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Intertext(sex)ualidade: a construção discursiva de identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis

Intertext(sex)uality: the discursive construction of identities in safer sex outreach work among travestis

Resumos

Com base em uma perspectiva não-representacional/não-essencialista das relações entre linguagem e identidades sociais (MOITA LOPES, 2003; 2006a), o presente artigo descreve a construção de identidades de gênero e sexualidade em intervenções para distribuição de preservativos entre travestis que se prostituem em uma região urbana do sul do Brasil. Durante as intervenções, Sandra e Márcia, duas mulheres que têm se construído em categorias identitárias hegemônicas/tradicionais (brancas, de classe média, heterossexuais e escolarizadas), engajam-se em interações nas quais produzem discursivamente identidades não-tradicionais, o que parece engendrar um processo de adequação (BUCHOLTZ e HALL, 2004) de suas identidades às travestis e ao contexto onde se inserem (i.e. territórios de prostituição). Guiado por teorias de Wittgenstein (2005) e Bakhtin (2003, 2004), argumento que essa produção de múltiplas identidades só é possível pelo caráter intertextual das identidades sociais (HALL, 2005). Sandra e Márcia utilizam intertextos que as constroem como participantes do universo das travestis, posicionando-se como travestis, como clientes de travesti e como prostitutas e, assim, parecem ajustar discursivamente suas identidades às suas interlocutoras. Com esse pano de fundo, discute-se a importância de aproximar a Lingüística Aplicada da prevenção de DST/AIDS.

sexualidade; gênero social; intertextualidade; travestis; sexo seguro


Guided by a non-representational/non-essencialist perspective on languagem-use and identity (MOITA LOPES, 2003; 2006a), this article investigates the construction of gender and sexual identities in interactions drawn from safer-sex outreach work among travestis who prostitute themselves in an urban area in southern Brazil. During the safer-sex outreach work, Sandra and Márcia, two women who have constructed themselves as members of hegemonic/tradicional identity categories (white, middle class, heterosexual, schooled), discursively produce non-traditional identities in a process of adequation (BUCHOLTZ and HALL, 2004) of their subject positions to the travestis' and to the context of the interactions. Based on Wittgenstein's (2005) and Bakhtin's (2003, 2004) theories, I argue that the discursive production of identities is only made possible because of the intertextual aspect of social identities (HALL, 2005). Sandra and Márcia make use of intertexts that construct them as participants of the travestis' universe. The safer-sex outreach workers position themselves through their utterances in identity categories such as travesti, travesti's client, and prostitute and, thus, seem to discursively adjust their subject positions to their transgendered interlocutors. With this background, this paper dicusses the possibility of bringing Applied Linguistics closer to STD/AIDS prevention practices.

sexuality; gender; intertextuality; travestis; safer sex


ARTIGOS

Intertext(sex)ualidade: a construção discursiva de identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis

Intertext(sex)uality: the discursive construction of identities in safer sex outreach work among travestis

Rodrigo Borba

UFRJ, Rio de Janeiro (RJ), Brasil, E-mail: borba.rodrigo@terra.com.br

RESUMO

Com base em uma perspectiva não-representacional/não-essencialista das relações entre linguagem e identidades sociais (MOITA LOPES, 2003; 2006a), o presente artigo descreve a construção de identidades de gênero e sexualidade em intervenções para distribuição de preservativos entre travestis que se prostituem em uma região urbana do sul do Brasil. Durante as intervenções, Sandra e Márcia, duas mulheres que têm se construído em categorias identitárias hegemônicas/tradicionais (brancas, de classe média, heterossexuais e escolarizadas), engajam-se em interações nas quais produzem discursivamente identidades não-tradicionais, o que parece engendrar um processo de adequação (BUCHOLTZ e HALL, 2004) de suas identidades às travestis e ao contexto onde se inserem (i.e. territórios de prostituição). Guiado por teorias de Wittgenstein (2005) e Bakhtin (2003, 2004), argumento que essa produção de múltiplas identidades só é possível pelo caráter intertextual das identidades sociais (HALL, 2005). Sandra e Márcia utilizam intertextos que as constroem como participantes do universo das travestis, posicionando-se como travestis, como clientes de travesti e como prostitutas e, assim, parecem ajustar discursivamente suas identidades às suas interlocutoras. Com esse pano de fundo, discute-se a importância de aproximar a Lingüística Aplicada da prevenção de DST/AIDS

Palavras-chave: sexualidade; gênero social; intertextualidade; travestis, sexo seguro.

ABSTRACT

Guided by a non-representational/non-essencialist perspective on languagem-use and identity (MOITA LOPES, 2003; 2006a), this article investigates the construction of gender and sexual identities in interactions drawn from safer-sex outreach work among travestis who prostitute themselves in an urban area in southern Brazil. During the safer-sex outreach work, Sandra and Márcia, two women who have constructed themselves as members of hegemonic/tradicional identity categories (white, middle class, heterosexual, schooled), discursively produce non-traditional identities in a process of adequation (BUCHOLTZ and HALL, 2004) of their subject positions to the travestis' and to the context of the interactions. Based on Wittgenstein's (2005) and Bakhtin's (2003, 2004) theories, I argue that the discursive production of identities is only made possible because of the intertextual aspect of social identities (HALL, 2005). Sandra and Márcia make use of intertexts that construct them as participants of the travestis' universe. The safer-sex outreach workers position themselves through their utterances in identity categories such as travesti, travesti's client, and prostitute and, thus, seem to discursively adjust their subject positions to their transgendered interlocutors. With this background, this paper dicusses the possibility of bringing Applied Linguistics closer to STD/AIDS prevention practices.

Keywords: sexuality; gender; intertextuality; travestis; safer sex.

VOZES INICIAIS

Há aproximadamente três décadas, testemunhamos o surgimento da epidemia causada pelo vírus HIV, que, desde então, tem provocado um interesse coletivo acerca de como exercemos nossa sexualidade. Nossas práticas sexuais nunca foram tão visadas por discursos públicos e privados que têm construído regimes de verdade (FOUCAULT, 1996) sobre como indivíduos podem, ou não, agir em grupos considerados de risco. Dentro desse afã discursivo, governos têm tentado conscientizar a população sobre a AIDS e sobre como se distanciar da possibilidade de ser por ela atingido. No contexto brasileiro, o Governo tem se ocupado, desde o final da década de 1980, da conscientização da população através de grandes investimentos em projetos publicitários e sociais que visam a espalhar a necessidade do sexo seguro (PARKER, 2002; UZIEL, RIOS & PARKER, 2004). Desde então, tem-se patrocinado e orientado projetos de ONGS-AIDS que, das mais variadas formas, vêm tentando minimizar os riscos de contaminação entre grupos considerados de risco.

É nesse contexto que esta pesquisa se situa. Baseado em dados gerados durante 12 meses de trabalho de campo nos anos de 2003 e 2004, trago à baila uma discussão sobre intervenções elaboradas pela ONG Liberdade1 1 Por motivos de cunho ético, utilizo pseudônimos para me referir às informantes e aos nomes dos lugares envolvidos na pesquisa. entre travestis que se prostituem em uma região urbana do sul do Brasil, a que chamo Cidade do Sul. Durante as intervenções, duas mulheres empregadas na ONG, Márcia, a secretária, e Sandra, a advogada, entregam preservativos às travestis2 2 Utilizo o feminino gramatical ao me referir às travestis durante o texto. Além de um posicionamento político, essa escolha converge com o uso feito por travestis nas mais diferentes localidades do Brasil na tentativa de construir sua identidade discursiva de acordo com sua performance de gênero (BUTLER 2003). Para uma discussão sobre o assunto ver Borba e Ostermann (2007). e constroem interações que são estruturadas a partir da negociação de identidades de gênero e sexualidade entre interventoras e as travestis com quem trabalham. Durante tais interações, as interlocutoras, engajam-se em projetos locais e sequenciais de construção de suas identidades sociais, ecoando vozes do universo trans (BENEDETTI, 2005) e engajando-se em projetos temporários de negociação, re-negociação e administração de suas posições de sujeito ao contexto onde se inserem. Veremos, assim, que a produção de identidades é uma ação intertextual par excellence, no sentido de que, para construírem-se como seres sociais, as interventoras apropriam-se de vozes, que não pertencem a seu repertório de identidades cotidiano (KROSKRITY, 2000) para se movimentarem na zona de batalha.3 3 Termo êmico utilizado pelas travestis para se referirem ao ato da prostituição.

1. VOZES DA BATALHA: CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA

Por viverem nos limiares discursivos dos gêneros, as travestis têm sido marginalizadas e impedidas de levar suas vidas fora da prostituição. Preconceito, violência, estigmatização e a impossibilidade de viver "durante o dia" levaram um grupo de travestis, politicamente engajadas, a estruturarem uma organização não-governamental que visa à melhoria das perspectivas sociais das travestis na Cidade do Sul. Inaugurada em 1999, por um grupo de travestis politicamente engajadas e insatisfeitas com as políticas assistencialistas, quase inexistentes, orientadas para as travestis profissionais do sexo da Cidade do Sul, a ONG Liberdade é dirigida por travestis, contudo, duas mulheres, que se constroem como heterossexuais de classe média, trabalham na ONG com funções burocráticas essenciais para o desenvolvimento eficiente de seus projetos. Durante os anos de 2003 e 2004, realizei observações não-participantes do dia-a-dia da ONG, acompanhando suas práticas e seus projetos. As práticas diárias que constituem o universo social da ONG Liberdade foram gravadas em áudio e transcritas.

Para o presente estudo, analiso especificamente os dados gerados durante o projeto de intervenção para prevenção de DST/AIDS entre as travestis que se prostituem na Cidade do Sul. Esse corpus foi gerado no período de setembro a dezembro de 2003. Durante esses meses, acompanhei a equipe em cinco intervenções, que foram gravadas e transcritas, após obter as assinaturas dos termos de consentimento informado das interventoras e das travestis, que se disponibilizaram a participar da pesquisa. Essas intervenções ocorriam às terças-feiras à noite, caso não chovesse ou o carro da ONG estivesse em bom funcionamento. Sessenta interações entre interventoras e travestis foram gravadas totalizando 10 horas de gravação.

2. AS VOZES DE WITTGENSTEIN E BAKHTIN E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA OS ESTUDOS DA LINGUAGEM

Grosso modo, desde sua inauguração, em meados de século 19, a ciência linguística tem se preocupado em estudar, sincronicamente, a estrutura das línguas e os sistemas que as constituem. Pari passu com o estruturalismo positivista em voga nesse período, os estudiosos da linguagem, à época, postulavam que a linguística deveria ocupar-se da descrição minuciosa da estrutura da língua nos mais diversos níveis: fonológico, morfológico, sintático, etc. Influenciada pela tradição essencialista, que há muito guiava o pensamento das Ciências Humanas (Cogito, ergo sum!), essa visão da linguagem como um sistema formado por outros subsistemas a serem analisados guiou grande parte dos estudos linguísticos desde então. Seguindo essa perspectiva, linguistas acreditavam que (1) os significados são entidades autônomas, i.e. com uma existência independente da realidade extra-linguística; (2) que a função precípua da linguagem é representar tais significados, a linguagem servindo, assim, como um representante que liga o mundo real ao linguístico; e (3) que a interação é primordialmente baseada em operações mentais de tradução e interpretação (MARTINS, 2000; FABRÍCIO, 2002).

No entanto, Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas (2005 [1953]) contesta a perspectiva representacional proposta por linguistas e filósofos da linguagem filiados à tradição representacional/essencialista da linguagem. Com a revolução wittgensteiniana na filosofia da linguagem "referir passa a ser apenas uma entre as inúmeras facetas da linguagem" (MARCONDES, 2000). Martins (2000:27) observa que "ao criticar a idéia de que 'damos nomes às coisas para podermos falar delas', Wittgenstein nos convida [...] a constatar as inúmeras outras funções que motivam o uso da linguagem, salientando [...] que 'falar das coisas' é somente uma delas, e [...] que, na maioria das vezes, nos referimos às coisas enquanto fazemos as mais diversas coisas com nossas sentenças". Destarte, a linguagem é, nessa perspectiva, um tipo de ação, uma atividade, um comportamento, uma forma de vida em que agimos e tomamos parte. Com isso, Wittgenstein enfatiza que a linguagem é um fenômeno social por excelência.

Ao invés de representar o mundo, a linguagem passa a ter um papel constitutivo, isso quer dizer que, ao contrário da visão tradicional da linguística à época de sua consolidação como campo do saber, não falamos A, B ou C porque somos X, Y ou Z. A partir dessa perspectiva, constituímo-nos como X, Y ou Z ao falarmos A, B ou C. A perspectiva não-representacional proposta por Wittgenstein é basilar para os estudos sobre as identidades sociais. Com ela, nega-se a existência de um significado e uma identidade dados a priori, anterior à práxis lingüística. Segundo o filósofo, "o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem" (Investigações Filosóficas, proposição 43). Devemos, então, adotar uma atitude pragmática com relação à linguagem (CONDÉ, 1998) e sua relação com as identidades sociais na qual o uso é a força motriz para o processo de significação e construção de posições de sujeito.

A visão da linguagem como fenômeno indissociável de seu contexto de produção sócio-cultural é também compartilhada por Mikhail Bakhtin e seu círculo. Em suas obras (BAKHTIN (1997; 2003; 2004), a relação de representação estabelecida entre língua e mundo extralingüístico, o leitmotiv dos estudos lingüísticos à época, é deixada de lado, pois Bakhtin e seus parceiros interessam-se pelo uso, ou seja, pela emissão, pela produção, pelo discurso produzido e compartilhado por seres humanos em sociedade. O círculo de Bakhtin centra sua atenção sobre "o fato de que a linguagem não é falada no vazio, mas numa situação histórica e social concreta no momento e no lugar da atualização do enunciado" (BRAIT, 1997:97). Desse modo, Bakhtin sugere que a linguagem é um fenômeno social que emerge em contextos locais de uso de língua. Para o autor, o papel principal da linguagem é a comunicação (que é sempre considerada em seu contexto sócio-histórico-cultural). Comunicar-se implica agir dialogicamente, i.e. em diálogo com interlocutores que estão situados sócio-historicamente.

Bakhtin (2003) assevera que nenhum enunciado pode ser apenas atribuído a quem o falou, pois qualquer enunciado é sempre produzido em relação dialógica. Isso significa que ao emitir um determinado enunciado, o/a falante inevitavelmente o direciona a um/a destinatário/a que, com suas marcas sócio-históricas de gênero, classe social, poder, etc, molda, a priori, sua produção. Cada enunciado pertence imanentemente à interação entre falante e ouvinte, pois tanto produtor/a de determinado enunciado quanto seu/sua receptor/a são participantes ativos de sua emissão. O primeiro o articula em palavras, o último o molda com seu status sociointeracional. Segundo o autor,

A palavra [ou enunciado] é interindividual. Tudo o que é dito, o que é expresso, se encontra fora da 'alma' do falante, não pertence apenas a ele. A palavra não pode ser entregue apenas ao falante. O autor (falante) tem seus direitos inalienáveis sobre a palavra, mas seu ouvinte também tem os seus direitos; também têm seus direitos aqueles cujas vozes estão na palavra encontrada de antemão pelo autor [...]. A palavra é um drama do qual participam três personagens (não é um dueto, mas um trio) (BAKHTIN, 2003:328).

Observe que para Bakhtin também têm direitos sobre o enunciado aqueles cujas vozes um dado enunciado ecoa. Ao falar, ecoamos as vozes de outros participantes da situação de fala que, de alguma forma, já emitiram discursos similares. O autor, no entanto, não afirma que nossos enunciados são sempre cópias de enunciados anteriores. Longe disso. De acordo com sua teoria social da linguagem, "o enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que não existia antes dele [...]. Contudo, alguma coisa criada é sempre criada a partir de algo dado. Todo dado se transforma em criado" (BAKHTIN, 2003:326). Pode-se inferir, então, que o enunciado emerge da interação entre falante, ouvinte e os discursos que os circulam em dado contexto social. Assim, o/a falante não pode ser considerado/a o/a único/a autor/a dos enunciados de que faz uso. Esses enunciados são, na verdade, produto da relação do/a falante com (1) o/a ouvinte e (2) com o contexto discursivo em que está inserido/a.

Assim, todo enunciado deve ser creditado a, no mínimo, três fontes: ao/à falante, ao/à ouvinte e às vozes nele ecoadas. Para o filósofo russo e o círculo de estudiosos que o acompanhava, não há texto puro. Todos os textos (orais e escritos) são cravejados por vozes de outros que, maior ou menor grau. Nas palavras de Bakhtin (2003:330),

cada conjunto verbalizado grande e criativo é um sistema de relações muito complexo e multiplanar. Na relação criadora com a língua não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em cada palavra há vozes às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais [...], quase imperceptíveis, e vozes próximas, que soam concomitantemente.

Vê-se, portanto, que não há enunciado que não seja repleto de vozes de outros na construção do significado em interação. Essa intertextualidade é um elemento constitutivo de qualquer texto que, para ser inteligível, deve ecoar as vozes presentes na cultura circundante. Obviamente, a comunicação, intertextual por excelência, não é simplesmente uma repetição de vozes encontradas prontas pelos/as falantes. Muito pelo contrário. Bakhtin (2003) observou que a intertextualidade é também um espaço para o exercício da criatividade dos/as interagentes. Ao ecoar palavras alheias em seus enunciados, os/as usuários/as da linguagem não apenas copiam o que já foi dito, mas as recriam na tentativa de moldar seu discurso aos/as seus/suas interlocutores/as e ao contexto em que estão interagindo. "Essas 'palavras alheias' são re-elaboradas dialogicamente em 'minhas palavras' com o auxílio de outras 'palavras alheias' [...] e em seguida [nas] minhas palavras [...], já de índole criadora" (BAKHTIN, 2003:402). Desse modo, como veremos adiante, os/as interagentes têm a possibilidade de remodelar as vozes alheias presentes em seus enunciados, tornando-as suas, a partir de um processo criativo de adaptação dessas vozes aos propósitos específicos do contexto discursivo.

Comumente utilizados com referência a gêneros textuais, os aspectos da teoria bakhtiniana da linguagem são aqui apresentados como uma ferramenta para construirmos inteligibilidade sobre os processos discursivos de construção de identidades sociais. Veremos que essa construção só é possível pelo caráter intertextual das identidades sociais que, através de ecos de outros discursos identitários, presentes nos enunciados de usuários/as da linguagem, disponibiliza uma variedade de posições de sujeito para que deles nos apropriemos temporariamente. Identidade é, como veremos, um fenômeno intertextual que emerge de contextos locais de uso de linguagem; um produto de nossas relações dialógicas com interlocutores/as e com discursos sócio-historicamente situados.

3. INTERTEXT(SEX)UALIDADE: VOZES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA PREVENÇÃO DE DST/AIDS

As intervenções são tipicamente estruturadas a partir da identidade institucional das interventoras que, ao encontrarem as travestis, orientam as interações à entrega dos preservativos e a recados sobre as reuniões da ONG-Liberdade que acontecem no dia seguinte. A estrutura sequencial das intervenções organiza-se com base em pares adjacentes (SACKS, SCHEGLOFF & JEFFERSON, 1974) dos tipos cumprimento-cumprimento, convite para a reunião-aceite/recusa, informação sobre a reunião-indicação sobre a compreensão dessa informação, despedida-despedida. Como pude observar durante minha incursão etnográfica no universo trans (BENEDETTI, 2005), os turnos dessas interações são engatados, o que as torna rápidas e dinâmicas. A entrega dos preservativos não é comumente verbalizada. Márcia, quando uma travesti aproxima-se da janela do carro, somente estende a mão e entrega as camisinhas (ação indicada por * na transcrição). No entanto, interventoras e travestis também constroem interações nas quais conversam sobre suas vidas pessoais e sobre questões pertinentes ao trabalho das travestis nas suas áreas de prostituição. Assim, a identidade institucional das interventoras é temporariamente apagada, o que parece possibilitar a construção de intertextos que alocam as ativistas da ONG em categorias identitárias associadas ao universo travesti.

No excerto 1 abaixo, Sandra constrói duas identidades diferentes: a de travesti e a de cliente de travesti. A interventora ecoa, em seus enunciados, vozes de identidades díspares em poucos turnos da interação.4 4 As convenções de transcrição estão descritas no apêndice.

Nesse exemplo, após o enquadre de intervenção ter sido estabelecido, na linha 18, Daniela introduz outro enquadre (GOFFMAN, 1974), o de conversa cotidiana, o que possibilita a negociação discursiva de identidades que extrapolam a institucionalidade das interventoras nesse contexto. Esse novo enquadre é contextualizado (GUMPERZ, 2002) pelo termo de referência "guria" (L.18), que, na região sul do Brasil, é associado à intimidade e à igualdade do status interacional. Dessa forma, o termo de endereçamento "guria", configura uma troca situacional de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002), no sentido de que, ao ser proferido, instaura (1) um novo enquadre e (2) uma nova relação social entre interventora e travesti.

Na linha 23, Sandra, ao notar a aproximação de Karla, a cumprimenta utilizando um enunciado, que, segundo minhas informantes travestis, é típico de seus clientes, "oi princesa". Dessa forma, a interventora faz uso da voz dos clientes das travestis apropriando-se de "palavras alheias" e re-elaborando-as em "suas palavras" (BAKHTIN, 2003) adequando, assim, sua identidade ao contexto onde a interação ocorre.

A aproximação de Karla re-introduz o enquadre de intervenção ao perguntar se "vai ter reunião amanhã" (L. 24) e ao receber os preservativos de Márcia (L. 25). O mesmo ocorre na linha 29, quando Sandra efetua uma alternância metafórica de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002), utilizando uma linguagem cifrada comum entre as travestis, o bajubá5 5 O bajubá (ou bate) é composto por termos de algumas línguas africanas, principalmente o ioruba-nagô, sobre a base fonológica e gramatical do português. Ademais, há grande frequência de termos metonímicos e palavras estrangeiras foneticamente adaptadas ao português (ver, SILVA, 1993; ASTRAL, 1996; KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2005, 2007). , construindo, através da voz das travestis, o que Bucholtz e Hall (2004:495) denominam semelhança suficiente. Em outras palavras, ao fazer uso do bajubá, Sandra parece diminuir suas diferenças identitárias para construir-se, à luz desse intertexto, como semelhante às travestis com quem interage. Esse processo de apagamento de características, ideologicamente discordantes, pode ser considerado como uma estratégia utilizada pela interventora na produção intertextual de uma performance identitária, que não destoe do contexto em que está inserida durante as intervenções de suas interlocutoras. Dessa forma, Sandra posiciona-se, intertextualmente, ao falar "vamo se aqüendá tudo lá", como travesti.6 6 "Vamos se aqüendá tudo lá" pode ser traduzido por "vamos nos encontrar lá".

O processo de adequação engendrado na administração das diferenças entre interventoras e travestis, através do qual as performances identitárias habitualizadas das mulheres que entregam preservativos às travestis são temporariamente suspensas, é local e sequencialmente construído. O vocativo "princesa" (L. 23), utilizado por Sandra, posiciona a interventora em intertextos que, segundo as travestis colaboradoras desta pesquisa, são associados aos homens que procuram seus serviços sexuais. Assim, uma identidade de cliente de travesti emerge de tal enunciado. Sandra, na interação acima, igualmente produz, em poucos turnos da interação, uma performance de travesti ao efetuar uma mudança de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002) entre o português e a linguagem cifrada das travestis, o bajubá. Tais intertextos são recorrentes durante as intervenções. No excerto abaixo, vemos Sandra e Márcia fazendo uso de vocativos e de enunciados típicos entre travestis em uma interação com Marcinha, uma travesti, que, à época desta interação, havia recentemente colocado silicone nos seios ou, em bajubá, "bombado os apeti".

Nesse excerto, os trânsitos por discursos de identidades acontecem com base em posicionamentos discursivos que constroem as interventoras como travestis através do uso de enunciados comuns entre as travestis participantes deste estudo. Márcia, na linha 4, cumprimenta sua interlocutora com "oi mona luxo". Tal forma de endereçamento é típica entre as travestis da Cidade do Sul que, ao se encontrarem, frequentemente se referem umas às outras por "mona luxo", forma que enfatiza o glamour de sua construção corporal e suas vestimentas. Alguns turnos adiante é a vez de Sandra engajar-se na encenação de uma identidade travesti. Nessa noite, Adriana usava somente sapatos de saltos altos e uma bermuda jeans. A parte superior de seu corpo estava descoberta e a travesti exibia seus enormes seios à procura de clientes. Na linha 14, a advogada da ONG Liberdade orienta-se para os seios, recém adquiridos por Adriana, surpresa com a quantidade de silicone utilizado. Ao afirmar "olha só os apeti da mona", Sandra faz uso da palavra apeti que significa seio em bajubá e, dessa forma, constrói-se como uma travesti conhecedora dessa linguagem cifrada através de um intertexto que a associa ao universo trans (BENEDETTI, 2005). O excerto 2, destarte, nos apresenta a suspensão temporária das identidades tradicionais das interventoras que, ao se posicionarem em discursos ligados ao universo travesti, encenam performances de identidades que povoam tal lócus sócio-cultural. Tal suspensão materializa-se através da utilização de termos indiciais (OCHS, 1992), i.e. intertextos, para os propósitos deste estudo, que, ao serem proferidos, produzem as interventoras como participantes de grupos identitários específicos, i.e como travestis, como cliente de travesti e como profissional do sexo.

O uso do bajubá é talvez a ferramenta linguística mais frequentemente utilizada pelas interventoras na negociação de suas posições-de-sujeito na batalha. Ao fazerem uso desse código, as interventoras convergem no uso de linguagem (BORTONI-RICARDO, 1984) com as travestis, construindo-se, assim, no mesmo universo linguístico-cultural que suas interlocutotas transgênero.Vejamos mais um exemplo, no qual Sandra faz uso fluente da linguagem cifrada das travestis em sua construção identitária.

Essa intervenção foi gravada em novembro de 2003, quando a equipe da ONG Liberdade se preparava para encerrar os projetos financiados pelos governos Federal e Estadual, limitando-se, a partir de então, a questões burocráticas e administrativas a serem resolvidas na sede da instituição. Aproveitando sua incursão na noite, Sandra e Márcia, durante essa intervenção, avisavam as travestis sobre a última reunião do ano e sobre a festa de lançamento de um livro que a ONG estava organizando. No dia posterior a essa intervenção, haveria a distribuição de um grande número de preservativos e as interventoras tentavam convencer suas interlocutoras a participar em desse encontro para abastecer seu estoque de camisinhas e gel lubrificante. Dessa forma, a identidade institucional de Sandra e Márcia é uma constante construção no excerto acima (L. 4-14) e emerge de sua orientação ao anúncio de questões relativas ao funcionamento da ONG. No entanto, nas linhas 15 e 16, Sandra, provavelmente com o intuito de convencer Mayka a participar da "última reunião do ano", alterna códigos, posiciona-se em discursos do bajubá e, assim, engendra a encenação de uma identidade travesti, deixando temporariamente de lado sua identidade institucional anteriormente construída. Afirmando que, segundo boatos, haveria o sorteio de "um bofe belíssimo de neca odara", Sandra parece tentar motivar sua interlocutora travesti a participar da reunião. Esse enunciado indica que um belo homem com grande órgão sexual estaria à disposição das travestis presentes na reunião. Mayka orienta-se a esse fato e co-constrói o turno de Sandra através de uma sobreposição de falas (L.17). No dia seguinte, eu participei da "última reunião do ano" e pude perceber que, além de mim, mais nenhum "bofe" (belíssimo ou não) se encontrava na sala, o que corrobora minha suspeita de que Sandra pode ter utilizado o bajubá e o intertexto a ele associado como uma estratégia de convencimento para que Mayka participasse do encontro. Na quarta-feira à tarde, Mayka entra na sala, vestindo preto e óculos escuros ("chi-quér-ri-ma!"), quiçá, a aguardar o sorteio.

A construção de identidade de gênero e sexualidade efetuada por Sandra através desses intertextos, nos mostra que as identidades, de modo geral, são intertextuais par excellence, o que corrobora as ideias de Bakhtin sobre o caráter intertextual dos textos. Nas palavras do filósofo russo, "nosso discurso, isto é, todos os enunciados [...], é pleno de palavras dos outros [...]. Essas palavras dos outros trazem consigo sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos" (BAKHTIN, 2003:295). Assim, as interventoras, ao fazer uso de enunciados ligados aos clientes das travestis e às travestis, apropriam-se de formas linguísticas que as constroem como participantes dessas categorias identitárias. Vemos, então, que a performance (BUTLER, 2003) de identidades de gênero e sexualidade encenada por Sandra e Márcia é elaborada através de intertextos, que alocam as interventoras em lugares sociais aos quais elas não pertences quando estão fora de seu trabalho na ONG-Liberdade.

Em linhas gerais, os excertos acima ilustram a fluidez das posições de sujeito adotadas por Sandra a partir de intertextos ligados ao universo das travestis. As interventoras engajam-se em um processo local de suspensão de sua identidade institucional e constroem-se (1) como cliente de travesti e (2) como travesti. Como vimos, a partir da análise dos intertextos utilizados pelas interventoras, ao fazer uso de enunciados convencionalmente ligados às travestis e seus clientes, Sandra e Márcia parecem re-ajustar suas identidades tradicionais de interventoras e mulheres de classe média ao contexto onde a interação está inserida.

Outro exemplo da construção intertextual de identidades pode ser visto no excerto que segue, no qual interventora e travesti engendram, conjuntamente, uma performance identitária de prostituta para Sandra. Essa performance emerge através de intertextos linguísticos e extralinguísticos que constroem a interventora como profissional do sexo.

No contexto que imediatamente precede essa interação, Sandra e Daniela discutiam sobre a quantidade de clientes que circulavam na área. Daniela afirma que o número é bom e que tem feito uma quantia razoável de dinheiro. Deparada com tal informação, Sandra afirma que vai dividir com Daniela seu ponto (L. 38). A travesti afirma que Sandra tem passagem livre nesse contexto e que, se quiser, pode prostituir-se ali. É nesse enquadre que a interventora, sublinhando o poder simbólico da travesti nesse contexto, pede a Daniela conselhos sobre sua vestimenta: "que cor o meu espartilho?" (L. 42). Daniela parece não ter entendido o que Sandra afirmou (afinal, como uma advogada poderia pedir tal informação publicamente?) e, na linha 45, pede à interventora que repita a pergunta. Sandra imediatamente reitera, em volume mais alto, a informação de que precisa (L. 46). É aí que Daniela consolida o intertexto recém produzido por Sandra dizendo que para ser prostituta (e ter muitos clientes) ela deve usar um espartilho "bem vermelho, bem puta, bem tudo".

No Excerto 4, Sandra e Daniela co-constroem a performance de prostituta sugerida pelo enunciado utilizado pela interventora na linha 38. Essa construção é elaborada pelas interlocutoras a partir de atos de fala (AUSTIN, 1976) (i.e. conselhos sobre vestimenta, pedido de permissão para compartilhar o território de prostituição) e signos que apontam (OCHS, 1992; BUCHOLTZ & HALL, 2003) para uma identidade específica: a identidade de prostituta. Com isso, Sandra e Daniela atualizam a identidade da interventora através do uso de formas linguísticas e referências a insígnias da identidade de prostituta, desconstruindo, assim, as posições sociais de classe, profissão e gênero tradicionais adotadas por Sandra no seu dia-a-dia. As intervenções constituem, nessa perspectiva, jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 2005 [1953]), cujas regras são organizadas dialogicamente entre interventoras e travestis, a partir da negociação de múltiplas identidades. No caso em tela, Sandra, deparada com o sucesso financeiro de sua interlocutora travesti, apropria-se de vozes que a constroem como profissional do sexo e, assim, parece apagar diferenças percebidas como díspares e construir-se como uma participante do mosaico identitário que constitui o mercado de prostituição da Cidade do Sul.

A construção intertextual de uma performance de prostituta elaborada conjuntamente por interventora e Daniela continua nas linhas 48-53 nas quais Sandra pede a Daniela que a ensine um movimento corporal utilizado pelas travestis para exibir seus atributos físicos (colocando as mãos nos quadris, balançando os seios e mexendo lentamente a cabeça para jogar os cabelos de um lado para o outro). A referência a essa prática corporal nos mostra Sandra valendo-se de um intertexto extralinguístico na construção de sua performance e, sublinhando, assim, o capital simbólico de Daniela como profissional do sexo já experiente. Tal intertexto parece funcionar como uma tática de validação (BUCHOLTZ e HALL, 2003, 2004) da identidade de Daniela como prostituta eficiente, i.e. que conhece as práticas simbólicas e corporais valiosas em seu ponto de prostituição. Essa validação é enfatizada na linha 54 na qual Sandra menospreza sua própria capacidade para elaborar tal prática corporal ("se eu começá a balançá PLAFT cai tudo"), orientando desfavoravelmente a sua performance e deixando implícita, em comparação com Daniela, sua inabilidade para tal tarefa. A travesti, defrontada com a ineficiência da performance de Sandra, consolida sua superioridade de gênero, indicando que Sandra "não pode balançar" (L. 55) o corpo do jeito que ela o faz. Essa negociação é interrompida no momento que um possível cliente passa de carro pelas interlocutoras. Daniela, sem titubear, o chama e, exibindo seu corpo, engaja-se no movimento que impossibilita Sandra de encenar, intertextualmente, uma performance de eficiente profissional do sexo, como exemplifica o excerto seguinte.

Os intertextos (linguísticos e extralinguísticos) utilizados pelas interlocutoras ilustram que os significados (e as identidades a eles relacionados) não são inerentes às palavras (e aos indivíduos), mas construídos no uso delas, feitas em um contexto sócio-histórico. Tendo isso em perspectiva, os excertos acima demonstram que Sandra e Márcia têm a oportunidade de fazer uso de certas vozes e produzir o efeito de adequação de sua posição-de-sujeito à zona de batalha travesti. Vemos que as interventoras trazem, em seus enunciados, vozes de travesti, de cliente de travesti e de prostitua: identidades que não são constantes em seu repertório identitário cotidiano. Essas identidades são apenas trazidas ao discurso das ativistas de ONG Liberdade por ocasião das intervenções, nas quais há o confronto de identidades tradicionais e não-tradicionais. Como, nesse contexto, as travestis têm capital simbólico (BOURDIEU, 1985), por fazer parte das práticas ali construídas, as interventoras parecem ser forçadas a transitar por uma multiplicidade de identidades e, assim, não destoar completamente do contexto onde se encontram durante as intervenções e poder realizar sua tarefa institucional.

4. COMENTÁRIOS FINAIS

Podemos inferir, pelas análises acima elaboradas, que essas intervenções são primordialmente estruturadas sobre táticas discursivas que sublinham o capital simbólico (BOURDIEU, 1985) das travestis nos seus territórios de prostituição. As interventoras fazem muito mais do que simplesmente entregar preservativos às suas interlocutoras. Notadamente, essa entrega é raramente verbalizada. Destarte, as intervenções parecem servir como pano de fundo para o empoderamento e legitimação das construções de identidades elaboradas pelas travestis: um dos objetivos político-ideológicos da ONG Liberdade que visa à melhoria da qualidade de vida das travestis.

Comentando sobre o tema do trânsito, termo que ilustra bem a posição de sujeito das travestis em nossa cultura e, como vimos, os processos discursivo-identitários produzidos entre travestis e interventoras, Fabrício (2006:62) indica que "aprendemos na cultura a olhar com desconfiança para as misturas, os cruzamentos, as metamorfoses e a diversidade". É tentando driblar a desconfiança e o desprezo que muitos/as profissionais do sexo tentam estruturar suas vidas sociais. No entanto, como as análises acima ilustram, as interventoras da ONG Liberdade, por meio da intertextualidade que constitui nossas identidades sociais, parecem direcionar esforços interacionais à diminuição de suas diferenças sociais e identitárias em relação às travestis com quem trabalham. Tais movimentos indicam que as negociações de identidades, na prevenção de DST/AIDS, têm um papel crucial para que a tarefa institucional das interventoras possa ser executada. Mais significativamente, esses movimentos discursivos ilustram a importância da adaptação, do trânsito, da flutuação e das revisões identitárias (MOITA LOPES, 2003, 2006b) em interações institucionais nas quais identidades díspares entram em contato. Os movimentos discursivo-identitários que emergem das intervenções radicalizam a idéia de 'identidades multifacetadas' (MOITA LOPES, 2003, 2006A; HALL, 2005; BORBA E OSTERMANN, 2007; BUCHOLTZ E HALL, 2004; FABRÍCIO, 2006; BARRET, 1998; BAUMAN, 2005; HEBERLE, OSTERMANN e FIGUEIREDO, 2006; entre outros/as) que é um dos postulados teóricos que moldam muitas das ciências sociais hoje em dia. O contato com identidades díspares, as (re)negociações identitárias, as flutuações e os trânsitos são parte constitutiva das interações e dos processos identitários em geral, processos que, na contemporaneidade, encontram-se exacerbados.

No que se refere à intervenção e à prevenção de DST/AIDS, as coreografias identitárias elaboradas entre as interlocutoras, indicam que, no contexto onde se inserem, os esforços interacionais podem ser centrados nas experiências dos indivíduos para os quais a prevenção é direcionada. Como Silverman e Peräkylä (1990:293) observam, embora a epidemia causada pelo vírus HIV tenha gerado um grande número de pesquisas nas ciências sociais, o foco de atenção dessas investigações tem sido guiado por questões epidemiológicas e por preocupações com a informação sobre a epidemia e os comportamentos de risco de alguns grupos sociais. Os autores também indicam que a epidemia da AIDS não será combatida apenas com a provisão de informações às pessoas. Segundo Silverman e Peräkylä (1990), muitas outras condições devem ser satisfeitas até que essas informações transformem o comportamento sexual dos indivíduos (p. 294). Alguns autores e autoras ainda indicam que a pesquisa e a prevenção de DST/AIDS têm sido reducionistas, pois seu foco tem recaído sobre fatores individuais estáticos e não sobre fatores estruturais, contextuais e situacionais (ver MARTIN, 2006; DÍAZ, AYALA & BEIN, 2002; MAYS, COCHRAN e ZAMUDIO, 2004).

Tendo isso em perspectiva, a pesquisa aqui relatada indica que o estudo das lógicas e dos significados co-produzidos local e sequencialmente em interações entre interventores/as e profissionais do sexo é um importante milieu para a (re)negociação e (re)construção de identidades entre interlocutores/as. Como vimos, a administração das diferenças identitárias entre travestis e interventoras é o eixo ao redor do qual a prevenção de DST/AIDS, nos territórios de prostituição travesti, parece movimentar-se. Dessa forma, ao construir-se através das vozes que constituem o universo trans (BENEDETTI, 2005) no mesmo universo linguístico-identitário de suas interlocutoras transgênero, Sandra e Márcia engendram processos interacionais que causam o efeito de aproximação de suas posições de sujeito ao contexto social no qual se inserem durante seu trabalho nas intervenções. Essa aproximação pode ter efeitos sobre o comportamento sexual das travestis, pois, afinal, quem dá informações sobre DST/AIDS parece conhecer a fundo os significados culturais relevantes entre as travestis da Cidade do Sul e, mais significativamente, parece realmente importar-se com a melhoria de sua qualidade de vida. Pode-se, portanto, afirmar que tanto a pesquisa quanto a prevenção de DST/AIDS, ao invés de direcionar os esforços de resistência à epidemia da AIDS somente à disseminação de informações sobre como evitar o contágio, devem, como as intervenções da ONG Liberdade ilustram, construir estratégias de enfrentamento à epidemia com base nas experiências particulares dos indivíduos envolvidos nas práticas discursivas, construídas durante os projetos de prevenção. Experiências essas que podem estar relacionadas a muitos fatores, sendo a construção das identidades de gênero e sexualidade dos/as profissionais do sexo um dos mais salientes (particularmente no caso das travestis). Os intertextos identitários, que emergem das intervenções nas áreas de prostituição de travestis na Cidade do Sul, indicam que, para restringir a disseminação do vírus HIV nesse grupo, a esperança é construir estratégias de intervenção centradas nas experiências das pessoas envolvidas, além, é claro, das necessárias provisões de informação atualizada às pessoas que esses projetos visam beneficiar.

Recebido: 3/12/2008

Aceito: 1/03/2010

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apêndice

  • 1
    Por motivos de cunho ético, utilizo pseudônimos para me referir às informantes e aos nomes dos lugares envolvidos na pesquisa.
  • 2
    Utilizo o feminino gramatical ao me referir às travestis durante o texto. Além de um posicionamento político, essa escolha converge com o uso feito por travestis nas mais diferentes localidades do Brasil na tentativa de construir sua identidade discursiva de acordo com sua performance de gênero (BUTLER 2003). Para uma discussão sobre o assunto ver Borba e Ostermann (2007).
  • 3
    Termo êmico utilizado pelas travestis para se referirem ao ato da prostituição.
  • 4
    As convenções de transcrição estão descritas no
    apêndice apêndice .
  • 5
    O
    bajubá (ou
    bate) é composto por termos de algumas línguas africanas, principalmente o ioruba-nagô, sobre a base fonológica e gramatical do português. Ademais, há grande frequência de termos metonímicos e palavras estrangeiras foneticamente adaptadas ao português (ver, SILVA, 1993; ASTRAL, 1996; KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2005, 2007).
  • 6
    "Vamos se aqüendá tudo lá" pode ser traduzido por "vamos nos encontrar lá".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      03 Dez 2008
    • Aceito
      01 Mar 2010
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