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A TECNOLOGIA COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO: IMPLICAÇÕES DO USO DE SISTEMAS DE MEMÓRIAS PARA A PRÁTICA DE TRADUÇÃO

TECHNOLOGY AS COMMUNICATION MEDIUM: SOME IMPLICATIONS OF USING TRANSLATION MEMORY SYSTEMS TO THE PRACTICE OF TRANSLATION

RESUMO

Este trabalho apresenta considerações teóricas sobre a construção do sentido pelo tradutor que emprega sistemas de memórias em um trabalho de tradução. Baseando-nos em uma análise de trabalhos produzidos por tradutores em formação com o auxílio desses sistemas, desenvolvemos uma reflexão sobre as implicações decorrentes da associação homem-máquina, uma relação que, cada vez mais frequente em setores que demandam traduções de materiais eletrônicos em nossa era, pode ter consequências diretas na produção do sentido pelo tradutor.

Palavras-chave:
Sistemas de memórias de tradução; automação; compreensão.

ABSTRACT

This paper presents theoretical considerations on the construction of meaning by the translator employing translation memory systems in the work of translation. Based on an analysis of translations produced by trainee translators, we develop a reflection on the implications resulting of human-machine association, which is increasingly more frequent in sectors demanding translations of electronic texts in our time and may have direct consequences in the production of meaning by the translator.

Keywords:
Translation memory systems; automation; comprehension.

INTRODUÇÃO

A automação do trabalho do tradutor já faz parte de seu cotidiano. Se outrora a ideia de automatizar implicava dispensar o trabalho humano, hoje o tradutor parece imbuído da noção de que somente com o auxílio da máquina ele será capaz de prestar serviços competitivos em um mercado que atrela cada vez mais eficiência à rapidez e à uniformização da produção tradutória.

Este trabalho apresenta uma reflexão sobre como a semiautomação da tradução, notadamente pelos sistemas de memórias, intervém na maneira como o tradutor compreende o texto a ser traduzido e o reconstrói na tradução que produz. Partindo de um panorama sobre o funcionamento desses sistemas, apresentamos excertos de traduções produzidas por estudantes de graduação com e sem o auxílio dessas ferramentas, chamando a atenção para a influência da compartimentação textual para a construção da compreensão, com base na hermenêutica filosófica inaugurada por Schleiermacher e, por extensão, na reconstrução do sentido do texto para o seu público alvo, apoiando-nos na teoria de cenas e frames de Fillmore. Agregamos também algumas breves reflexões sobre a relação homem/máquina, tantas vezes evocada - com uma ponta de receio - em discussões sobre o uso de ferramentas eletrônicas na tradução. Partimos, portanto, de um uso concreto, e procuramos colocá-lo no contexto de uma discussão mais geral sobre a tradução como um trabalho de construção de sentido, num mundo cada vez mais permeado pela tecnologia.

1. A TRADUÇÃO ASSISTIDA PELA MÁQUINA

Nas últimas duas décadas, testemunhamos um aumento acelerado do volume de informações produzidas para circulação eletrônica paralelamente à globalização do comércio eletrônico na rede mundial de computadores. Sendo essa produção textual livre das restrições impostas pelo meio impresso, cresceu também a urgência de sua disseminação além-fronteiras, e essa situação tem impulsionado a demanda pela disponibilização dessas informações nas diversas línguas de interesse comercial. A tradução responde à necessidade de organizações e empresas se apresentarem a públicos diversos, falantes de múltiplas línguas que, para se tornarem possíveis consumidores, requerem acesso às informações sobre um produto ou serviço em sua língua. O foco em tornar a comunicação possível em um mundo virtualmente conectado parece estar concentrado em tornar a língua um instrumento que, traduzida preferencialmente no menor tempo possível, poderá produzir os resultados desejados.

Em um esforço para atenderem às exigências mercadológicas e manterem-se competitivos em um setor já não mais limitado pela distância física, tradutores que trabalham com traduções especializadas e que prestam serviços para segmentos como a indústria da localização têm incorporado ferramentas de auxílio à tradução, como uma forma de acelerar e padronizar as opções fraseológicas e terminológicas de seu trabalho e atender aos escassos prazos estipulados.

Os recursos oferecidos por sistemas de memórias têm promovido transformações significativas na maneira como a tradução é contratada e praticada. Tal fato se explica pela própria concepção dessas ferramentas. Para que tais sistemas funcionem de maneira eficaz, o texto a ser traduzido é apresentado ao tradutor em segmentos, divididos sem qualquer relação contextual, mas delimitados conforme sinais de pontuação, como ponto final, ponto e vírgula e pontos de interrogação e exclamação. À medida que o tradutor traduz os trechos de texto assim apresentados, o sistema vai automaticamente armazenando os segmentos traduzidos com seus respectivos originais na memória, novamente sem qualquer relação contextual, alimentando um tipo de banco de dados fraseológicos. Sempre que o sistema identifica, por meio de algoritmos matemáticos, um determinado índice de semelhança entre o segmento a ser traduzido e outro armazenado em seu banco de dados (memória), ele o recupera para o tradutor e o insere na caixa de texto da tradução para possível reaproveitamento, dispensando o tradutor, idealmente, de ter que verter um mesmo trecho mais do que uma vez. Concluído o trabalho, a prática vigente determina que o tradutor forneça a tradução segmentada e pareada com seus respectivos trechos originais à agência contratante, visando ao reemprego futuro do trabalho pelo mesmo ou por outro tradutor que venha a ser contratado. Nesse ciclo, o trabalho concluído de tradução serve a dois propósitos: permitir que um falante de outra língua consiga ler e interpretar um texto cuja língua original ele desconhece e, graças à semiautomatização da prática, alimentar o banco de dados para permitir futura reutilização de trabalhos anteriores.

É pela reciclagem de trechos anteriormente traduzidos que os sistemas de memórias dinamizam a produção tradutória. Entretanto, como explica Garcia (2015GARCIA, I. Computer-aided Translation: systems. (2015) In: SIN-WAI, C. (Ed.). The Routledge Encyclopedia of Translation Technology., London: Routledge p. 68-87.), a utilidade de uma memória para um projeto específico de tradução não depende apenas do número de segmentos no banco de dados, mas da relação entre o material a ser traduzido e aquele acumulado na memória, uma vez que, nesses casos, "tamanho e especificidade nem sempre andam juntos" (p. 75). Sendo assim, a reusabilidade é garantida pela reiteração, ou seja, quanto maior o índice de repetição interna de um texto, mais ágil tende a ser sua tradução assistida por esses sistemas. Essa lógica explica a disseminada aplicação de sistemas de memórias em traduções de textos especializados, como manuais e documentação técnica. A idealização da conquista da padronização terminológica e fraseológica pela aplicação dessa ferramenta nesses trabalhos abriga-se na noção de invariabilidade do sentido da terminologia e fraseologia técnica. Conforme nos lembra Azenha (1999)AZENHA Jr., J. (1999). Tradução técnica e condicionantes culturais: primeiros passos para um estudo integrado. São Paulo: Humanitas., haveria uma visão, bastante difundida, mesmo entre professores e estudiosos da tradução, "segundo a qual textos técnicos, diferentemente de textos sagrados e da literatura, constituiriam um universo à parte, sujeito aos ditames do mercado e marcado pela estabilidade de sentido dos termos técnicos" (p. 10). Essa declaração ajuda a explicar a atratividade dos sistemas de memórias, planejados e comercializados com base na promessa de agilidade de produção (para atendimento dos "ditames do mercado" da tradução técnica) justamente por acumularem e preservarem trechos de textos originais e de suas respectivas traduções para reutilização posterior, um recurso desejado por tradutores especialmente em virtude da imagem de estabilidade que a linguagem técnica (ou científica) parece projetar.

Em princípio, a consistência parece prevalecer sobre a variação em traduções técnicas e essa ideia conduz à suposição de que as repetições identificadas pelo sistema no texto de origem poderão ser facilmente transferidas ao novo (con-)texto com o auxílio do sistema de memória. De acordo com essa perspectiva, no que concerne à remuneração do tradutor, faria sentido para o cliente remunerar a tradução uma única vez, ou seja, a partir do momento em que um segmento for traduzido e ocorrer novamente em outros textos, ele não mais seria recompensado integralmente, não importando o contexto de que venha a fazer parte. Conforme relatam Biau Gil e Pym,

a possibilidade de reutilizar traduções anteriores significa que os clientes solicitam que os tradutores trabalhem com sistemas de memórias de tradução e, depois, reduzem seus honorários. Quanto mais correspondências exatas e parciais existirem (segmentos iguais ou semelhantes já traduzidos e incluídos no banco de dados), menos eles pagam. Esse fato incita os tradutores a trabalhar rápido e, em geral, sem analisar os segmentos anteriormente traduzidos, com queda correspondente na qualidade. (BIAU GIL; PYM, 2006BIAU J. R. GIL ; PYM, A. (2006). Technology and translation (a pedagogical overview). In:, PYM, A. A., PEREKRESTENKO, A., STARINK, B. Translation technology and its teaching. Tarragona, Espanha. Disponível em http://isg.urv.es/publicity/isg/publications/technology_2006/index.htm. Acesso em: 22 jun. 2015.
http://isg.urv.es/publicity/isg/publicat...
, p. 10)

Se pensarmos como Biau Gil e Pym (2006)BIAU J. R. GIL ; PYM, A. (2006). Technology and translation (a pedagogical overview). In:, PYM, A. A., PEREKRESTENKO, A., STARINK, B. Translation technology and its teaching. Tarragona, Espanha. Disponível em http://isg.urv.es/publicity/isg/publications/technology_2006/index.htm. Acesso em: 22 jun. 2015.
http://isg.urv.es/publicity/isg/publicat...
que as aplicações desses sistemas "baseiam-se na ideia de tradução como uma atividade de substituição de palavras", podemos pressupor que seu emprego tem efeito direto na interação do tradutor com o texto a ser traduzido, especialmente pelo fato de lhe ser apresentada uma visão sempre fragmentada desse material, que não o convida a enxergar o trabalho como um todo e nem tratá-lo assim. Esse fato torna os sistemas de memórias mais do que um meio de produção, uma vez que eles podem articular um novo olhar no trabalho do tradutor ao controlarem o modo como o texto original é visto e, consequentemente, interpretado. Ainda que o tradutor tenha autonomia para aceitar ou rejeitar um segmento já traduzido e reapresentado pela memória, ele pode acabar sendo influenciado pela tradução já pronta e exposta à sua frente. Como esclarece Bowker (2006BOWKER, L. (2006). Translation memory and "text". In: _______. (Ed.). Lexicography, terminology and translation: text-based studies in honor of Ingrid Meyer. Ottawa: University of Ottawa Press. p. 175-187. ), o tradutor pode, assim, utilizar a tradução sugerida mesmo se ela não se encaixar bem no texto como um todo. Essa situação pode ser exacerbada nos casos em que tradutores trabalham sob pressão extrema de prazos, o que torna tentador incorporar uma sugestão que seja "boa o suficiente" em vez de elaborar uma que seja "boa" de fato (BOWKER, 2006BOWKER, L. (2006). Translation memory and "text". In: _______. (Ed.). Lexicography, terminology and translation: text-based studies in honor of Ingrid Meyer. Ottawa: University of Ottawa Press. p. 175-187. , p. 182).

Tanto tradutores experientes como novatos podem ser induzidos pelos recursos que um sistema de memória consegue oferecer, assim como pelo conteúdo de seu banco de dados. Se, por um lado, a experiência de trabalho com a língua pode ser uma aliada para aqueles mais versados no ofício, ela pode perder força se o tradutor não tiver recebido treinamento adequado ou suficiente sobre o uso da ferramenta que emprega. Por sua vez, a inexperiência de um tradutor ainda em formação, ou mesmo de um recém-formado, pode fazer com que ele desenvolva demasiada confiança na ferramenta que emprega, "substituindo cegamente traduções propostas sem verificar sua correção" (BOWKER, 2005BOWKER, L. (2005). Productivity vs. quality? A pilot study on the impact of translation memory systems. Localization Focusv.4, n.1, p. 13-20. Disponível em: Disponível em: http://www.localisation.ie/oldwebsite/resources/lfresearch/Vol4_1Bowker.pdf . Acesso em: 10 dez. 2014.
http://www.localisation.ie/oldwebsite/re...
, p. 19). Nesse sentido, conhecimento deficiente sobre a operação dos sistemas e a fé na infalibilidade da máquina podem igualmente comprometer a qualidade final de uma tradução.

Buscando desenvolver um senso crítico sobre a atuação dos sistemas de memórias no trabalho de tradutores em formação universitária, realizou-se uma pesquisa em um curso universitário paulista com estudantes do penúltimo e último ano em uma disciplina de prática de tradução em língua inglesa, com a avaliação de produções de traduções de textos comerciais (contratos) realizadas com e sem o auxílio de um sistema de memória. Com o apoio do programa detector de plágio Turnitin, foram quantificados os índices de semelhanças entre as traduções e a "originalidade" de cada trabalho, em relação às demais traduções do mesmo texto salvas no repositório do sistema. A quantificação do índice de semelhança entre os trabalhos foi realizada pelo recurso Originalitycheck, conforme demonstrado na Figura 1:

Figura 1
Tradução (português/inglês) de um contrato de compra e venda realizada com auxílio de um sistema de memória. No canto direito encontra-se o índice de semelhança entre essa tradução e as demais analisadas pelo programa.

O sistema destaca os trechos semelhantes aos das outras traduções armazenadas e, assim, permite examinar se a segmentação do texto de origem interferiu na elaboração de sua tradução. Tendo em vista o fato de o recurso Originalitycheck identificar com precisão o quanto um texto se assemelha a outros armazenados no sistema, é possível observar o quanto do texto hachurado não é "original", o que deve ser interpretado nesse caso como uma tradução idêntica ou com um alto grau de semelhança às outras analisadas.

A Figura 2 (abaixo) apresenta uma imagem ampliada do índice de semelhança entre as traduções armazenadas no depositório do programa. Observa-se nessa figura a quantificação da semelhança entre as traduções desenvolvidas com o sistema de memória. Nesse caso, todas elas apresentam índices superiores a 50% de ocorrências de frases e trechos de frases que o sistema identificou como idênticos. Para trabalhos realizados sem o auxílio de sistemas de memórias, o índice de semelhança não ultrapassou 30%, valor consideravelmente menor, que pode ser indicativo de trabalhos estilisticamente mais inovadores, não restritos pelos recursos da ferramenta.

Figura 2
Índice de semelhança entre traduções assistidas por sistemas de memórias

A Figura 3 apresenta outro trabalho do mesmo estudo, desta vez realizado sem o auxílio de um sistema de memória. É possível notar o número consideravelmente menor de trechos identificados como iguais ou altamente semelhantes pelo recurso Originalitycheck:

Figura 3
Tradução (inglês/português) de um contrato sem o auxílio de um sistema de memória.

Analisar a originalidade de textos por meio de índices e porcentagens é útil na medida em que torna possível quantificar com precisão como os sistemas de memórias colaboram para tornar os textos traduzidos mais similares e, por conseguinte, com menos espaço para a criação tradutória. A maneira como o sistema apresenta o texto ao tradutor, que o enxerga como um conjunto de segmentos a serem traduzidos de maneira consecutiva, por um lado, organiza a produção da tradução, mas, por outro, pode automatizar o trabalho de tal forma que se torna difícil ao tradutor considerar opções de tradução que não aquelas apresentadas pelo sistema (no caso de reaproveitamento de traduções anteriores) ou que não expressem exclusivamente o sentido do segmento encerrado pela caixa de texto.

A universidade talvez seja o único local em que futuros tradutores sejam convidados a aprender a analisar a influência das ferramentas que utilizam em seu trabalho. A construção de uma consciência sobre como podemos acabar sendo definidos pelas ferramentas que empregamos ou, nas palavras de Cronin (2013CRONIN, M. (2013). Translation in the Digital Age. London: Routledge., p. 10), como "as ferramentas nos moldam na mesma medida que as moldamos", certamente não está entre as prioridades ou os interesses das agências que possivelmente contratarão esses estudantes egressos de cursos de tradução.

Se pensarmos a tradução especializada como uma atividade que é realizada cada vez mais com base na reusabilidade, com fragmentos de textos anteriores copiados e colados em novos contextos, é possível presumir que a língua pode estar consequentemente perdendo sua diversidade e capacidade de renovação. O constante esforço para fazer uso de trabalhos passados inibe o tradutor em relação à possibilidade de refletir sobre como construir um novo significado ou adotar um modo novo de expressar uma ideia ou, ainda, de melhorar uma tradução anterior. Em prol da consistência, que já não mais se limita à terminologia, mas compreende o nível frasal, a semiautomação da tradução tem frequentemente resultado em textos de estilo precário, desprovidos de referências anafóricas e catafóricas devido à combinação da produção de diversos tradutores e à crescente inserção de elementos pré-traduzidos por programas de tradução automática, um recurso agregado aos sistemas de memórias atuais. Na literatura da área, a exacerbação desse método de trabalho tem sido assemelhada a uma "salada de frases" (BÉDARD, 2000BÉDARD, C. (2000). Mémoire de traduction cherche traducteur de phrases. Traduire, n. 186, p. 41-49.) ou a "textos de colagem" (MOSSOP, 2006MOSSOP, B. (2006). Has computerization changed translation? Meta, 51(4), p. 787-793. ). Na medida em que a tradução é abordada por uma perspectiva baseada no produto final, a intermediação do tradutor é encoberta. De acordo com Cronin (2013CRONIN, M. (2013). Translation in the Digital Age. London: Routledge., p. 4), "a visão de tradução na era digital é fundada na ideologia de transparência". Usuários finais, na maioria das vezes, não têm qualquer informação sobre a complexidade do trabalho de tradução e certamente não estariam propensos a admiti-la, sobretudo se isso implicar o pagamento de um valor adicional pelo trabalho.

Se, conforme argumentamos neste trabalho, as ferramentas que os tradutores empregam estão determinando o curso de seus trabalhos, nossa atenção deve se voltar às possíveis implicações decorrentes das mudanças inevitáveis na maneira como o papel do tradutor é concebido no trabalho com as línguas. Se, ao seguir as orientações de seu contratante, o tradutor possui controle limitado sobre as memórias que emprega, sendo orientado no sentido de empregar a ferramenta para aumentar sua produtividade e não como um recurso para melhorar a qualidade de seu trabalho, a tradução deixa de ser um todo coerente para tornar-se em nada mais que uma série de frases encaixadas para formar o produto final. A noção de autoria envolvida na criação de um novo significado em uma língua estrangeira, assim como a responsabilidade a ela associada, é dissipada na produção da tradução, cada vez mais composta por trechos fundidos e editados para novos públicos. Essa prática pode evocar a imagem do tradutor como um manipulador da língua, que trabalha seguindo o molde do texto de origem e de suas traduções anteriores.

Considerando que uma das principais vantagens do emprego de sistemas de memórias de tradução está na possibilidade de padronizar as escolhas tradutórias para a produção de um texto mais consistente, a questão que parece pairar é se a ferramenta necessariamente torna o trabalho do tradutor melhor. Conforme argumenta Stupiello (2014STUPIELLO, É. N. de A. (2014). Ética profissional na tradução assistida por sistemas de memórias. São Paulo: Editora Unesp, 207 p., p. 190), "Quando tudo que o tradutor tem à sua frente são segmentos textuais e opções de traduções passadas, pode acabar tornando-se difícil construir uma rede de relações conceituais e semânticas no texto que traduz". Em outras palavras, pode se tornar conveniente ao tradutor trabalhar em um segmento após o outro sem checar a correção terminológica ou voltar sua atenção à coesão textual. O tradutor pode acabar trabalhando exclusivamente no nível da frase e vir a se concentrar cada vez mais em um texto circunscrito em caixas de texto à conveniência da automação.

2. O PARADOXO DA COMPREENSÃO

Na seção anterior, procuramos descrever as características mais salientes do trabalho com sistemas de memórias de tradução e apontamos para algumas características da dinâmica de trabalho que podem acabar comprometendo não apenas o resultado final, como também a própria atitude do tradutor diante de seu ofício, seja ele um profissional experiente ou iniciante. Nesta seção, ampliaremos o foco para tratar de questões mais gerais, tentando entender como essa prática se apresenta de um ponto de vista teórico não restrito ao uso das ferramentas. Se nesses sistemas, como foi explicado anteriormente, o texto a ser traduzido é apresentado ao tradutor em segmentos divididos e sem qualquer relação contextual, quebra-se desde já a relação entre o todo e a parte que, segundo a hermenêutica textual, desde a contribuição seminal de Schleiermacher (1977SCHLEIRMACHER, F. D. E. (1977). Hermeneutik und Kritik., Frankfurt: Suhrkamp 1977, 469 p. (Organização e apresentação: Manfred Frank. Publicação original: Berlim: Reimer, 1838. Editado por F. Lücke. Edição brasileira: e Crítica - Vol. 1 - Friedrich D. E. Schleiermacher. Ijuí: UNIJUÍ, 2005, 279 p. Tradução: Aloísio Ruedell. Revisão: Paulo R. Schneider.). [1838]) dois séculos atrás, fundamenta todo e qualquer processo de compreensão.1 1 Uma boa síntese é fornecida por Manfred Frank (1977) em sua introdução à reedição contemporânea da obra. Como estudos introdutórios em português à temática mais geral, abrangendo outros expoentes da hermenêutica, sejam mencionadas as contribuições de Lawrence Schmidt (2006) e Jean Grondin (2012). Porque nesse caso praticamente não há todo, mas apenas partes. Para além do problema da dificuldade de construção de uma rede de relações conceituais e semânticas, sem checagem terminológica ou a devida atenção à coesão textual, como colocado acima, cabe até mesmo a pergunta sobre a compreensão: o tradutor de fato compreende o texto que traduz, quando o uso de memórias de tradução exacerba a crença na propalada noção de invariabilidade do sentido da terminologia e fraseologia técnica, restringindo-se o trabalho exclusivamente ao nível da frase e concentrando-se cada vez mais em segmentos circunscritos em caixas de texto à conveniência da automação? Pelo que nos diz a hermenêutica sobre a relação necessária entre o todo e a parte, a resposta é aparentemente não. Pois a compreensão pressupõe o domínio do todo, a visão geral. Mais importante ainda é a questão do destinatário final da tradução. Compreende ele o texto traduzido? Aparentemente, a resposta aqui é sim, pois esse tipo de tradução tem aceitação no mercado, o que é um indício de que o cliente e/ou o consumidor consegue(m) construir um sentido compatível com a finalidade do texto, apesar das eventuais deficiências do produto final e da precariedade da forma como ele foi elaborado.

A reflexão desenvolvida a seguir tentará fornecer subsídios para entendermos como isso pode ser possível. Para tanto, repassaremos brevemente algumas posições sobre as questões do contexto, do processo tradutório e da compreensão, para depois retomar um tópico central em nossa investigação, que é o da relação entre o ser humano e as ferramentas que ele tem a seu dispor.

Mas antes cumpre fazer uma pequena observação, de passagem, sobre a noção de invariabilidade. Note-se que a real e necessária invariabilidade do sentido de termos técnicos (respeitada uma certa constância espaço-temporal), sobre a qual repousa a própria disciplina da terminologia, que define e restringe o escopo do sentido de cada termo específico nos diferentes contextos de uso, passa na prática a ser estendida, nas memórias de tradução, a trechos que não se resumem a termos técnicos, pelo contrário: necessitam de termos da língua geral, de palavras funcionais etc. em sua constituição. Como ilustração, tomemos um exemplo que surgiu de forma natural neste texto, quando falamos da relação "entre o todo e as partes" como fundamental para a compreensão de "todo e qualquer texto". O termo todo muda radicalmente de sentido de um uso a outro, assim como inúmeras outras palavras mudam de sentido de um uso a outro - desde que não sejam empregadas como termo técnico, com sentido restrito terminologicamente. Era essa, aliás, a grande preocupação do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein já em sua obra de juventude, o Tractatus logico philosophicus (1961WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus Londres: Routledge & Kegan Paul, 1961, 144 p. (Publicação original: 1922. Traduções brasileiras: [1] J. A. Giannotti. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968, 174 p; [2] L. H. L. Santos. São Paulo: EDUSP, 1994, 299 p) [1922]): falta à nossa linguagem aquilo que mais tarde chamou de uma "visão perspícua", que permita apreender, de modo sintético, as variantes de uso dos termos a nosso dispor, e tendemos - erroneamente - a atribuir às palavras sentidos invariáveis, mesmo em contextos marcados pela variabilidade.2 2 Num certo sentido, Werner Strube (2003, p. 91) retoma essa questão por um novo ângulo em sua análise da compreensão, ao discutir o Wittgenstein tardio, das Investigações Filosóficas (IF), de um modo que acaba por abalar uma dicotomia tradicional muito arraigada, a saber: aquela de um limite aparentemente intrans-ponível entre a ideia de univocidade do sentido, a qual podemos entender como uma outra forma de falar de sua invariabilidade, por oposição a uma eventual polissemia - sendo que os dois primeiros termos são valorados na área de terminologia e o último nos estudos literários, pode-se agregar. Parte do argumento é que a palavra compreender (em alemão: verstehen) não é polissêmica, sendo antes que o conjunto de seus usos circunscreve os limites do conceito: "Falamos da compreensão de uma frase no sentido de que ela pode ser substituída por uma outra que diz a mesma coisa; mas também no sentido em que ela não pode ser substituída por nenhuma outra. (Tampouco quanto um tema musical por outro) [WITTGENSTEIN, 2009, p. 152; IF § 531]. (...) Então 'compreender' tem aqui dois significados diferentes? - Prefiro dizer que essas espécies de usos de 'compreender' formam sua significação, o meu conceito de compreensão" [p. 152; IF § 532]. Seguimos aqui a tradução de José Carlos Bruni (p. 141).

Nos estudos da tradução, esse tipo de crítica é mais conhecido em sua vertente desconstrutivista, dentre outros pela ênfase dada à importância do contexto para a construção do sentido, num combate frontal à tese da invariabilidade. Um exemplo paradigmático é a noção derrideana de différance, que busca sintetizar a ideia de que o sentido difere, muda a cada novo uso. Daí o adágio: meaning is context bound, but context is boundless, significando que não temos como produzir, por exemplo, uma tradução "definitiva", posto que mudanças de contexto implicarão mudanças no próprio sentido que pode ser construído a partir de um mesmo texto.3 3 Gadamer, por sua vez, explicará essa variação pela via de seu conceito de aplicação: se compreender já é interpretar e a não compreensão é parte indissociável desse processo, como assinalara a hermenêutica romântica representada por Schleiermacher (DUQUE-ESTRADA, 2011, p. 51-52), há também um terceiro momento, justamente aquele da aplicação do texto dado a cada situação de uso, como ocorre paradigmaticamente no caso das leis, no âmbito jurídico, e dos textos religiosos, tanto na teologia quanto na prática sacerdotal cotidiana (GADAMER, 1997, p. 48-49; FRANKEN, 2010, p. 89). Mutatis mutandis, o princípio vale também para outras situações. Partindo da noção wittgensteiniana de significado como resultado do uso concreto na linguagem, Arley Moreno (2011, p. 64-65) observa, por sua vez, que "a definição de uma regra de sentido não permite sempre a antecipação, pelo puro pensamento, de todos os casos de sua aplicação, e tampouco proíbe aplicações que venham a exprimir critérios diferentes". Aplicado a nosso contexto, tal raciocínio ajuda a entender que a estabilidade da terminologia e fraseologia técnica resulta não de uma natureza pretensamente neutra e objetiva da técnica ou ciência, visão hoje questionada por inúmeras correntes de pensamento, mas sobretudo dos sistemas de coerção que impedem sua mudança, visando garantir o necessário grau de invariabilidade. As memórias de tradução constituem-se como mecanismos de automatização dessas coerções, inclusive no âmbito contratual. E mesmo assim os conceitos por detrás dos termos mudam, como pode ser facilmente verificado em termos com motor, software ou desconstrução etc., que hoje certamente agregam dimensões diversas daquelas existentes quando de seu surgimento. De um ponto de vista wittgensteiniano, no entanto, pode-se inverter essa equação: será sempre possível determinar o sentido correto de um enunciado, desde que se amplie suficientemente o contexto utilizado, até chegar-se a uma definição adequada dos potenciais e limites em jogo (OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, P. (2007). Wittgenstein e problemas da tradução. In A. R. Moreno (Org.): Wittgenstein: aspectos pragmáticos, p. 175-244. Campinas: CLE/Unicamp, 244 p., p. 213-221). Ora, o problema dos sistemas de memórias é exatamente que eles coíbem a expansão do contexto necessária para a obtenção de uma visão do todo, e consequentemente de uma compreensão tal como descrita pela hermenêutica. Isso posto, voltemos ao nosso paradoxo inicial: compreende o tradutor o texto que traduz, ao usar de modo quiçá automatizado e acrítico as memórias de tradução? Aqui, uma das cenas iniciais de um filme relativamente recente poderá nos fornecer um bom instrumento heurístico para lidarmos com o assunto.

No aclamado A vida dos outros (VON DONNERSMARCK, 2006VON DONNERSMARCK, F. H.; (2006). A vida dos outros. São Paulo: Europa Filmes (DVD na versão brasileira).), longa-metragem de ficção sobre o sistema de espionagem que vigia na antiga Alemanha Oriental, o protagonista, um agente da polícia secreta que também é professor na academia de polícia, apresenta a seus alunos um caso que está investigando. Após tocar a gravação de parte do interrogatório com um preso, pergunta a seus alunos se algo lhes chama a atenção. Um deles responde que o interrogado repetia praticamente a mesma coisa a cada reiteração da pergunta sobre o que fizera em determinado dia (em alemão: das Gleiche). O professor corrige, dizendo que o interrogado repetia exatamente a mesma coisa (Dasselbe) e agrega a observação que interessa à nossa discussão: "Quem diz a verdade, é capaz de reformulá-la como quiser; quem mente, decora uma versão e repete-a à exaustão", para não cair em contradição. Sua conclusão: o preso mente. Obviamente, não cabe aqui comentar o filme, o sistema de opressão naquele regime, a (i)moralidade desse tipo de interrogatório etc. Cabe tomar a observação do professor e aplicá-la à questão da tradução, da compreensão, da (in)variabilidade: quem compreende, é capaz de reformular o que compreendeu de inúmeras maneiras, sem modificar substancialmente o sentido daquilo que está dizendo. Quem não compreende, ou não precisa compreender, repetirá de forma quase mecânica algo que lhe é dado como invariável - por exemplo, por um sistema de memória de tradução.4 4 Note-se um certo paralelismo do conceito de compreensão mobilizado pelo professor/espião no filme com o que diz a primeira parte do aforismo 531 das IF, citado na nota 2. Sendo que a repetição mecânica dos termos fornecidos pelos sistemas de memórias não corresponde à singularidade do sentido nos termos da segunda parte do mesmo aforismo - posto que ali o que se discute é a compreensão de algo e não sua mera repetição.

Vimos na seção anterior que traduções feitas com o auxílio de sistemas de memórias apresentam uma taxa de invariância muito alta (cf. Figura 2), ao passo que traduções do mesmo texto sem uso desse tipo de recurso fornecem textos com maior grau de variabilidade, i.e., com mais inovações por parte do tradutor (cf. exemplo na Figura 3). Concluímos que os sistemas de memória, de certo modo, inibem a criatividade do tradutor, a produção de novas formas de expressar o mesmo sentido básico. Mobilizando nossa analogia com o filme alemão, podemos agora concluir que, no limite, tais sistemas também permitem que o tradutor trabalhe sem realmente ter entendido, numa dimensão mais ampla, o sentido do texto que traduz. Ter-se-ia aqui uma consequência ao mesmo tempo perversa, para o tradutor, e economicamente interessante, para o cliente, pois esse tipo de tecnologia amplia substancialmente as possibilidades de atribuir a profissionais não qualificados em áreas específicas trabalhos técnicos dessas áreas. A analogia com a questão da mentira no filme citado é forte e merece qualificações, mas certamente há nela algo de pertinente. Ao traduzir com sistemas de memória, cria-se uma ficção da compreensão, ou, no limite, descarta-se ou minimiza-se a compreensão como componente necessária para a criação do produto final. Daí a impressão de "transparência" do processo mencionada na seção anterior. E mesmo assim a coisa funciona. Como isso é possível?

O linguista norte-americano Charles Fillmore desenvolveu uma teoria que poderá nos ajudar a entender os mecanismos que tornam tal compreensão plausível. Essa teoria, à qual podemos nos referir pelo título de scenes & frames e comporta dimensões semânticas e pragmáticas, teve papel fundamental no desenvolvimento da abordagem cognitivista da linguagem, tendo sido retomada por vários estudiosos da tradução na Alemanha, sobretudo por aqueles comprometidos com a linha funcionalista, à qual se associam nomes como Vermeer/Witte, Hönig, Kussmaul e, de maneira menos direta, Van­neren/Snell-Hornby. Mas é da pesquisadora finlandesa Marja Jär­ven­­tausta, hoje com vínculo profissional na Alemanha (Universidade de Colônia), a síntese à qual recorreremos a seguir, retomando de perto, mas com as devidas modificações, um trabalho anterior com foco na interpretação oral (OLIVEIRA, 2002OLIVEIRA, P. (2002). Saindo da cabina. Claritas, n.8 p. 21-39. São Paulo: PUC., p. 22-25). Em franco diálogo com os funcionalistas alemães, Jär­ventausta (1998, p. 221) lembra que a postura corrente dentre os leigos e partilhada também por muitos teóricos mais tradicionais entende a tradução como um "processo e resultado da reprodução de expressões linguísticas (palavras, frases, textos) de uma língua A em uma língua B" (GLÜCK, 1993GLÜCK, H. (1993). Lexikon Sprache. Stuttgart / Weimar: Metzler, 1993, 817 p. JÄR­VEN­­TAUSTA (1998)., p. 660). Podemos representar essa visão através do seguinte esquema:

Figura 4
visão leiga/tradicional da tradução como produção de equivalentes linguísticos

Note-se que, embora o tradutor trabalhe também ou sobremaneira com o sentido, a visão leiga/tradicional o percebe operando sobretudo com as formas linguísticas, i.e. no âmbito daquilo que na teoria de Fillmore é chamado de frame. A síntese dessa visão seria: quem sabe a(s) língua(s) em questão, sabe traduzir, i.e. produzir equivalentes. A grande contribuição dos trabalhos de Fillmore incorporada aos estudos da tradução está no fato de que eles permitem construir um modelo explicativo para o papel do tradutor, evidenciando que este terá necessariamente um papel modulador ativo, consciente ou não, no processo da reconstrução do sentido para seu público alvo no "idioma B". Vejamos como isso ocorre, através da síntese possibilitada pelos três esquemas propostos por Järven­tausta (1998). Segundo a autora, pode-se pensar em uma macro-cena por trás de um macro-frame (p. 222; Figura 5):

Figura 5:
a macro-cena por trás de um macro-frame

O esquema proposto já dá conta do fato de que a operação tradutória não é meramente formal (âmbito do frame), pelo contrário: passa necessariamente pela referência ao sentido (âmbito da cena). Sua limitação está no pressuposto de uma cena comum a todas as partes envolvidas (produtor/tradutor/receptor), sendo que podem existir diferenças notáveis, posto que o conhecimento partilhado não é necessariamente o mesmo. Por esse motivo, a autora propõe um outro esquema, mais diferenciado, o qual denomina "as macro-cenas por trás dos macro-frames" (p. 224; Figura 6):

Figura 6
as macro-cenas por trás dos macro-frames

Aqui, fica evidente que a referência de mundo não é necessariamente a mesma para o autor, o tradutor e o leitor da tradução. Cabe ao tradutor criar/evocar sua própria cena de modo compatível com o universo discursivo do autor, para em seguida produzir um frame que permita ao leitor da tradução articular receptivamente um discurso de chegada compatível com o discurso de saída (cena-p ~ cena-r). Até que ponto isso é possível, dependerá de uma série de fatores, cuja análise foge ao escopo do presente trabalho. O terceiro esquema proposto por Järven­tausta enfoca justamente o processo mental do tradutor (1998, p. 230; Figura 7):

Figura 7
as micro-cenas por trás da macro-cena do tradutor

Fundamental para nossa discussão é o segundo esquema de Järven­tausta (Figura 6), posto que ele nos permite ressaltar o potencial de diferenças entre o discurso do autor, sua reelaboração pelo tradutor e a nova reelaboração pelo leitor da tradução, i.e. entre as diferentes cenas evocadas com base num mesmo frame, seja na interface entre autor e tradutor (enquanto leitor), ou entre tradutor (enquanto autor) e público leitor da tradução. Quando reutiliza uma tradução de trecho fornecida pelo sistema de memória, o tradutor não está necessariamente evocando sua própria cena, construindo seu próprio sentido, posto que poderá também se limitar a substituir um frame (na língua de partida) por outro (da língua de chegada), sem necessariamente passar pelo crivo de sua própria compreensão, i.e., de uma imersão real no universo discursivo em jogo. O máximo que ele pode fazer é mobilizar uma micro-cena circunscrita às caixas de texto referidas na seção anterior. É esse o limite daquela expansão do contexto que, na visada wittgensteiniana referida mais acima - e também naquela da hermenêutica - permitiria a obtenção de critérios suficientes para uma compreensão adequada. Daí a possibilidade, também já referida na seção anterior, de surgirem problemas de coesão (compatibilidade formal entre um trecho e outro, no âmbito do frame), ou de mesmo de coerência (compatibilidade de sentido, no âmbito da cena).

Note-se ainda que, se na teoria de Fillmore, conforme a descrição de Järven­tausta (Figura 7), os micro-frames correspondem a unidades gramaticalmente bem definidas (oração; sintagma; lexema), às quais corresponderiam unidades logicamente bem circunscritas (proposição mental; conceito complexo; conceito lexical), a segmentação nos sistemas de memórias é notadamente mecânica, com base em aspectos formais como marcas de pontuação: ponto final, ponto e vírgula e pontos de interrogação e exclamação. Nesse sentido, até o próprio conceito de frame nos termos de Fillmore e Järven­tausta fica prejudicado, pois não há uma unidade formal propriamente dita, mas apenas segmentos cortados segundo critérios de superfície, na própria materialidade dos signos computacionais: conjuntos de números dentro de tabelas de caracteres sem quaisquer conteúdos semânticos. E, no entanto, são exatamente os conteúdos semânticos que permitem tanto ao tradutor aceitar ou descartar as equivalências propostas pelos sistemas de memórias quanto ao leitor do produto final compreender o texto apesar de suas eventuais deficiências formais.

Esse último aspecto é recoberto pelo conceito de bypass, um fenômeno que ocorre de modo claro na comunicação mediada por interpretação oral quando, por exemplo, seja por lapso ou falta de conhecimento do tema, o intérprete usa um termo, expressão ou figura que não cabe no contexto, sendo de imediato corrigido pelo público ouvinte familiarizado no assunto, no ato da compreensão (LOPES, 1997LOPES, E. J. M. (1997). Estratégias discursivas dos intérpretes de conferência. Belo Horizonte. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) - Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais., p. 71-72), de acordo com o raciocínio: não pode ser isso que ouvi, deve ser... Para ficarmos com um exemplo bem simples, envolvendo números, digamos que eu, na condição de intérprete, refira-me à grande São Paulo como uma região de mais de 10 bilhões, ou de 10 mil habitantes. Ora, o público sabe que a dimensão não é essa e corrigirá automaticamente para "mais de 10 milhões". Mutatis mutandis, isso ocorre também com termos técnicos, nomes próprios, referências e tudo aquilo que for passível de adequação contextual. O fenômeno também é comum na comunicação cotidiana, nos pequenos lapsos que ocorrem em nossas falas, quando o interlocutor ajusta sua compreensão, muitas vezes nem se dando o trabalho de tocar no assunto. Num certo sentido, a compreensão do produto final eventualmente deficitário resultante do uso de memórias de tradução, num processo realizado em escala industrial e tempo exíguo, acaba por depender em boa parte desse tipo de recontextualização com aplicação, mesmo que parcial, do bypass, notadamente em função da especificidade dos contextos de uso.

3. A RELAÇÃO HOMEM-MÁQUINA

A combinação da teoria de Fillmore com a noção de bypass talvez ajude a decifrar o paradoxo da compreensão, nos termos propostos na seção anterior, ou pelo menos a atenuar seu caráter aparentemente enigmático. Antes de finalizarmos nossa discussão, cabe ainda refletir brevemente sobre a relação homem-máquinas, no que tange à possibilidade, ou ao receio, de virmos a ser completamente (?) substituídos por elas, uma preocupação não raro verbalizada no contexto do uso de ferramentas eletrônicas na tradução. Como já mobilizamos o cinema em nossa discussão, recorramos novamente a ele à busca de analogias produtivas. No clássico 2001, uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick (2009KUBRICK, S. (2009). 2001, uma odisseia no espaço. Rio de Janeiro: Warner Home Video. (Blue ray, versão brasileira. Produção original: 1968). [1968]), esse pesadelo de ter a máquina substituindo o homem é personificado no supercomputador HAL que, já tendo o controle técnico-operacional de uma nave espacial em sua jornada rumo a Júpiter, adquire sentimentos e tenta descartar os humanos que ainda tomam as decisões estratégicas e implementam algumas ações práticas.

A metáfora é célebre, assim como o é o jump cut colocado nas sequências iniciais do filme, que começa mostrando cenas da vida pré-histórica num planeta qualquer, mas talvez na savana africana, numa paisagem inóspita onde diferentes animais lutam pela sobrevivência. Um dos grupos de grandes primatas em conflito pelo acesso à água aprende a usar um osso como ferramenta de combate e consegue hegemonia. Ao final da cena onde isso ocorre, o líder do grupo joga longe o osso-arma que acabara de usar, comemorando a vitória. O osso sobe e depois começa a cair lentamente, girando no ar: corte para uma nave dançando no espaço, ao som da valsa Danúbio azul, de Johann Strauss. Estava inventada a tecnologia, que levou o ser humano da ferramenta primitiva à conquista do espaço. O caráter profético já fora marcado pela abertura do filme, ao som bombástico de Assim falava Zaratustra, de Richard Strauss.5 5 O teórico evolucionista Mark Pagel (2012) comenta que, para muitos estudiosos, o momento luminoso do arremesso do osso no filme de Kubrick corresponderia a cerca de dois milhões de anos atrás, no vale do Rift na Tanzânia, no trecho chamado Desfiladeiro de Olduvai, quando teria surgido a criatividade na espécie Homo. Contrariamente a essa hipótese, Pagel argumenta que aquele Homo erectus usou praticamente o mesmo tipo de machado manual por quase toda sua história de 1,8 milhões de anos. Faltava-lhe a capacidade de aprendizagem social que caracteriza o Homo [sapiens] moderno e o distingue das outras espécies de animais: não basta apenas usar ferramentas, o caráter distintivo de nossa espécie seria, segundo o autor, a propensão a não apenas repetir o que já foi feito, mas aperfeiçoar constantemente as ferramentas e técnicas a nosso dispor. Seria essa a peça fundamental da cultura, que se replica e se propaga através de ideias (memes), assim como os organismos se replicam através dos genes (cf. Capítulo 1, p. 21/56 na versão eletrô-nica - com paginação dinâmica).

Façamos então um outro jump cut, mais curto, porém na direção inversa, voltando à Grécia antiga. Em A Farmácia de Platão, Jacques Derrida (1991DERRIDA, J. (1991). A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras. (Tradução: Rogério da Costa).) nos lembra que, no Fedro, Sócrates é apresentado criticando os sofistas pelo uso da escrita, que ele reputa perniciosa porque substitui a memória e a palavra oral, na qual o sentido se expressaria em sua essência, como presença do espírito. Ironicamente, o que hoje conhecemos do pensamento de Sócrates só chegou até nós em função dos escritos de Platão, seu mais eminente discípulo. Muitos séculos mais tarde, por volta dos anos 1970, criticava-se o uso de calculadoras eletrônicas nas escolas com o argumento de que elas levariam os alunos a não mais aprender as operações básicas (ninguém mais saberia a tabuada). Hoje, não só a calculadora eletrônica está integrada à prática escolar e às atividades triviais da vida profissional, como em muitos casos foi substituída por programas de computador, como planilhas eletrônicas, sendo que em cursos de arquitetura e engenharia, aprender a usar ferramentas como AutoCad (significando "desenho auxiliado pelo computador") faz parte da formação profissional. A lista de exemplos poderia ser expandida ad infinitum. Fato é que o uso da tecnologia como extensão da capacidade humana faz parte do processo evolutivo e é inexorável. Mais do que satanizar as novas formas de trabalho, temos que entender de que modo elas afetam nossas práticas, nossa própria maneira de pensar e, no nosso caso específico, de produzir textos, realizar traduções. Cumpre usar esse entendimento para evitar armadilhas e coibir abusos. Nesse sentido, o já citado programa proposto por Cronin (2013CRONIN, M. (2013). Translation in the Digital Age. London: Routledge., p. 10), de atentarmos para como "as ferramentas nos moldam na mesma medida que as moldamos", certamente deve fazer parte de nossas investigações.

Nunca é demais lembrar que a oposição homem/máquina é, num certo sentido, falsa, pois as máquinas nada mais são que uma extensão do próprio ser humano. Não foi o computador deep blue sozinho quem derrotou em 1996 o grande mestre russo Garry Kasparov, considerado por muitos o maior enxadrista de todos os tempos, mas sim toda uma equipe de engenheiros da IBM empenhados em mostrar a capacidade evolutiva das máquinas, trabalhando não apenas no nível empírico, do hardware, mas também na elaboração de algoritmos capazes de analisar em tempo ínfimo o escopo das combinatórias possíveis após determinado movimento do adversário.6 6 Pensar a máquina trabalhando sozinha, sem intervenção humana, significa suprimir a diferença entre o homem e a máquina, o que é algo distinto de pensar a máquina como extensão do homem, como propomos aqui. Uma outra forma de apagar as diferenças é pensar o próprio ser humano como artefato (enquanto produto da evolução), como faz o filósofo canadense Barry Allen (2015), dentre outros trabalhos recentes. Sendo que o modo de funcionamento de deep blue e das máquinas e programas de xadrez que surgiram antes e na sequência não se restringe à (cada vez maior) força bruta do cálculo de probabilidades, mas integra também toda a história documentada do esporte, com aberturas clássicas e partidas célebres, diferentes estratégias e modos de resolver problemas etc. É o homem na máquina enfrentando o homem indivíduo, em suma. Para as gerações atuais, o treino com programas de computador programáveis para atuar em diferentes níveis certamente contribui para seu próprio aprendizado7 7 Devemos a Caetano Galindo o cotejo inicial com o xadrez, com destaque para este aspecto específico (comunicação oral em encontro do Grupo de Pesquisa Perspectivas Multidisciplinares da Tradução realiza-do na PUC/RJ, 27-29/11/2014). - embora deva também ser registrado que, nesses embates, algumas dimensões do jogo, como a parte psicológica envolvida em partidas com humanos, acabam ficando fora.

No 2º DVD do monumental filme de Alexander Kluge (2011KLUGE, A. (2011). Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital. São Paulo: Versátil. (Versão original alemã: 2008). [2008]), Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital, o episódio de abertura é um ensaio de Tom Twyker com o título de O homem na coisa, baseado em comentário extraído da obra de Marx: "Todas as coisas são homens enfeitiçados".8 8 Cf. YouTube, com legendas em espanhol: <https://www.youtube.com/watch?v=VvcQFJi548g>. Extremamente complexo, com textos em várias línguas sendo traduzidos para outras, seja na própria trilha de áudio ou via legendas, e com uma duração total de 8 horas e 32 minutos (fora os extras), o filme de Kluge certamente não poderia ter sido traduzido para o português sem recorrer a um trabalho em equipe. Trata-se, portanto, de um exemplo concreto do lado positivo da pulverização da responsabilidade tradutória. Que o Brasil tenha sido o primeiro e talvez único país a produzir uma versão nacional, distinta em sua natureza da versão legendada em inglês, destinada a um público internacional genérico, também é um aspecto que merece destaque. Nos nove minutos de exposição, a câmara passeia por detalhes de uma cena urbana, retendo-se nos diferentes objetos e sintetizando sua história, da goma de mascar à bolsa feminina, contemplando também o interfone, as marcações de água e gás encanado existentes no chão ou na parede, a chave de uma porta etc. Em cada um desses objetos, condensa-se toda uma história de criatividade e evolução, alterações criadas pelas necessidades dos diferentes contextos de uso. Absolutamente integrados à paisagem, esses objetos passam-nos despercebidos no dia-a-dia, mas certamente nos lembramos deles no momento de sua falta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As memórias de tradução, no âmbito específico de sua utilização mais corrente, para textos de cunho técnico ou comercial, em tarefas realizadas sob grande pressão de tempo e voltadas para produtos confeccionados em larga escala, são um excelente candidato a integrar a paisagem contemporânea, nos termos da relação homem-máquina discutida brevemente na seção anterior. Para os profissionais ou futuros profissionais com atuação nessa área, aprender a usá-las passa a ser um requisito importante para sua integração no mercado. Cabe, no entanto, refletir sobre como fazer uso dessas ferramentas de maneira adequada, sem abrir mão da criatividade intrínseca à própria tarefa do tradutor, i.e. sem operar no modo do "piloto automático", e tomando os devidos cuidados, do ponto de vista da categoria profissional, para garantir condições adequadas de trabalho. Procuramos aqui levantar alguns aspectos que julgamos relevantes para entender o processo como um todo e, com isso, poder adotar as atitudes pertinentes nos diferentes contextos, de aprendizagem e uso real dessas ferramentas.

Os sistemas de memórias têm por principal função possibilitar o reaproveitamento de trechos de textos em outros contextos. Promovem renovação como nunca antes possível, permitindo que trechos de textos sejam continuamente "recortados" e "colados" em outros contextos para, então, serem editados pelo tradutor usuário da ferramenta.

O desconhecimento do contexto maior do texto de origem e o modo como o texto a ser traduzido é apresentado na interface dos sistemas de memórias não encorajam o tradutor a realizar uma pesquisa terminológica mais aprofundada para um texto que ele conhece, muitas vezes, somente parcialmente.

Sendo assim, o tradutor torna-se exclusivamente responsável pela adequação dos segmentos estáveis e anteriormente traduzidos em novos contextos, limitando ao máximo sua interferência, como também pela produção de novas traduções que, armazenadas na memória do sistema com seus correspondentes linguísticos, gerariam novas possibilidades de tradução em trabalhos posteriores. A noção de língua como um instrumento passível de acumulação para uso posterior associa-se à ideia da possibilidade de correspondência biunívoca entre línguas, visualizada pelas unidades de tradução enfileiradas nas memórias dos sistemas. As diferenças contextuais entre o texto previamente traduzido e que gerou a correspondência bilíngue (unidade de tradução) e o novo texto em que essa correspondência será reaproveitada são desconsideradas em um meio que preza a agilidade de produção e visa à redução de custos de tradução.

O emprego dos sistemas de memórias na tradução pode ter efeitos imprevisíveis, graças à contínua replicação de escolhas tradutórias em contextos e tempos diversos. Por isso, conforme adverte Cronin, "falantes e usuários da língua devem se conscientizar da tendência heteronômica das formas de automação da tradução, sobredeterminadas por estruturas linguísticas e pressuposições culturais da língua e cultura de partida" (2013, p. 135). Se pensarmos que grande parte do que é traduzido segue a lógica do poder, em que línguas dominantes são traduzidas para aquelas tidas por dominadas, essa noção pode passar despercebida na medida em que aumenta o volume de textos e a automação do trabalho de tradução.

Cumpre, portanto, desenvolvermos nossa capacidade crítica em relação às implicações desse tipo de ferramenta e integrar tal reflexão aos programas de formação profissional. Por mais que os sistemas de memórias facilitem o trabalho do tradutor e possam ou devam ser incorporados à sua rotina, o tradutor só terá realmente compreendido se conseguir, de algum modo, desenvolver uma visão do todo compatível com o conjunto de fragmentos que lhe são dados. E somente nessas condições poderá assumir a responsabilidade ética implícita na noção de (co-)autoria do tradutor reivindicada pela reflexão contemporânea na área.

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    Uma boa síntese é fornecida por Manfred Frank (1977) em sua introdução à reedição contemporânea da obra. Como estudos introdutórios em português à temática mais geral, abrangendo outros expoentes da hermenêutica, sejam mencionadas as contribuições de Lawrence Schmidt (2006) e Jean Grondin (2012).
  • 2
    Num certo sentido, Werner Strube (2003, p. 91) retoma essa questão por um novo ângulo em sua análise da compreensão, ao discutir o Wittgenstein tardio, das Investigações Filosóficas (IF), de um modo que acaba por abalar uma dicotomia tradicional muito arraigada, a saber: aquela de um limite aparentemente intrans-ponível entre a ideia de univocidade do sentido, a qual podemos entender como uma outra forma de falar de sua invariabilidade, por oposição a uma eventual polissemia - sendo que os dois primeiros termos são valorados na área de terminologia e o último nos estudos literários, pode-se agregar. Parte do argumento é que a palavra compreender (em alemão: verstehen) não é polissêmica, sendo antes que o conjunto de seus usos circunscreve os limites do conceito: "Falamos da compreensão de uma frase no sentido de que ela pode ser substituída por uma outra que diz a mesma coisa; mas também no sentido em que ela não pode ser substituída por nenhuma outra. (Tampouco quanto um tema musical por outro) [WITTGENSTEIN, 2009, p. 152; IF § 531]. (...) Então 'compreender' tem aqui dois significados diferentes? - Prefiro dizer que essas espécies de usos de 'compreender' formam sua significação, o meu conceito de compreensão" [p. 152; IF § 532]. Seguimos aqui a tradução de José Carlos Bruni (p. 141).
  • 3
    Gadamer, por sua vez, explicará essa variação pela via de seu conceito de aplicação: se compreender já é interpretar e a não compreensão é parte indissociável desse processo, como assinalara a hermenêutica romântica representada por Schleiermacher (DUQUE-ESTRADA, 2011, p. 51-52), há também um terceiro momento, justamente aquele da aplicação do texto dado a cada situação de uso, como ocorre paradigmaticamente no caso das leis, no âmbito jurídico, e dos textos religiosos, tanto na teologia quanto na prática sacerdotal cotidiana (GADAMER, 1997, p. 48-49; FRANKEN, 2010, p. 89). Mutatis mutandis, o princípio vale também para outras situações. Partindo da noção wittgensteiniana de significado como resultado do uso concreto na linguagem, Arley Moreno (2011, p. 64-65) observa, por sua vez, que "a definição de uma regra de sentido não permite sempre a antecipação, pelo puro pensamento, de todos os casos de sua aplicação, e tampouco proíbe aplicações que venham a exprimir critérios diferentes". Aplicado a nosso contexto, tal raciocínio ajuda a entender que a estabilidade da terminologia e fraseologia técnica resulta não de uma natureza pretensamente neutra e objetiva da técnica ou ciência, visão hoje questionada por inúmeras correntes de pensamento, mas sobretudo dos sistemas de coerção que impedem sua mudança, visando garantir o necessário grau de invariabilidade. As memórias de tradução constituem-se como mecanismos de automatização dessas coerções, inclusive no âmbito contratual. E mesmo assim os conceitos por detrás dos termos mudam, como pode ser facilmente verificado em termos com motor, software ou desconstrução etc., que hoje certamente agregam dimensões diversas daquelas existentes quando de seu surgimento.
  • 4
    Note-se um certo paralelismo do conceito de compreensão mobilizado pelo professor/espião no filme com o que diz a primeira parte do aforismo 531 das IF, citado na nota 2. Sendo que a repetição mecânica dos termos fornecidos pelos sistemas de memórias não corresponde à singularidade do sentido nos termos da segunda parte do mesmo aforismo - posto que ali o que se discute é a compreensão de algo e não sua mera repetição.
  • 5
    O teórico evolucionista Mark Pagel (2012) comenta que, para muitos estudiosos, o momento luminoso do arremesso do osso no filme de Kubrick corresponderia a cerca de dois milhões de anos atrás, no vale do Rift na Tanzânia, no trecho chamado Desfiladeiro de Olduvai, quando teria surgido a criatividade na espécie Homo. Contrariamente a essa hipótese, Pagel argumenta que aquele Homo erectus usou praticamente o mesmo tipo de machado manual por quase toda sua história de 1,8 milhões de anos. Faltava-lhe a capacidade de aprendizagem social que caracteriza o Homo [sapiens] moderno e o distingue das outras espécies de animais: não basta apenas usar ferramentas, o caráter distintivo de nossa espécie seria, segundo o autor, a propensão a não apenas repetir o que já foi feito, mas aperfeiçoar constantemente as ferramentas e técnicas a nosso dispor. Seria essa a peça fundamental da cultura, que se replica e se propaga através de ideias (memes), assim como os organismos se replicam através dos genes (cf. Capítulo 1, p. 21/56 na versão eletrô-nica - com paginação dinâmica).
  • 6
    Pensar a máquina trabalhando sozinha, sem intervenção humana, significa suprimir a diferença entre o homem e a máquina, o que é algo distinto de pensar a máquina como extensão do homem, como propomos aqui. Uma outra forma de apagar as diferenças é pensar o próprio ser humano como artefato (enquanto produto da evolução), como faz o filósofo canadense Barry Allen (2015), dentre outros trabalhos recentes.
  • 7
    Devemos a Caetano Galindo o cotejo inicial com o xadrez, com destaque para este aspecto específico (comunicação oral em encontro do Grupo de Pesquisa Perspectivas Multidisciplinares da Tradução realiza-do na PUC/RJ, 27-29/11/2014).
  • 8
    Cf. YouTube, com legendas em espanhol: <https://www.youtube.com/watch?v=VvcQFJi548g>. Extremamente complexo, com textos em várias línguas sendo traduzidos para outras, seja na própria trilha de áudio ou via legendas, e com uma duração total de 8 horas e 32 minutos (fora os extras), o filme de Kluge certamente não poderia ter sido traduzido para o português sem recorrer a um trabalho em equipe. Trata-se, portanto, de um exemplo concreto do lado positivo da pulverização da responsabilidade tradutória. Que o Brasil tenha sido o primeiro e talvez único país a produzir uma versão nacional, distinta em sua natureza da versão legendada em inglês, destinada a um público internacional genérico, também é um aspecto que merece destaque.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2015
  • Aceito
    31 Ago 2015
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