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Discursos sobre a Web 2.0 e a educaçâo: uma análise semiótica

Discourses about Web 2.0 and education: a semiotic analysis

Resumos

O surgimento da Web 2.0 e sua aplicação no contexto da educação ainda são muito recentes e praticamente desconhecidos nas escolas de educação básica, e mesmo no ensino superior. Ainda que imersos nessa nova tecnologia, raramente paramos para depreender seus efeitos. Um estudo de alguns textos colhidos na própria web pode nos ajudar a perceber alguns sentidos envolvidos nesse novo panorama. Qual é/são o(s) discurso(s) defendido(s) nesses textos? Pelos níveis fundamental, narrativo e discursivo da semiótica francesa, algumas ferramentas da sintaxe e da semântica contribuíram para se desvelar a construção do texto e os sentidos agregados a ele. Com base em textos verbal (artigo), imagético (charge, esquema) e sincrético (vídeo), direcionamos nosso foco ao plano do conteúdo para verificar variantes e invariantes entre as produções atuais sobre a relação entre Web 2.0 e educação.

linguagem e tecnologia; Web 2.0; educação; semiótica francesa


The emergence of Web 2.0 and its application in the context of education are still very new and virtually unknown in the schools of basic education, and even higher education. While we are immersed in this new technology, we rarely stop to infer its effects. A study of some texts caught in the web can help us understand some senses involved in this new approach. What is / are the discourse (s) defended in these texts? By fundamental, narrative and discursive levels of French semiotics, some tools of the syntax and semantics contributed to reveal the construction of the text and the senses aggregates to it. Based on verbal texts (article), Imaging (charge, schedule) and syncretic (video), we direct our focus to the plane of content to determine variations and invariant between products current on the relationship between Web 2.0 and education.

language and technology; Web 2.0; education; French semiotics


ARTIGOS

Daniervelin Renata Pereira; Ana Cristina Matte

UFMG, Minas Gerais (MG), Brasil. <daniervelin@yahoo.com.br>; <a9fm@yahoo.com>

RESUMO

O surgimento da Web 2.0 e sua aplicação no contexto da educação ainda são muito recentes e praticamente desconhecidos nas escolas de educação básica, e mesmo no ensino superior. Ainda que imersos nessa nova tecnologia, raramente paramos para depreender seus efeitos. Um estudo de alguns textos colhidos na própria web pode nos ajudar a perceber alguns sentidos envolvidos nesse novo panorama. Qual é/são o(s) discurso(s) defendido(s) nesses textos? Pelos níveis fundamental, narrativo e discursivo da semiótica francesa, algumas ferramentas da sintaxe e da semântica contribuíram para se desvelar a construção do texto e os sentidos agregados a ele. Com base em textos verbal (artigo), imagético (charge, esquema) e sincrético (vídeo), direcionamos nosso foco ao plano do conteúdo para verificar variantes e invariantes entre as produções atuais sobre a relação entre Web 2.0 e educação.

Palavras-chave: linguagem e tecnologia; Web 2.0; educação; semiótica francesa.

ABSTRACT

The emergence of Web 2.0 and its application in the context of education are still very new and virtually unknown in the schools of basic education, and even higher education. While we are immersed in this new technology, we rarely stop to infer its effects. A study of some texts caught in the web can help us understand some senses involved in this new approach. What is / are the discourse (s) defended in these texts? By fundamental, narrative and discursive levels of French semiotics, some tools of the syntax and semantics contributed to reveal the construction of the text and the senses aggregates to it. Based on verbal texts (article), Imaging (charge, schedule) and syncretic (video), we direct our focus to the plane of content to determine variations and invariant between products current on the relationship between Web 2.0 and education.

Keywords: language and technology; Web 2.0; education; French semiotics.

INTRODUÇÃO

A Web 2.0, segundo um dos seus próprios produtos, a Wikipédia, é:

um termo cunhado em 2004 pela empresa estadunidense O'Reilly Media para designar uma segunda geração de comunidades e serviços baseados na plataforma Web, como wikis, aplicações baseadas em folksonomia [indexação de informações] e redes sociais [ex.: orkut]. Embora o termo tenha uma conotação de uma nova versão para a Web, ele não se refere à atualização nas suas especificações técnicas, mas a uma mudança na forma como ela é encarada por usuários e desenvolvedores. (WIKIPÉDIA1 1 WEB 2.0. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2010. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Web_2.0&oldid=19297841 >. Acesso em: 05 nov. 2008. ).

Esse é um fenômeno sem uma aceitação unânime na medida em que muitos dos recursos reconhecidos como "da Web 2.0" são tomados como já existentes antes mesmo do surgimento da Web, sendo essa a posição de Tim Berners-Lee, o criador da World Wide Web. Um bom exemplo disso são protocolos de comunicação online como IRC (Internet Relay Protocol, 19882 2 Antes do IRC já existia, desde 1978, um protocolo chamado BBS ("um sistema informático, um software, que permite a ligação (conexão) via telefone a um sistema através do seu computador e interagir com ele, tal como hoje se faz com a internet" (cf: http://pt.wikipedia.org/wiki/BBS ). ) e ICQ (I Seek You, 19973 3 ICQ. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2010. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=ICQ&oldid=19553096 >. Acesso em: 22 fev. 2009. ). Não entraremos na discussão sobre a relevância do termo, mas tomaremos a Web 2.0 como um marco de um novo cenário do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), especificamente, em sua repercussão na educação.

Valente e Mattar (2007) dão uma noção da dimensão do surgimento da Web 2.0 pela possibilidade de criação de aplicativos extremamente parecidos com aqueles que são utilizados nos computadores pessoais sem a necessidade de instalações adicionais. "Ou seja, a Web 2.0 está próxima de ser um verdadeiro Sistema Operacional (...)" (p. 74).

Esse novo contexto tecnológico torna possível não só o uso de múltiplos recursos, em grande parte livres, como a colaboração na própria criação, modificação e redistribuição das ferramentas. Essa popularização e abertura do espaço digital propiciou uma maior mistura de conhecimentos, tornando a autoria uma questão complexa e questionável diante das vantagens de uma Inteligência Coletiva, como lembra Lévy (1999).

Trazemos à tona, aqui, alguns textos que apresentam algumas imagens da aplicação dos recursos dessa "nova geração" na educação. Ainda são poucos os relatos dessa experiência e os encontrados para este estudo, no ano de 2008, estão todos disponíveis na internet. Mais recentemente, entretanto, experiências com o uso das novas tecnologias são cada vez mais comuns, como mostra a programação do Hipertexto 20094 4 III Encontro Nacional sobre Hipertexto. Página do evento: http://www.ufpe.br/nehte/hipertexto2009/ . Acesso em 06 abril 2010. .

Para essa análise, utilizaremos a teoria semiótica francesa por permitir a análise de textos diversos (verbais, imagéticos, sincréticos), ou seja, por permitir a análise do texto, lato sensu. Isso é possível porque, como afirma Hjelmslev, "um texto é sempre divisível em duas partes; este número extremamente pequeno garante-lhe uma extensão máxima, e são a linha da expressão e a linha do conteúdo que, através da função semiótica, são solidárias uma em relação à outra." (2006, p. 63). Sendo assim, podemos fazer uma análise da expressão ou do conteúdo, ou mesmo dos dois planos de textos variados. Aqui, escolhemos nos aprofundar na forma do conteúdo, o que a semiótica standard tem feito com mais frequência, apesar dos desdobramentos atuais já permitirem estudos detalhados do plano da expressão.

Dessa maneira, optamos por apresentar os textos escolhidos individualmente e sua análise subsequente, a qual será direcionada para a relação Web 2.0 e educação/ensino.

1. POR QUE NÃO USAR WEB 2.0 E REDES SOCIAIS NO ENSINO?

O primeiro texto a ser analisado é um artigo escrito por Humberto Zanetti (2006), pesquisador em arquitetura da informação. Talvez por sua linguagem clara e/ou por ser um dos poucos textos que trazem uma abordagem direta sobre ensino pelas novas tecnologias no momento dessa pesquisa, esse texto é bastante citado, principalmente em blogs que abordam temas afins.

Por que não usar web 2.0 e redes sociais no ensino?

07 de dezembro de 2006, 13:06

Sempre pensamos em web 2.0 para o comércio ou para o relacionamento pessoal, mas poucos utilizam as vantagens dessas ferramentas e conceitos para a área da educação.

Por Humberto Zanetti

Recentemente um consultor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Seely Brown, comentou em entrevista sobre a falta de investimento das escolas e universidades de todo o mundo na elaboração de projetos educacionais que utilizem recursos de web 2.0.

Brown enfatiza que tais projetos poderiam introduzir nos alunos a cultura de divulgar e debater idéias, como no uso de wikis e blogs.

Este princípio é sempre enfatizado por pesquisadores na área da educação: dar a possibilidade de o aluno se tornar mais do que um ser passivo na etapa de aprendizagem. O aluno pode se tornar um agente pensante que veja nessas ferramentas a oportunidade ideal, estimulado pela possibilidade de formar e trocar conhecimentos.

O professor por sua vez terá a oportunidade de verificar aspectos muitas vezes difíceis de serem identificados na sala de aula, como a capacidade de elaborar textos, pesquisar sobre um assunto, dar uma opinião e debater a de outros.

Essa rede de comunicação também pode agregar valores à instituição de ensino. Um wiki bem desenvolvido, por exemplo, pode ser usado como ferramenta de pesquisa para alunos futuros, formando uma enciclopédia particular5 5 Disponível em: http://webinsider.uol.com.br/index.php/2006/12/07/james-della-valle/ . Acesso em agosto 2008. . (...)

Nesse texto predominantemente temático, podemos delinear dois enunciados básicos que determinariam suas partes principais:

1) "(...) falta de investimento das escolas e universidades de todo o mundo na elaboração de projetos educacionais que utilizem recursos de web 2.0".

Função: S2 (escolas)Ov (recursos da Web2.0)

A disjunção (∪) entre escolas e recursos da Web 2.0 nesse texto é um reflexo do contexto educacional, sendo mais do que somente uma questão de estrutura física: hoje em dia tanto escolas públicas quanto particulares investem nisso. As primeiras em função do interesse governamental na inclusão digital; as outras, como estratégia de marketing. No entanto, a presença dos recursos computacionais sem um planejamento de seu uso que utilize didaticamente os recursos da Web 2.0 mantém a situação de disjunção.

2) Web 2.0 pode transformar a educação porque traz a "possibilidade de o aluno se tornar mais do que um ser passivo na etapa de aprendizagem. (...) O professor por sua vez terá a oportunidade de verificar aspectos muitas vezes difíceis de serem identificados na sala de aula (...). Essa rede de comunicação também pode agregar valores à instituição de ensino"

Função: S2 (alunos, professores e instituição)Ov (possibilidade de mudança)

Esta conjunção (∩) trata a Web 2.0 como um valor modal: um poder-fazer. O uso da Web 2.0 sem essa imagem-fim, ou seja, sem uma proposta inovadora que explore suas possibilidades, tendo em vista que uma mudança impediria a conjunção de fato.

Notamos que o objeto idealizado pelo enunciador, colocado como destinador-manipulador, é a utilização dos recursos da Web 2.0 propriamente. Entretanto, embora esse percurso não seja priorizado no texto, podemos afirmar que os sujeitos entram em conjunção com a possibilidade de mudanças no ensino com o uso desse recurso. Essa possibilidade é, então, apresentada como um objeto modal ao poder dos sujeitos, discurso reportado ao sujeito Seely Brown. Os valores descritivos mudança, dinamicidade, eficiência são associados a esse objeto "recursos da web 2.0", sendo eles o alvo ou imagem-fim (GREIMAS & FONTANILLE, 1993) no percurso dos sujeitos.

Os destinatários professores e alunos seriam, com essa conjunção, atualizados por se relacionarem à modalidade de um poder implícito de realizar uma mudança em sua prática pedagógica. É preciso lembrar que esse valor "mudança" é inserido no texto pelo enunciador, sem uma menção da realização dessa ideia pelos destinatários em sua prática. Quando o enunciador cita formas para esses destinatários alcançarem o objeto valor, ele os modaliza por um dever fazer (virtualização) implícito e por um poder fazer, tornando-os sujeitos atualizados, mesmo que o fazer não seja privilegiado no enunciado.

No discurso de defesa do uso de novas tecnologias na educação, percebemos um fazer crer no interior da manipulação cognitiva corroborado pela demonstração e oferecimento do objeto positivo, Web 2.0 e seus valores, ou seja, uma manipulação por tentação. Essa manipulação acontece durante todo o enunciado que não apresenta os programas narrativos da ação e da sanção. A ação é idealizada ("uso de wikis e blogs") assim como a sanção positiva após a experimentação dos recursos da Web 2.0 é prevista em todo o texto (ex.: "Brown enfatiza que tais projetos poderiam introduzir nos alunos a cultura de divulgar e debater idéias (...)"). Essa constatação parece explicar a predominância da virtualização no texto e do efeito de sentido que dela decorre: muita abstração e pouca demonstração prática, ou seja, exemplos de uso real das ferramentas. Ainda podemos notar as várias ocorrências de enunciados em debreagem temporal enunciva6 6 "Debreagem" é um termo da semiótica usado para diferenciar a pessoa, tempo e espaço ontológicos da pessoa, tempo e espaço enunciados, como efeito de sentido. O eu/ele, aqui/lá, agora/então não são referências da realidade, mas escolhas que podem criar um efeito de 1) aproximação, subjetividade ou 2) distanciamento, objetividade. A debreagem enunciativa designa o primeiro efeito e a debreagem enunciva, o segundo. Essas noções, mais que nomenclaturas complicadoras, lembra-nos de que as escolhas não são inocentes, mas estratégias linguísticas responsáveis pelos sentidos produzidos no texto. , futuro, que complementa esse efeito de sentido.

Para finalizar, Joseph Courtés (1998) distingue "competência semântica" de "competência modal ou sintáxica". Citando o exemplo de um cozinheiro que tem em mão um livro de receitas (competência semiótica), ele afirma que não é o bastante, pois a habilidade manual (saber fazer) para executar a receita é necessária para a realização. O semioticista deixa claro que "a 'competência semântica' não é suficiente para se chegar à ação"7 7 "la 'compétence sémantique' ne suffit pas pour passer à l'action". (p. 22) (tradução nossa). Aplicando essa afirmação a nosso exemplo, podemos dizer que aos professores e alunos, mesmo contando com um conjunto de materiais que lhes deem suporte à prática, não é garantida uma ação realmente transformadora.

2. WEB 1.0 VS WEB 2.0

O segundo texto é uma representação gráfica da evolução da Web 2.0 em relação à fase anterior, chamada Web 1.0. Para adequação ao tema proposto, vamos considerar os sujeitos desse texto como os personagens típicos de uma escola: professor e alunos.

Restringindo-nos ao plano do conteúdo, podemos perceber que a questão principal nesse texto se centraliza no tema "comunicação". A rede de relações entre os sujeitos da segunda geração dos recursos da Web é muito mais dinâmica do que a primeira. Enquanto na primeira parte, Web 1.0, temos a ideia de transmissão de mensagens de um grupo limitado para muitos, na segunda parte, Web 2.0, temos a de troca de mensagens de muitos para muitos.

As cores das figuras que representam o sujeito "webmaster" e o sujeito "internautas" são diferentes. O sujeito "webmaster" é marcado pelo tom escuro, enquanto o sujeito "internautas" é marcado pela diversidade que inclui cores frias e quentes. A diversidade não é absoluta em todas as atuações do sujeito "internautas": enquanto na Web 1.0 todos os elementos são diferentes, na Web 2.0 eles são diferentes entre si somente enquanto cumprem a função de colaboradores; enquanto agentes em redes sociais suas cores indicam a formação de grupos diferenciados. Essa abordagem do tema implica uma ideia pré-concebida de que a interação em grupos, altamente valorizada socialmente, não afeta a individualidade, também altamente valorizada. Notamos que essa valorização exacerbada do indivíduo entra em contradição constante com a necessidade social de identidade "grupal". A Web 2.0, tal como abordada aqui, não resolve o paradoxo, apenas reforça-o, aceitando essa ideia ocidental do ser humano em sociedade sem qualquer questionamento.

As figuras que recobrem esse tema e a relação entre elas nos dizem muito sobre o texto citado. As figuras principais são as do Webmaster, na web, e, correlativamente, professor no contexto da educação, dos internautas ou alunos e das mensagens (verbal, visual, sincrética) usadas na comunicação. Quanto mais diversa e múltipla é a relação entre as figuras, mais recorrente é a ideia de dinamicidade, ou seja, a isotopia de dinamicidade na comunicação. O efeito de sentido produzido é o de que a Web 2.0 tornou os sujeitos mais atualizados para poderem se expressar em igualdade de condições e mais democraticamente. O que antes era permitido apenas a alguns, agora é direito de todos que tenham acesso aos novos recursos tecnológicos.

Com essa dinamicidade, a Web 2.0 se aproxima da reciprocidade ou circularidade característica da comunicação humana, como lembra Barros (2007). Dessa forma, ela traz a mesma "possibilidade que tem o receptor de tornar-se emissor e de 'realimentar' a comunicação, ou do alargamento e complexidade da comunicação (...)" (p. 24) em comparação com os modelos lineares de transmissão de mensagens de um emissor a um receptor, representados no esquema pela Web 1.0.

A Web 1.0 é explicitamente criticada nesse texto como via de mão única, na qual o sujeito "webmaster" é o único a determinar o que será divulgado na internet. Na Web 2.0 esse poder desapareceria. No entanto, uma observação atenta poderia levar à suspeita de que nos dois casos essa é uma visão limitada do processo.

No caso da Web 1.0, a garantia de acesso pelo sujeito "internautas" aos conteúdos escolhidos pelo sujeito "webmaster" depende da harmonia entre o que "webmaster quer divulgar" e o que "internautas querem ler". Trata-se de um contrato fiduciário que somente funcionará com a aceitação do destinatário "internautas". O poder do destinador "webmaster", portanto, não é ilimitado nem mesmo na Web 1.0.

Já na Web 2.0, por outro lado, a aparente liberdade absoluta do sujeito "internautas" é visivelmente limitada pelo fator "identidade grupal". As redes sociais na internet continuam tendo preponderância de alguns pontos de vista sobre outros. Na grande maioria dos casos, o que predomina são os pontos de vista que a mídia, especialmente televisiva, veicula, reflexo de uma sociedade de consumo na qual liberdade e perfeição são teoricamente alcançáveis e são imagens-fim não só aceitas como estimuladas.

Esses dois aspectos que, segundo os textos analisados, oporiam uma Web 1.0 e uma Web 2.0, são reflexo direto de valores sociais capitalistas e em nenhum dos dois casos, admitindo-se que exista a diferença entre Web 1.0 e Web 2.0, são fatores definitivos para a existência de liberdade na internet.

Pela própria natureza de esquema, como foi construído, nesse texto, assim como no anterior, não há exemplos concretos no interior dele de uma prática concreta dessa comunicação, o que ocorreria com a citação de um blog ou wiki já existentes, por exemplo, em que o objeto delineado estivesse mais explícito. Vale lembrar que, aqui, temos um caso de virtualização, quando pensamos na generalização das ocorrências reais existentes e em atualização, uma vez há a pressuposição de um saber e poder ser, ou seja, a possibilidade de o esquema ser realizado na prática dos usuários.

3. ENCICLOPÉDIA VS WIKIPÉDIA

Se a Web 2.0 tem como filosofia a colaboração, a Wikipédia é, em essência, um símbolo dessa ideia.

Wikipédia é uma enciclopédia multilíngüe online livre, colaborativa, ou seja, escrita internacionalmente por várias pessoas comuns de diversas regiões do mundo, todas elas voluntárias. Por ser livre, entende-se que qualquer artigo dessa obra pode ser transcrito, modificado e ampliado (...) (WIKIPÉDIA)9 9 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia . Acesso em 16 de dez. 2008. .

Sobre esse exemplo de recurso da Web 2.0, o cartoon a seguir é o terceiro texto a ser analisado aqui.

Fica claro que o humor do cartoon está justamente no que é conhecido e desconhecido pelos sujeitos. Mesmo que Wikipédia e enciclopédia tenham funções semelhantes no que diz respeito ao esclarecimento sobre os termos da língua, os sujeitos não sabem disso e vão procurar o sentido desta naquela.

O desafio de não saber o significado de uma palavra leva esses sujeitos à busca desse objeto (o sentido de enciclopédia). A manipulação pressuposta já foi feita por algum destinador que potencialmente tenha solicitado a pesquisa e a cena retratada apresenta a ação deles que, tendo a competência modal - sabem onde procurar e podem fazer isso (acesso à web) -, realizam a performance, ou seja, fazem a pesquisa.

É interessante notar a noção de espaço físico e "prático" nesse texto. Enquanto no espaço físico o aqui é associado a uma biblioteca ao lado dos sujeitos, com, talvez, alguma enciclopédia; o aqui no espaço da prática deles é representado pelo ambiente virtual, e a Wikipédia dentro dele. Em outras palavras: o texto se situa numa debreagem enunciativa em que o espaço privilegiado - aqui - é o do ambiente virtual.

Do mesmo modo como no primeiro texto, este também apresenta o tema da mudança por trás das figuras privilegiadas (livros _ web, enciclopédia _ Wikipédia). Mesmo que não fique clara a utilização da enciclopédia anteriormente por outros sujeitos, podemos dizer que há uma remissão do destinatário a um tempo passado ou, quiça, a um contexto diferente, em que a base das buscas seja feita nessa obra.

Para esse tema de mudança de suporte, podemos construir o quadrado semiótico abaixo:

A relação apresentada entre os dois suportes é de substituição e não de soma, o que confirma o tema da mudança e atualização, deixando pressuposto o abandono do antigo. Podemos ainda perceber a inserção do verbete "enciclopédia" dentro da Wikipédia como uma mudança de valores, em que esta última se torna referência nas consultas, diminuindo a "presença" daquela. Nesse caso, ocorre uma agregação da enciclopédia pela Wikipédia nos hábitos dos sujeitos representados.

Pensando ainda nas oposições suscitadas pelo texto, lembramos ainda a que remete ao contexto por trás do tema da acessibilidade. Enquanto a enciclopédia, em formato tradicional, é uma obra com direitos autorais e, mesmo em formato eletrônico, limitada; a Wikipédia é livre, sendo construída coletivamente e disponível a qualquer pessoa com acesso à web.

(...) o advento da Internet possibilitou a criação das enciclopédias livres, sendo atualmente a mais conhecida a Wikipédia. Nestas, pela primeira vez na história da humanidade, qualquer pessoa pode fazer contribuições e corrigir e/ou ampliar as entradas já existentes, o que resulta num banco de dados universal que é continuamente aperfeiçoado. (WIKIPÉDIA12 12 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Enciclop%C3%A9dia . Acesso em 14 fev. 2009. )

Acreditamos que se trata de uma oposição entre restrição vs liberdade, ainda que pudéssemos localizar uma gradação entre esses termos ao pensar na restrição financeira do acesso à enciclopédia tradicional e a restrição de acesso à Wikipédia, pela necessidade de conexão à internet.

Relacionando este texto aos anteriores, percebemos que é o primeiro texto que se aproxima de um exemplo prático da mudança que antes estava colocada de forma mais abstrata, mesmo que se trate de uma criação humorística. Tal enunciado deixa marcas de situações reais de mudanças no contexto sócio-histórico, percebidas e transmitidas pelo enunciador. Enquanto os dois primeiros textos eram temáticos, esse é mais figurativo. Podemos dizer que esse texto aborda o efeito da expansão das novas tecnologias na sociedade e a mudança de hábitos derivada dela, embora numa dimensão bem restrita.

Também, em termos mais gerais, ao relacionar a aplicação da Web2.0 à prática de ensino-aprendizagem, temos que os sujeitos estão atualizados, ou seja, sabem e podem fazer uso da ferramenta Wikipédia para seu aprendizado e realmente o fazem.

4. TECNOLOGIA OU METODOLOGIA

O nosso último texto faz uma crítica que vai além da Web 2.0, mas não deixa de inserir essa nova geração de serviços no amplo campo de novas tecnologias adaptadas ao contexto educacional. Trata-se de um vídeo disponível no YouTube, mais um dos recursos da Web 2.0, local onde se compartilha vídeos diversos.

Recortamos acima três cenas principais para o entendimento da transformação nessa narrativa; entretanto, incentivamos o acesso ao vídeo na íntegra para um entendimento melhor do texto e sua análise. No primeiro momento, a professora e os alunos estão numa sala de aula tradicional e a professora "toma" a tabuada dos seus alunos que repetem: "1 x 2 = 2, 2 x 2 = 4, 3 x 2 = 6...". Essa repetição é interrompida com batidas na porta e com a entrada do diretor da escola que traz um documento com o seguinte título: "Novas metodologias do ensino. Projeto de uma escola nova". Nesse segundo momento, ele garante que, com essa modernização, a escola terá uma "educação por excelência". Por fim, "uma semana depois", a escola apresenta um computador por aluno, televisão e um aparelho de DataShow, mas os alunos continuam repetindo a tabuada como no início.

Pelas três partes apresentadas: repetição da tabuada, anúncio de modernização e repetição da tabuada, fica claro que há uma variante (a tecnologia) e uma invariante (o método de ensino), o que garante o efeito cômico no texto.

A conjunção com novas tecnologias e disjunção com uma mudança real, poderiam ser esquematizadas assim:

(Onde: PN = programa narrativo, F = função, S1 = sujeito do fazer, _ transformação, S2 = sujeito do estado, ∩ = conjunção, ∪ = disjunção e Ov = objeto de valor.)

O destinador diretor da escola (representando a direção) leva o destinatário professor a dever fazer, ou seja, a dever usar novas tecnologias na sala de aula, sem, no entanto, oferecer um saber fazer, pois o professor não é preparado para a nova prática. A falha na doação de valores modais justifica uma má perfórmance14 14 Pérformance é um termo usado pela semiótica para designar o fazer do sujeito. Competência e perfórmance constituem o programa da ação no nível narrativo do percurso gerativo para essa teoria. que parece moderna, mas não é, ou seja, é mentirosa, segundo as modalidades veridictórias. Podemos notar a mudança do sujeito de fazer: a direção, ao doar os valores modais ao professor, sai de cena e o professor se torna o ator principal na tarefa da prática, estando incluído também no grupo dos sujeitos de estado (escola). A sanção negativa também pode ser depreendida por marcas no próprio texto, como a expressão de reprovação do diretor, o qual tinha o papel actancial de destinador manipulador e agora de julgador, e ainda pela ausência de mudança anunciada na segunda parte.

Dessa forma, mais uma vez o tema da mudança pela modernização é reforçada por trás das figuras computadores, TV e DataShow. Esse tema é, entretanto, desmascarado por outro mais forte, que é o da tradição, conservação.

O resultado desse jogo entre ser e parecer é um quadrado que permite vários caminhos entre os termos dependendo do percurso privilegiado: inovação (tecnológica) ou tradição (método de ensino).

Chegamos mais uma vez a um exemplo de virtualização em que os sujeitos ainda estão distantes de uma realização de sucesso pelas novas tecnologias.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No resumo a este texto, fizemos a pergunta: "Qual é/são o(s) discurso(s) defendido(s) nesses textos (os analisados)?" Se nos detivermos nos sentidos alcançados na "desconstrução" do discurso de inovação tecnológica na educação, poderemos estabelecer o quadro seguinte:

Texto 1 - Virtualização pelo dever fazer e atualização pelo poder fazer.

Texto 2 - Atualização pelo saber e poder ser.

Texto 3 - Realização (uso da Web 2.0).

Texto 4 - Virtualização pelo dever fazer.

Ao lado de um "fazer ser" que corresponde à perfórmance do sujeito, temos modalidades como o dever ser e o poder ser que são condições para essa realização do sujeito, o que constitui a competência modal do sujeito (LARA, 2004, p. 45). Observando o quadro, podemos notar a recorrência de textos que privilegiam a competência modal sem chegar à perfórmance.

Percebemos, então, abordagens ainda distantes de práticas pedagógicas bem sucedidas que estimulem a expansão dessa experiência, o que explica a insegurança de muitos professores na aplicação das novas tecnologias em suas aulas.

Sair das atitudes tradicionais para usar ferramentas computacionais no ensino não é fácil, mas quando é uma tentativa de proporcionar mais liberdade e aprendizado autônomo, como o do sujeito do cartoon, no texto 3, vale a pena arriscar uma mudança. Sobre a relação professor-alunos em ambiente digital, Matte (2009, p. 6) afirma:

O professor não deixa de orquestrar a atuação do destinatário como sujeito de um fazer (adquirir conhecimento), mas possibilita que o destinatário-aluno possa adquirir conhecimentos diferentes daquele que o próprio professor carrega. Os papéis, portanto, deixam de ser estáticos, passam a ser recíprocos.

Mesmo conscientes das dificuldades dessa prática pedagógica pelos recursos tecnológicos, como os da Web2.0, acreditamos no seu potencial para auxiliar práticas de ensino-aprendizagem mais eficientes, embora o sucesso da aprendizagem não dependa apenas deles. Entretanto, é preciso estar atento a mudanças efetivas na prática e não só no discurso para não agirmos como os atores do texto 4, por exemplo.

Finalmente, devemos retomar a discussão dos valores sociais de liberdade e individualidade: o fenômeno de globalização deve sempre ser tratado com o devido espírito crítico em qualquer área se estamos preocupados com uma educação para um sujeito ativo e socialmente atuante. Não são as ferramentas que definem seu uso: assim como existiam sistemas de comunicação, fóruns e locais para publicação de ideias individuais na Web desde que a internet começou a tornar-se possibilidade - antes mesmo de ser realidade, com o BBS, que citamos inicialmente - continuam existindo formas de persuasão e limitação da liberdade de expressão na internet hoje em dia. Sistemas como a Wikipédia ou o Orkut, por exemplo, podem ser lugar de interação, discussão e liberdade de expressão, mas possuem limitações que devem ser avaliadas pelo educador e evidenciadas por este para os alunos no momento de sua utilização para evitar a falsa ideia de liberdade absoluta. A consciência crítica ainda é nossa melhor arma contra a opressão.

Recebido: 23/02/2009

Aceito: 27/04/2010

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    Antes do IRC já existia, desde 1978, um protocolo chamado BBS ("um sistema informático, um software, que permite a ligação (conexão) via telefone a um sistema através do seu computador e interagir com ele, tal como hoje se faz com a internet" (cf:
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    ICQ. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2010. Disponível em: <
  • 4
    III Encontro Nacional sobre Hipertexto. Página do evento:
    http://www.ufpe.br/nehte/hipertexto2009/ . Acesso em 06 abril 2010.
  • 5
    Disponível em:
    . Acesso em agosto 2008.
  • 6
    "Debreagem" é um termo da semiótica usado para diferenciar a pessoa, tempo e espaço ontológicos da pessoa, tempo e espaço enunciados, como efeito de sentido. O
    eu/ele, aqui/lá, agora/então não são referências da realidade, mas escolhas que podem criar um efeito de 1) aproximação, subjetividade ou 2) distanciamento, objetividade. A debreagem enunciativa designa o primeiro efeito e a debreagem enunciva, o segundo. Essas noções, mais que nomenclaturas complicadoras, lembra-nos de que as escolhas não são inocentes, mas estratégias linguísticas responsáveis pelos sentidos produzidos no texto.
  • 7
    "la 'compétence sémantique' ne suffit pas pour passer à l'action".
  • 8
    Disponível em:
  • 9
    Disponível em:
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia . Acesso em 16 de dez. 2008.
  • 10
    Tradução nossa: "O que é uma enciclopédia? Eu não sei. Vou procurar o que é na Wikipédia".
  • 11
    BUCELLA, M. Disponível em:
  • 12
    Disponível em:
  • 13
    Disponível em:
  • 14
    Pérformance é um termo usado pela semiótica para designar o
    fazer do sujeito. Competência e perfórmance constituem o programa da ação no nível narrativo do percurso gerativo para essa teoria.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      23 Fev 2009
    • Aceito
      27 Abr 2010
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