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Educação como ato responsável: a formação de professores de linguagens à luz da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin

Education as a responsible act: teacher development in the light of the Bakhtinian Circle's language philosophy

Resumos

Partindo do pressuposto de que uma formação responsiva às demandas educacionais da contemporaneidade deve se voltar para educação linguística de professores de todas as áreas do conhecimento, capacitando-os a navegar por práticas de letramento cada vez mais inter e indisciplinares, pretendo, neste artigo, desencadear a discussão sobre as características de uma educação e formação responsável com base nas minhas respostas às leituras de textos do Círculo de Bakhtin inscritas na singularidade do meu existir-evento como professora, formadora e pesquisadora. Para tal, relaciono a concepção de educação responsável e responsiva aos conceitos de ato responsável, responsividade, dialogismo, ideologia, palavra autoritária e internamente persuasiva. Busco, por fim, alinhavar com as concepções do Círculo os diálogos travados em um existir-evento concreto: o projeto Práticas de linguagem em diferentes áreas do conhecimento na escola pública (PLIEP).

ato responsável; dialogismo; formação de professores


Framed on the conception that, to be responsive to the educational requirements of the contemporary world, a teacher education process should be targeted at the linguistic education of teachers involved in all areas of knowledge in order to qualify them to surf through the more and more inter and indisciplinary literacy practices, this article aims at triggering a discussion on the characteristics of a responsible education and teacher development. To achieve that, it will be brought into account my responses to readings of Bakhtin's Circle's texts inscribed in the singularity of my life-as-event as a professor, teacher educator and researcher. Additionally, the idea of responsible and responsive education will be related to the concepts of responsible act, responsivity, dialogism, ideology and authoritative and persuasive word. Finally, there will be an attempt to tack the Circle's ideas to the dialogues established in a concrete life-as-event situation, i. e. "Linguistic practices in different areas of knowledge in public schools" project (PLIEP).

responsible act; dialogism; teacher education


ARTIGOS

Educação como ato responsável: a formação de professores de linguagens à luz da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin

Education as a responsible act: teacher development in the light of the Bakhtinian Circle's language philosophy

Paula Tatianne Carréra Szundy

UFRJ, Rio de Janeiro (RJ), Brasil. ptszundy@uol.com.br

RESUMO

Partindo do pressuposto de que uma formação responsiva às demandas educacionais da contemporaneidade deve se voltar para educação linguística de professores de todas as áreas do conhecimento, capacitando-os a navegar por práticas de letramento cada vez mais inter e indisciplinares, pretendo, neste artigo, desencadear a discussão sobre as características de uma educação e formação responsável com base nas minhas respostas às leituras de textos do Círculo de Bakhtin inscritas na singularidade do meu existir-evento como professora, formadora e pesquisadora. Para tal, relaciono a concepção de educação responsável e responsiva aos conceitos de ato responsável, responsividade, dialogismo, ideologia, palavra autoritária e internamente persuasiva. Busco, por fim, alinhavar com as concepções do Círculo os diálogos travados em um existir-evento concreto: o projeto Práticas de linguagem em diferentes áreas do conhecimento na escola pública (PLIEP).

Palavras-chave: ato responsável; dialogismo; formação de professores.

ABSTRACT

Framed on the conception that, to be responsive to the educational requirements of the contemporary world, a teacher education process should be targeted at the linguistic education of teachers involved in all areas of knowledge in order to qualify them to surf through the more and more inter and indisciplinary literacy practices, this article aims at triggering a discussion on the characteristics of a responsible education and teacher development. To achieve that, it will be brought into account my responses to readings of Bakhtin's Circle's texts inscribed in the singularity of my life-as-event as a professor, teacher educator and researcher. Additionally, the idea of responsible and responsive education will be related to the concepts of responsible act, responsivity, dialogism, ideology and authoritative and persuasive word. Finally, there will be an attempt to tack the Circle's ideas to the dialogues established in a concrete life-as-event situation, i. e. "Linguistic practices in different areas of knowledge in public schools" project (PLIEP).

Keywords: responsible act; dialogism; teacher education.

INTRODUÇÃO

Em Para uma filosofia do ato responsável, um ensaio filosófico escrito na segunda década do século XX, Bakhtin (1920-24/2010) faz uma crítica veemente à tendência da ciência e da arte de estabelecer verdades gerais, universais, abstratas, sempre reiteráveis e constantes. Ao apartá-lo da sua singularidade no existir-evento, a teoria exaure e empobrece o ato, essencializando e des-historicizando a cultura. Nesse ensaio, Bakhtin desenha uma filosofia moral alicerçada em uma arquitetônica concreta do mundo como evento em que cada ser humano é insubstituível na responsabilidade sem álibi do seu existir.

Pressupondo que agir responsavelmente no existir-evento demanda atitudes responsivas do eu para mim, do eu para o outro e do outro para mim, o texto delineia conceitos chaves que virão a compor uma filosofia da linguagem centrada na dialogicidade de enunciados concretos produzidos e transformados no fluxo da vida (do existir evento).

Como linguista aplicada e professora atuando na formação inicial e continuada de professores, a leitura desse ensaio, as inter-relações com outros textos e conceitos do Círculo e as ressignificações decorrentes de debates com alunos da pós-graduação levou-me a refletir sobre caminhos para uma formação responsável, capaz de transformar enunciados cristalizados para aliviar, como quer a Linguística Aplicada, as inúmeras privações sofridas no cenário educacional brasileiro.

É justamente essa reflexão que me proponho a delinear neste artigo. Para tal vou alinhavar a concepção de educação responsável e responsiva a conceitos do Círculo de Bakhtin como ato responsável, responsividade, dialogismo, ideologia, gênero, palavra autoritária e internamente persuasiva.

Inicio o alinhavo inter-relacionando algumas concepções expressas por Paulo Freire (1997) em sua última entrevista a concepções da filosofia da linguagem postuladas pelo Círculo de Bakhtin. Parto dessas inter-relações para refletir sobre aspectos que caracterizariam uma educação responsiva às demandas da contemporaneidade e que deveriam, consequentemente, integrar processos de formação inicial e continuada de professores. Finalizo tecendo os diálogos entre a pesquisadora e seus outros (AMORIM, 2001) vislumbrados no desenho do projeto Práticas de linguagens em diferentes áreas do conhecimento na escola pública (PLIEP), que coordenei na Universidade Federal do Rio de Janeiro no período de abril de 2012 a julho de 2013. Para essa tessitura, o projeto inicial submetido à FAPERJ é tomado como o enunciado concreto para análise.

1. EDUCAÇÃO COMO DIÁLOGOS QUE NOS TRANSFORMAM

Dado o fato de que a concepção sócio-histórica da linguagem do Círculo de Bakhtin é frequentemente convocada para compreender e responder às privações sofridas na esfera educacional, é fundamental pensar sobre paisagens educacionais que podem ser constantemente redefinidas à luz de uma filosofia da linguagem centrada na dialogicidade de enunciados concretos produzidos e transformados no fluxo da vida, do existir-evento.

Foi nesse fluxo do existir-evento, na Rússia revolucionária assolada pela instabilidade e pobreza, em um diálogo ininterrupto com as vozes de outrem, que um grupo de intelectuais soviéticos co-construiu uma teoria da linguagem interdisciplinar e inacabada e, portanto, passível de inúmeras interpretações e transformações no fluxo da comunicação verbal. A multiplicidade de vozes e lugares está presente na própria constituição do Círculo, cujos membros se originam de várias cidades da Rússia: Nevel, Vilnius, São Pertersburgo, Vitebsk e Orel e exerceram múltiplas atividades profissionais: musicistas, professores (de filosofia, história, literatura), jornalistas, filósofos, historiadores, filólogos, poetas e escultores (BRAIT, 2009). Tal multiplicidade possibilitou que Bakhtin vivenciasse o pluralismo linguístico e cultural que, segundo Brait (2009, p. 19), "mais tarde se transformaria em uma de suas preocupações centrais, aflorando teoricamente como polifonia, heteroglossia, plurilinguismo, dialogismo".

Por pressupor que em diálogos sempre situados cultural, histórica e ideologicamente somos transformados e capazes de transformar os inúmeros contextos em que interagimos com outrem, as concepções do Círculo são constantemente resituadas e ressignificadas no campo educacional, o que certamente ocorre porque esse movimento dialético de transformar e ser transformado abre caminhos para o que Freire (1992) designou pedagogia da esperança. Dada a inscrição de ambas as teorias no Marxismo e o fato de vislumbrarem a possibilidade de revolucionar e redesenhar os processos históricos, é possível estabelecer um diálogo profícuo entre concepções da Pedagogia freiriana e aquelas do Círculo. É a partir de enunciados concretos que compõem trechos da última entrevista concedida por Paulo Freire em 17 de abril de 19971 1 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Ul90heSRYfE, acesso em 13.01.2013. , pouco antes de sua morte, que esboço algumas possibilidades de diálogo.

Na primeira parte dessa entrevista, com duração de cerca de sete minutos, Freire (1997) utiliza o então movimento dos trabalhadores rurais brasileiros sem terra para discutir o papel das marchas históricas na nossa constituição como seres humanos capazes de nos inserir no mundo para transformá-lo.

Em sua assunção de que, a exemplo da luta dos trabalhadores rurais sem terra, "é preciso brigar para que se obtenha o mínimo de transformação" e negação de qualquer posição fatalista em relação à história e, portanto, à vida, Freire (1997) inscreve atividades educacionais, educandos e educadores no existir evento sem álibi (BAKHTIN, 1920-24/2010), priorizando, como faz a filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, a agentividade do ser humano. É essa agentividade, decorrente da nossa capacidade de transformar a história a partir das marchas entoadas, dos significados (des)construídos, que nos diferencia das outras espécies, fazendo com que cada enunciado seja entoado e vivenciado de forma singular no fluxo dos infinitos diálogos exteriores e interiores entrelaçados ao existir-evento em uma determinada sociedade.

A compreensão de Freire (1997) de marchas como andarilhagens históricas que nos afirmam como gente e como sociedade querendo democratizar-se só tem lugar se os enunciados concretos, os variados gêneros do discurso que entoam essas marchas forem considerados na sua dimensão histórico-ideológica em relação estreita com o contexto, a multiplicidade de vozes ecoadas e apreciações valorativas provocadas (VOLOSHINOV, 1929/1999; BAKHTIN, 1953/2011). É a consciência dessa dimensão que possibilita que entendamos as marchas presentes em relação às passadas, dotando-nos da capacidade de projetar marchas futuras e, portanto, de transformar a realidade.

Freire (1997) enfatiza que a tomada de posições rebeldes e transformadoras pressupõe mais do que uma simples adaptação ao mundo, demanda a inserção no mundo e a consciência de que toda realidade é prenhe de transformação. A importância da inserção no mundo pode ser relacionada à filosofia do ato responsável delineada por Bakhtin (1920-24/2010), em que o autor enfatiza a singularidade sem álibi do nosso existir-evento construída a partir da responsabilidade e responsividade do eu para mim, do eu para o outro e do outro para mim. Quanto mais desenvolvida a consciência de que nenhuma realidade é assim mesmo (FREIRE, 1997), ou seja, de que os enunciados mais refratam do que retratam a realidade (VOLOSHINOV, 1929/1999), maiores as possibilidades de se inserir no mundo para transformá-lo.

Enquanto a adaptação ao mundo é compreendida como a adequação a certas condições geográficas, climáticas, biológicas, sociais, entre outras, a inserção é proposta como a "tomada de decisão no sentido da intervenção no mundo" (FREIRE, 1997). Partindo dessa compreensão, Freire (1997) recusa qualquer posição fatalista perante a realidade, afirmando que "nenhuma realidade é assim mesmo, toda realidade está aí submetida à possibilidade de nossa intervenção nela". Finaliza essa primeira parte da entrevista situando seu papel como educador na possibilidade de contribuir para uma assunção crítica perante a passividade para que essa seja transcendida em posturas rebeldes e transformadoras do mundo.

Por entender que os construtos do círculo possibilitam a assunção crítica perante práticas monologizadas e autoritárias de ensino-aprendizagem e formação de professores e, portanto, a busca de experiências mais dialógicas e persuasivas que criem possibilidades para transformações, passo, na seção seguinte, a discutir, pautada na minha atitude responsiva a algumas concepções do Círculo, as características do que compreendo como uma educação responsável e responsiva ao mundo contemporâneo.

2. POR UMA EDUCAÇÃO RESPONSIVA

Foi a partir da leitura de Para uma filosofia do ato responsável e das relações dialógicas estabelecidas entre as reflexões postuladas por Bakhtin (1920-24/2010) nesse ensaio com outros textos do círculo e concepções da psicologia pedagógica de Vygotsky, que a pergunta 'O que significa educar como ato responsável?' emergiu durante discussões com alunos em um curso que ministrei na pós-graduação no primeiro semestre de 2012. As atitudes responsivas decorrentes dessas discussões e de outras práticas de formação de professores em que estive e estou engajada forneceram, então, material para uma palestra proferida na Universidade Federal de Uberlândia que, por sua vez, está sendo retextualizada e ressignificada neste artigo2 2 Agradeço aos alunos do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Linguística Aplicada da UFRJ que fizeram o curso Aprendizagem-e-desenvolvimento e linguagem na vertente sócio-histórica: diálogos entre Vygotsky e Bakhtin pelos diálogos incitados, aos membros do Laboratório de Estudos Polifônicos e participantes da III Jornada de Estudos Discursivos, realizada na Universidade Federal de Uberlândia em outubro de 2012, pela possibilidade de ampliar esses diálogos. .

Além de ilustrar a natureza dialógica e intergenérica do processo de (re)criação de significados, o processo descrito acima também revela um posicionamento epistemológico inscrito no existir-evento, consciente de que

[...] É necessário reconduzir a teoria em direção não a construções teóricas e à vida pensada por meio destas, mas ao existir como evento moral, em seu cumprir-se real - à razão prática - o que, responsavelmente, faz quem quer que conheça, aceitando a responsabilidade de cada um dos atos de sua cognição em sua integralidade, isto é, na medida em que o ato cognitivo como

meu

ato faça parte, com todo o seu conteúdo, da unidade da minha responsabilidade, na qual e pela qual eu realmente vivo e realizo atos. (BAKHTIN, 1920-24/2010, p. 58)

É, portanto, na singularidade dos eventos que vêm constituindo a minha trajetória como professora-pesquisadora e formadora de professores que sintetizo a seguir a minha compreensão ativa do que significa educar responsável e responsivamente.

Fundada, especialmente, na concepção de dialogismo, a filosofia da linguagem do círculo de Bakhtin defende que o ser humano e sua consciência só se constituem como tal no fluxo da interação verbal, ou seja, nos diálogos e atitudes responsivas que estabelecemos com os enunciados de outrem no mundo social. Como o enunciado só adquire vida no fluxo da comunicação verbal situada social, histórica e ideologicamente, o seu sentido nunca se esgota em si mesmo, ou seja, sempre dialoga com outros enunciados, refratando mais do que retratando sentidos (VOLOSHINOV, 1929/1999). Assim, se pensarmos que uma educação responsável deveria fornecer ferramentas para compreensão, engajamento e eventual transformação das práticas sociais, parece fundamental que atividades e projetos pedagógicos extrapolem a materialidade do enunciado para situá-lo histórica e ideologicamente, pois

[...] a psicologia do corpo social deve ser estudada de dois pontos de vista diferentes: primeiramente, do ponto de vista do conteúdo, dos temas que aí se encontram atualizados num dado momento do tempo; e, em segundo, do ponto de vista dos tipos e formas de discurso através dos quais estes temas tomam forma, são comentados, se realizam, são experimentados, são pensados etc... (VOLOSHINOV, 1929/1999, p. 42)

Em sua crítica ao objetivismo e subjetivismo abstrato, o Círculo de Bakhtin nega qualquer possibilidade de compreensão, análise e transformação dos tipos relativamente estáveis de enunciados - os gêneros do discurso - à luz de concepções universalizantes sobre a linguagem que, ao apartar a língua da vida, acaba por fazer desta uma língua morta. Muitas práticas pedagógicas ainda se inserem no processo de segregação entre linguagens e vida social. É, portanto, fundamental que as práticas de ensino-aprendizagem em todas as disciplinas escolares engajem os aprendizes em embates ideológicos com temas socialmente relevantes e inscrevam as práticas de produção e compreensão de textos orais e escritos nos tipos e formas do discurso em que tais textos circulam no mundo social.

Dado o fato de que as formas de discurso que circulam no mundo social intercalam-se a e hibridizam-se com múltiplas linguagens verbais e não verbais, a concepção de hibridização como "mistura de duas linguagens sociais no interior de um único enunciado, [...] o reencontro na arena deste enunciado de duas consciências linguísticas, separadas por uma época, por uma diferença social (ou por ambas) (BAKHTIN, 1975/1998, p. 156)" coloca-se como fundamental na reflexão sobre uma educação responsiva à contemporaneidade.

Pensando, portanto, na forma como textos verbais e não verbais se hibridizam na sociedade contemporânea, uma educação responsiva às práticas de usos das linguagens no mundo contemporâneo deve se formar em uma perspectiva de multiletramentos.

Rojo sublinha que

[...] diferentemente do conceito de letramentos (múltiplos), que não faz senão apontar para a multiplicidade e variedade das práticas letradas, valorizadas ou não nas sociedades em geral, o conceito de multiletramentos aponta para dois tipos específicos e importantes de multiplicidade presentes em nossa sociedade, principalmente urbanas, na contemporaneidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e comunica. (ROJO, 2012, p. 13)

Ao discutir a questão dos gêneros intercalados, dos processos de hibridização de enunciados e de como os gêneros primários são transformados no interior do romance, transformando, simultaneamente, esse gênero complexo, Bakhtin (1975/1998) já sinaliza que um gênero só pode ser compreendido e, portanto, (re)enunciado em suas relações inter-genéricas. Em uma sociedade altamente semiotizada e tecnologizada, que requer cada vez mais a capacidade de manipular e re-construir significados a partir de multissemioses e multimodalidades de forma a operar com multiletramentos, o conceito de intergenericidade e hibridização de linguagens coloca-se como central para redesenhar práticas de compreensão e produção de textos nas diferentes áreas do conhecimento.

Para desenvolver a capacidade de manipular e re-construir significados, é fundamental que a escola forme analistas dos discursos capazes de compreender que escolhas (verbais e não verbais) não apenas retratam, mas principalmente constroem significados.

[...] Expressões como "alto", "baixo", "abaixo", "finalmente", "tarde", "ainda", "já", "é necessário", "deve-se", "mais além", "mais próximo", etc. não somente assumem o conteúdo-sentido no qual fazem pensar - isto é somente o conteúdo-sentido possível - mas adquirem valor real, vivido, necessário e de peso, concretamente determinado do lugar singular por mim ocupado na minha participação no existir-evento. (BAKHTIN, 1920-24/2010, p. 119)

Ao descrever o processo de criação de Levantados do chão, romance responsável pela sua inserção no cânone literário português e mundial, Saramago explica:

Então comecei a escrever como todo mundo faz, com guião, com diálogos, com a pontuação convencional, seguindo a norma dos escritores. Quando ia na página 24 ou 25, e talvez esta seja uma das coisas mais bonitas que me aconteceu desde que estou a escrever, sem o ter pensado, quase sem me dar conta, começo a escrever assim: interligando, interunindo o discurso direto e o indireto, saltando por cima de todas as regras sintáticas ou sobre muitas delas. O caso é que quando cheguei ao final não tive outro remédio senão voltar ao princípio para pôr as 24 páginas de acordo com as outras. (SARAMAGO, s.d., apud LOPES, 2009, pp. 94-5)

A criação, o processo de reescrita de Levantados do chão inaugura na experiência vivida do existir-evento sem álibi o estilo saramaguiano, caracterizado pela escrita oralizada, pela insubordinação consciente às regras sintáticas e de pontuação, pelo entremeio de vozes em períodos longos que, persuasivamente, desconstroem, desestabilizam o que até então era tomado como cânone na escrita literária portuguesa. As escolhas de Saramago revelam um posicionamento crítico perante a linguagem e a vida, a indisciplinaridade de quem sabe que escolhas verbais (e não verbais) transformam sentidos. Para Saramago só há lugar em projetos pedagógicos que criem espaços para um posicionamento crítico em relação a escolhas verbais e não verbais inscritas no existir-evento e não naqueles que abstraem as linguagens da vida, universalizando regras e estreitando sentidos.

Como o desenvolvimento de uma postura crítica perante escolhas sempre situadas requer a compreensão de que os significados são desestabilizados e transformados em processos sempre históricos de transformação social, cabe à escola questionar a estabilidade dos significados para transformá-los, pois

[...] Não há nada na composição do sentido que possa colocar-se acima da evolução, que seja independente do alargamento dialético do horizonte social. A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nada pode permanecer estável neste processo. (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 1929/1999, p. 136).

Em um contexto em que aprendizes circulam pelos novos letramentos digitais e se tornam cada vez mais produtores de significados na rede, parece-me que o papel central do educador é desconstruir significados e orientar as escolhas verbais e não verbais de forma a desvelar os significados refratados a partir das escolhas realizadas e problematizar de que forma significados que causam sofrimento, exclusão ou revelam preconceitos podem ser reconstruídos de forma mais crítica e ética.

Processos de desconstrução e reconstrução de significados que levem à assunção de que a realidade está sujeita à possibilidade de nossa intervenção (FREIRE, 1997) pressupõem que a função sócio-ideológica dos gêneros sejam historicizadas e problematizadas de forma a formar enunciadores capazes de transformar significados. Logo,

[...] faz-se necessária uma elaboração especial da história dos gêneros discursivos, que refletem de modo mais imediato, preciso e flexível todas as mudanças que transcorrem na vida social. Os enunciados, seus tipos, isto é, os gêneros do discurso, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem. Nenhum fenômeno novo (fonético, léxico, gramatical) pode integrar o sistema da língua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentação e elaboração de gêneros e estilos. (BAKHTIN, 1953/2011, p. 269)

Com a convocação do conceito de gêneros do discurso/texto para atender às demandas educacionais da sociedade contemporânea, é frequente nos depararmos com práticas de transposição didática de gêneros em que estes são utilizados como pretexto para reproduzir práticas tradicionais de ensino de línguas em que as estruturas linguístico-discursivas são universalizadas, abstraídas e, portanto, apartadas do existir-evento.

Outra prática comum sinalizada por Rojo (2000); Kleiman (2006); Szundy (2009); França; Szundy (2010); Szundy (2011); Szundy e Cristóvão (2008), entre outros, são aquelas que focam quase exclusivamente nas características estáveis do gênero e pouco ou nada no conteúdo temático, na estrutura e estilo do gênero inscrito em um suporte e esfera social específica. Embora tais práticas levem os aprendizes a recitar as características estáveis de uma receita, notícia, tiras em quadrinhos etc., não os empoderam para transformar significados, na medida em que desconsideram as relações intergenéricas constituídas em processos históricos em que aspectos somente relativamente estáveis são frequentemente desestabilizados em processos de experimentação e (re)elaboração de novos gêneros e estilos (BAKHTIN, 1953/2011).

A partir do pressuposto de que a compreensão das instabilidades decorrentes de processos históricos de transformação dos gêneros criam mais possibilidades para a assunção de uma postura crítica perante significados refratados e construídos a partir de escolhas linguísticas e paralinguísticas, uma educação situada no existir-evento deve instaurar o conflito e desestabilizar práticas e ideologias cristalizadas que causam dor. Tal educação possibilita a compreensão de que

[o] diálogo das linguagens não é somente o diálogo das forças sociais na estática de suas coexistências, mas é também o diálogo dos tempos, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce; aqui a coexistência e a evolução se fundem conjuntamente na unidade concreta e indissolúvel de uma diversidade contraditória e de linguagens diversas. (BAKHTIN, 1975/1998, p. 161)

Para que a aprendizagem revolucione de fato o curso do desenvolvimento (VYGOTSKY, 1930/1998), é fundamental que se estabeleçam diálogos significativos entre as diferentes linguagens, de forma que os aprendizes percebam que os significados não são estáticos e nem construídos apenas no presente, em um vácuo histórico. A percepção das inter-relações entre significados presentes, passados e futuros pressupõe que as atividades propostas para mediar as atitudes responsivas com os inúmeros textos que circulam no mundo social entrelacem os discursos refratados com o existir-evento, possibilitando a compreensão, desestabilização e transformação de significados e práticas que causem dor. E, como desestabilizações geram conflitos, processos de construção de conhecimento que revolucionem o desenvolvimento devem permitir que os diálogos entre as múltiplas linguagens - e entre as diversas áreas do conhecimento - se tornem arenas para batalhas ideológicas (BERNSTEIN, 1993).

Para evitar que esses diálogos sejam monologizados no interior da palavra autoritária que, segundo Bakhtin (1975/1998), requer de outrem assimilação e concordância, é fundamental que as práticas pedagógicas instaurem a palavra persuasiva de forma a permitir que as vozes de outrem sejam ressignificadas em contextos, textos e modalidades diversas.

Ao descrever processos caracterizados pela palavra persuasiva, Bakhtin enfatiza que

[...] Estes processos dão lugar a uma interação máxima da palavra do outro com o contexto, a sua influência dialogizante recíproca, ao desenvolvimento livre e criativo da palavra de outrem, às graduações das transmissões, ao jogo das fronteiras, aos pródromos longínquos da introdução pelo contexto da palavra alheia [...] e às outras peculiaridades que expressam a mesma essência da palavra interiormente persuasiva: o inacabamento do sentido para nós, sua possibilidade de prosseguir, sua vida criativa no contexto da nossa consciência ideológica, inacabado, não esgotado ainda, de nossas relações dialógicas com ela. (BAKHTIN, 1975/1998, p. 146)

Estabelecendo um diálogo entre Vygotsky e Bakhtin, é possível afirmar que uma ação educacional só pode ser julgada como ativamente responsável e, portanto, responsiva, quando instaura zonas revolucionárias para a aprendizagem-e-desenvolvimento de todos os envolvidos no processo educacional: alunos, professores, diretores, coordenadores, pesquisadores, estagiários, pais, comunidade do entorno etc. E como o embate e a desestabilização são processos fundamentais para transformação, é imprescindível que uma educação responsivo-responsável esteja aberta às contradições e à alteridade. Dado o seu caráter dogmático, que requer de outrem assimilação e reconhecimento, o discurso autoritário, tão característico da esfera educacional, não propicia tal abertura. É, portanto, o discurso persuasivo, sempre flexível às alterações de sentidos, maleável à situação e ao contexto histórico-cultural, passível de críticas e desaprendizagens o mais indicado para orientar as atividades pedagógicas.

Por fim, ao pensar que a filosofia da linguagem do círculo de Bakhtin inscreve-se em uma visão estética imbricada com o existir-evento, com o ato ético em que dialeticamente a vida penetra na arte e a arte na vida, pensar a educação como ato responsável demanda promover a apreciação estética fundada na ética na medida em que

[...] eu e o objeto da minha contemplação estética precisamos ser definidos na unidade do existir que de maneira igual nos abraça, e na qual transcorre o ato da minha contemplação estética; mas este existir não pode ser mais de ordem estética. Somente a partir do interior de tal ato como minha ação responsável, e não de seu produto tomado abstratamente, pode haver uma saída para a unidade do existir. (BAKHTIN, 1920-24/2010, p. 66)

A apreciação estética fundada na ética pressupõe o reconhecimento de múltiplas estéticas, a valorização do conhecimento e critérios estéticos de outrem, a abertura de espaços na escola para apreciação responsiva de obras ainda não reconhecidas como cânones. Pressupõe também a relação da arte, da literatura, da música com a geografia, a história, as línguas materna e estrangeira, a educação física, a biologia, a matemática e todas as demais áreas do conhecimento, já que uma apreciação estética inscrita no existir-evento não deve ser limitada por barreiras disciplinares. Pressupõe, por fim, a hibridização de produções artísticas marginalizadas e canônicas em um processo de construção de sentidos sempre localizado histórica e socialmente.

A síntese apresentada não pretende ecoar verdades universais, o que seria incoerente com os caminhos epistemológicos que venho construindo. Procura, outrossim, reestruturar o que é teoricamente concebível na singularidade do ato (BAKHTIN, 1920-24/2010) para provocar respostas heterogêneas.

Em um exercício dialógico de pensar a teoria na singularidade do existir-evento, dedico as duas últimas partes deste artigo aos diálogos com a vertente sócio-histórica da linguagem do círculo de Bakhtin que podem ser depreendidos do projeto Práticas de linguagem em diferentes áreas do conhecimento na escola pública (PLIEP).

3. O PLIEP3 3 Práticas de Linguagem em Diferentes Áreas do Conhecimento na Escola Pública (PLIEP). Projeto submetido ao Edital 16/2011 - "Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas da Rede Pública Sediadas no Estado do Rio de Janeiro - 2011". Agradeço à Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo apoio financeiro. Site www.pliep.pro.br.

Levando em consideração que o processo de construção e transformação do conhecimento em todas as áreas é orientado por práticas de linguagem que demandam a compreensão e a produção dos gêneros do discurso/texto que circulam nas diversas esferas sociais, o PLIEP teve como pressuposto central a ideia de que a transposição didática de gêneros para inserção em práticas letradas é fundamental em todas as áreas do conhecimento. Nesse sentido, trabalhou a concepção de linguagem como constitutiva dos processos de construção e transformação do conhecimento científico não somente nas ciências sociais, mas também nas biológicas e exatas de forma a possibilitar, através do trabalho com gêneros como forma de ação social (BAZERMAN, 2005), a participação mais efetiva do aluno no processo de construção do conhecimento.

Tomando como base a natureza interdisciplinar das (inter)ações humanas e a hibridação de discursos na nossa sociedade, teve também como foco a elaboração e implementação de projetos voltados para a transposição de barreiras disciplinares nas três escolas participantes.

No período de um ano, de abril de 2012 a abril de 2013, o PLIEP contou com a participação de cerca de vinte professores e coordenadores de diferentes áreas de três escolas públicas - duas do município e uma do estado do Rio de Janeiro, sete professores do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Linguística Aplicada (PIPGLA) e da Faculdade de Letras da UFRJ, doutorandos, mestrandos e alunos de graduação dessa mesma instituição e quatro bolsistas de pré-iniciação científica que cursavam o ensino médio em uma das escolas participantes. Além do apoio financeiro para aquisição de material de consumo e permanente, o PLIEP foi contemplado com oito bolsas: duas bolsas de capacitação técnica para professores das escolas-participantes, duas bolsas de iniciação científica para alunos da graduação da UFRJ e quatro bolsas de pré-iniciação científica para alunos do ensino médio.

As atividades de formação inicial e continuada decorrentes do PLIEP ocorreram através da participação dos seus integrantes em seis módulos semipresenciais ministrados por pesquisadores do PIPGLA e do desenvolvimento de uma rede colaborativa de pesquisa em que todos os participantes, espaços e ações tornaram-se alvo de investigação e, portanto, de atitudes responsivas e valorações apreciativas heterogêneas.

Como uma das coordenadoras e professora-pesquisadora participante do PLIEP, as reflexões delineadas a seguir foram construídas a partir de minhas respostas aos diálogos que a Linguística Aplicada tem travado com a filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin.

4. DIÁLOGOS INDISCIPLINARES TRAVADOS NO ENTREMEIO LINGUÍSTICA APLICADA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM DO CÍRCULO DE BAKHTIN

Ao estabelecer inter-relações entre a vertente sócio-histórica da aprendizagem e da linguagem e a natureza transdisciplinar da Linguística Aplicada, Rojo (2006) enfatiza o fato de tal vertente ser dotada da leveza de pensamento necessária para compreender as privações sofridas nas diversas esferas sociais. O fato de ter construído seus postulados de forma localizada, contextual, em relação estreita com atos inscritos no existir-evento torna as concepções do círculo de Bakhtin prenhes de múltiplas respostas e ressignificações. Dado seu caráter situado, inacabado, complexo e sua ênfase na natureza dialógica da linguagem, muitos linguistas aplicados têm travado diálogos profícuos com as concepções do Círculo em processos de compreensão, interpretação e transformação dos mais diversos usos situados da linguagem.

Dentre as várias concepções do Círculo, aquela de gêneros do discurso figura entre os principais conceitos (re)convocados na contemporaneidade para pensar e modelizar didaticamente as práticas de letramento na escola. O excerto do projeto "Práticas de linguagem em diferentes áreas do conhecimento na escola pública" (PLIEP) a seguir revela uma atitude responsiva a essa (re)convocação do conceito de gêneros (re)construída no embate entre visões freirianas (FREIRE, 1997) de educação como adaptação e educação como inserção.

Para além do trabalho com as características estáveis de gêneros que circulam na esfera escolar como exercícios, questionários, apostilas, resumos, entre outros, é, portanto, fundamental levar o professor a compreender as relações intergenéricas que orientam e transformam o processo de construção de conhecimento nas diferentes áreas do saber. Esta compreensão pode contribuir para que o foco na estabilidade ceda lugar à desestabilização de práticas de compreensão e produção cristalizadas, criando, conforme postulado pela psicologia sócio-histórica de Vygotsky (1930/1998), zonas mais revolucionárias para a aprendizagem-e-desenvolvimento de todos. (Projeto PLIEP, p. 7)

Ao enunciar claramente uma oposição a práticas escolares de compreensão e produção textual focadas no trabalho com as características estáveis do gênero, esse excerto retrata uma atitude responsiva à concepção de gênero que vislumbra a possibilidade de tomá-lo como estilização de atos éticos no processo de construção do conhecimento sob a condição de que processos voltados para estabilização - adaptação ao mundo - cedam lugar àqueles em que gêneros são transformados para fazer coisas no mundo - inserção no mundo.

A proposta de "levar o professor a compreender as relações intergenéricas que orientam e transformam o processo de construção de conhecimento nas diferentes áreas do saber" sinaliza a percepção de que o reconhecimento da natureza dialógica dos enunciados que (inter)circulam nos diferentes campos do conhecimento é fundamental para mudanças efetivas no processo de construção do conhecimento. O pressuposto de que é necessário focar na instabilidade e transformação dos gêneros para criar zonas mais revolucionárias para aprendizagem-e-desenvolvimento de todos indica que as ideologias historicamente cristalizadas (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 1929/1999) que fundamentam o PLIEP refratam atitudes responsivas acerca das inter-relações entre as concepções do Círculo e aquelas de Vygotsky.

A convocação do conceito de gêneros como possibilidade de assumir uma postura crítica perante a realidade para nela intervir (FREIRE, 1997) enunciada no excerto abaixo indica uma filiação epistemológica em que a teoria não é apartada da vida, do existir-evento (BAKHTIN, 1920-24/2010).

[...] E, certamente, práticas não situadas e socialmente desengajadas de compreensão e produção em todos os componentes curriculares constituem uma destas maiores privações, conforme apontam os indicadores do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) em relação à educação básica no Brasil em geral e no estado do Rio de Janeiro em particular. O fato de o IDEB do ensino médio das escolas da rede estadual do Rio de Janeiro permanecer 2.8 em três avaliações (2005, 2007 e 2008)

4 4 Dados disponibilizados no site do INEP, < http://ideb.inep.gov.br/resultado/resultado/resultado.seam?cid=676211>. Acesso em 20 out. 2011.

indica que os alunos concluem a educação básica sem o domínio das capacidades de linguagem requeridas para compreender e produzir os gêneros do discurso/texto que circulam nas diferentes esferas sociais, o que representa um obstáculo para uma participação e inclusão social mais efetiva. (Projeto PLIEP, p. 7, 8)

Ao identificar "as práticas não situadas e socialmente desengajadas de compreensão e produção de textos em todos os componentes curriculares" como uma das maiores privações da educação brasileira, o excerto retrata a assunção de que enunciados concretos devem ser tomados como objetos de ensino-aprendizagem em todas as disciplinas escolares e, portanto, a ideologia cristalizada na Linguística Aplicada e na teoria da enunciação do Círculo de que os usos da linguagem só podem ser compreendidos e transformados se analisados de forma situada, em relação estreita com o existir-evento localizado sócio, histórica, cultural e institucionalmente. A apreciação valorativa de que práticas de linguagens não situadas impedem uma participação social mais efetiva ratificando processos de exclusão social ecoa enunciados presentes em documentos oficiais como parâmetros, orientações e referências curriculares e a ideologia cristalizada nos campos da Linguística Aplicada e Educação de que não há álibis (BAKHTIN, 1920-24/2010) para nossas escolhas pedagógicas na medida em que tais escolhas podem ter implicações sociais graves.

É, portanto, em processos de ressignificação de concepções da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin realizados sob o viés da Linguística Aplicada que os objetivos do PLIEP foram delineados.

Tomando, portanto, como base a centralidade da linguagem no processo de (re)construção de significados em qualquer área do conhecimento, o presente projeto é orientado pelos objetivos listados abaixo:

√ propiciar a compreensão das práticas de linguagem que orientam o processo de construção de conhecimento nas diferentes áreas científicas;

√ trabalhar a concepção de linguagem como constitutiva dos processos de construção e transformação do conhecimento científico não somente nas ciências sociais, mas também nas biológicas e exatas;

√ possibilitar a transposição didática dos gêneros que circulam nas diferentes áreas como instrumento para compreensão e participação efetiva do aluno no processo de construção do conhecimento;

√ reconhecer a natureza interdisciplinar das ações humanas como forma de desenvolver e implementar projetos que transponham barreiras disciplinares;

√ propiciar o diálogo entre pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação (mestrado e doutorado); graduação (iniciação científica) e do ensino básico (pré-iniciação científica). (Projeto PLIEP, p. 8)

Embora a palavra diálogo só seja enunciada no último item, os objetivos estabelecidos para o PLIEP indicam a filiação do projeto a uma perspectiva dialógica da linguagem. A figura abaixo ilustra os diálogos que o projeto se propôs a estabelecer:

Foi, portanto, através dos embates travados entre múltiplas linguagens, áreas do conhecimento, gêneros, professores-pesquisadores e alunos que o PLIEP buscou promover a inserção dos participantes em práticas interdisciplinares centradas na multiplicidade de linguagens, gêneros e letramentos, de forma a desestabilizar concepções cristalizadas e buscar na interação entre todos os participantes e vozes de outrem, que informaram o processo de construção do conhecimento nos módulos e pesquisas desenvolvidas no interior do projeto, possibilidades para transformar práticas não situadas de ensino-aprendizagem.

Tomando o conceito de dialogismo como estruturante no processo de construção de conhecimento, a metodologia de pesquisa que orientou as atividades de formação e pesquisa previstas no projeto foi a concepção de pesquisa dialógica (COULTER, 1999). O diálogo torna-se, portanto, o contexto em que os significados da pesquisa são discutidos, re-pensados e possivelmente reconstruídos. Como propõe Coulter (1999), a concepção bakhtiniana de dialogismo pode ser utilizada como alicerce para a realização de pesquisas na sala de aula que se preocupem efetivamente com a co-construção do conhecimento entre pesquisador e professor. Nesse tipo de pesquisa, professor e pesquisador engajam-se discursivamente em diálogos a fim de compreender o fenômeno investigado para, então, buscar transformações para práticas educacionais correntes.

Os seis módulos semi-presenciais que ocorreram de abril a dezembro de 2012 constituíram espaços importantes para esses diálogos, na medida em que possibilitaram síncrona e assincronamente, nos encontros presenciais e na plataforma Moodle5 5 A Plataforma Moodle é o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) utilizado pelo Projeto Letras 2.0, que integra o núcleo de pesquisa Linguagem, Educação e Tecnologia (LingNet) e hospeda os cursos de graduação, pós-graduação e extensão da Faculdade de Letras da UFRJ. do projeto, o embate ideológico entre professores da UFRJ, professores das escolas públicas, doutorandos, mestrandos, alunos de iniciação e pré-iniciação científica.

Os títulos dos seis módulos que, de certa forma, buscam projetar os conteúdos a serem contemplados, estão claramente alicerçados na concepção sobre a centralidade das linguagens para inserção nas e transformação das práticas de letramento na contemporaneidade, concepção que representa o fio da meada para os diálogos sobre práticas de linguagem, interdisciplinaridade, identidades, letramentos (digitais), compreensão e produção escrita, materiais didáticos e autonomia travados no existir evento concreto de cada encontro presencial e/ou virtual.

Esboçada apenas com o intuito de alinhavar os diálogos estabelecidos entre concepções da linguagem que venho (re)desenhando na minha trajetória como linguista aplicada e um gênero do discurso concreto que fez parte deste percurso: o projeto PLIEP e a breve reflexão acima não têm, e nem poderiam ter, a ambição de fazer do PLIEP um exemplo de educação como ato responsável. Primeiramente porque o vejo como uma busca ininterrupta, um caminho marcado por incertezas e desaprendizagens. Por fim, porque um projeto é apenas um desenho possível para esse caminho, sujeito a muitos redesenhos. São, portanto, os redesenhos construídos nos enunciados repostas durante o processo de participação nas várias ações do PLIEP que podem lançar luz aos processos de (con/trans)formação vivenciados.

Dentre os muitos enunciados respostas estão os projetos interdisciplinares desenvolvidos pelos professores-participantes em colaboração com outros pares: professores participantes ou não do PLIEP, professores da UFRJ, alunos de iniciação e pré-iniciação científica. Além dos projetos interdisciplinares, há espaços para muitos outros enunciados respostas em construção nas pesquisas que estão sendo desenvolvidas pelos pesquisadores e bolsistas vinculados ao projeto e as que ainda serão realizadas por participantes que recém ingressaram como doutorandos na UFRJ.

Levando-se em conta que no PLIEP todos os espaços, atos, participantes podem se tornar instrumentos-e-resultados6 6 A proposição de Newman e Holzman (1993/2002) de que o método delineado por Vygotsky para se estudar as relações complexas entre aprendizagem-e-desenvolvimento - a ZPD - constitui o instrumento e o resultado da pesquisa e não um instrumento para gerar determinados resultados, pode ser relacionada à proposição bakhtiniana de que a teoria só adquire sentido no interior do ato, do existir-evento, esboçada no ensaio Para uma filosofia do ato responsável (Bakhtin, 1920-24/2010) e mais detalhadamente discutidas em outros textos do Círculo. de pesquisa, este artigo representa uma dentre muitas possibilidades de tessituras dialógicas a serem construídas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos diálogos que venho tecendo com as concepções do círculo de Bakhtin ao longo da minha trajetória como professora-pesquisadora, procurei sistematizar, à luz de ideologias historicamente cristalizadas que vêm embasando minhas reflexões sobre ensino-aprendizagem e formação de educadores, minhas interpretações acerca do que significa educar como ato responsável, o que, por sua vez, implica refletir sobre uma educação responsiva às demandas sociais da contemporaneidade.

No processo de compreensão e interpretação ativa de pensar em uma educação responsável-responsiva, optei por, inicialmente, inter-relacionar ideias enunciadas por Freire (1997) em sua última entrevista a concepções do Círculo; em seguida, discutir o que significa educar como ato responsável e, por fim, refletir sobre como as concepções do círculo em diálogos indisciplinares com a Linguística Aplicada orientaram o planejamento das ações de formação no projeto "Práticas de linguagem em diferentes áreas do conhecimento na escola pública" (PLIEP).

As escolhas realizadas neste artigo, inscritas na singularidade do existir-evento, refratam algumas poucas dentre inúmeras tessituras dialógicas que podem ser construídas a partir de atitudes responsivas às concepções do Círculo na esfera educacional. Espero que os diálogos tenham sido persuasivos e que gerem possibilidades de ressignificações em outros textos e contextos.

Recebido:1/07/2013

Aceito: 14/05/2014

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  • 1
    Disponível em
  • 2
    Agradeço aos alunos do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Linguística Aplicada da UFRJ que fizeram o curso Aprendizagem-e-desenvolvimento e linguagem na vertente sócio-histórica: diálogos entre Vygotsky e Bakhtin pelos diálogos incitados, aos membros do Laboratório de Estudos Polifônicos e participantes da III Jornada de Estudos Discursivos, realizada na Universidade Federal de Uberlândia em outubro de 2012, pela possibilidade de ampliar esses diálogos.
  • 3
    Práticas de Linguagem em Diferentes Áreas do Conhecimento na Escola Pública (PLIEP). Projeto submetido ao Edital 16/2011 - "Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas da Rede Pública Sediadas no Estado do Rio de Janeiro - 2011". Agradeço à Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo apoio financeiro. Site
  • 4
    Dados disponibilizados no site do INEP, <
  • 5
    A Plataforma Moodle é o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) utilizado pelo Projeto Letras 2.0, que integra o núcleo de pesquisa Linguagem, Educação e Tecnologia (LingNet) e hospeda os cursos de graduação, pós-graduação e extensão da Faculdade de Letras da UFRJ.
  • 6
    A proposição de Newman e Holzman (1993/2002) de que o método delineado por Vygotsky para se estudar as relações complexas entre aprendizagem-e-desenvolvimento - a ZPD - constitui o instrumento e o resultado da pesquisa e não um instrumento para gerar determinados resultados, pode ser relacionada à proposição bakhtiniana de que a teoria só adquire sentido no interior do ato, do existir-evento, esboçada no ensaio
    Para uma filosofia do ato responsável (Bakhtin, 1920-24/2010) e mais detalhadamente discutidas em outros textos do Círculo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      01 Jul 2013
    • Aceito
      14 Maio 2014
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