária. Trata-se da identificação comum aos homens e aos animais, de reconhecimento de si diante da imagem de seus semelhantes.

O eixo da relação imaginária é atravessado por outro que sai do ponto indicado por A em uma linha contínua que segue até o ponto S. Essa linha, que no Esquema L recebe o nome de inconsciente, se torna segmentada após atingir o eixo aa'.

Tomando como referência a compreensão por parte da criança sobre a sua própria imagem no espelho, é possível entender que a imagem que todo indivíduo tem a respeito de si se fundou na ratificação que o outro fez do da forma que ele pôde ver refletida. Esse fenômeno recebe o nome de "identificação imaginária". Trata-se do processo em que o "eu" é capturado por uma imagem externa e a toma como a sua essência. A relação que se estabelece nesse nível especifica uma relação dual que, por ser cativante, não impele à invenção de algo que esteja fora da miragem narcísica.

O outro eixo encontra-se atravessado por uma linha que, partindo de A, após atingir o seguimento aa', passa a ser pontilhada até o ponto em que termina apontando para S. Trata-se do eixo AS, que consiste no eixo simbólico. De acordo com o pensamento de Lacan nesse momento de sua elaboração, é o simbólico que, por meio da linguagem, pode atravessar a relação dual imaginária. Ao fazê-lo, instaura a possibilidade do advento do sujeito, que, ao emergir, se diferencia do "eu" ao qual o sujeito se identifica e, para além disso, pode construir, em um lugar vazio, um produto que faça passar no mundo sua singularidade.

Transpondo o conceito de identificação imaginária para a discussão a respeito da formação do pesquisador, pode-se exemplificá-lo por meio da figura do jovem pesquisador que chega ao mestrado trazendo alguns "modelos" preestabelecidos de como fazer uma pesquisa sem levar em conta o contexto de produção que encontrará ao construir o seu trabalho.

A identificação simbólica, por sua vez, é o processo por meio do qual um sujeito se identifica a um traço da pessoa que é copiada, e não à sua imagem totalizante. Nesse nível de identificação, o sujeito empresta "um significante que, na visão do sujeito, melhor caracteriza o objeto copiado como, por exemplo, tornar-se alegre como sua mãe, tornar-se rabugento como seu pai etc." (RIOLFI e ALAMINOS, 2007, p. 303).

Ao transpormos o Esquema L para o processo de orientação das informantes, é possível compreender que a ultrapassagem de uma identificação imaginária para uma simbólica é condição necessária para que um pesquisador se implique com a pesquisa.

Posto isso, explicitamos nossa partilha da hipótese de trabalho de Pommier (1993), segundo a qual os modos pelos quais alguém aprende a escrever atualizam, de forma metafórica, os caminhos por meio dos quais sua subjetivação se deu. Assim sendo, o trabalho de Brousse (1992, p. 65) ganha interesse. Retomando os primeiros trabalhos de Lacan, a autora explica que

[...] os laços entre a mãe e a criança não se conectam em sua duração com a nutrição do mamífero, mas variam em função da estrutura simbólica na qual ocorrem e se organizam. Ou seja, não é a partir da satisfação de uma necessidade alimentar, mas a partir da interrupção desta satisfação.

A origem da figura materna é então para Lacan, a partir desse texto, a perda de toda forma parasitária de cuidado - perda que se revela como primeira tanto em relação ao eu (moi) quanto em relação ao objeto. A saudade do seio materno, diz Lacan, é possível somente através de seu remanejamento no complexo de Édipo. Perda sem objeto, o desmame não é um traumatismo biológico, mas uma separação que faz o objeto existir. Se essa perda não ocorre - em outras palavras, se o par presença-ausência não se instaura -, a figura materna assume um "caráter mortífero", de que são testemunhos perturbações como a anorexia e os envenenamentos por certas toxicomanias da boca.

Pode-se dizer que, de modo análogo a um bebê que necessita passar pelas "leis de interdição" para que se construa a relação de filiação entre mãe-filho, quem pretende aprender a ser pesquisador também precisa experimentar a ausência da presença de um ser onipotente (o orientador imaginário), que poderia fornecer aquilo que ele não conquistou.

Em um primeiro momento, identifica-se com uma imagem de orientador como aquele que detém o saber do qual necessita para escrever. Entretanto, para poder produzir, é necessário atravessar a sedução oferecida por essa imagem. Ao fazê-lo, pode desistir de esperar que o outro faça em seu lugar o que deveria ser resultado de seu trabalho. Trata-se, então, de realizar duas ações:

1) fundar um lugar para si na linha de filiação na qual seu orientador um dia se inscreveu;

2) trabalhar para conquistar uma parceria de trabalho produtivo.

Na construção do texto acadêmico, portanto, o iniciante no processo de escrita precisa, necessariamente, se submeter às leis da linguagem e demais convenções estabelecidas socialmente para poder se reconhecido num ambiente acadêmico.

Assim sendo, para dar a ver os modos por meio dos quais um orientador trabalhou com duas de suas alunas, levando-as a sair de uma posição de alienação, no que se segue mostraremos quais foram as funções que exerceu ao longo do processo.

2. O ORIENTADOR COMO DIRETOR DE TRABALHOS

Nessa função, o orientador agencia a consecução dos trabalhos que são pressupostos pela lógica da pesquisa e de sua textualização. No corpus analisado, o orientador exerceu a função de diretor de pesquisa por meio da realização de nove operações, que passamos a descrever.

1) Instruções explícitas: trata-se da operação por meio da qual o orientador deu instruções diretas para a realização de alguma tarefa.

Exemplo 1

1. FAZ UMA CONCLUSÃOZINHA DAS QUATRO MODALIZAÇÕES E LINKA,

2. DIZENDO QUE VAI TENTAR, SEM TER BOLA DE CRISTAL, DISCORRER A

3. RESPEITO DOS ELEMENTOS QUE PODEM SER A CAUSA DE UMA OU DE

4. OUTRA POSIÇÃO.

2) Instruções que consideram o trabalho como um todo: trata-se da operação por meio da qual o orientador interfere no texto das alunas dando macroorientações, que não se restringiram a fragmentos do texto.

Exemplo 2

1. INSTRUÇÕES GERAIS PARA A DISSERTAÇÃO:

2. 1) PROCURE ESCREVER O ESSENCIAL E DEIXE DE LADO O ACESSÓRIO.

3. 2) FORNEÇA AO LEITOR OS ELEMENTOS MÍNIMOS PARA SEGUIR O SEU RACIOCÍNIO.

4. 3) EVITE AS GÍRIAS A TODO PREÇO.

5. 4) NÃO ESCREVA NADA QUE VOCÊ NÃO CONSEGUIRIA EXPLICAR EM VOZ ALTA PARA A BANCA.

6. 5) SEMPRE PERGUNTE OS PORQUÊS.

3) Montagem de um esqueleto do raciocínio a partir do qual o aluno pôde orientar- se para redigir: operação por meio da qual o orientador ajudou as alunas elaborando um roteiro para subsidiar a escrita do texto.

Exemplo 3

(NOME DO CAPÍTULO)

1. O CONCEITO DE (NOME DO CONCEITO) EM FREUD (PEGA DA 50 A 51).

2. (NOME DO CONCEITO) EM LACAN (DÊ A LUZ!!!).

3. SEI LÁ COMO, APROVEITE TUDO O QUE ESTAVA NO ANTIGO 05 (PP. 56-63).

4. AQUI VOCÊ APROVEITA O ANTIGO 52 A 55, COLOCANDO TAMBÉM O EXCERTO QUE VOCÊ JÁ DIGITOU.

4) Exigência, implícita ou explícita, de que a aluna se posicionasse em relação a alguma formulação diante da qual estava alienada: trata-se da operação pela qual o orientador convocou a aluna a dar consequência para suas formulações, de modo a posicionar-se diante do que escreve.

Exemplo 4

E DAÍ? O QUE VOCÊ CONCLUI DISsO? QUE RELAÇÕES FAZ?

Exemplo 5

QUAL A RELEVÂNCIA DESSA INFORMAÇÃO? EXPLIQUE PARA O LEITOR...

5) Utilização de recursos indiretos para levar a aluna a concluir, por si só, a necessidade de descartar determinadas partes do texto: trata-se da operação em que o orientador, de maneira implícita, levou o aluno a concluir quais partes do seu texto deveriam ser descartadas ou receber melhor investimento com relação aos modos de escrever.

Exemplo 6

FUI ARRUMANDO ATÉ AQUI.

No Exemplo 6, vê-se que o orientador interveio informando a aluna até onde havia trabalhado. Contudo, ao levar em conta o fato de que, nas raras vezes que o orientador deixava uma tarefa inconclusa, por exemplo, por falta de tempo, isso lhe era dito explicitamente. Desse modo, pôde-se perceber que se tratava de um modo indireto de o orientador apontar que o restante no texto ainda estava com uma elaboração muito precária para ser compartilhada com ele.

6) Apontamento de aspectos positivos do trabalho e estímulo a um melhor investimento com relação à redação: trata-se da operação por meio da qual o orientador reconheceu a pertinência de uma ideia da orientanda e solicitou investimento no refinamento de sua redação.

Exemplo 7

IDÉIA BOA. INVESTIR NUMA REDAÇÃO CAPRICHOSA.

Vê-se que o orientador destacou, emitálico, três termos: "idéia"; "investir" e "caprichosa", estabelecendo uma avaliação positiva para o raciocínio do aluno e uma negativa para a sua escrita.

7) Solicitação de distanciamento em relação ao trabalho: trata-se da operação por meio da qual o orientador atuou de forma a levar o aluno a incluir uma pausa entre a confecção de um texto e sua releitura.

Exemplo 8

1. AÍ, TÁ FICANDO BÃO!!!!!

2. DÁ UMA GARIBADA NO QUE PUDER AGORA, MAS NÃO ME MANDA. FAÇA DE CONTA QUE É

3. PÃO E DEIXA A MASSA CRESCER. DEPOIS, VOLTE PARA AS PARTES QUE FICARAM PRA TRÁS. BJS.

8) Solicitação de continuidade de uma ação que tenha sido deixada inconclusa: trata-se da operação por meio da qual o orientador convocou a aluna ao trabalho, indicando o que ainda precisaria ser feito para que pudesse concluir um raciocínio.

Exemplo 9

RESUMIR AQUI OS PRINCIPAIS ASPECTOS DO TEXTO DE FREUD EM UMAS 30 LINHAS.

Exemplo 10

SALA DOS PROFESSORES (FAZER UMA PEQUENA DESCRIÇÃO DO QUE É CADA UMA DAS SEÇÕES, SENÃO, FICA PERDIDO).

9) Correção de erros de conteúdo: trata-se de correções que refutam uma determinada formulação, incidindo especificamente sobre o conteúdo escrito, demandando uma postura de maior rigor por parte do aluno.

Exemplo 11

FAVOR CONFERIR O MANUSCRITO. NÃO FOI ISSO, EM HIPÓTESE ALGUMA, O QUE DITEI.

3. O ORIENTADOR COMO LEITOR

O orientador encarna a função de leitor ideal, auxiliando o escritor menos experiente a perceber a necessidade de reformular o escrito quantas vezes forem necessárias para realizar duas operações:

a) "incluir o outro", isto é, abandonar os seus preconceitos para poder considerar a perspectiva alheia no cálculo dos potenciais efeitos de sentido de seu texto nos leitores empíricos;

b) "assumir um lugar de enunciação", isto é, responsabilizar-se por uma dada escolha (lexical, sintática, estilística e assim sucessivamente) e trabalhar para poder convencer seus pares da pertinência da decisão.

No corpus analisado, o orientador exerceu a função de leitor por meio da realização de quatro operações, que passamos a descrever.

1) Solicitação de explicações de trechos confusos: operação por meio da qual o orientador aponta a necessidade de reescrever trechos que poderiam introduzir ruído no projeto textual mais amplo.

Exemplo 12

1. OBSERVANDO O QUADRO L, NOTA-SE QUE, ALÉM DE UMA DRAMÁTICA REDUÇÃO DO NÚMERO DE RELATOS

2. DE EXPERIÊNCIA, HOUVE TAMBÉM UM AUMENTO SIGNIFICATIVO NA PROPORÇÃO DO NÚMERO DE RELATOS

3. DO TIPO (XXXA) EM RELAÇÃO AOS RELATOS DO TIPO (XXXB).

EXPLICA ISSO MELHOR ANTES DE MUDAR DE ASSUNTO.

4. ESSA MUDANÇA DO TIPO DE RELATOS DE EXPERIÊNCIA MOBILIZADA NA DIVULGAÇÃO DO PADRÃO DE

5. DOCÊNCIA IDEAL SEGUNDO A REVISTA (NOME DO PERIÓDICO) REVELOU ESTAR ARTICULADA COM A

6. TRANSFORMAÇÃO NO MODO PELO QUAL AS PRÁTICAS DE ENSINO DE LÍNGUA MATERNA INCENTIVADAS NO

7. PERIÓDICO PASSARAM A SER APRESENTADAS AO LEITOR.

No excerto que acabamos de transcrever, no qual algumas partes do texto original foram substituídas por "XXX" para preservar a identidade do autor, o orientador encarnou um leitor que precisaria de maior auxílio para interpretar as linhas 1 a 3 de acordo com o projeto textual de seu aluno.

2) Apontamento, explícito, dos efeitos de sentido suscitados pelo texto que estão dissonantes com seu projeto argumentativo geral: trata-se de uma variação da primeira operação. Ainda do lugar de leitor ideal, o orientador salienta, por meio de apontamentos manuscritos, as passagens do texto que podem gerar estranheza, demandando maior cuidado para tratar de aspectos metodológicos e teóricos.

Exemplo 13

ESTES DOIS PARÁGRAFOS ESTÃO ESQUISITOS. PARECE QUE VOCÊ NÃO COMPREENDE QUE NÃO SE TRATA DA MESMA CONCEPÇÃO DE SUJEITO QUE A PSICANÁLISE.

3) Apontamento jocoso a respeito do efeito de sentido gerado pelo texto: trata-se de uma variação da primeira operação. De modo análogo, o orientador encarna um leitor que teria dificuldade com algum excerto do texto que produzia ruído no projeto textual mais amplo, mas, agora, por meio do humor.

Exemplo 14

QUE NEGÓCIO É ESTE AQUI? MUDOU DE ASSUNTO LEGAL E ME DEIXOU TONTO.

Uma variação dessa operação pode ser lida nos Exemplos 15 a 19, uma amostragem de um recurso utilizado muito frequentemente pelo orientador. Na presença de um fragmento do texto que julgava ser especialmente mal redigido, sublinhava-o com uma cor qualquer (geralmente amarelo) e, na sequência, afirmava não estar escrito em língua portuguesa e, sim, em algum idioma considerado mais difícil pelos brasileiros.

A análise dos dados permitiu concluir que a escolha dos "idiomas" por parte do orientador para classificar um dado excerto não era aleatória. Ao contrário, consistia em um indício a ser interpretado pelo aluno, visando ajudá-lo a localizar o seu texto em uma escala de legibilidade.

Exemplo 15

ARAMAICO MUITO ANTIGO.

Exemplo 16

ARAMAICO MODERNO.

Exemplo 17

ARAMAICO PRÉ-MODERNO.

Exemplo 18

GREGO MODERNO.

Exemplo 19

RUSSO.

4) Solicitação de continuidade de uma ação inconclusa: trata-se de o orientador assumir a causa do leitor e demandar ao escritor a realização de sua parte do trabalho.

Exemplo 20

REDIGITE O TEXTO, NUMERANDO AS LINHAS E RECUPERE CONVENIENTEMENTE.

4. O ORIENTADOR COMO COAUTOR

O orientador, ao perceber uma dificuldade acentuada por parte das alunas, exerceu a função de "coautor" no processo de escrita das orientandas, ora escrevendo uma primeira versão da formulação que julgava ser mais adequada naquele momento da elaboração, ora escrevendo partes novas do texto.

No corpus analisado, o orientador exerceu a função de coautor por meio da realização de três operações, que passamos a descrever.

1) Escrita da formulação mais adequada: trata-se da operação por meio de que o orientador rasurou determinado excerto escrito pelo aluno e forneceu uma sugestão de redação. Tomemos, inicialmente, o seguinte excerto, escrito pela mestranda: "Se a injunção para aderir não varia (caracterizando monossemia) a proposta da vez o faz, o que acaba por caracterizar a polissemia". Posto isso, leia-se a reformulação do orientador.

Exemplo 21

1. A SEGUNDA HIPÓTESE QUE FORMULEI DURANTE A ANÁLISE DO CORPUS FOI QUE A IMPRESSÃO FALACIOSA

2. DE PLURALIDADE QUE UMA LEITURA SUPERFICIAL DEMONSTRA SE DEVE JUSTAMENTE AO FATO DE QUE,

3. EVIDENTEMENTE, MUITOS SIGNIFICANTES PODEM PREENCHER O LUGAR DE "X".

4. ENTRETANTO, A VANTAGEM DE PASSAR O OLHAR PARA OUTRO LADO PERMITIU, JUSTAMENTE, PERCEBER

5. QUE ESSA APARENTE POLISSEMIA OCULTA UM AUTORITARISMO MONOSSÊMICO POTENTE CONQUANTO

6. VELADO. SE VARIA AQUILO QUE ALGUÉM PODE ADERIR PARA SE TORNAR UMA PROFESSORA NOTA DEZ, O

7. IMPERATIVO PARA ADERIR É INVARIÁVEL.

A intervenção do orientador, realizada durante uma sessão de orientação, desdobrou-se nas seguintes ações:

1) a avaliação do trecho apresentado pela aluna como insuficiente;

2) a solicitação de que a aluna fizesse uma leitura em voz alta;

3) a solicitação para que a aluna lhe explicasse o que havia tentado escrever no excerto apresentado;

4) a eliminação das linhas escritas pela aluna;

5) a passagem da explicação oral para uma forma escrita condizente com o registro acadêmico.

2) Escrita de partes novas do texto de modo a colaborar com o raciocínio do aluno: trata-se da operação por meio de que o orientador deu consequência à determinada formulação do aluno.

Exemplo 22

1. É INTERESSANTE RESSALTAR QUE O PRÓPRIO PERCURSO DE PESQUISA REVELOU O QUANTO A PRÁTICA

2. PEDAGÓGICA TEM UMA FACETA CEGA. IMERSOS EM UM FAZER DURANTE O QUAL NÃO SOBRA TEMPO

3. PARA UM NECESSÁRIO DISTANCIAMENTO, AS HIPÓTESES FORMULADAS PELO PROFESSOR TENDEM A SE

4. FUNDAR EM SEUS PRECONCEITOS E NÃO SEREM PRODUTOS DE UMA POSIÇÃO INVESTIGATIVA DIANTE DA

5. REALIDADE. EXPLICO-ME. COMPREENDENDO "X" COMO PRESENÇA DE SUBJETIVIDADE,

6. MEU PONTO DE PARTIDA FOI A HIPÓTESE DE QUE NOS TEXTOS DE BOA PARTE DOS ALUNOS COM QUEM

7. TINHA CONTATO (TODOS CURSANDO O ENSINO FUNDAMENTAL) ELAS ESTARIAM PRESENTE.

O fragmento que acabamos de transcrever foi produzido durante uma reunião de orientação. Ao ler o que a aluna tinha escrito nas linhas 6 e 7, o orientador escreveu o fragmento que vai das linhas 1 a 5. Trata-se de um trecho em que ele escreveu o seguimento do raciocínio da aluna, sobre o qual ela sabia falar, mas não conseguia escrever.

3) Realização de um modelo para facilitar a execução de tarefas análogas: trata-se da operação por meio da qual o orientador, ao perceber a dificuldade da orientanda para a realização de alguma tarefa, fez um modelo para facilitar-lhe a execução de tarefas de mesma natureza.

Leia-se, preliminarmente, um excerto do texto apresentado pela orientanda, no qual, para manter a identidade da informante, um excerto de seu texto foi substituído por (Y):

1. TOMANDO COMO EXEMPLO O EXCERTO A SEGUIR [...] PODEMOS ELENCAR CINCO AÇÕES PARA SER (Y):

2. 1) TRABALHAR COM A TEORIA CONSTRUTIVISTA (LINHAS 5 E 6).

3. 2) PARTICIPAR DE CURSOS DE FORMAÇÃO (LINHAS 9 E 10).

4. 3) INSISTIR NO CONHECIMENTO CONTIDO NOS LIVROS, A DESPEITO DA REALIDADE (LINHAS 24 A 26).

5. 4) FAZER O QUE SEU MESTRE CAPACITADOR MANDAR (LINHAS 28 E 29).

6. 5) TRABALHAR COM PROJETOS (LINHAS 34 E 35).

Após ler esse excerto, o orientador riscou com caneta todo o trecho e rabiscou ao lado: "substituir pela folha das poderosas", referindo-se a marca d'água com motivos referentes a um desenho animado da época contida nas folhas de fichário que serviu de suporte para as anotações escritas pelo orientador. Na sequência, transcrevemos apenas a primeira de um total de quatro páginas escritas pelo orientador.

Exemplo 23

1. VOCÊ PULOU MUITO!

2. VAMOS LER MELHOR.

3. LINHAS 1 E 2: SER CAPAZ DE PERCEBER (OU ATRIBUIR)

4. UMA LACUNA NA FORMAÇÃO PRÉVIA

5. DE SEUS ALUNOS.

6. LINHAS 2 A 5: EMPREENDER UMA AÇÃO PARA DESCREVER

7. AS MATIZES DA LACUNA ENCON-

8. TRADA. NO CASO ESPECÍFICO

9. AQUI ANALISADO, TRATA-SE DE UMA

10. ABORDAGEM QUANTITATIVA, ALIÁS,

11. BEM POUCO EXATA, QUE SEPARA OS

12. 24 ALUNOS NOS SEGUINTES GRUPOS:

13. - 11 QUE NÃO LEEM NEM ESCREVEM

14. - ALGUNS (?) QUE SABEM IDENTIFICAR

15. LETRAS E SEUS RESPECTIVOS SONS;

16. - OUTROS (?) QUE "EMENDAM PALA-

17. VRAS" NA HORA DE PRODUZIR TEXTOS.

18. LINHAS 5 E 6: USAR PROCEDIMENTOS "CIENTÍFICOS"

19. PARA AVALIAR E MENSURAR OS

20. RESULTADOS DE UMA DADA AÇÃO. NA

21. LINHA 6, DESTACA-SE INCLUSIVE O

22. USO DE UMA PROPOSIÇÃO UNIVERSAL

23. AFIRMATIVA "COMO TODO DOCENTE

24. SABE", SEGUIDA DE UMA

25. UNIVERSAL NEGATIVA "NÃO EXISTE

26. UMA CLASSE HOMOGÊNEA".

27. ATENÇÃO A ESTE MECANISMO, DEVE TER MAIS...

5. O ORIENTADOR COMO REVISOR

O orientador assumiu a função de revisor dos textos de suas alunas, interferindo tanto em aspectos relacionados à formatação e edição dos textos quanto também exercendo intervenções de âmbito textual. No corpus analisado, o orientador exerceu a função de revisor por meio da realização de três operações, que passamos a descrever.

1) Servir de prótese sensorial: trata-se da operação por meio da qual o orientador se viu convocado a fazer suplência ao olhar das informantes, fornecendo-lhes alguns apontamentos que lhe permitiam ver o que, sem auxílio, lhes era invisível.

Exemplo 24

(NOME DA ALUNA), TEM ALGO ERRADO COM A COLAGEM DESTE QUADRO. O TEXTO ESTÁ DESAPARECENDO. VERIFIQUE.

Exemplo 25

CONFIRA TIPO DE FONTE E ESPAÇO.

2) Solicitação de apuro estético: trata-se da operação por meio da qual o orientador solicitou às alunas que cuidassem da estética do texto, como demonstram os exemplos 26 e 27, ambos manuscritos.

Exemplo 26

FAZ BONITO (COM RELAÇÃO À CAPA DA DISSERTAÇÃO).

Exemplo 27

ARRUMA O SUMÁRIO BONITINHO.

3) Corte de excessos: operação por meio da qual o orientador cortou as partes que julgou ser excesso no texto, tanto por já estarem escritas em outra parte do trabalho quanto porque tiravam força argumentativa da reflexão.

Exemplo 28

1. O PRESENTE CAPÍTULO, NO QUAL APRESENTO AS CONSIDERAÇÕES QUE PONTUAM O FIM DE ESTUDO QUE

2.REALIZEI A RESPEITO DA DIVULGAÇÃO DO MODELO DE PROFESSORA IDEAL NA REVISTA XXX, PORTA

3. UM DESEJO: O DE FAZER UM CONVITE.

O orientador reduziu a uma linha o que a aluna tinha escrito em três, cortando uma afirmação óbvia (linha 1) e uma informação que julgou não ser necessário retomar (linha 2).

6. O ORIENTADOR COMO AGENTE DO REAL

O orientador intervém mais na posição subjetiva de suas alunas do que no texto ou na pesquisa propriamente dita. Ao nomearmos essa última função do orientador, estamos fazendo referência a uma das instâncias que, para Lacan, compõem o aparelho psíquico humano (1972-1973). Em poucas palavras:

1) o simbólico: conceito que se refere à lei combinatória que organiza os significantes e sua circulação na cultura.

2) o imaginário: conceito que se refere à dimensão daquilo que é apreensível dos objetos por meio dos órgãos dos sentidos ou que pode ser projetado para além do contato sensorial;

3) o real: conceito que remete a tudo o que não pode ser recoberto por intermédio das imagens ou das palavras.

Dizendo de outro modo, imaginário e simbólico dão os contornos de uma pessoa. O imaginário o faz porque se funda na imagem que a pessoa tem de si mesma, dos outros e das diversas tarefas que realiza. Por sua vez, o simbólico fixa a identidade de alguém porque a linguagem, como estrutura que conjuga metonímia e metáfora, fornece um padrão de subjetivação que se repete, em uma sequenciação passível de ser analisada. Por sua vez, o real é aquilo que excede aos contornos identitários. Trata-se do resto da constituição do sujeito, o que não pode ser capturado nem pela imagem nem pela linguagem.

O orientador, portanto, ao funcionar como "agente do real" de suas alunas, age como aquele que exige consequência do trabalho de cada uma. Ele aponta a necessidade de as alunas assumirem uma posição ativa e rigorosa diante da pesquisa, para que ele aceitasse continuar a parceria de trabalho. Leva-as a abandonar uma lógica narcisista, para construir uma que propicie uma maior circulação de seu trabalho na cultura.

No corpus analisado, o orientador exerceu a função de agente do real por meio da realização de cinco operações, que passamos a descrever.

1) Recusa do produto apresentado pela aluna: trata-se da recusa explícita, por parte do orientador, de uma dada formulação julgada inaceitável a ponto de não merecer avaliação.

Exemplo 29

(NOME DA ALUNA), VOU PARAR DE LER PQ TO VENDO QUE VOCÊ AINDA NÃO FEZ O QUE JÁ COMBINAMOS ANTES. SE NÃO FEZ, PQ ME MANDOU DE NOVO???

2) Refutação de uma dada formulação da aluna por meio da manifestação de uma grande estranheza: trata-se dos momentos nos quais o orientador se utilizou de um modo pouco canônico para mostrar a precariedade de uma dada formulação da aluna, em especial mas não exclusivamente, por meio da adoção de um registro irreverente e pouco habitual no meio acadêmico.

Exemplo 30

NÃO ENTENDI PICAS!!! ESSE ENUNCIADO FOI DIGITADO APÓS O SEGUINTE FRAGMENTO DO TRABALHO APRESENTADO PELA ALUNA:

1. (DÁ PRA ESTUDAR O JOGUINHO QUE SE FORMA PORQUE NÃO DÁ PRA SABER

2. SE O MOÇO SEREFEIRU A REVISTA EM GERAL E TAMBÉM PELO FATO DA

3. CERTEZA SER PUBICADA NJUNTAMTNE COM OUTRA, QUE EM QUA LEITORA

4. DIZ DECEPCIONADA POR NAÕA PÓDER ÇER AS REFLEXOES DE E. BUCCI DO

5. JULIO GROPPA AQUINO, SOB O TITULO SAUDADE DOS COLUNISTAS (SIC)

3) Indicação da necessidade de maior responsabilização por parte da informante: trata-se da operação por meio da qual o orientador convoca a orientanda a uma maior autonomia, mostrando-lhe, de um modo direto, a necessidade de se responsabilizar pelo seu próprio trabalho.

Exemplo 31

1. MINHAS CONSIDERAÇÕES FINAIS:

2. TRABALHANDO BASTANTE, DÁ PRA FAZER UMA BELA QUALIFICAÇÃO. TRABALHEI UM MONTE NO

3. TEU TEXTO E, AGORA, VOCÊ PASSA PRA CATEGORIA "NÃO ME ENCHE". TENHO QUE CUIDA DA

4. (NOME DA OUTRA ORIENTANDA). SE VOCÊ QUISER TIRAR ALGUMA DÚVIDA PONTUAL, VENHA

5. QUINTA, 27 DE ABRIL, ÀS 14H00.

O excerto que acabamos de reproduzir consiste em um bilhete escrito pelo orientador, ao avaliar o relatório de qualificação da aluna. Após ter elevado os comentários feitos ao longo do trabalho à categoria de texto por meio da nomeação "Considerações finais", o orientador avaliou positivamente o texto da orientanda (linha 2) e convocou a aluna para trabalhar de modo autônomo (linha 3).

Na sequência, o orientador deu uma desculpa qualquer para que a orientanda percebesse que ele não ia fazer o trabalho para ela e, tampouco, tomar para si a angústia da aluna (linhas 3 e 4). Finalmente, disponibilizou um dia e horário na sua agenda para que a aluna a procurasse no prazo de aproximadamente uma semana (linhas 4 e 5).

4) Indicação da necessidade de desenvolver o que tinha escrito sinteticamente: trata-se da operação por meio da qual o orientador impediu que a orientanda continuasse a oferecer sempre menos do que o necessário, para que outras pessoas pudessem acompanhar a reflexão desenvolvida.

Exemplo 32

ESTA PÁGINA NÃO TÁ LEGAL. REESCREVA TRIPLICANDO. FICOU "ECONÔMICO" DEMAIS.

5) Apontamento de aspectos positivos do trabalho e estímulo a maior investimento com relação à redação: trata-se do reconhecimento da pertinência de uma ideia e da solicitação de maior investimento na continuidade da elaboração.

Exemplo 33

1. ESTÁ FICANDO MUUITO BOM!

2. O TRABALHO COM OS TEXTOS AINDA ESTÁ PRECÁRIO. FAVOR DIGITAR OS TEXTOS. UMA OUTRA IDEIA

3. PODE SER BEM INTERESSANTE: PEGUE TODOS OS TEXTOS (TÍTULO DA REDAÇÃO) E VAMOS MOSTRAR

4. POR QUE OS DOIS SELECIONADOS SÃO DIFERENTES.

O exame dos 33 exemplos aqui selecionados nos permitiu uma visão mais detalhada do que costumeiramente é referido como a complexidade do ato de ensinar a escrever um texto acadêmico.

Por meio do exame do corpus, a dificuldade de escrever um texto sem ajuda intensa de uma presença alheia se destacou. A quantidade de ações realizadas pelo orientador indica-nos que ensinar a escrever um texto acadêmico é um processo multifacetado, que não se limita ao exercício de ações previamente estabelecidas. Para além delas, exige a necessidade de imputar ao aluno a responsabilização por aquilo que ele escreve.

Ao se deparar com uma escrita que não condizia com o modelo acadêmico, o orientador fez um acompanhamento caso a caso, atitude que já indica uma primeira característica necessária à formação do pesquisador da área de humanas: a consideração de sua singularidade.

Outro fator a ser considerado é a necessidade de constância por parte do orientador. Nos casos aqui analisados, ele acompanhou o processo de escrita de suas alunas por quase três anos e fez intervenções nos textos durante todo esse período, desde as primeiras versões dos capítulos até as últimas. Mesmo sabendo que os resultados de seu trabalho não eram garantidos, dentro dos limites de sua ação, o orientador assumiu a responsabilidade de trabalhar para que suas alunas tivessem outra postura diante do saber.

Nessa direção, podemos dizer que o trabalho do orientador aqui descrito é análogo ao que o filósofo Hans Jonas (1979) nomeou de "coragem para assumir a responsabilidade". Segundo o autor, uma das condições necessárias para o trabalho responsável é não se deixar deter pela incerteza diante do duvidoso.

Resumindo, verificamos que as intervenções feitas pelo orientador visaram levar suas alunas a

1) considerar a presença do outro ao escrever;

2) articular as partes de seus enunciados de modo que o texto formasse um todo orgânico;

3) fazer escolhas lexicais, sintáticas e argumentativas; e finalmente

4) se responsabilizar pelo próprio trabalho.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos este texto com a seguinte questão: Como se configura a ação do orientador, ao ensinar a escrever o texto acadêmico? Para respondê-la, ao longo do trabalho, descrevemos as diversas ações realizadas pelo orientador para auxiliar suas alunas na confecção da dissertação.

A análise dos dados permitiu ver que a tarefa do orientador se desdobrou em vários níveis enunciativos, mas sempre no sentido de levar as alunas a sair de uma lógica metonímica (com predominância de progressão linear) e construir uma metafórica (com predominância de retroação), a partir da qual pudessem alcançar maior autonomia no que se refere à construção do texto acadêmico.

Mostramos que o orientador que pretende participar da formação intelectual de seu aluno precisa deixar de medir esforços e investir seu tempo e seu próprio corpo para que seu aluno possa tornar-se permeável o suficiente para que o escrito trabalhe nele. Deve levá-lo a perceber que não pode insistir com falsas esperanças com relação a não precisar trabalhar.

O resultado do trabalho do orientador, no processo de orientação das alunas, pode ser notado ao verificar que ambas as mestrandas terminaram a dissertação e foram aprovadas com êxito pela banca de defesa. Para além desse resultado visível, é preciso considerar outro: a possibilidade de cada uma ter-se identificado a um lugar simbólico a partir do qual passaram a escrever.

Finalmente, por meio do estudo das operações realizadas pelo orientador no texto das alunas, pudemos notar não somente a complexidade que envolve o ato de orientar um trabalho, como também a complexidade que consiste o ato de escrever um texto, exigindo daquele que se dispõe a escrever a possibilidade de sempre (se) reler, (se) rever e se reescrever.

Recebido: 6/7/2008

Aceito: 16/2/2009

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    Para um melhor detalhamento a respeito da composição total do
    corpus, confira Andrade, 2008.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      16 Fev 2009
    • Recebido
      06 Jul 2008
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