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APRESENTAÇÃO

A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso; sabemos, no entanto, que, na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que estes trazem consigo. Michel Foucault, A ordem do discurso, 1970

EU OCUPO, QUEM INVADE É A POLÍCIA! #nãotemarrego 2015

É quase lugar comum a afirmação de que a necessidade de responder a uma invocação é inerente a todo discurso, de forma que evoca sempre uma alteridade. No espaço reservado a epígrafes, extravia-se de Michel Foucault a primeira palavra. A longa citação apropriada do filósofo torna-se, nesse espaço, o apelo a que responde um cartaz no meio de uma rua paulistana, em movimento, grafado como uma hashtag.

A educação 'pode', diz Foucault. A educação pode 'de direito'... mas Foucault conhece esse jogo e sabe como os discursos são 'de fato' distribuídos. Nosso documento de área declara que a preocupação com o ensino é sua vocação natural, parte do princípio de que o papel da linguagem, dos discursos, é central para a educação, e se dá esse poder (possibilidade) de forma ampla: a Área de Letras e Linguística pode desempenhar um papel fundamental em todos os ciclos da Educação Básica, inclusive nos iniciais. Os alunos de escolas públicas de São Paulo respondem ao pé da letra, em #hashtags, às palavras da ordem do discurso de Foucault, e ocupam esses espaços (escolas, ruas e redes sociais), ocupam-se da educação... sem arrego.#

Este número de Trabalhos em Linguística Aplicada não é temático no sentido estrito do termo, mas se sumariza em 'coisas ditas' sobre discursos, suas estratégias, suas ordens, seus controles, aberturas e fechamentos. É precisamente de um pôr-se à escuta, afinado com a voz da cultura popular, que nos fala Paulo Damián Aniceto, da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. A perspectiva dialógica aberta por Mikhail Bakhtin e iluminada pelas estratégias de Georges Balandier encena o que se apresenta no artigo El tempo de la comunicación discursiva. La segunda voz del carnaval y las estrategias de la inversión. Para o autor, a chave de entrada está na relação que se pode estabelecer entre o homem e sua responsabilidade pelas práticas de seu tempo, entre elas, os festejos do carnaval, seus ritos e espetáculos. Em contraponto à voz bakhtiniana, as 'estratégias de inversão' de Balandier fazem ressoar, nesse tempo da cultura popular durante o qual são abolidas as relações hierárquicas, o tempo da comunicação discursiva, que assimila o rito a uma 'estratégia de inversão do projeto da ordem oficial' e distende esse arco de tempo.

A questão da responsabilidade em processos de ensino-aprendizagem em parcerias é o tema de Tandem, autoavaliação e a autonomia na aprendizagem de línguas estrangeiras, artigo de Larissa Paula Tirloni, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE, e de Valdilena Rammé, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA. Pedalando na mesma direção, os parceiros realizam um trabalho recíproco e autônomo, revezando-se nos papéis de aprendizes e mestres. Para as autoras, é nesse contexto que a autoavaliação se torna ainda mais relevante, e que a descoberta de estar no controle do próprio processo de aprendizagem desperta em cada um a necessidade de se autoavaliar e de avaliar a parceria. O artigo analisa sessões de tandem com alunos hispano-falantes aprendendo português (UNILA), e de teletandem, com alunos brasileiros aprendendo espanhol (UNIOESTE), e compartilham o passo-a-passo e os resultados da pesquisa.

Quando se ensina uma língua estrangeira é preciso também levar em conta 'a dimensão pragmática' das línguas, a diversidade de suas formas e funções, e desde os níveis iniciais. Eis aí uma das indicações didáticas apontadas por Roberta Ferroni, da Universidade de São Paulo, USP, e Marilisa Birello, da Universitat Autònoma de Barcelona, UAB, no artigo "bueno stiamo praticando": análise comparativa dos sinais discursivos utilizados em situações interativas entre aprendizes de línguas próximas. Comparando o uso desses marcadores interativos por falantes de português e de catalão em situações de aprendizagem do italiano como língua estrangeira, as autoras destacam os comportamentos convergentes no uso desses sinais que mantêm viva a conversação e facilitam a intercompreensão - no?, vero?, né?, tá?, bueno, vale, pues, sì, ahn ahn, ok não são, afinal de contas, sinais vazios, e sua indefinição semântica pode dificultar a percepção de sua importância no ensino de línguas estrangeiras afins.

O artigo Formação docente nos espaços sociodialógicos fronteiriços: contribuições da análise dialógica do discurso traz-nos um contexto de fronteira sui generis, uma vez que as demarcações políticas não impedem o trânsito linguístico-cultural. Maria do Socorro de Almeida Farias-Marques, da Universidade Federal do Pampa, UNIPAMPA-Jaguarão, e Isaphi Marlene Jardim Alvarez, da UNIPAMPA-Bagé, propõem uma reflexão sobre esse encontro linguístico singular no qual somos nosotros portuñoles, fronterizos, bayanos, brasileiros, e a caracterização desse espaço como bilíngue não se sustenta. Para as pesquisadoras, a concepção de gêneros discursivos fundada na dialogia bakhtiniana permite trabalhar com essas mezclas, e os docentes em formação, eles mesmos com diferentes histórias linguísticas, precisam ser preparados para trabalhar com e nesses espaços.

É também de fronteiras entre línguas que trato o artigo As relações entre tradução e adaptação e as variações da identidade negra em 'A Cabana do Pai Tomás', de Harriete Beecher Stowe. Thaís Polegato de Sousa e Lauro Maia Amorim, ambos da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP-São José do Rio Preto, lidam com a delicada tarefa de comparar uma tradução e duas adaptações da obra A Cabana do Pai Tomás (Uncle Tom's Cabin), de Harriete Beecher Stowe. Delicada não só porque os limites entre traduzir e adaptar não são claros, mas porque se miscigenam, nessa comparação, a afinidade da tradução com a colonização, as imagens que cada reescrita constrói dos personagens negros e, mais ainda, da identidade negra.

Os limites da tradução são também, de certa forma, investigados no trabalho A tecnologia como meio de comunicação: implicações do uso de sistemas de memórias para a prática de tradução de Érika Nogueira de Andrade Stupiello, da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", UNESP-São José do Rio Preto, e de Paulo Sampaio Xavier de Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. O foco do trabalho é a forma como a semiautomação da tradução interfere na construção do sentido pelo tradutor que emprega sistemas de memórias. Os limites, neste caso, deslocam-se para a associação homem-máquina, e os autores, mesmo com uma ponta de receio, refletem sobre essa relação e sobre a necessidade de lidar com essa outra forma de co-autoria e com uma ética que lhe seja pertinente.

Somando-se às 'coisas ditas' até aqui sobre discursos, saberes, poderes e suas distribuições, o trabalho de Maria Otilia Guimarães Ninin, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC, e da Universidade Paulista, UNIP, traz o tema da escrita acadêmica, com destaque para formas de levar o aluno de pós-graduação a se apropriar dessa escrita. O artigo Escrita Acadêmica e Gramática Sistêmico-Funcional: perspectivas para o ensino encoraja o debate sobre o tema, tendo em vista as práticas pedagógicas, a consideração da assimetria das vozes autorais, as urgências de publicações científicas no mercado acadêmico e a necessária qualidade que deve acompanhá-las.

Agradecemos a nossos leitores, autores e avaliadores, e desejamos a todos uma boa leitura!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015
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