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Uma compreensão etnometodológica de aprendizagem e proficiência em língua adicional

An ethnomethodological understanding of additional-language learning and proficiency

Resumos

Descrevemos ações que configuram o trabalho de aprender espanhol como língua adicional e o trabalho de ser membro em entrevista de proficiência oral em português como língua adicional em duas sequências de fala-em-interação, segmentadas de dois corpora: 24 horas de gravações audiovisuais de aulas de espanhol como língua adicional em uma escola de línguas no Brasil (ABELEDO, 2008) e 10 horas de gravações em áudio de entrevistas de proficiência oral em português como língua adicional do exame Celpe-Bras (FORTES, 2010). Essas análises, representativas de coleções de ambos os corpora, mostram que os participantes utilizam práticas de descrição e categorização (SACKS, 1992; SCHEGLOFF, 2007a) aceitáveis e compreensíveis para manter a sua intersubjetividade (GARFINKEL, 1967), orientando-se para as práticas de descrição e categorização da língua adicional como sendo não apenas aceitáveis, mas preferíveis. A atribuição e a ratificação de categorias de pertencimento (SACKS, 1992; SCHEGLOFF, 2007a) entre os participantes também são comuns a ambos os corpora: para o trabalho de aprender, os participantes atribuem e ratificam categorias institucionais (SCHEGLOFF, 1992) enquanto demonstram copertencimento na comunidade de práticas linguísticas que eles simultaneamente instauram, reorganizando, portanto, a sua participação (GOODWIN; GOODWIN, 2004); para o trabalho de ser membro competente em entrevistas de teste de proficiência linguística, os participantes conferem uns aos outros categorizações localmente relevantes em torno de [ser daqui] e [ser de lá]. Os resultados da análise nos permitem conceber a aprendizagem de língua adicional como trabalho interacional constante que é inseparável da participação. A análise dos dados de entrevistas de proficiência oral aponta para a necessidade de parâmetros de avaliação de proficiência oral em língua adicional cada vez mais válidos e coerentes com a visão de que o uso da linguagem serve para ação no mundo (CLARK, 1996).

interação; aprendizagem; proficiência


Analyses of two interactional segments excerpted from two data sets are offered here to describe actions that accomplish doing learning an additional language and doing being a member in language testing interviews. The first data set is composed of 24 hours of audiovisual records of interaction in Spanish-as-an-additional-language classes in Brazil (ABELEDO, 2008) and the second amounts to 10 hours of audio records of Celpe-Bras oral-proficiency testing interviews (FORTES, 2010). In these representative analytic samples from larger studies, participants are shown to deploy description and categorization practices (SACKS, 1992; SCHEGLOFF, 2007a) that they treat as acceptable and intelligible to maintain their intersubjectivity (GARFINKEL, 1967), and they orient to such practices in the additional language as preferable. Attribution and ratification of membership categories among interactants are also shown to be crucially operative in both data sets: for doing learning, participants attribute and ratify institutional categories (SCHEGLOFF, 1992) while displaying comembership in the linguistic community of practices that they simultaneously engender, thus reorganizing their participation (GOODWIN; GOODWIN, 2004); for doing being a member during language testing interviews, participants assign each other locally relevant categorizations around [being from here] and [being from there]. Results allow us to conceive of additional-language learning as the ongoing interactional work that is inseparable from participation, and call for the development of valid oral-proficiency language assessment criteria increasingly attuned to the fact that language is used for doing things in the world (CLARK, 1996).

interaction; learning; proficiency


ARTIGOS

Uma compreensão etnometodológica de aprendizagem e proficiência em língua adicional

An ethnomethodological understanding of additional-language learning and proficiency

María de la O López AbeledoI; Melissa Santos FortesII; Pedro de Moraes GarcezIII; Margarete SchlatterIV

IUniversidade Europeia, Portugal. maria.abeledo@yahoo.es

IIUFCSPA, Brasil. melissaf@ufcspa.edu.br

IIIUFRGS/bolsista CNPq, Brasil. pmgarcez@pq.cnpq.br

IVUFRGS, Brasil. margarete.schlatter@gmail.com

RESUMO

Descrevemos ações que configuram o trabalho de aprender espanhol como língua adicional e o trabalho de ser membro em entrevista de proficiência oral em português como língua adicional em duas sequências de fala-em-interação, segmentadas de dois corpora: 24 horas de gravações audiovisuais de aulas de espanhol como língua adicional em uma escola de línguas no Brasil (ABELEDO, 2008) e 10 horas de gravações em áudio de entrevistas de proficiência oral em português como língua adicional do exame Celpe-Bras (FORTES, 2010). Essas análises, representativas de coleções de ambos os corpora, mostram que os participantes utilizam práticas de descrição e categorização (SACKS, 1992; SCHEGLOFF, 2007a) aceitáveis e compreensíveis para manter a sua intersubjetividade (GARFINKEL, 1967), orientando-se para as práticas de descrição e categorização da língua adicional como sendo não apenas aceitáveis, mas preferíveis. A atribuição e a ratificação de categorias de pertencimento (SACKS, 1992; SCHEGLOFF, 2007a) entre os participantes também são comuns a ambos os corpora: para o trabalho de aprender, os participantes atribuem e ratificam categorias institucionais (SCHEGLOFF, 1992) enquanto demonstram copertencimento na comunidade de práticas linguísticas que eles simultaneamente instauram, reorganizando, portanto, a sua participação (GOODWIN; GOODWIN, 2004); para o trabalho de ser membro competente em entrevistas de teste de proficiência linguística, os participantes conferem uns aos outros categorizações localmente relevantes em torno de [ser daqui] e [ser de lá]. Os resultados da análise nos permitem conceber a aprendizagem de língua adicional como trabalho interacional constante que é inseparável da participação. A análise dos dados de entrevistas de proficiência oral aponta para a necessidade de parâmetros de avaliação de proficiência oral em língua adicional cada vez mais válidos e coerentes com a visão de que o uso da linguagem serve para ação no mundo (CLARK, 1996).

Palavras-chave: interação; aprendizagem; proficiência.

ABSTRACT

Analyses of two interactional segments excerpted from two data sets are offered here to describe actions that accomplish doing learning an additional language and doing being a member in language testing interviews. The first data set is composed of 24 hours of audiovisual records of interaction in Spanish-as-an-additional-language classes in Brazil (ABELEDO, 2008) and the second amounts to 10 hours of audio records of Celpe-Bras oral-proficiency testing interviews (FORTES, 2010). In these representative analytic samples from larger studies, participants are shown to deploy description and categorization practices (SACKS, 1992; SCHEGLOFF, 2007a) that they treat as acceptable and intelligible to maintain their intersubjectivity (GARFINKEL, 1967), and they orient to such practices in the additional language as preferable. Attribution and ratification of membership categories among interactants are also shown to be crucially operative in both data sets: for doing learning, participants attribute and ratify institutional categories (SCHEGLOFF, 1992) while displaying comembership in the linguistic community of practices that they simultaneously engender, thus reorganizing their participation (GOODWIN; GOODWIN, 2004); for doing being a member during language testing interviews, participants assign each other locally relevant categorizations around [being from here] and [being from there]. Results allow us to conceive of additional-language learning as the ongoing interactional work that is inseparable from participation, and call for the development of valid oral-proficiency language assessment criteria increasingly attuned to the fact that language is used for doing things in the world (CLARK, 1996).

Keywords: interaction; learning; proficiency.

INTRODUÇÃO

Como se vê que alguém está a aprender uma língua de novo? Como mostrar que se aprendeu essa língua a ponto de reivindicar publicamente o direito de "ser daqui onde se usa essa língua"? Por que modos de interação as pessoas demonstram umas às outras que, ao fazer o que estão fazendo, estão a aprender a própria língua de interação? Como demonstram, ao fazer o que estão fazendo, que, mesmo sendo de lá, se entendem como membros plenos da comunidade que usa "a língua daqui"? Neste artigo, analisamos duas sequências de fala-em-interação, segmentadas de dois corpora que, embora distintos, envolvem participantes agindo mediante uma língua de interação que para alguns não é a língua de preferência, mas que todos, ainda assim, tratam publicamente como preferível.

Nessas duas sequências apresentadas aqui para análise, descrevemos as ações que configuram o trabalho de aprender uma língua adicional (SCHLATTER; GARCEZ, 2009, 2012) e o trabalho de ser membro na fala-em-interação de entrevista de proficiência oral em português como língua adicional. Nessas análises, representativas de coleções de ambos os corpora, salientamos as práticas de descrição e categorização (SACKS, 1992; SCHEGLOFF, 2007a) que os participantes produzem e tratam como aceitáveis e compreensíveis para manter a intersubjetividade (GARFINKEL, 1967). Fazemos isso com o interesse particular de evidenciar que os participantes se orientam para as práticas de descrição e categorização na língua adicional como sendo não apenas aceitáveis, mas preferíveis.

Chamamos ainda a atenção para o fenômeno, comum a ambos os corpora, de que a atribuição e a ratificação de categorias de pertencimento (SACKS, 1992; SCHEGLOFF, 2007a) entre os participantes também se encontra no cerne do empreendimento interacional que os reúne: no caso de um encontro para fazer o trabalho de aprender (e de ensinar), os participantes atribuem e ratificam categorias institucionais (SCHEGLOFF, 1992) relevantes ao exibirem copertencimento à comunidade de prática linguística que simultaneamente produzem; no caso de fazer o trabalho de (certificar) ser membro na fala-em-interação de entrevista de proficiência oral, atribuem uns aos outros e ratificam as categorias de pertencimento [ser daqui] e [ser de lá].

1. USO DA LINGUAGEM PARA AÇÃO NO MUNDO, COMPETÊNCIA E PERTENCIMENTO

No entendimento da Etnometodologia (GARFINKEL, 1967; GARFINKEL; SACKS, 1970), o domínio da linguagem natural define o pertencimento das pessoas a comunidades e se observa a utilização do conhecimento de senso comum para estabelecer compreensões contingentes das falas enquanto ações que constituem atividades em curso. Para agirem no mundo mediante o uso da linguagem, as pessoas fazem um trabalho interpretativo para compreender as ações dos outros como racionais. Quando não é possível assim entendê-las, essas ações podem ser vistas como moralmente sancionáveis e suscetíveis à produção de prestações de contas ou, simplesmente, como descrições ("accounts"). A fala-em-interação é, dessa perspectiva, o lugar em que os fatos da vida social são produzidos, isto é, lugar em que um mundo conhecido em comum é coconstruído.

A competência no uso da linguagem, portanto, é demonstrada pela realização de ações e descrições de maneira "visivelmente-racional-e-relatável-para-todos-os-efeitos-práticos" (GARFINKEL, 1967, vii) desde a perspectiva dos interagentes e para o desenvolvimento da atividade em curso. O entendimento de competência segundo Garfinkel (1967) abrange: 1) o pertencimento das pessoas enquanto membros de uma sociedade; 2) o reconhecimento de uma pessoa como sendo um co-membro; 3) e as decisões tomadas pelos membros nas contingências do trabalho interpretativo de produzirem suas atividades cotidianas de maneira que eles compreendem entre si como racional.

Para relatarem os acontecimentos da vida cotidiana e referirem-se nas suas falas a um mundo conhecido em comum, os membros de uma sociedade utilizam conhecimento de senso comum, que está organizado por referência a um conjunto de recursos e práticas expressivos chamados dispositivos de categorização de pertencimento (SACKS, 1972, 1979, 1992; SCHEGLOFF, 2007a, pp. 466-467). A escolha de uma categoria pelos membros, dentre as várias possíveis, torna-se relevante para compreender o que essa categorização implica em termos de descrição e em termos de ação naquela construção conjunta e colaborativa da fala-em-interação. Assim, numa compreensão etnometodológica de competência, as práticas de categorização e descrição são tornadas centrais pelos participantes da fala-em-interação na construção conjunta do pertencimento pelo domínio da linguagem natural (GARFINKEL; SACKS, 1970, p. 345).

Para os estudos originais em que se produziram as análises apresentadas sumariamente neste artigo, foram gerados dados mediante registro audiovisual (ABELEDO, 2008) ou apenas em áudio (FORTES, 2010) de eventos interacionais coconstruídos pelos participantes em uma língua que não a(s) de sua preferência habitual, ou distinta daquela(s) na(s) qual(is) supomos que eles tenham sido inicial ou longamente socializados. Temos, portanto, eventos de fala-em-interação organizados sequencial e interacionalmente pelos participantes por meio do uso de línguas adicionais. Schlatter e Garcez (2009, p. 127; 2012, p. 37) compreendem que outra língua de interação (que não a(s) de preferência ou socialização inicial) não é necessariamente estranha (ou "estrangeira") para quem a usa, na medida em que permite às pessoas a possibilidade de alargamento das oportunidades de participação em uma maior gama de eventos interacionais, por meio do uso desta "outra" língua, por isso denominada língua adicional (em relação às línguas de preferência habitual na socialização).

Assim, nos valemos aqui de dois corpora: 24 horas de gravações audiovisuais de aulas de espanhol como língua adicional em uma escola de línguas no Brasil (ABELEDO, 2008) e 10 horas de gravações em áudio de entrevistas de proficiência oral em português, como língua adicional, do exame Celpe-Bras (Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros, desenvolvido e outorgado pelo Ministério da Educação do Brasil) (FORTES, 2010).

2. ANÁLISE DA CONVERSA COMO ABORDAGEM ANALÍTICA

Os dados gerados foram segmentados e transcritos para análise segundo adaptação das convenções de transcrição (ver Anexo) daquelas desenvolvidas por Gail Jefferson para a Análise da Conversa, abordagem analítica fundamentada na Etnometodologia.1 1 Garcez, Bulla e Loder (no prelo) apresentam e discutem os procedimentos de segmentação e transcrição também empregados aqui. Loder e Jung (2008, 2009) apresentam a perspectiva teórico-metodológica adotada aqui. Dado o entendimento do uso da linguagem como um modo de ação, a Análise da Conversa não procura descrever mensagens codificadas, transmitidas e decodificadas, mas sim ações produzidas em conjunto. Centrada na busca pela perspectiva dos participantes na coconstrução da fala-em-interação, essa perspectiva, em geral, não recorre a informações externas aos dados, fundamentando as afirmações analíticas nas ações dos participantes conforme eles demonstram, uns aos outros, compreendê-las, turno a turno, na sequência interacional. A organização da tomada de turnos na fala-em-interação é, por isso, um recurso fundamental que permite ao analista aproximar-se da perspectiva dos participantes, ao descrever os entendimentos interacionalmente alcançados por eles.

Para a realização de suas atividades cotidianas por meio do uso da linguagem, os interagentes atingem e mantêm a intersubjetividade, ou seja, uma convergência de entendimento comum acerca do que estão fazendo naquele aqui-e-agora da fala-em-interação. A intersubjetividade, portanto, é alcançada por um trabalho interacional interpretativo sempre em andamento. Quando os participantes percebem problemas que podem colocar em risco a manutenção da intersubjetividade, eles mobilizam um conjunto de mecanismos para resolução desses problemas (de escuta, de produção ou de entendimento das falas). Esses mecanismos constituem a organização do reparo na fala-em-interação (SCHEGLOFF; JEFFERSON; SACKS, 1977). Essa organização, cuja observação compõe outro recurso analítico fundamental da ACE, se caracteriza por preferência por reparo iniciado e realizado pelo próprio responsável pelo turno de fala problemático. Quando, em lugar do autorreparo, se produz o reparo pelo outro, os participantes normalmente compreendem esse reparo pelo outro como outra ação, por exemplo, "discordar", "corrigir" ou "ensinar". Assim, Schegloff, Jefferson e Sacks (1977) afirmam que o reparo pelo outro não é tão infrequente em situações de fala-em-interação nas quais participem pessoas "ainda-não-competentes em algum aspecto", sendo que ali o reparo pelo outro parece ter uma função socializadora daquele membro, que é, dessa maneira, categorizado como ainda-não-(plenamente-)competente.

3. UMA COMPREENSÃO ETNOMETODOLÓGICA DE APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ADICIONAL

Com base na perspectiva teórica e analítica descrita brevemente acima, podemos apresentar sumariamente aqui as ações que configuram o trabalho de aprender uma língua adicional, conforme pesquisa relatada detalhadamente em Abeledo (2008). Dos dados gerados para aquela pesquisa, selecionamos um excerto de interação para mostrar aqui o tipo de análise realizada.

A atividade de relato em curso nesta interação se dá no início de um encontro. Nos turnos da participante Mila, observam-se duas atividades: escutar o relato de Antonio e pôr um rádio a funcionar (linhas 3, 26, 31, 38). Antonio esforça-se para mantê-la como participante endereçada, isto é, para manter a intersubjetividade com ela nesta atividade de relatar, mediante iniciações de reparo que solicitam a sua ajuda para reparar as próprias falas (linhas 32, 35, 37 e 39).

Excerto 1 "Quiosco"

Antonio conta a Mila que comprou um CD, ao começo da aula (m.2:04).

((Antonio olha para Mila, que está colocando um rádio sobre uma cadeira, e espera que ela chegue perto para começar a falar))

As iniciações de reparo de Antonio (linhas 4, 7, 12, 16 e linhas 42-44) destacam, simultaneamente, categorias de participação diferenciadas. Assim, Antonio apresenta-se, e é ratificado por Mila, como participante que, nesses momentos de iniciação de reparo e convite ao reparo pelo outro, não consegue reparar as próprias falas com autonomia. Eles instauram a relevância do aprender e das categorias diferenciadas de pertencimento à comunidade (participante ainda-não-competente vs. participante competente) ao buscarem a palavra preferível em espanhol para a descrição realizada por Antonio.

Assim, na linha 4, Antonio realiza uma busca de palavras (GOODWIN; GOODWIN, 1986), que autocompleta com a escolha da palavra estanco ("tabacaria", em português). Mila dá continuidade ao relato (linha 06) e só problematiza a escolha dessa palavra depois de Antonio ter explicitado de periódicos ("jornais", em português). Mila propõe uma substituição da palavra estanco (linha 10), correção que a menção da palavra periódicos parece ter tornado relevante, e é nesse ponto que Antonio se orienta para as categorias de pertencimento diferenciadas. Para completar o reparo, o participante solicita a ajuda de Mila, recorrendo a categorias do português compartilhadas por ambos (banca, linha 12) e solicitando confirmação (linha 16). Com essas ações, ele demonstra a sua orientação para as práticas de categorização do espanhol como sendo preferíveis, e categoriza Mila como participante competente para realizar essa escolha. Mila, por sua vez, ratifica a atribuição de categorias de Antonio ao fornecer a palavra que completa o reparo (linhas 15, 17).

A interação continua com a descrição, por Antonio, do CD que comprou. Ele especifica que o CD faz parte de uma coleção de uma revista e inicia uma busca de palavras no momento em que descreve o seu lugar de distribuição (linha 42). Tendo em conta que a busca de palavras na interação face a face é uma atividade de coparticipação negociada pelo direcionamento do olhar (GOODWIN; GOODWIN, 1986), observamos que Antonio se orienta para Mila como participante que poderia completar a busca, ao assentir, olhando para ela (linhas 42-43) e, a seguir, apontando para ela com o dedo indicador (linha 44). Ao mesmo tempo em que aponta, porém, Antonio fecha os olhos, uma prática para conter a realização do reparo pelo outro nesse contexto, e só os abre no momento em que ele próprio completa o reparo (linha 44). Com isso, Antonio reorganiza as relações de participação e pertencimento, pois, dessa vez, exibe competência para completar o autorreparo. Ele cria, assim, uma oportunidade para aprender. A orientação para conhecimento compartilhado, produzido e intersubjetivamente ratificado em um momento anterior de interação, é um dos métodos dos participantes dos nossos dados para fazer o trabalho de aprender, exibindo a sua condição de membro competente de uma comunidade de prática linguística.

A análise desse excerto mostra que é possível obter evidências empíricas de aprendizagem de língua adicional na fala-em-interação. Este tipo de análise permite observar e descrever o trabalho de aprender, entendido não como o acúmulo individual de conhecimento de uma língua enquanto objeto de aprendizagem, mas sim como um trabalho interacional inseparável da participação pelo uso da linguagem, um trabalho que (re)organiza as relações de pertencimento.

4. UMA COMPREENSÃO ETNOMETODOLÓGICA DE PROFICIÊNCIA EM LÍNGUA ADICIONAL

O interesse em articular uma compreensão etnometodológica de proficiência em língua adicional nasceu da reflexão acerca do exame brasileiro Celpe-Bras, que tem como objetivo avaliar o desempenho de estrangeiros no uso da língua portuguesa. Pioneiro no cenário de exames de avaliação de desempenho por entender 'proficiência' como uso da linguagem para ação no mundo (CLARK, 1996), o exame Celpe-Bras, desde sua implantação em 1998, conta com a contribuição de pesquisadores brasileiros na área da avaliação, que buscam estudar seu grau de validade. No universo dessas pesquisas, Fortes (2010) descreveu o trabalho interacional de fazer 'ser membro' na entrevista de proficiência oral em português como língua adicional, privilegiando a perspectiva dos participantes de duas entrevistas do exame Celpe-Bras.

Dentre os dados do corpus analisado no estudo de Fortes (2010), apresentamos e discutimos aqui um excerto de transcrição em que as participantes demonstram uma à outra o seu entendimento do trabalho de fazer 'ser membro' na fala-em-interação de proficiência oral em português como sendo constituído pela produção intersubjetiva de contextos e identidades institucionais e pela atribuição e ratificação de categorias de pertencimento da coleção [ser daqui] e [ser de lá], mediante a exibição, como preferíveis (ABELEDO, 2008), de compreensão e produção de práticas de categorização e descrição na língua natural sob exame.

O segmento do qual extraímos o excerto que segue faz parte de uma entrevista de proficiência oral do exame Celpe-Bras aplicada em outubro de 2006 na Região Sul do Brasil. Neste momento particular da entrevista, Mariana e Eva estão orientadas para algumas informações prestadas por Eva em resposta ao questionário de inscrição online que fez parte dos procedimentos de inscrição no exame.

Excerto 2 "Em termos culturais ou em termos sociais?"

Na linha 77, Eva realiza correção sobre o turno de sua interlocutora, Mariana, por meio da produção de práticas de categorização e descrição em língua portuguesa como preferíveis, constituindo-se na fala-em-interação, portanto, como "conhecedora/competente" no uso dessas práticas para a realização de suas ações. Ainda na linha 77, Eva demonstra entendimento do turno anterior de Mariana ao iniciar uma correção pela produção do item ensemble como mais adequado para o tipo de grupo em que toca, esclarecendo que é um grupo mais clássico em relação a banda, evidenciando, assim, sua compreensão de banda como distinto de ensemble.

Mariana, na linha 79, invoca sua categoria de pertencimento "ser daqui/ser do Brasil" pela produção da prática de categorização a gente e pela sugestão de um item equivalente a ensemble (linhas 79 e 80). Eva (linhas 81 e 82) ratifica a proposta de Mariana e, com isso, constitui-se como "competente/conhecedora" das práticas de categorização e descrição em língua portuguesa. Ademais, pelo uso de ensemble, Eva demonstra também pertencimento à categoria "ser daqui/ser do Brasil", ao selecionar como adequada uma palavra, dicionarizada no Brasil como termo da área de conhecimento da música, em contraposição à proposta de Mariana de grupo instrumental em lugar de ensemble.

A análise de ocorrências deste tipo revela que também é possível obter evidências empíricas de demonstração de proficiência no uso da linguagem em língua adicional na fala-em-interação. Este tipo de análise permite observar e descrever o trabalho de fazer avaliação de proficiência oral em língua adicional, entendido não como a produção individual de itens linguísticos separados das práticas interacionais, mas sim como um trabalho interacional interpretativo, sempre em andamento, em que um dos participantes busca demonstrar pertencimento pelo uso da língua adicional na construção conjunta de contextos e identidades institucionais que, para eles, são constituintes da fala-em-interação em entrevista de proficiência oral em língua adicional. O pertencimento pelo uso da linguagem e a inseparabilidade dos recursos linguísticos das práticas interacionais, portanto, fornecem subsídios para a elaboração de parâmetros de avaliação de proficiência oral válidos para aqueles preocupados com a avaliação de desempenho no uso da linguagem para ação no mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises interacionais aqui sumariamente apresentadas são complementares ao evidenciarem que os participantes da fala-em-interação, pela demonstração pública e intersubjetiva de pertencimento a categorias de "membro competente" ou "membro ainda-não-plenamente competente" na língua de interação, como no caso de Mila e Antonio, ou de "ser-daqui" e "ser-também-daqui", no caso de Mariana e Eva, realizam o trabalho de aprender e de se mostrar competentes em uma língua adicional. Para tanto, demonstram ainda que suas ações se dão na língua adicional como necessariamente preferível, isto é, demonstram esforço em valer-se de recursos linguísticos peculiares a uma língua em particular como meio e objeto de aprendizagem e ensino (no caso de Antonio e Mila) e de certificação de conhecimento (no caso de Eva e Mariana).

Análises de diversos outros segmentos semelhantes aos destacados aqui, em Abeledo (2008) e Fortes (2010), permitiram obter evidências de aprendizagem e de demonstração de proficiência em língua adicional a partir da observação e da descrição de dados naturalísticos de fala-em-interação. Essas análises apontam para uma compreensão de aprendizagem de línguas adicionais não como processo linear e individual de acúmulo de conhecimento de uma língua enquanto objeto de aprendizagem, mas como um trabalho interacional inseparável da participação. Dessa perspectiva, o estudo de Abeledo (2008) mostra que o trabalho de aprender uma língua adicional se observa na (re)organização das relações de participação e pertencimento que se produzem nesse trabalho interacional, bem como na demonstração, e reconhecimento pelos outros, da competência para realizar ações pelo uso da linguagem, isto é, na demonstração e reconhecimento do copertencimento na fala-em-interação. Tais análises também subsidiam a busca por parâmetros de avaliação de proficiência oral em língua adicional mais válidos para o uso da linguagem para ação no mundo. Com base em um entendimento de proficiência oral como copertencimento pelo uso de uma ou mais línguas de interação e pela exibição das categorias de pertencimento [ser daqui] e ser [de lá], o estudo de Fortes (2010) descreve e propõe como novos parâmetros de avaliação oral de proficiência: 1) a produção intersubjetiva de contextos e identidades institucionais; e 2) a atribuição e a ratificação de categorias de pertencimento da coleção [ser daqui] e [ser de lá] pelos participantes uns aos outros, mediante a exibição da compreensão e da produção de práticas de categorização e descrição na língua natural sob exame como preferíveis, e a exibição da compreensão e da produção de práticas de categorização e descrição em outra língua de interação como aceitáveis para todos os efeitos práticos.

Recebido: 30/09/2013

Aceito: 22/04/2014

Adaptado de Atkinson e Heritage (1984, p. ix-xvi), Ochs, Schegloff e Thompson (1996, p. 461-465), Schegloff (2007b) e das instruções para submissão de artigos ao periódico especializado Research on Language and Social Interaction.

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  • 1
    Garcez, Bulla e Loder (no prelo) apresentam e discutem os procedimentos de segmentação e transcrição também empregados aqui. Loder e Jung (2008, 2009) apresentam a perspectiva teórico-metodológica adotada aqui.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      30 Set 2013
    • Aceito
      22 Abr 2014
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