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I cut my hair e I did my nails: evidência de transferência linguística na interlíngua de falantes brasileiros aprendizes de inglês como segunda língua?

I cut my hair and I did my nails: a case of language transfer in the interlanguage of brazilian speakers of english as a second language?

Resumos

Este artigo avalia se a produção interlinguística de sujeitos brasileiros, aprendizes/falantes de inglês-L2, em contextos em que se espera o emprego da construção causativa-passiva do inglês (John had his hair cut), recebe influência de língua materna (transferência linguística). Relatam-se os resultados de um pequeno estudo conduzido com trinta e oito informantes brasileiros, de três níveis de proficiência na língua inglesa. O estudo aplicou a metodologia proposta em Jarvis (2000) para a análise do tema. Os resultados apontam para a complexidade do fenômeno da transferência linguística e para a importância de se submeterem os dados coletados a tratamento estatístico.

Transferência linguística; português-L1; inglês-L2; tratamento estatístico; interlíngua


This article evaluates whether an L1 influence (language transfer) can be found in the interlanguage production of Brazilian subjects, learners/speakers of English as an L2, in contexts where the production of English causative-have construction (John had his hair cut) is expected. Results from a small study conducted with thirty-eight Brazilian subjects, distributed along three proficiency levels, are reported. The study applied Jarvis' (2000) methodology for the study of language transfer. Results point to the complexity of the language transfer phenomenon and to the importance of undertaking a statistical analysis of the data.

Language transfer; Portuguese-L1; English-L2; statistical analysis; interlanguage


ARTIGOS

I cut my hair e I did my nails: evidência de transferência linguística na interlíngua de falantes brasileiros aprendizes de inglês como segunda língua?

I cut my hair and I did my nails: a case of language transfer in the interlanguage of brazilian speakers of english as a second language?

Ana Carolina VilelaiI, * * A autora agradece à CAPES pelo financiamento concedido à pesquisa. ; Fernando Luiz Pereira de OliveiraII

IFale/UFMG, Minas Gerais (MG), Brasil, E-mail: carolvilela10@gmail.com

IIIcex/UFMG, Minas Gerais (MG), Brasil, E-mail: fernandoest@ig.com.br

RESUMO

Este artigo avalia se a produção interlinguística de sujeitos brasileiros, aprendizes/falantes de inglês-L2, em contextos em que se espera o emprego da construção causativa-passiva do inglês (John had his hair cut), recebe influência de língua materna (transferência linguística). Relatam-se os resultados de um pequeno estudo conduzido com trinta e oito informantes brasileiros, de três níveis de proficiência na língua inglesa. O estudo aplicou a metodologia proposta em Jarvis (2000) para a análise do tema. Os resultados apontam para a complexidade do fenômeno da transferência linguística e para a importância de se submeterem os dados coletados a tratamento estatístico.

Palavras-chave: Transferência linguística; português-L1; inglês-L2; tratamento estatístico; interlíngua.

ABSTRACT

This article evaluates whether an L1 influence (language transfer) can be found in the interlanguage production of Brazilian subjects, learners/speakers of English as an L2, in contexts where the production of English causative-have construction (John had his hair cut) is expected. Results from a small study conducted with thirty-eight Brazilian subjects, distributed along three proficiency levels, are reported. The study applied Jarvis' (2000) methodology for the study of language transfer. Results point to the complexity of the language transfer phenomenon and to the importance of undertaking a statistical analysis of the data.

Keywords: Language transfer; Portuguese-L1; English-L2; statistical analysis; interlanguage.

INTRODUÇÃO

O presente artigo discute se a produção de sentenças do tipo I cut my hair e I did my nails na interlíngua de falantes brasileiros aprendizes de inglês-L2 constitui evidência do fenômeno de transferência linguística do português brasileiro (doravante, PB) para a interlíngua (doravante, IL). Na primeira seção, o fenômeno da transferência linguística é discutido, atribuindo-se ênfase especial a questões metodológicas envolvidas no seu estudo. Na segunda, apresentam-se as ações metodológicas que guiaram o estudo aqui relatado. Na seção subsequente, são expostos os resultados. A quarta e última seção promove uma discussão acerca dos dados encontrados na IL dos sujeitos brasileiros.

1. A QUESTÃO DA TRANSFERÊNCIA LINGUÍSTICA

A influência da língua materna (conhecida como transferência linguística) sobre a aquisição e uso de línguas não-maternas tem sido amplamente debatida nos estudos de aquisição de línguas estrangeiras (ODLIN, 1989; FULLER, 1999; VINNITSKAYA et al., 2003; etc.). Não obstante, não parece haver entre os pesquisadores que a ela se dedicam uma opinião consensual do que seja o fenômeno. Para Krashen (1981, 1983), por exemplo, a influência da L1 se limita aos estágios iniciais da aquisição e resulta de o falante se apoiar no conhecimento de língua materna quando lhe falta o conhecimento pertinente à L2 que está adquirindo, sendo, portanto, uma estratégia de comunicação. Já para Corder (1983) esse uso estratégico de elementos da L1, durante a produção, caracteriza o fenômeno do empréstimo, e não da transferência. Para ele, a transferência só ocorre quando há a incorporação de um item proveniente da L1 (ou de outras línguas) ao sistema interlinguístico e é consequência de esse item ocorrer várias vezes na produção como item "emprestado", levando a uma comunicação bem-sucedida. No que tange ao escopo dessas influências, Odlin (1989) argumenta que elas não afetam somente a produção, mas podem incidir igualmente sobre a compreensão oral e escrita da L2, diferentemente do que afirma Krashen. E há ainda outras visões, como a de Schachter (1983) segundo a qual a transferência não é um processo (i.e., algo que o aprendiz faz), mas sim uma restrição atuante sobre o processo de formulação e testagem de hipóteses empreendido pelo aprendiz. Partindo do pressuposto de que a aquisição de L2 envolve um trabalho com hipóteses que versam sobre a organização da língua alvo, Schachter entende que o conhecimento da gramática e das categorias abstratas da L1 funciona como uma ferramenta que restringe a formulação dessas hipóteses e, consequentemente, explica certos usos presentes na interlíngua1 1 O termo interlíngua, cunhado por Larry Selinker (1972), refere-se sistema linguístico construído pelo aprendiz de língua estrangeira, que não corresponde, em todos os seus aspectos, ao sistema de regras internalizado por falantes nativos da língua alvo. .

Muitos pesquisadores reconhecem as dificuldades inerentes a um estudo de transferência linguística. Odlin, por exemplo, afirma que nem sempre a produção de estruturas corretas na língua alvo implica que houve transferência positiva da L1, e argumenta que tais casos podem resultar, simplesmente, de o aprendiz ter tido exposição suficiente ao insumo linguístico (ODLIN, 1989, p. 34). Lembra ainda que variações individuais também podem influir na transferência, o que aumenta a complexidade do seu estudo (ODLIN, 1989, p. 42). Já Jarvis (2000), num artigo em que defende o rigor metodológico nos estudos de transferência, aponta que a área enfrenta, além da falta de uma definição consensual para o fenômeno, a inexistência de uma metodologia específica para reger o seu estudo. Segundo o autor, essas deficiências têm acarretado sérios problemas. Primeiramente, por não haver uma metodologia bem definida - com diretrizes claras sobre que evidências procurar e como se chegar a elas -, os estudos de transferência têm sido conduzidos sob diferentes formatos experimentais, valendo-se de tarefas e informantes diversificados. A consequência imediata dessa liberdade metodológica é que muitos estudos se tornam incomparáveis entre si e têm gerado descobertas por vezes contraditórias (cf. também ODLIN, 1989, p. 151).

Diante disso, Jarvis retoma as diretrizes propostas em Odlin (1989) para a avaliação da transferência. Segundo esse autor, um estudo de transferência linguística deve: (a) proceder a uma descrição contrastiva das línguas envolvidas na situação de aquisição; (b) comparar o desempenho de falantes de línguas maternas distintas, na L2 em questão e (c) descrever os resultados encontrados sob a forma de tendências gerais e probabilidades, devido à natureza complexa da linguagem e às variações individuais (ODLIN, 1989, p. 28 e 42). Jarvis atribui uma ênfase especial à necessidade de se submeterem os dados coletados a tratamento estatístico. No seu entender, a questão do tratamento estatístico é tão importante, que emerge na própria definição de trabalho que propõe:

"Tem-se influência de L1 sempre que houver, nos dados do aprendiz, uma correlação estatisticamente relevante (ou uma relação probabilística) entre algum traço do desempenho interlinguístico do aprendiz e sua língua materna" (JARVIS, 2000, p. 252)2 2 No original: "L1 influence refers to any instance of learner data where a statistically significant correlation (or probability-based relation) is shown to exist between some feature of learners' IL performance and their L1 background." (JARVIS, 2000, p. 252). .

Jarvis afirma que a transferência linguística produz três efeitos passíveis de investigação direta. O primeiro seria a homogeneidade de comportamento entre falantes de uma mesma L1. Esse efeito pode ser visto quando os falantes de uma L1 se comportam homogeneamente no desempenho em uma L2 comum a eles. Essa evidência é importante por mostrar que esses falantes se comportam como um grupo no tocante ao traço da L2 analisado, o que é necessário até para que se possa hipotetizar a existência de efeitos de língua materna em seu desempenho em L2. O segundo efeito é o da congruência entre o desempenho de um falante em sua L1 e na IL, obtido quando o uso de uma determinada estrutura na IL alinha-se ao uso da estrutura correspondente da L1. Finalmente, o terceiro efeito é o da heterogeneidade atestada entre grupos de falantes de diferentes L1s, perceptível quando o desempenho de falantes de L1s distintas em uma L2 comum a eles é diferente. Esse tipo de evidência exclui, segundo Jarvis, a possibilidade de um dado fato decorrer de fatores desenvolvimentais ou universais da aquisição (JARVIS, 2000, p. 255).

A pesquisa que relatamos a seguir buscou verificar se a presença de sentenças como I did my nails na produção de sujeitos brasileiros aprendizes de inglês-L2 indicava transferência linguística do PB para a interlíngua. A seção seguinte apresenta os procedimentos metodológicos observados nessa investigação.

2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Este estudo tomou por objeto de análise a produção interlinguística de sujeitos brasileiros, aprendizes/falantes de inglês-L2, em contextos em que está indicado o uso da construção causativa-passiva do inglês. Segundo gramáticas e livros didáticos, a construção causativa-passiva é empregada quando se deseja dizer que alguém realizou algo para nós, em decorrência de uma solicitação nossa e, normalmente, em troca de pagamento. Sintaticamente, é formada por um NP3 3 NP (do inglês, noun phrase): sintagma nominal -sujeito, seguido do verbo have ou get, um NP-objeto e um particípio passado, como ilustrado em (1):

(1) a. [John]suj had/got [his car]obj [repaired]part.pass.

b. [John]suj had/got [his hair]obj [cut]part.pass.

A construção é um tipo de passiva pois, à semelhança das passivas canônicas, implica uma reorganização estrutural da oração, podendo ser descrita como um modo sistemático de se eleger um participante, que não o agente, como ponto de partida para a comunicação de uma mensagem (BIBER et al., 1999, p. 154). De fato, tanto em (1a) quanto em (1b), o sujeito sintático não é um agente, mas um beneficiário da ação verbal. Do ponto de vista semântico, é classificada como uma causativa porque, no evento que descreve, o indivíduo expresso no sujeito sintático executa uma ação (levar o carro a uma oficina mecânica, por exemplo), que causa um resultado: em (1a), por exemplo, o conserto do carro. Um traço fundamental que tal indivíduo precisa exibir é a iniciativa para desencadear o processo implicado no verbo. Essa característica, juntamente com o sentido causativo, permite-nos separar exemplares legítimos da construção causativa-passiva de outros, idênticos a esses na forma, como é o caso das sentenças em (2), que encerram um sentido experiencial (GILQUIN, 2003, p. 125; HAINES & STEWART, 2004, p. 184, etc.):

(2) a. We got our roof blown off.

b. She had her bag stolen4 4 Nessas sentenças, o sujeito sintático, longe de desencadear intencionalmente um processo, é na realidade um maleficiário da ação. Também não há nessas sentenças a ideia de um serviço prestado a esse indivíduo (SWAN, 1986, p. 269). .

O português brasileiro possui uma produtiva alternância, denominada alternância agente-beneficiário (CANÇADO, 2007). Nela, o NP que complementa a preposição que, por sua vez, integra o argumento localizado na posição de objeto direto, eleva-se à posição de sujeito, levando ao apagamento do argumento que originalmente ocupava tal posição. Após o movimento, a preposição é apagada. A alternância se configura como uma estratégia de se conferir proeminência ao beneficiário da ação verbal, que passa a preencher a posição de sujeito, anteriormente ocupada pelo agente. Os pares em (3) ilustram a alternância agente-beneficiário:

(3) Sentença Base: O cabeleireiro cortou [o cabelo [d[o João.]NP]PP5 5 PP (do inglês, prepositional phrase): sintagma preposicional ]NP complexo.

Sentença Alternante: O JoãoBEN6 6 BEN: Beneficiário cortou o cabelo.

A coleta de dados realizada para este estudo teve por objetivo verificar se, em contextos propícios ao emprego da construção causativa-passiva do inglês, os sujeitos brasileiros produziriam sentenças como I did my nails e I cut my hair (representantes do que chamaremos aqui de "estrutura ativa" em oposição a "estrutura causativa"). Num segundo momento, investigou-se se a ocorrência de sentenças desse tipo decorreria de transferência linguística do PB para a IL. A formulação do argumento da transferência linguística como hipótese explicativa para esse fenômeno se justifica, uma vez que o PB licencia sentenças como EuBENcortei o cabelo, em que o argumento externo é um beneficiário da ação, apesar de ocupar a posição de sujeito sintático, normalmente associada ao papel de agente. Soma-se a isso o fato de sentenças como I cut my hair não serem agramaticais7 7 Embora não seja a estratégia preferida para se conferir proeminência ao beneficiário da ação verbal, essa sentença não fere as regras combinatórias da gramática inglesa. É nesse sentido que a classificamos como gramatical. Evidentemente que, para se poder hipotetizar que a produção de sentenças desse tipo decorre de transferência do PB, o papel temático atribuído ao sujeito dessas sentenças tem de ser o de beneficiário, como ocorre no PB. A fim de garantir essa atribuição, a produção dos sujeitos se deu dentro de contextos altamente indutivos de que o indivíduo lexicalizado como sujeito sintático era um beneficiário, e não agente, da ação. na língua inglesa.

A fim de captar a produção interlinguística dos sujeitos brasileiros, foi elaborado um pequeno experimento escrito, composto de duas tarefas. Na primeira, o informante lia três historinhas e preenchia lacunas com o verbo e os complementos fornecidos entre parênteses. Em todos os casos foi tomado o cuidado de se estabelecer um contexto propício para a atribuição do papel de beneficiário ao personagem principal da história. Isso foi feito mediante a inserção de palavras que funcionaram como pistas, indicando que o personagem não realizaria, ele próprio, as ações ali descritas. O Quadro 01, a seguir, apresenta as historinhas utilizadas:


Na Tarefa 2, forneceu-se uma gravura com os alvos estabelecidos por um personagem, John, para o ano. A tarefa do informante era escrever sentenças completas, explicitando que alvos John havia alcançado e quais ainda estavam por alcançar. Novamente, houve o cuidado de se criar um contexto propício para a atribuição do papel de beneficiário ao personagem. Isso foi feito através da inserção de valores monetários, referentes aos custos daqueles alvos, indicativos de que o personagem pagara alguém para realizá-los. O Quadro 02, a seguir, apresenta a gravura utilizada na Tarefa 02:


Participam da coleta de dados trinta e oito sujeitos brasileiros, dos quais trinta e dois foram recrutados nos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Língua Inglesa da Faculdade de Letras de uma universidade federal da região sudeste do país. A esses informantes foi aplicado um teste de nivelamento, extraído do website do Oxford University Language Centre, e corrigido de acordo com o gabarito oficial disponível no mesmo website. A fim de verificar se os participantes conheciam a construção causativa-passiva da língua inglesa, foram acrescentadas, ao final do teste, duas questões em que a estrutura constituía a opção correta. Foram excluídos da amostra experimental todos os participantes que erraram essas questões ou que as deixaram em branco. A classificação dos sujeitos segundo a proficiência foi feita segundo a escala do Oxford University Language Centre. Os informantes ficaram assim distribuídos:

Grupo I: Nível Intermediário: 13 informantes

Grupo II: Nível Avançado: 19 informantes

Dos dezenove informantes do nível avançado, três declararam ser falantes comprovadamente proficientes na língua inglesa8 8 Essa informação foi obtida por meio de um Questionário de Dados Biográficos, aplicado a todos os participantes. Os três informantes em questão afirmaram possuir certificado de proficiência no idioma. . Assim, foram deslocados para um terceiro grupo, que reuniu ainda outros seis informantes, igualmente proficientes9 9 Foi considerado proficiente o indivíduo que satisfizesse a pelo menos um dos seguintes critérios: (a) ser/ter sido professor de língua inglesa; (b) ser/ter sido tradutor desse idioma com experiência comprovada; (c) possuir certificado de proficiência em língua inglesa, expedido por instituições de ensino internacionalmente reconhecidas, como a Universidade de Michigan (EUA) e a Universidade de Cambridge (Inglaterra). Os seis informantes recrutados à parte cumprem pelo menos um desses requisitos. , recrutados à parte. A distribuição final dos informantes brasileiros foi, portanto, a seguinte:

Grupo I: Nível Intermediário: 13 informantes

Grupo II: Nível Avançado: 16 informantes

Grupo III: Nível Proficiente: 9 informantes

Adicionalmente, foram formados dois outros grupos, necessários para a verificação da hipótese da transferência linguística. O primeiro, composto de sete falantes brasileiros que não falam a língua inglesa, respondeu a uma versão traduzida do experimento. O segundo foi formado por três falantes italianos, aprendizes de inglês-L2. Formou-se ainda um grupo controle, composto de seis falantes nativos do inglês.

Os dados coletados foram, adicionalmente, submetidos a tratamento estatístico. Como dito anteriormente, a utilização de ferramentas estatísticas é um importante requisito da pesquisa sobre transferência linguística. Cumpre esclarecer, no entanto, que os dados deste estudo não constituem uma amostra paramétrica. Isso significa que sua distribuição não é normal, ou ainda, que não há elementos suficientes para afirmar que ela o seja. Para o tratamento de dados não-paramétricos, a Estatística dispõe de uma série de testes, dentre os quais está o Teste Qui-Quadrado. Por analisar dados de frequência, ele constitui, em princípio, um teste adequado para o tratamento de nossos dados. Seu inconveniente é que, para ser eficaz, pressupõe uma frequência mínima igual a cinco em pelo menos 80% das caselas das tabelas de contingência, e ainda, que nenhuma delas apresente frequência inferior a um (NETO & STEIN, 2003). Como houve situações em que a frequência detectada nos grupos foi inferior a cinco e, em alguns casos, igual a zero, optou-se pelo emprego de outro teste, denominado Teste Exato de Fisher, que constitui uma variação do Teste Qui-Quadrado. A diferença entre eles é que o Teste Exato de Fisher pode ser aplicado em situações em que o número de dados é muito reduzido, ou até mesmo, quando a frequência obtida em alguma situação é igual a zero, como ocorreu neste estudo (MACKEY & GASS, 2005, p. 279).

À semelhança do Qui-Quadrado, o teste de Fisher compara dois grupos, iguais ou diferentes em tamanho, gerando um resultado que nos permite avaliar se há ou não diferenças significativas entre eles. Por ser um teste não-paramétrico, é compatível com o tipo de amostra que esta pesquisa gerou. Ademais, por prover um tratamento para dados de frequência, relativos a diferentes categorias (como, por exemplo, a estrutura ativa e a estrutura causativa-passiva), mostra-se altamente adequado para o tratamento dos dados deste estudo, que são, essencialmente, dados de frequência. Caso as diferenças encontradas sejam significativas, é possível dizer que os grupos constituem amostras independentes e que a diferença observada entre eles não se deve ao acaso (NUNAN, 1992, p. 38). Para que isso seja verdade, os p-valores10 10 P-valor é o resultado gerado pelo teste, após o processamento dos dados quantificados. gerados pelo teste devem ser inferiores a 0,05, parâmetro estabelecido para a rejeição da hipótese nula (Ho). Apenas para ilustrar, tomemos a comparação entre o Grupo I e o Grupo Controle. A hipótese nula, nesse caso, determina que não há diferenças significativas entre os dois grupos. Se o p-valor do Teste Exato de Fisher for inferior a 0,05, essa hipótese pode ser rejeitada, o que implicará a aceitação da hipótese de que há diferenças significativas entre os grupos. Por último, utilizar o nível de significância de 0,05 (5%) implica que a probabilidade de se rejeitar a hipótese nula, quando ela é verdadeira, é igual a 5%. Em outras palavras, esse nível de significância estabelece um grau de certeza de 95% de que a hipótese nula é, de fato, falsa.

3. RESULTADOS

Apesar da criação de contextos propícios à produção da causativa-passiva, com todas as ações houve ocorrências de estruturas ativas (ex.: I removed my tattoo) nos grupos brasileiros. Esse fato foi perceptível em todos os níveis de proficiência, sendo mais saliente no nível intermediário.

Para saber se a produção da estrutura ativa resulta de transferência linguística, buscaram-se as três evidências propostas por Jarvis (2000). A fim de se obter a evidência da homogeneidade, as respostas dos grupos brasileiros foram comparadas entre si, a fim de se verificar se essa classe de falantes se comporta homogeneamente no tocante ao uso das estruturas em análise. O Teste Exato de Fisher foi aplicado, então, aos seguintes cruzamentos: GI x GII; GI x GIII; GII x GIII. Para que haja homogeneidade o p-valor obtido deverá ser superior a 0,05 - isto é, capaz de implicar a aceitação de Ho, a saber: os grupos analisados não apresentam diferenças significativas. Os resultados do Teste Exato de Fisher, aplicado aos dados da Tarefa 1, foram:

Como se pode ver, os Grupos I e II não apresentaram um comportamento significativamente distinto (p-valores acima de 0,05). Seu comportamento é, portanto, homogêneo. Já a comparação entre o Grupo I e o Grupo III mostrou diferenças significativas em relação a to remove a tattoo e to do (one's) nails. Nas demais ações, no entanto, o comportamento desses grupos não apresentou diferenças significativas. A Tabela 01 mostra, ainda, que não houve diferenças significativas na comparação entre o nível avançado e o proficiente (GII x GIII). No tocante à Tarefa 02, os resultados do Teste Exato de Fisher também apontaram um comportamento homogêneo dos grupos. O único momento em que se verificou uma diferença significativa entre os grupos foi em relação a car repair, na comparação entre os níveis intermediário e avançado (cf. Tabela 02, a seguir).

Para se obter a segunda evidência, i.e., a da congruência de uso entre uma estrutura na L1 e uma estrutura na IL, foram recrutados sete informantes brasileiros, não-falantes de inglês11 11 Segundo Jarvis (2000), a comparação a ser feita aqui é entre os dados de L1 e de IL produzidos por um mesmo informante, ou seja, um falante bilíngue. Isso implicaria submeter os informantes brasileiros a uma segunda coleta, dessa vez em português. Isso não foi realizado dessa maneira por duas razões. Em primeiro lugar, devido à possibilidade de o conhecimento da L2 (neste caso, o inglês), influenciar o desempenho do aprendiz em língua materna. A segunda razão se deve à possibilidade de a performance do aprendiz no experimento em inglês vir a influenciar o seu desempenho na versão traduzida do experimento, dado que as versões em língua inglesa e portuguesa são, essencialmente, iguais (condição necessária para gerar a comparabilidade entre os dados). Na impossibilidade de se realizar uma coleta tardia (cogitada como modo de minimizar esses efeitos indesejáveis), por questões de cronograma, a evidência da congruência foi obtida indiretamente, mediante a aplicação da versão traduzida do experimento a um grupo de falantes nativos do português, não-falantes de inglês. Os dados produzidos por eles foram tomados como representativos do desempenho dos sujeitos bilíngues em língua materna. . A esses participantes foi aplicada uma versão traduzida das tarefas. Os resultados obtidos, para as Tarefas 01 e 02, foram:

Os dados de produção mostram que há uma relação entre a tendência encontrada nos dados de L1 (i.e., a produção da sentença alternante) e a tendência de produção da estrutura ativa na interlíngua em alguns contextos (cf. retirada da tatuagem e pintura da casa, Tarefa 1, Tabela 03), mas não na maioria deles (cf. fazer as unhas, fazer um penteado - Tarefa 1, Tabela 03 -, e todos os contextos da Tarefa 2, Tabela 04). No entanto, é importante que se diga que o fato de alguns percentuais de emprego da estrutura ativa na interlíngua terem encontrado paralelo com os percentuais de uso da sentença alternante na língua materna não implica que essa relação seja de causa-e-efeito, tampouco que seja significativa do ponto de vista quantitativo. A percepção dessa relação baseou-se unicamente nas informações percentuais. Para ser possível afirmar que a relação é de causa-e-efeito seria necessário a aplicação de outras ferramentas estatísticas, às quais a base de dados dessa pesquisa não se adequa. A implicação desse fato, para a testagem da hipótese da transferência linguística, é que não há informações suficientes para se constatar a presença do efeito da congruência, proposto por Jarvis.

A última evidência a ser buscada é a da heterogeneidade. Aqui, a comparação se dá entre diferentes sistemas interlinguísticos. Para tanto, recrutaram-se informantes que têm o italiano por L1 e o inglês por L2. A opção de se trabalhar com informantes italianos deveu-se à informação presente em Cançado (2007) de que a língua italiana não possui uma alternância semelhante à do agente-beneficiário. Sendo assim, espera-se que esses falantes não empreguem a estrutura ativa em sua performance interlinguística. Dezesseis pessoas se mostraram interessadas em colaborar com a pesquisa, mas desse total, duas foram excluídas pelo teste de nivelamento, e das quatorze restantes, onze abandonaram a coleta de dados em uma de suas etapas. O total de informantes nesse grupo foi, portanto, de três.

Os dados produzidos pelos informantes italianos mostraram um bom número de sentenças com a estrutura ativa. Na Tarefa 01, por exemplo, ela foi a estrutura preferida, ocorrendo em 100% das lacunas. O mesmo padrão se repetiu nos dados da Tarefa 02. Porém, devido ao número extremamente pequeno de sujeitos nesse grupo, optou-se por não submeter os dados dos falantes italianos à análise estatística, uma vez que ela não se mostraria muito eficaz. Houve, ainda, ocasiões em que o número de dados disponível não se mostrou suficiente para viabilizar a realização do Teste Exato de Fisher. Na Tarefa 02, por exemplo, houve uma situação em que apenas um dado foi considerado válido. Não obstante, as implicações da produção da estrutura ativa por esses informantes para a testagem da hipótese da transferência linguística serão discutidas na próxima seção.

Finalmente, optou-se ainda por aplicar as duas tarefas a seis falantes nativos do inglês, embora essa ação não conste explicitamente da metodologia de Jarvis. Na Tarefa 01, a construção ativa ocorreu na produção dos falantes nativos de inglês em todos os contextos criados, mas foi, na maioria dos casos, inferior à frequência de causativas-passivas. Na Tarefa 02, ela voltou a ocorrer, tendo sido superior à causativa no tocante à ação car repair. Esses fatos parecem sugerir que os falantes nativos do inglês também são capazes de produzir sentenças com a estrutura ativa, em que o sujeito sintático é um beneficiário da ação verbal. Essa pode não ser a opção não-marcada da língua inglesa para se conferir proeminência ao beneficiário da ação verbal, mas esse fato não a torna agramatical. Vejamos agora as implicações de todos esses resultados para a testagem da hipótese da transferência linguística.

4. DISCUSSÃO

O primeiro efeito investigado por este estudo foi o da homogeneidade de comportamento dos falantes brasileiros. Como se disse, em todos os níveis de proficiência ocorreu a estrutura ativa. Porém, ela predominou unicamente no grupo intermediário. Nos grupos avançado e proficiente, houve predomínio da causativa-passiva. Apesar disso, o Teste Exato de Fisher, aplicado a esses dados, mostrou muito poucas diferenças significativas entre os grupos, o que parece indicar que há, de um modo geral, uma homogeneidade entre eles.

Não obstante, obter a evidência da homogeneidade não é uma condição suficiente para que se possa argumentar em favor da influência de L1, conforme salienta o próprio Jarvis (JARVIS, 2000, p. 256-57). O autor observa que outros fatores, que não a influência de L1, também podem provocar uma uniformidade nos dados, o que significa que a descoberta de um comportamento homogêneo na amostra experimental de um grupo de aprendizes não exclui a possibilidade de ele ser comum a todos os aprendizes daquela L2, indiferentemente de sua L1. Esse ponto ressalta a importância de se buscar, simultaneamente, a evidência da heterogeneidade, mais poderosa no sentido de afastar a hipótese de que fatores desenvolvimentais sejam os responsáveis pela homogeneidade observada. Ademais, apoiar-se unicamente na evidência da homogeneidade pode levar o pesquisador a supor que certo fenômeno, homogeneamente presente numa amostra interlinguística, decorre da influência da L1 dos aprendizes, mesmo quando não se detectam diferenças entre o comportamento dos aprendizes e o dos falantes nativos daquele idioma. Em casos assim, a homogeneidade pode ser consequência, não da influência de L1, mas de os falantes estrangeiros terem atingido uma competência semelhante à nativa naquela área da língua (JARVIS, 2000, p. 257). Embora Jarvis não mencione explicitamente a necessidade de se coletarem dados de controle com um grupo de falantes nativos da L2, tal medida está implícita nessa observação, e deveria ser incorporada à metodologia dos estudos de transferência. Através de uma base de dados empírica, o pesquisador poderá identificar com mais clareza qual é o comportamento dos falantes nativos do idioma estrangeiro, e determinar que tipo de evidência será necessária para se comprovar que a performance interlinguística dos aprendizes exibe efeitos de língua materna. Investigar um possível efeito de língua materna, partindo-se do conhecimento de que o fenômeno que a reflete também pode estar presente na produção de falantes nativos do idioma estrangeiro, muda completamente o modo de encarar o quê constituirá evidência de transferência linguística nesse tipo de cenário, questão que será retomada adiante.

O segundo efeito a ser buscado é o da congruência entre as performances em língua materna e na interlíngua. Segundo Jarvis, essa evidência acrescenta ao argumento da transferência linguística, pois explicita o quê existe na L1 que hipoteticamente provoca o comportamento interlinguístico (JARVIS, 2000, p. 255). A evidência da congruência é obtida quando se detectam correspondências claras e consistentes entre o comportamento de um sujeito na L1 e na IL. Os dados mostraram que a tendência de produção da sentença alternante na L1 se reproduziu na interlíngua em alguns contextos, mas não em todos, e foi mais consistente nos dados do grupo intermediário. Os dados podem ser indicativos, portanto, de que houve transferência linguística, sobretudo nesse nível. Retomamos, no entanto, a observação feita na seção anterior de que a aparente relação entre um fato da língua materna e um fato na interlíngua não implica a existência de uma relação de causa-e-efeito entre eles. Há apenas indícios de que o uso da sentença alternante na língua materna encontra paralelo com o emprego da estrutura ativa, na interlíngua. Outra observação pertinente é que essa evidência foi buscada de modo indireto neste estudo. Antes de se fazer qualquer afirmação em caráter conclusivo, seria interessante verificar o desempenho em IL e L1 de um mesmo informante. A conclusão, portanto, é que não há informações suficientes para se comprovar a presença do efeito da congruência.

Vejamos agora a questão da heterogeneidade. Segundo Jarvis, essa evidência é importante porque elimina a possibilidade de os dados decorrerem de fatores desenvolvimentais e/ou universais da aquisição. É, portanto, mais poderosa que o efeito da homogeneidade, pois pode derrubar o argumento de que certo comportamento interlinguístico é comum a todos os aprendizes (JARVIS, 2000, p. 255-57). Os resultados mostraram que os informantes italianos também produzem sentenças ativas em contextos <sujeito-beneficiário>. O comportamento desse grupo não foi, portanto, qualitativamente distinto do comportamento dos sujeitos brasileiros (i.e., não há, aparentemente, heterogeneidade entre os grupos). Como saber, no entanto, se esse fato realmente indica que não há evidência pró-transferência linguística nesses dados? O simples fato de os informantes italianos terem produzido a estrutura ativa é suficiente para provar que os dados dos informantes brasileiros não exibem um efeito de língua materna?

Jarvis menciona um estudo presente em Ringbom (1987) que ajuda a iluminar um pouco mais essa questão. De acordo com o estudo, os falantes de finlandês-L1 possuem uma tendência maior de omitirem artigos e preposições em sua performance em língua inglesa quando comparados a falantes suecos. O fato importante, aqui, é que, ao se afirmar que os finlandeses são mais propensos a omitir artigos e preposições, não se está dizendo que os suecos não omitam esses mesmos itens em sua produção interlinguística. Antes, a diferença entre eles é que no grupo dos finlandeses esse padrão ocorre com uma frequência significativamente maior que no outro. Esse fato aponta duas questões altamente relevantes para a análise dos dados desta pesquisa: a primeira delas é que o fato de os falantes italianos produzirem sentenças com a estrutura ativa em contextos <sujeito-beneficiário> não exclui a possibilidade de o mesmo fenômeno, na IL dos falantes brasileiros, ter sofrido um efeito de língua materna. A segunda diz respeito à necessidade de se submeterem os dados coletados a uma análise estatística, a fim de se verificar se as diferenças ou semelhanças detectadas entre dois grupos são, de fato, significativas. Vejamos a primeira questão em mais detalhes.

Do ponto de vista lógico, é plenamente possível que um dado fenômeno interlinguístico decorra de razões distintas, assim como um sintoma corporal pode ser indício de diferentes enfermidades. À luz desse raciocínio, pensemos nos dados produzidos pelos falantes italianos, e suponhamos, ainda, que a produção de sentenças ativas, em contextos <sujeito-beneficiário>, também ocorra na interlíngua de falantes de outras línguas maternas, aprendizes de inglês-L2. Diante desse cenário imaginário, duas hipóteses podem ser formuladas, do ponto de vista lógico:

(1) A produção de sentenças ativas, em contextos <sujeito-beneficiário>, deve-se a um fator desenvolvimental e/ou universal da aquisição, já que é encontrada na interlíngua de falantes de diversas L1s;

(2) As línguas maternas desses falantes (i.e., cuja interlíngua licencia sentenças de estrutura ativa em contextos <sujeito-beneficiário>) também licenciam o mesmo fenômeno.

O ponto que se deseja propor, aqui, é o seguinte: se, algum dia, a pesquisa mostrar que a produção de sentenças com estrutura ativa, em contextos <sujeito-beneficiário>, resulta de um fator desenvolvimental (o que, por conseguinte, implicaria prever sua potencial ocorrência em todo e qualquer sistema interlinguístico, independentemente da L1 do falante - Hipótese 1), ainda assim não seria possível descartar a hipótese de que o mesmo fenômeno, na interlíngua do falante brasileiro, aprendiz de inglês-L2, seja resultado da influência da língua portuguesa. No nosso entender, é plenamente possível que um dado fenômeno decorra de fatores desenvolvimentais ou universais da aquisição e receba, adicionalmente, um impacto da língua materna, ideia que já foi, inclusive, defendida por Zobl (198012 12 Zobl defende a existência de uma superposição [ overlap] entre os erros "desenvolvimentais" e aqueles atribuídos à influência de L1, mostrando que as duas categorias de erros podem ter a mesma origem, i.e., o processamento de propriedades do insumo da L2. Zobl hipotetiza que os erros decorrentes de um efeito de L1 surgem primeiramente como erros desenvolvimentais e, posteriormente, recebem um impacto de uma estrutura da língua materna, compatível com o erro desenvolvimental. Nesses casos (i.e., em que há um reforço do erro via influência de L1), o tempo necessário para que ocorra a reestruturação da regra que o gerou pode ser maior do que o tempo requerido para a reestruturação de uma regra responsável por um erro que não sofre esse tipo de efeito. ). Esse pensamento é possível porque a L1 não é o único fator a influenciar a interlíngua de um falante, podendo ocorrer em parceria com outros fatores (GASS & SELINKER, 1994, p. 79-80) Nessa situação hipotética, o impacto da L1 poderia ser constatado, caso a interlíngua desses falantes exibisse uma tendência significativamente maior de conter sentenças com a estrutura ativa, à semelhança do que se constatou no estudo recuperado por Jarvis: a influência de L1, sobre a interlíngua dos falantes de finlandês-L1, foi detectada justamente na tendência significativamente maior que esses falantes demonstravam de omitir artigos e preposições, em comparação com os falantes suecos.

Pensemos agora na Hipótese 2, que cogita sobre a possibilidade de as línguas maternas desses informantes hipotéticos também licenciarem a alternância agente-beneficiário. Na segunda seção deste artigo, foi mencionado o estudo de Cançado (2007) sobre a alternância agente-beneficiário no PB. Embora o objetivo de Cançado não tenha sido o de provar a inexistência do fenômeno em outras línguas, foi sugerido, em seu texto, que pelo menos seis idiomas, dentre os quais o italiano e o inglês, não licenciariam esse tipo de alternância. Caso, porém, a pesquisa linguística venha mostrar que a alternância agente-beneficiário é licenciada em outros idiomas e que, na interlíngua de falantes nativos dessas línguas ocorrem sentenças do tipo JohnBEN cut his hair, esse fato, mais do que o anterior, não exclui a possibilidade de os dados verificados na produção dos sujeitos brasileiros decorrerem da influência da língua portuguesa sobre a interlíngua. Jarvis toca nesse ponto ao afirmar que, em algumas situações, o comportamento de falantes de línguas maternas distintas não se mostra heterogêneo, simplesmente porque suas línguas maternas comportam-se de modo semelhante naquele ponto investigado (JARVIS, 2000, p. 257). Depreende-se daí que a inexistência de heterogeneidade entre dois grupos nem sempre é prova de que a língua materna não influenciou a performance do aprendiz.

Uma maneira de se evitar tal situação é mediante a comparação de falantes cujas L1s de fato se comportem diferentemente no tocante ao fenômeno analisado. Foi o que se buscou fazer nesta pesquisa. Porém, ao contrário do que se esperava, verificou-se uma alta frequência da estrutura ativa nos dados de produção dos falantes italianos. Esses dados podem tanto fomentar a hipótese de que o italiano também licencia a alternância agente-beneficiário (Hipótese 2, antes mencionada), quanto a de que esse fenômeno é um fato universal da aquisição (Hipótese 1), haja vista o fato de ter se manifestado na interlíngua desses falantes e ainda, na produção em L1 dos informantes americanos. Evidentemente, este estudo não se propôs a investigar nenhuma das duas questões. O ponto importante, aqui, é que os dados da interlíngua dos falantes italianos não são capazes, em princípio, de excluir a hipótese da transferência linguística.

Ao fazermos essa observação, não estamos questionando de modo algum a utilidade da evidência da heterogeneidade para os estudos de transferência linguística, mas, sim, buscando reforçar a importância de se submeterem os dados a um tratamento estatístico, como apontado anteriormente. Neste estudo, buscou-se tratar estatisticamente todos os dados obtidos. Porém, devido ao pequeno número de informantes, sobretudo no grupo dos falantes italianos, e ainda ao pequeno número de dados válidos, tal procedimento foi inviável em certos momentos. Nos casos em que tal análise pôde ser levada adiante, muitas foram as situações em que as diferenças não se mostraram significativas, fato que pode estar relacionado, mais uma vez, ao tamanho da amostra.

Tendo em vista o que se discutiu anteriormente, o que se pode dizer é que os dados obtidos não são conclusivos com relação ao fenômeno da transferência linguística. Embora tenha havido homogeneidade no comportamento dos informantes do grupo intermediário, a comparação entre a interlíngua dos falantes italianos e dos brasileiros não nos permite afirmar que ocorre transferência linguística, nem que ela não ocorre. Para que se possa fazer qualquer afirmação desse tipo, é necessário coletar dados com um número maior de informantes italianos, para que seja possível submetê-los a um tratamento estatistico eficaz. Ademais, como os três informantes italianos produziram unicamente a estrutura ativa, valeria a pena investigar mais a fundo se a língua italiana de fato não licencia o fenômeno da alternância agente-beneficiário.

O único momento em que os dados experimentais pareceram sugerir um efeito de transferência linguística foi com relação ao evento da cirurgia oftálmica. Nesse contexto, o uso da construção ativa na produção brasileira surpreende, dada a complexidade da ação e ao fato de ela requerer a atuação de um médico. Embora a construção ativa também tenha ocorrido no grupo italiano, ela ocorreu apenas uma vez. Outro fato importante é que nesse contexto, os falantes nativos do inglês não empregaram a construção ativa em nenhum momento. Novamente, devido à pequenez da amostra do grupo italiano, torna-se impossível fazer qualquer afirmação em caráter conclusivo. Fica, no entanto, a indicação de que a produção de ativas, pelos brasileiros, nesse único ambiente parece sugerir um efeito de transferência linguística.

Por último, retomamos os dados produzidos pelos falantes nativos de inglês. A fim de verificar se havia diferenças significativas entre o comportamento desse grupo e o comportamento dos brasileiros, foi rodado o Teste Exato de Fisher nesses dados. O tratamento não revelou diferenças significativas entre os grupos. Frente a isso, poder-se-ia indagar se a proposta da hipótese da transferência linguística se justificava, uma vez que não houve, em princípio, uma diferença observável entre o comportamento dos falantes brasileiros e o dos falantes nativos do inglês a ser explicada pela influência do português sobre a interlíngua.

Nosso entendimento atual a respeito dessa questão é semelhante ao pensamento que esboçamos anteriormente, ao falar dos dados produzidos pelos falantes italianos. O fato de os falantes nativos de inglês terem produzido dados semelhantes aos encontrados na interlíngua dos brasileiros não exclui a possibilidade de haver um efeito de língua materna operando na interlíngua do aprendiz brasileiro. A questão crucial não é o falante nativo do inglês não produzir sentenças do tipo JohnBEN cut his hair. Não é a ausência desse tipo de dado na produção do falante nativo que garantirá que sua ocorrência na interlíngua do falante brasileiro constitui evidência de transferência linguística, assim como não é a ausência desse dado na interlíngua do falante italiano (ou na interlíngua de qualquer outro falante cuja L1 se comporte diferentemente do português) que garante que a produção de sentenças ativas na interlíngua do falante brasileiro decorre de transferência. A evidência necessária aqui é uma diferença estatisticamente significativa entre os grupos. No caso da comparação entre o falante nativo do inglês e o brasileiro, o que se deve verificar é se o falante brasileiro emprega estruturas ativas com uma frequência significativamente maior que o falante nativo do inglês. Essa constatação, no entanto, ficou comprometida no presente estudo devido ao número, também pequeno, de informantes falantes nativos do inglês. Nossa conclusão final a respeito da transferência linguística, como hipótese explicativa para a ocorrência de sentenças ativas no PB, é que os dados obtidos neste estudo simplesmente não são conclusivos. Essa hipótese foi cogitada, como explicação plausível para os dados encontrados, devido à correspondência estrutural existente entre sentenças com JoãoBEN cortou o cabelo, do PB, e John cut his hair, do inglês. Dado que nesta língua preconiza-se o emprego da construção causativa-passiva em contextos <sujeito-beneficiário>, hipotetizou-se que os falantes brasileiros apresentariam uma tendência significativamente maior de empregar sentenças com a estrutura ativa (i.e., John cut his hair) nesses contextos, devido a um efeito de língua materna.

Recebido: 12/05/2009

Aceito: 24/03/2010s

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  • *
    A autora agradece à CAPES pelo financiamento concedido à pesquisa.
  • 1
    O termo
    interlíngua, cunhado por Larry Selinker (1972), refere-se sistema linguístico construído pelo aprendiz de língua estrangeira, que não corresponde, em todos os seus aspectos, ao sistema de regras internalizado por falantes nativos da língua alvo.
  • 2
    No original: "L1 influence refers to any instance of learner data where a statistically significant correlation (or probability-based relation) is shown to exist between some feature of learners' IL performance and their L1 background." (JARVIS, 2000, p. 252).
  • 3
    NP (do inglês,
    noun phrase): sintagma nominal
  • 4
    Nessas sentenças, o sujeito sintático, longe de desencadear intencionalmente um processo, é na realidade um maleficiário da ação. Também não há nessas sentenças a ideia de um serviço prestado a esse indivíduo (SWAN, 1986, p. 269).
  • 5
    PP (do inglês,
    prepositional phrase): sintagma preposicional
  • 6
    BEN: Beneficiário
  • 7
    Embora não seja a estratégia preferida para se conferir proeminência ao beneficiário da ação verbal, essa sentença não fere as regras combinatórias da gramática inglesa. É nesse sentido que a classificamos como gramatical. Evidentemente que, para se poder hipotetizar que a produção de sentenças desse tipo decorre de transferência do PB, o papel temático atribuído ao sujeito dessas sentenças tem de ser o de beneficiário, como ocorre no PB. A fim de garantir essa atribuição, a produção dos sujeitos se deu dentro de contextos altamente indutivos de que o indivíduo lexicalizado como sujeito sintático era um beneficiário, e não agente, da ação.
  • 8
    Essa informação foi obtida por meio de um Questionário de Dados Biográficos, aplicado a todos os participantes. Os três informantes em questão afirmaram possuir certificado de proficiência no idioma.
  • 9
    Foi considerado proficiente o indivíduo que satisfizesse a pelo menos um dos seguintes critérios: (a) ser/ter sido professor de língua inglesa; (b) ser/ter sido tradutor desse idioma com experiência comprovada; (c) possuir certificado de proficiência em língua inglesa, expedido por instituições de ensino internacionalmente reconhecidas, como a Universidade de Michigan (EUA) e a Universidade de Cambridge (Inglaterra). Os seis informantes recrutados à parte cumprem pelo menos um desses requisitos.
  • 10
    P-valor é o resultado gerado pelo teste, após o processamento dos dados quantificados.
  • 11
    Segundo Jarvis (2000), a comparação a ser feita aqui é entre os dados de L1 e de IL produzidos por um mesmo informante, ou seja, um falante
    bilíngue. Isso implicaria submeter os informantes brasileiros a uma segunda coleta, dessa vez em português. Isso não foi realizado dessa maneira por duas razões. Em primeiro lugar, devido à possibilidade de o conhecimento da L2 (neste caso, o inglês), influenciar o desempenho do aprendiz em língua materna. A segunda razão se deve à possibilidade de a performance do aprendiz
    no experimento em inglês vir a influenciar o seu desempenho
    na versão traduzida do experimento, dado que as versões em língua inglesa e portuguesa são, essencialmente, iguais (condição necessária para gerar a comparabilidade entre os dados). Na impossibilidade de se realizar uma coleta tardia (cogitada como modo de minimizar esses efeitos indesejáveis), por questões de cronograma, a evidência da congruência foi obtida indiretamente, mediante a aplicação da versão traduzida do experimento a um grupo de falantes nativos do português, não-falantes de inglês. Os dados produzidos por eles foram tomados como representativos do desempenho dos sujeitos bilíngues em língua materna.
  • 12
    Zobl defende a existência de uma superposição [
    overlap] entre os erros "desenvolvimentais" e aqueles atribuídos à influência de L1, mostrando que as duas categorias de erros podem ter a mesma origem, i.e., o processamento de propriedades do insumo da L2. Zobl hipotetiza que os erros decorrentes de um efeito de L1 surgem primeiramente como erros desenvolvimentais e, posteriormente, recebem um impacto de uma estrutura da língua materna, compatível com o erro desenvolvimental. Nesses casos (i.e., em que há um reforço do erro via influência de L1), o tempo necessário para que ocorra a reestruturação da regra que o gerou pode ser maior do que o tempo requerido para a reestruturação de uma regra responsável por um erro que não sofre esse tipo de efeito.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      12 Maio 2009
    • Aceito
      24 Mar 2010
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