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Escrita, ensino de língua portuguesa e formação do professor1 1 Este estudo recupera um interesse de longa data pela investigação da produção escolar da escrita materializado, inicialmente, na dissertação de Mestrado “O gesto de recontar histórias: gêneros discursivos e produção escolar da escrita” (SANTOS, 1999), defendida há exatos vinte anos no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação de Raquel Salek Fiad, a quem agradeço pela presença generosa até hoje. Também agradeço aos(às) pareceristas anônimo(a)s pelos comentários sobre o texto. Seu conteúdo e o estilo de composição são, todavia, de minha plena responsabilidade.

Writing, teaching Portuguese language and teacher training

RESUMO

Este estudo propõe discutir o estatuto da escrita como componente curricular da disciplina língua portuguesa na escola brasileira. Para tanto, apresenta-se, inicialmente, um panorama dos modos com que a produção escrita é abordada no percurso histórico de constituição do ensino de língua portuguesa, no que se refere aos currículos e programas de ensino e aos materiais didáticos propostos. Em seguida, contrasta-se esse estatuto historicamente construído da escrita com práticas de ensino de língua portuguesa atuais mediadas por estudantes de licenciatura em Letras, por ocasião de realização de estágio em escolas da rede pública da cidade de São Paulo (Brasil). A descrição e a análise do processo de implementação de um projeto de ensino do texto escrito argumentativo por uma estudante, conforme registrado em seu relatório de estágio, permitem problematizar alguns desafios que a abordagem da escrita coloca para as práticas de ensino e para a formação do professor de língua portuguesa.

Palavras-chave:
ensino de língua portuguesa; formação docente; escrita

ABSTRACT

This study proposes to discuss the status of writing as a curricular component of the subject Portuguese language in the Brazilian school. Therefore, it presents, initially, an overview of the ways in which writing is approached in the historical course of the constitution of Portuguese language teaching, in what it refers to the curricula and teaching programs and the didactic materials proposed. Next, this historically constructed status of writing is contrasted with current Portuguese language teaching practices mediated by students for licentiate in Letters, on the occasion of an internship in schools of the public system of the city of São Paulo (Brazil). The description and analysis of the process of implementation of a teaching project about argumentative written text by a student, as recorded in your internship report, allow us to problematize some of the challenges that the writing approach poses to teaching practices and to the training of the Portuguese language teacher.

Keywords:
teacher training; teaching portuguese language; writing

Introdução

A prática de produção escrita constitui-se em componente curricular da disciplina escolar língua portuguesa, como ocorre com o ensino de língua na cultura escolar moderna ocidental, com base em um discurso fundador sobre a linguagem (mais especificamente sobre os usos da palavra, sobre a técnica ou a arte de falar e escrever) inspirado na tradição retórica greco-latina (MAINGUENEAU, 2009MAINGUENEAU, D. (2009). Aborder la linguistique. Paris: Points.; PLEBE, 1978PLEBE, A. (1978). Breve história da retórica antiga. São Paulo: E.P.U.) e incorporado historicamente a diferentes formas sociais, entre as quais a forma escolar (LAHIRE, 2008LAHIRE, B. (2008). La raison scolaire - école e pratiques d’ecriture, entre savoir et pouvoir. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes.), em sua feição moderna, principalmente a partir do século XIX.

Entre os elementos dessa tradição incorporados ao ensino de língua portuguesa e, particularmente, ao ensino da produção escrita encontram-se aqueles relativos às três dimensões (inventio, dispositio, elocutio) da produção discursiva assim qualificadas por Fiorin (1999)FIORIN, J. L. (1999). Para uma história dos manuais de Português: pontos para uma reflexão. Scripta (PUCMG), Belo Horizonte, v. 2, p. 151-161. quando de sua abordagem histórica de manuais didáticos:

Aprende-se pela imitação dos bons autores. As regras linguísticas são os usos que eles consagram. Ao mesmo tempo, aprende-se a articular o texto seguindo o exemplo desses autores. Lê-se para fazer composições que imitem os textos lidos. Identificam-se as características do texto, a partir dos elementos de produção dados pela retórica clássica (invention: escolha do tema, e de seus componentes; dispositio: ordem de apresentação das ideias; elocutio: expressão linguística propriamente dita). De certa forma, o ensino pela imitação dá ao estudante um conjunto de lugares-comuns (tópoi), para escrever sobre os diversos temas. (FIORIN, 1999FIORIN, J. L. (1999). Para uma história dos manuais de Português: pontos para uma reflexão. Scripta (PUCMG), Belo Horizonte, v. 2, p. 151-161., p. 154)

É essa inspiração retórica que fundamenta a dupla condição para o domínio da habilidade de produção escrita a que se refere Petitjean (2005)PETITJEAN, A. (2005). Variations historiques: l’exemple de la ‘rédaction’. In: Chiss, J.-L.; David, J.; Reuter, Y. (orgs.), Didactique du français - fondements d’ une discipline. Bruxelles: De Boeck & Larcier s.a., p. 151-168.: para escrever, é necessário ter adquirido, por um lado, um volume suficiente de assuntos, temas ou informações (uma “coleção de ideias”, ou seja, conhecimentos enciclopédicos que enriqueceriam a inventio) e, por outro lado e complementarmente, um domínio suficiente dos modos de dizer, da elocução ou elocutio (uma “coleção de expressões”), adquirido por meio de exercícios subsidiários à prática de produção escrita: exercícios de vocabulário e elocução e lições de gramática e ortografia.

Em estudo sobre o ensino da composição ou redação na escola francesa pela análise de instruções oficiais e manuais didáticos, o autor assinala o suposto de precedência implicado nessa dupla condição, isto é, o suposto de que haveria um conjunto de pré-requisitos cuja apreensão é necessária e anterior ao domínio da prática de produção escrita, sendo a frase a unidade ou o nível linguístico que franquearia a base para a transição para outra unidade ou para outro nível - o texto -, conforme um princípio de gradação do considerado mais simples para o mais complexo. Do ponto de vista da progressão curricular, é esse pressuposto da precedência que explica a alocação da prática de produção escrita nos anos mais avançados de escolaridade. Segundo o autor,

A posse de ideias e o domínio da expressão são considerados pré-requisitos necessários à redação, nunca podendo ser adquiridos, retrospectivamente, pela própria atividade redacional. É por isso que o exercício de composição francesa, cujo começo se daria somente no CM [Cours Moyen]2 2 Curso Médio, no sistema educacional francês, correspondente ao segundo segmento de nosso Ensino Fundamental. A versão traduzida de excertos de obras não publicadas em português é de minha responsabilidade. , é reservado ao ensino superior (“a verdadeira redação só aparece no ensino superior”), esclarecendo-se que nos anos anteriores a aprendizagem da escrita deve-se restringir a “exercícios de composição de frases. (PETITJEAN, 2005PETITJEAN, A. (2005). Variations historiques: l’exemple de la ‘rédaction’. In: Chiss, J.-L.; David, J.; Reuter, Y. (orgs.), Didactique du français - fondements d’ une discipline. Bruxelles: De Boeck & Larcier s.a., p. 151-168., p. 152)

É ainda essa inspiração retórica que vai sendo incorporada aos currículos, aos programas e aos impressos didáticos a partir de meados do século XIX, quando a língua portuguesa vai-se oficializando como disciplina escolar na nascente escolarização formal no Brasil. Nesse processo de disciplinarização ou escolarização3 3 Em estudo seminal sobre a história da disciplina curricular Português, Soares (2002) qualifica nos seguintes termos o processo de disciplinarização ou escolarização: “Extrair de uma área de conhecimento uma ‘disciplinar curricular’ é, fundamentalmente, escolarizar esse conhecimento, ou seja, é instituir um certo saber a ser ensinado e aprendido na escola, um saber para educar e formar através do processo de escolarização. Na verdade, entre disciplina curricular, ou melhor, entre currículo e disciplina, de um lado, e escola, de outro, há, de certa forma, uma relação de causa-efeito: o surgimento da instituição escola está indissociavelmente ligado à instituição de saberes escolares, que se corporificam e se formalizam em currículos, disciplinas, programas, exigidos pela invenção, que a escola criou, de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem.” (SOARES, 2002, p. 155). , a prática de produção escrita assume, na consolidação da escola como agência central de letramento das sociedades industriais modernas, uma função instrumental de acumulação, distribuição e consumo do capital cultural convertido em saber escolar ou objeto de ensino.

Com base nessas considerações, proponho, neste estudo, qualificar o estatuto da produção escrita como componente curricular da disciplina língua portuguesa, na escola brasileira. Para tanto, apresento, inicialmente, um panorama dos modos com que esse componente é abordado no percurso histórico de evolução do ensino de língua portuguesa, no que se refere aos currículos e programas e aos materiais didáticos propostos. Em um segundo momento, proponho contrastar esse estatuto historicamente construído com práticas de ensino de língua portuguesa atuais de que tomam parte estudantes de Licenciatura em Letras, por ocasião de realização de estágio em escolas da rede pública da cidade de São Paulo (SP, Brasil). Essa operação metodológica pode subsidiar a compreensão de como lógicas ou concepções construídas na tradição de ensino de língua portuguesa produzem efeitos em práticas didáticas na atualidade, podendo ainda lançar luzes sobre um conjunto de desafios colocados para o trabalho e a formação do futuro professor de língua portuguesa.

1. Produção escrita e ensino de língua portuguesa: um panorama histórico

A seguir, com base em estudos voltados à qualificação do percurso histórico de constituição do ensino de língua portuguesa na escola brasileira (BUNZEN, 2006BUNZEN, C. (2006). Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: Bunzen, C.; Mendonça, M. (orgs.), Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, p. 139-161.; 2011BUNZEN, C. (2011). A fabricação da disciplina escolar Português. Revista Diálogo Educacional. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, v. 11, p. 885-911.; MARCUSCHI, 2010MARCUSCHI, B. (2010). Escrevendo na escola para a vida. In: Rojo; R.; Rangel, E. (orgs.), Explorando o ensino: Língua Portuguesa. Brasília, DF: Ministério da Educação, p. 65-84.; PIETRI, 2010PIETRI, E. (2010). Sobre a constituição da disciplina curricular de língua portuguesa. Revista Brasileira de Educação, v. 15, p. 70-83.; RAZZINI, 2000RAZZINI, M. P. G. (2000). O Espelho da Nação: A Antologia Nacional e o ensino de Português e de Literatura (1838-1971). Tese de Doutorado. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.; ROJO, 2008ROJO, R. (2008). Gêneros de discurso/texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao trivium? In: Signorini, I. (org.). Rediscutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola Editorial, p. 73-108.; SOARES, 2002SOARES, M. (2002). Português na escola - história de uma disciplina curricular. In: Bagno, M. (org.), Linguística da Norma. São Paulo: Edições Loyola, p. 155-177.)4 4 Tais estudos representam grande parte da ainda modesta produção acadêmica brasileira voltada à abordagem histórica do ensino da produção escrita particularmente como componente curricular da disciplina língua portuguesa, na escola brasileira. A restituição do percurso histórico desse componente com base nas sínteses propostas nesses estudos, tal qual apresentada aqui, consiste em um movimento tanto de cotejo de fatos e fenômenos nelas descritos e qualificados, quanto de proposição de uma operação metodológica de contraste de dois modelos de ensino de língua portuguesa, conforme configurados em duas conjunturas delimitadas sócio-historicamente. , proponho restituir, inicialmente, os modos pelos quais o estatuto curricular da prática de produção escrita conforma-se da segunda metade do século XIX aos anos 1960 - período correspondente ao que há de mais duradouro, do ponto de vista temporal, e mais hegemônico, do ponto de vista simbólico, na tradição das práticas de ensino de língua portuguesa. Em seguida, abordo como esse estatuto reconfigura-se a partir dos anos 1980, período que representa, por hipótese, um ponto de inflexão nessa tradição.

1.1. Língua como representação do pensamento e ensino como transmissão do cânon escrito escolar: modelo clássico e vocação beletrista

Em estudo sobre os currículos e programas que deram corpo à então criada disciplina Português, no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, a partir de meados do século XIX, Razzini (2000)RAZZINI, M. P. G. (2000). O Espelho da Nação: A Antologia Nacional e o ensino de Português e de Literatura (1838-1971). Tese de Doutorado. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. assinala, entre outros fenômenos, a incorporação da prática de redação e de composição de textos, em diferentes gêneros e de tipos diversos, em momento posterior (1870) àquela da leitura literária e da recitação (1855) e, sobretudo, àquela da gramática, matriz ideal que pilota e se mantém como o ponto para o qual convergem as duas outras práticas.

Integrando o repertório de conhecimentos dessa disciplina ao longo de mais de cem anos, a produção escrita vai adquirindo um estatuto curricular inicialmente no interior do modelo clássico e da vocação beletrista que marcam o ensino de língua portuguesa em todo o período compreendido entre sua gênese até aproximadamente os anos 1960. Ao longo desse período, exercícios de composição e redação são instrumentos didáticos centrais do professor de língua portuguesa para tornar presente e fazer circular na sala de aula um saber sobre a escrita, sobre o texto escrito, um saber de natureza procedimental consubstanciado em um discurso expositivo sobre a técnica ou a arte de escrever (BUENO, 1931BUENO, S. (1931). Arte de escrever - a maneira mais pratica de formar o próprio estylo e de familiarizar-se com todos os generos da composição literaria. São Paulo: Empreza Graphica da “Revista dos Tribunaes”.). Razzini identifica, nos programas dos anos 1880 do Colégio, por exemplo, essa função instrumental da produção escrita para a transmissão de um saber sobre a língua codificada nos textos do cânon (literário) escolar. Nos termos da autora,

Com o objetivo de ensinar a escrever através da apreciação de modelos escolhidos pelo professor nas antologias adotadas oficialmente, os exercícios de composição iam dos mais elementares, do primeiro ano (“reprodução e imitação de pequenos trechos”); passando pelas “breves descrições, narrações e cartas” do segundo ao quarto ano; da “redação livre” do quinto ano, e culminando com a “composição de lavra própria” e discursos de improviso no sexto ano. (RAZZINI, 2000RAZZINI, M. P. G. (2000). O Espelho da Nação: A Antologia Nacional e o ensino de Português e de Literatura (1838-1971). Tese de Doutorado. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas., p. 75)

Entre os elementos implicados na abordagem da produção escrita, no período em questão, encontram-se os princípios de homogeneidade e correção ou de pureza do idioma (cf. SIGNORINI, 2002SIGNORINI, I. (2002). Por uma teoria da desregulamentação linguística. In: Bagno, M. (org.), Linguística da Norma. São Paulo: Edições Loyola, 93-125.) como aqueles que orientam o currículo e as práticas didáticas, sendo a escrita correta “compreendida como a escrita que primava pela observância das regras da gramática normativa e da ortografia” (MARCUSCHI, 2010MARCUSCHI, B. (2010). Escrevendo na escola para a vida. In: Rojo; R.; Rangel, E. (orgs.), Explorando o ensino: Língua Portuguesa. Brasília, DF: Ministério da Educação, p. 65-84., p. 66). Em sua análise das “súmulas de composições escolares” (espécie de roteiros de redação disponibilizados aos alunos como suporte para a produção escrita) que integram a seleta Crestomatia: excertos escolhidos em prosa e verso, de Radagasio Taborda, publicado em 1931, Marcuschi assinala que “as informações disponibilizadas para os alunos nas súmulas ficam reduzidas ao título e a breves e vagas orientações de cunho organizacional e/ou temático (que visam a um ensinamento moral visto como inquestionável)” (MARCUSCHI, 2010MARCUSCHI, B. (2010). Escrevendo na escola para a vida. In: Rojo; R.; Rangel, E. (orgs.), Explorando o ensino: Língua Portuguesa. Brasília, DF: Ministério da Educação, p. 65-84., p. 69).

Vejamos, a seguir, em maior detalhe, como o modelo clássico e a vocação beletrista aparecem materializados em outra obra didática, o Livro de Composição, de Olavo Bilac e Manuel Bomfim.

2.1.1. Livro de Composição (1899), de Olavo Bilac e Manuel Bomfim

O Livro de Composição, de Olavo Bilac e Manuel Bomfim, publicado em 1899BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930. 5 5 A edição ora considerada é a nona (9ª., “revista e augmentada”), publicada em 1930, pela Livraria Francisco Alves. , está entre os dispositivos materiais que dão corpo ao modelo de ensino de língua portuguesa qualificado. Destinado “para o curso complementar das escolas primárias” (conforme indicado em seu subtítulo), ou seja, para o nível intermediário de escolaridade, na transição entre as séries iniciais da escola primária e as séries mais adiantadas, relativas ao ensino secundário, a obra participa da progressiva relevância que o impresso escolar assume no processo de confecção da forma escolar entre nós, particularmente de sua vocação taxonômica, do processo de especialização de seus saberes e de homogeneização de seus modos e formas de trabalho, conforme a escolarização vai-se lenta e difusamente consolidando no país.

Índice dessa vocação e desse processo de especialização de saberes e homogeneização de métodos de ensino é a estruturação da obra conforme a subdivisão da coletânea de textos nela apresentados em oito tipos ou gêneros textuais (enumerações; exposições; narrações; descrições; contos; cartas; dissertações e resumos), consistindo, cada qual, em uma unidade de trabalho didático em torno da prática de composição. A qualificação desses tipos ou gêneros textuais em termos técnicos é explicitada, em discurso expositivo, em uma seção introdutória denominada Notas preliminares, unicamente no início das unidades didáticas voltadas às narrações, descrições, cartas e dissertações.

Cada uma dessas oito unidades didáticas comporta a proposição de um tema ou assunto sobre o qual deve incidir a tarefa de produção escrita. Com base no tema selecionado, indicam-se os elementos em que se deve ancorar a ação do aluno, em três seções, conforme transcrito, a seguir, tomando-se por exemplo o tema A Caridade, na seção voltada às Dissertações:

  • Summario - subdivide o tema em um conjunto de tópicos informacionais a ele atinentes:

    SUMMARIO

    Aproximar estes dois preceitos, e explicar o seu verdadeiro sentido: - “Quando não podemos fazer caridade com as mãos, devemos fazel-a com o coração.” - A verdadeira caridade não está nas mãos, está no coração”. (BILAC; BOMFIM, 1899/1930BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930., p. 213)6 6 Na transcrição de excertos da obra em tela, manteve-se a grafia do original.

  • Direcção - explicita a roteirização a que se devem submeter os tópicos informacionais elencados na seção anterior, ou seja, sua distribuição na sequência textual:

    DIRECÇAO

    Explicar o sentido da primeira frase, dizer como é que a caridade se exerce pelãos mãos, falar das esmolas, dos presentes e dos beneficios materiaes. - Mostrar que essas esmolas devemos fazer, não por ostentação, mas para satisfazer os nossos sentimentos de amor e de compaixão pelos nossos semelhantes. (...) (BILAC; BOMFIM, 1899/1930BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930., p. 213-14)

  • Modelo - expõe um texto que ilustra de maneira modelar a aplicação dos dois elementos anteriores. Para um conjunto de temas localizados mais para o fim da unidade de trabalho, dispensa-se a apresentação do texto-modelo, sendo indicados apenas os tópicos informacionais e seus modos de sequenciação, ou ainda, uma lista de “outros assumptos”:

    MODELO

    Aproximando essas duas maximas, em que o mesmo pensamento se contém, acha-se uma admiravel lição de moral.

    A caridade é a mais bela manifestação do principio da solidariedade humana. O interesse dos felizes pelos infelizes, dos bem aquinhoados pelos desfavorecidos, é um sentimento que nobilita a communhão humana. (...) (BILAC; BOMFIM, 1899/1930BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930., p. 214-15)

    Nas Notas Preliminares que introduzem essa unidade didática voltada às dissertações, os autores definem a ação de dissertar nos seguintes termos:

    Dissertar é desenvolver uma these qualquer, um pensamento, uma afirmação, um conceito. É raciocinar a respeito de uma idéa, com os dados que o estudo dos livros, as lições e a nossa própria observação nos fornecem. (...) É aqui, principalmente, que é mister saber destacar a idéa, ou as idéas principaes do assumpto, pondo-as em evidencia, ligando-as bem, por laços sensiveis, feitos de raciocinios claros, ás idéas secundarias. (BILAC; BOMFIM, 1899/1930BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930., p. 207)

Nessa definição, a dissertação emerge como o meio de expressão por excelência do pensamento, uma vez que permite a disciplina intelectual necessária aos estudos, à aprendizagem de métodos de estudo, de pensar. No modelo clássico que ancora o currículo de língua portuguesa na conjuntura de produção e recepção do Livro de Composição como artefato material da cultura escolar, junto a um conjunto amplo de outros artefatos (gramáticas escolares, antologias, seletas, compêndios etc.), o estatuto em que se vai investindo a prática de produção do texto dissertativo configura-se, conforme a apropriação curricular da tradição retórica, pela articulação da dimensão temática do texto escrito (aquilo de que se trata, o assunto, o tópico informacional, os objetos de escrita) com sua dimensão configuracional (relativa mais especificamente aos modos de organização textual desses temas conforme diferentes gêneros e tipos textuais) e sua dimensão linguística (relativa aos recursos estilísticos que dão corpo aos temas e às formas composicionais, codificados no texto-modelo).

No que se refere à dimensão temática, os autores retomam o pressuposto da necessidade de aquisição de conhecimentos sobre o tema (“coleção de ideias”, para Petitjean [2005])PETITJEAN, A. (2005). Variations historiques: l’exemple de la ‘rédaction’. In: Chiss, J.-L.; David, J.; Reuter, Y. (orgs.), Didactique du français - fondements d’ une discipline. Bruxelles: De Boeck & Larcier s.a., p. 151-168. como pré-requisito à ação de dissertar, nos seguintes termos:

Tudo isto significa que não podemos empreender um trabalho d’esses, senão quando temos muito conhecimento do assumpto. Se tenho de dissertar, por exemplo, sobre a função da escola na sociedade, preciso conhecer muito bem a organisação de uma e de outra, e devo meditar muito antes de escrever, procurando entre os meus estudos o que se refere a um e a outro caso, para formular então a linha geral da minha exposição (...). (BILAC; BOMFIM, 1899/1930BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930., p. 207-8)

O traço transversal ao conjunto de temas prestigiados para a prática de produção do texto escrito dissertativo está na preferência por assuntos de natureza enciclopédica, patriótica e moral (além de A Caridade, A experiência, Ar atmospherico, A compaixão, Amor filial - Dedicação, A Escola e a Instrucção, Calar a tempo, O exemplo e a reprehensão), o que remete ao empreendimento considerado civilizatório de invenção, pela mediação da forma escolar, do homem brasileiro moderno e urbano (v. BOTO, 2003BOTO, C. (2003). A civilização escolar como projeto político e pedagógico da modernidade: cultura em classes, por escrito. Cadernos Cedes, Campinas, v. 23, n. 61, p. 378-397.). Em outros termos, os temas conformam uma coleção de ideias logicamente encadeadas para produzir o efeito de valoração, por exemplo, de uma lição moral, elevando-lhe os atributos.

No que diz respeito à dimensão configuracional do texto dissertativo, os autores apresentam uma roteirização dos tópicos informacionais relativos ao tema, enfatizando todavia que a ordem de exposição “depende apenas das qualidades de methodo que possue o escritor”, uma vez que “essa ordem de exposição é o proprio escritor quem a formula” (BILAC; BOMFIM, 1899/1930BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930., p. 208). Esse método é descrito conforme os seguintes procedimentos:

Então repassará em mente os argumentos de que dispõe e arranjará a ordem em que os tem de expor, segundo o valor e importancia de cada um d’elles.

Deve começar tratando das questões mais geraes, apresentando as conclusões menos contestáveis, as mais aceitáveis, de fórma que, ao chegar ao resultado final, a afirmação capital, o leitor não hesite em adoptal-a, estando já preparado para isso. (BILAC; BOMFIM, 1899/1930BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930., p. 208)

Quanto, por fim, à dimensão linguística da produção do texto dissertativo, os recursos de expressão constituem objeto de orientação didática apenas pressuposto tendo em vista a ênfase das notas preliminares nos procedimentos de sequenciação dos argumentos em uma ordem de exposição que, embora mais ou menos pré-definida, é formulada, em todo caso, pelo autor, sendo que “O melhor processo, nessa orientação, ainda é o de figurar-se o escritor na situação do leitor” (BILAC; BOMFIM, 1899/1930BILAC, O.; BOMFIM, M. (1899). Livro de Composição: para o curso complementar das escolas primárias. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930., p. 209). O aparente esmaecimento do tratamento dos recursos de expressão e sua diluição em um discurso sobre a planificação do texto parecem decorrer, em alguma medida, do suposto de que eles seriam aprendidos pela exposição dos alunos aos textos propostos como modelo, ficando dessa forma assegurada a ênfase nos valores de correção, de clareza e de elegância que embasam a concepção de textualidade e escrita em jogo nessa conjuntura intelectual.

Em síntese, no modelo clássico, a produção do texto dissertativo vai-se configurando progressivamente como habilidade de evidenciar ou demonstrar, no produto gerado, o exercício intelectual supostamente ensejado na reflexão sobre um tema, percepção que embasa o estatuto que a dissertação escolar adquire historicamente na escola. O caráter constitutivamente polêmico da habilidade de argumentar é esmaecido ou desaparece na conformação desse estatuto (PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, 1992PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. (1992). Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo : Martins Fontes.)7 7 Figura dessa dupla concepção de argumentação é a distinção difusa que se sedimentou e se mantém presente, no discurso escolar, em materiais didáticos etc. entre dissertação expositiva e dissertação argumentativa. .

Tal modelo passa a ser tensionado a partir dos anos 1960 e ao longo dos anos 1970, com a ampliação de acesso da população à escola e consequente mudança do perfil do alunado, bem como pela intensificação do processo de depreciação e precarização do trabalho docente8 8 Os princípios e orientações curriculares do ensino de língua portuguesa na conjuntura social, política e econômica do Brasil dos anos do governo militar são institucionalizados pela Promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei 5692/71 (BRASIL, 1971). Nas orientações curriculares dispensa-se atenção central aos procedimentos implicados na produção do texto, especialmente àqueles de planificação ou estruturação, razão da relevância e da multiplicação de roteiros, de esquemas de produção, bem como da explicitação, em discurso meta-expositivo, desses procedimentos. A esse propósito, Bunzen (2006) assinala, entre outros elementos, “um aumento considerável, especificamente, na década de 1970, da produção de LDs [Livros Didáticos] para o EM [Ensino Médio], voltados para o ensino de redação” (BUNZEN, 2006, p. 144). Pelos limites de espaço deste estudo, evito expor em maior detalhe o modelo de ensino de língua portuguesa suposto no currículo da disciplina, no período em questão (anos 1960 e 1970), nomeado e qualificado por vários estudos como modelo comunicativo. . Desde então, será necessário aguardar quase duas décadas para que uma virada pudesse ser assinalada no percurso de constituição do ensino de língua portuguesa e, mais particularmente, um reposicionamento do estatuto da produção escrita como componente curricular desse ensino, o que toma lugar a partir dos anos 1980, conforme veremos, a seguir.

1.2. Língua como interação e ensino como incorporação de múltiplos repertórios culturais: modelo interacionista e vocação emancipatória

O final dos anos 1970 e o início dos anos 1980 representam um ponto de inflexão determinante no percurso de constituição do ensino de língua portuguesa, marcando o início do processo de redefinição curricular desse ensino, na conjuntura social e política do Brasil que então buscava retomar relações institucionais democráticas após o intervalo de regime de exceção instaurado desde 1964 no país. Nesse contexto social e político, o ineditismo da proposta curricular ancora-se, em grande medida, na incorporação de aportes teóricos novos com relação àqueles que informam a concepção de ensino de língua portuguesa até então. Assim, lugar central no processo de reconfiguração curricular, nessa conjuntura, é assumido pelos estudos do texto e do discurso, pelos estudos sociolinguísticos e pelos estudos em linguística aplicada, história e leitura literária, entre outros.

Na esteira desse processo de reinvenção do ensino de língua portuguesa, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1998) elegem os gêneros textuais como objetos de ensino. A seleção da coletânea de textos é delimitada por quatro campos sociais de produção discursiva - divulgação científica, imprensa, cultura literária e publicidade. A definição desses campos prevê a consideração de textos escritos, orais e multimodais. Tornar mais visível e didaticamente sistemática a abordagem do texto como unidade de ensino das práticas didáticas está entre as contribuições do processo de implementação curricular alavancado pela publicação dos PCN (GOMES-SANTOS, 2004GOMES-SANTOS, S. N. (2004). A questão do gênero no Brasil: teorização acadêmico-científica e normatização oficial. Tese (Doutorado em Linguística). Campinas (SP): Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.).

Tal processo de redefinição curricular é central na história do ensino de língua portuguesa por não se tratar apenas de alteração das referências teóricas ou das disciplinas científicas de referência, mas principalmente de alçamento de outra perspectiva epistemológica sobre a linguagem e seu ensino. Dois movimentos complementares constroem o debate sobre a necessidade de inovação do ensino: um movimento de crítica à tradição hegemônica de ensino de língua portuguesa e outro de proposição de alternativas (PIETRI, 2003PIETRI, E. (2003). A constituição do discurso da mudança do ensino de língua materna no Brasil. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada). Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; SOARES, 1997).

O ponto nevrálgico dos movimentos de crítica e proposição de alternativas encontra-se no diagnóstico de que a prática de produção escrita na tradição escolar, por um lado, teria sido neutralizada pelo foco em atividades de análise gramatical e, por outro lado, havia-se tornado um exercício ou uma prática “artificial”, no sentido em que pouco contemplaria o processo de produção dos sentidos e as condições de produção do texto (ROJO, 2003); em outros termos, pouco reencontraria a ação do sujeito autor, seus repertórios culturais e suas experiências extraescolares (BUNZEN, 2006BUNZEN, C. (2006). Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: Bunzen, C.; Mendonça, M. (orgs.), Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, p. 139-161., p. 147; MARCUSCHI, 2010MARCUSCHI, B. (2010). Escrevendo na escola para a vida. In: Rojo; R.; Rangel, E. (orgs.), Explorando o ensino: Língua Portuguesa. Brasília, DF: Ministério da Educação, p. 65-84.). Prática definida muito mais como reprodução do que como produção textual, conforme a conhecida sugestão de João Wanderley Geraldi (GERALDI, 1984GERALDI, J. W. (1984). O texto na sala de aula: leitura e produção. São Paulo: Ática.; 1986GERALDI, J. W. (1986). Prática de produção de textos na escola. Trabalhos em Linguística Aplicada. No. 7, p. 23-29.; 1991GERALDI, J. W. (1991). Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes.; 2008GERALDI, J. W. (2008). Da redação à produção de textos. In: Chiapini, L. (org.), Aprender e escrever com textos de alunos. São Paulo: Cortez, p. 123-140.), o que se questiona é o grau de autenticidade dessas práticas com relação às situações de uso da linguagem em outras instâncias sociais nas quais o aluno é suscetível de se inserir.

Pelo menos três sintomas de artificialismo são tornados alvo da crítica e da proposição de alternativas elaboradas na instância do discurso acadêmico e mais ou menos incorporadas pelo discurso oficial: o artificialismo temático, o artificialismo das formas composicionais e o artificialismo das estratégias e dos recursos de formulação textual. Trata-se de sintomas que recuperam mutatis mutandis a delimitação tripartite dos elementos da produção discursiva conforme a tradição retórica, conforme mencionado.

No que se refere à dimensão temática da prática de produção escrita, o artificialismo estaria relacionado, por um lado, à natureza dos temas (considerados disjuntos das experiências do sujeito), para o que se propõe que fossem selecionados pelo grau de pertinência com relação a essas experiências e pelo impacto prospectivo que pudesse gerar nelas. Por outro lado, esse artificialismo relaciona-se ao modo de geração dos temas tido como descontextualizado. Nesse caso, a proposição de alternativa implica a reconceituação do tema com base no princípio de sua contextualização, o que supõe fundamentalmente sua ancoragem na diversidade das práticas sociais, dos repertórios culturais e das coleções de textos selecionados para a prática de produção escrita. Essa reconceituação do tema implica, do ponto de vista didático, acionar instrumentos de ensino - leitura, audição de músicas, reprodução de vídeos, visitas a espaços públicos, entrevistas com especialistas etc. - suscetíveis de promover múltiplos modos de acesso a, de manejo e de estabelecimento de um conjunto não menos múltiplo de textos escritos, orais e multimodais, sendo sua recepção considerada fundamentalmente uma prática de produção, tal como propõe Marcuschi (1996)MARCUSCHI, L. A. (1996). Exercícios de compreensão ou copiação nos manuais de ensino de língua? Em Aberto, 16(69), 63-82. quando de sua crítica à leitura como exercício de copiação e não de compreensão.

No que diz respeito à dimensão composicional da prática de produção escrita, o artificialismo estaria relacionado à ênfase que se foi sedimentando na tradição escolar, conforme mencionado, sobre os modos de estruturação ou planificação do texto. O apoio sobre esses modos de estruturação passa a ser uma espécie de muleta no trabalho de ensino da produção escrita, ou seja, a estratégia didática que supostamente torna mais inteligível para o aluno a própria noção de textualidade. A proposição de alternativa para esse fenômeno de reificação dos componentes textuais, qualificado por Lemos (1988)LEMOS, C. T. G. de. (1988). Coerção e criatividade na produção do discurso escrito em contexto escolar: algumas reflexões. In: SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Subsídios à Proposta Curricular de Língua Portuguesa para o 1o. e 2o. Graus. São Paulo: SE/CENP , v. 3, p. 71-7. como uma estratégia geral aprendida pelo aluno de “preenchimento de um arcabouço”, passaria pela reconceituação da própria noção de texto e textualidade sob uma perspectiva discursiva ou sociocognitiva - tal como desenvolvida finamente, por exemplo, na vasta obra de Ingedore Koch (KOCH, 2003KOCH, I. G. V. (2003). Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez Editora.; 2004KOCH, I. G. V. (2004). Introdução à Linguística Textual: trajetória e grandes temas. São Paulo, SP: Martins Fontes.). Em tal concepção, os componentes textuais não são entes estáveis dispostos em estruturas fixas, mas são efeito de estratégias de formulação condicionadas por determinantes de ordem linguística, discursiva, cognitiva etc., sendo que o ensino da planificação ou estruturação do texto ou ainda de sua organização composicional visaria, nessa direção, não aqueles componentes per se, mas a habilidade de montagem de diferentes estratégias de configuração textual, tais quais aquelas inspiradas na propriedade de hibridação e de intercalação de gêneros textuais (BUNZEN, 2006BUNZEN, C. (2006). Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: Bunzen, C.; Mendonça, M. (orgs.), Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, p. 139-161., p. 153-7; GOMES-SANTOS, 2003; SANTOS, 1999SANTOS, S. N. G. (1999). O gesto de recontar histórias: gêneros discursivos e produção escolar da escrita. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada). Campinas, SP: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.).

No que respeita, por fim, à dimensão propriamente locucional da prática de produção escrita, o artificialismo teria a ver com o pressuposto, presente de maneira hegemônica na tradição escolar, de que tendo incorporado uma coleção de ideias e uma coleção de formas composicionais, o aluno estaria apto a discretizar os temas em unidades textuais ou (en)textualizá-los. A crítica a esse artificialismo incide sobre a fraca atenção que se teria dispensado aos processos, estratégias e recursos de formulação textual propriamente dita. A proposição de alternativa, com base nessa crítica, passa pela consideração da elocutio como atividade processual e contínua, e fundamentalmente como atividade de trabalho que não se esgota na primeira vez em que o texto é formulado, já que, conforme a precisa sugestão de Fiad (2006)FIAD, R. S. (2006). Escrever é reescrever. Belo Horizonte: CEALE/FaE/UFMG., “escrever é reescrever”. Assim, a atividade de reescrita ou refacção do texto, de sua revisão com vistas a circuitos de difusão escolares e extraescolares está entre os dispositivos que promoveriam a centralidade e transversalidade das ações de formulação textual nos percursos de ensino e aprendizagem da produção escrita.

Nessa reconfiguração do estatuto da produção escrita no currículo de língua portuguesa, o alçamento de uma perspectiva epistemológica concorrente àquela da tradição escolar consiste em ênfase sobre uma concepção interacionista de linguagem e uma concepção de ensino como mediação do processo de incorporação ativa de múltiplos repertórios culturais, pedra de toque da inovação curricular (PIETRI, 2003PIETRI, E. (2003). A constituição do discurso da mudança do ensino de língua materna no Brasil. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada). Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.) que se busca construir. A finalidade ideológica mais ampla na qual se busca fundar essa perspectiva é mencionada por Bunzen em termos de

(…) uma política de ensino de língua fortalecedora das práticas sociais dos alunos em contextos culturais específicos, pois não podemos negar o conflito intercultural que tem lugar na escola (principalmente no EM)” (BUNZEN, 2006BUNZEN, C. (2006). Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: Bunzen, C.; Mendonça, M. (orgs.), Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, p. 139-161., p. 158).

Vejamos, a seguir, como a restituição desse percurso histórico de instanciação da produção escrita como componente curricular do ensino de língua portuguesa é recurso operatório suscetível de tornar inteligíveis alguns desafios do ensino da produção escrita na escola pública brasileira de nossos dias, especialmente do ponto de vista da formação do futuro professor de língua portuguesa.

2. Produção escrita e formação docente: o texto argumentativo como objeto ensinado

Nesta seção, apresento alguns elementos de problematização do estatuto da produção escrita no ensino de língua portuguesa pelo recurso ao registro escrito de práticas de ensino conforme representadas em um relatório de estágio elaborado como produto final do Curso de Metodologia de Ensino do Português/2 (EDM 0406), por uma estudante (na faixa etária entre 20 e 25 anos) do Curso de Licenciatura em Letras da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Com base nesse registro, busco interpretar o processo de implementação de um projeto de ensino do texto escrito argumentativo9 9 As práticas de ensino de língua portuguesa de que toma parte o licenciando na posição de estagiário são alçadas por ele ao estatuto de objeto de reflexão por meio do relatório de estágio. Nele, saberes e métodos de ensino são colocados à distância e se tornam objetos de discurso - objetos de descrição e de análise. Como têm mostrado diversos estudos sobre a formação do professor de língua portuguesa (cf. GOMES-SANTOS; SEIXAS, 2012; SILVA, 2013; SILVA; MELO, 2008), a consideração desse artefato material da prática de formação profissional pode trazer múltiplos indícios de questões, problemas e desafios que o processo de atualização dos saberes e métodos de ensino da disciplina língua portuguesa coloca para o professor em formação. Do ponto de vista de sua abordagem como dado da pesquisa sobre formação docente, não é inútil lembrar que o exercício de interpretação dos rastros das práticas de ensino nele representadas constitui-se em uma interpretação sobre outra interpretação, uma espécie de metainterpretação. Trata-se, nessa direção, de uma abordagem orientada pelo interesse em qualificar tais rastros como indícios dos processos históricos de disciplinarização do ensino de língua portuguesa de que essas mesmas práticas tomam parte. .

O relatório selecionado para a discussão proposta nesta seção enfoca um projeto de ensino implementado em uma turma de 1o. ano do Ensino Médio10 10 Os dados considerados neste estudo integram o corpus do projeto de pesquisa Formação inicial e letramento do professor de língua portuguesa: conceber, implementar e avaliar projetos de ensino (GOMES-SANTOS, 2016-2019). A seleção do relatório em tela neste estudo considerou: i) o componente curricular nele focalizado (a produção escrita), tendo em vista a discussão proposta neste estudo e iii) a supervisão explícita que procedi, na condição de professor formador, de seu processo de produção. Cabe assinalar que a consideração de um único relatório foi motivada pelo interesse em abordar, como unidade textual global, a seção em que o processo de implementação do projeto de ensino aparece descrito e analisado (tarefa mais complexa caso se optasse por dois ou mais relatórios). Embora não se possa proceder a generalizações com base no relatório eleito, é possível tomá-lo em seu caráter indiciário (ilustrativo) com relação a ênfases temáticas, estilos de descrição, ensaios analíticos etc. ensejados em um conjunto de outros relatórios que compõem o banco de dados de que ele faz parte. . O Quadro 1, abaixo, condensa dados de identificação do projeto de ensino, além daqueles relativos aos objetos ensinados e aos dispositivos didáticos (incluídos os instrumentos didáticos, as formas de trabalho escolar e a coletânea de textos) acionados em sua implementação.

Quadro 1
Dados do relatório selecionado

A seguir, observemos como estes dois ingredientes do projeto de ensino (objetos ensinados e dispositivos didáticos)11 11 Para a caracterização global do percurso de implementação do projeto de ensino, recorro, na descrição e análise do relatório, à contribuição dos estudos sobre o trabalho docente em uma perspectiva didática desenvolvidos por Bernard Schneuwly, Joaquin Dolz e seus colaboradores (SCHNEUWLY; DOLZ, 2009). ganham corpo nas práticas didáticas representadas no relatório, bem como quais os desafios que o ensino do texto escrito argumentativo coloca para o professor em formação.

2.1. O texto escrito argumentativo em uma turma de 1o. ano do Ensino Médio

O relatório intitulado Dificuldades de argumentação em textos de opinião de alunos do 1º. Ano do Ensino Médio expõe o processo de implementação de um projeto de ensino do texto escrito argumentativo junto a alunos do 1º. Ano do Ensino Médio - adolescentes na faixa etária entre 15 e 16 anos de idade - de uma escola da rede estadual de ensino de São Paulo, em um percurso de 10 (dez) aulas, no segundo semestre de 2014.

Esse objeto é ensinado pela seleção de tópicos de conteúdo particulares, de natureza tanto temática (o tema legalização das drogas), quanto configuracional (organização composicional da sequência textual argumentativa), passando por aqueles de natureza linguístico-textual (recursos de construção da argumentação). A coletânea de textos escritos em que se baseia a abordagem do tópico temático e dos modos de configuração composicional da argumentação comporta uma canção e dois artigos de opinião (um com posicionamento favorável e outro com posicionamento contrário à legalização).

O projeto estrutura-se globalmente em cinco fases, cada uma das quais comportando duas aulas. O dispositivo didático global implementado parte da geração de ideias pela audição e leitura de textos da coletânea, buscando-se repertoriar o aluno para as tarefas de produção oral (debate) e de produção escrita (comentário argumentativo), passando pelo estudo de recursos de construção da argumentação nos textos, por meio de exposição oral e discussão coletiva com base em questionário sobre seus elementos temáticos, composicionais e, menos explicitamente, os recursos textuais de construção de posicionamento enunciativo pelo locutor. Esse design global do projeto didático parece ancorar-se no suposto de que a geração de ideias e a exposição a textos em que elas ganham corpo, pela mediação do processo de distribuição e consumo dessas ideias em sala de aula (com discussões coletivas ordenadas em torno do Questionário), de algum modo habilitaria o aluno para a produção escrita, o fim último do projeto.

A audição de canção (“Queimando tudo”) marca a fase inicial de implementação do projeto, tendo a função de inserir o objeto de ensino (o texto argumentativo, especialmente sua dimensão temática) na cena que se busca instaurar em sala de aula. Em outros termos, tal instrumento torna presente o objeto de ensino em sala de aula e busca promover uma primeira aproximação ou sensibilização do grupo de alunos com relação a ele. Dada sua raridade na prática de ensino de língua portuguesa no contexto em questão, a audição da canção gera imediata reação dos alunos:

A reação da turma foi de espanto e surpresa. Eles disseram que não estão acostumados com esse tipo de atividade na escola. Muitos conheciam a canção. Alguns dos que não a conheciam, desaprovaram a letra da música, pois acharam que a letra incentivava o uso de drogas. Foi interessante notar que a música ‘prendeu’ a atenção da classe - porque foi o único momento de completo silêncio - e que levou os alunos a um debate sobre as drogas. [ROA_Escrita_2014, p. 13]

Ao uso desse instrumento, segue-se a tarefa de discussão oral e coletiva sobre a canção ouvida, com base em um questionário. O encadeamento desses instrumentos promove um engajamento inicial dos alunos na atividade proposta. Entre as perguntas propostas no questionário, a que desperta particularmente discussão na turma é a que se volta para o sentido de um enunciado da canção: O que você entende com a frase: ‘Porque o Planet Hemp ainda gosta da Mary Jane. Então, por favor, não me trate como marginal’?, o que indicia a saliência que adquire no processo de compreensão dos alunos a habilidade de pressuposição, conforme registrado pela graduanda, tornando-se na experiência do estágio um dado relevante sobre um tópico de conteúdo sobre argumentação não previsto quando do planejamento do projeto:

Foi interessante notar que a turma entendeu muito bem o pressuposto da frase ‘Porque o Planet Hemp ainda gosta da Mary Jane Então, por favor, não me trate como marginal’. Talvez ela pudesse ser usada para o aprendizado da importância da pressuposição na argumentação. Por uma questão de tempo, essa questão não foi abordada durante a implementação do projeto. Um aluno, que geralmente não participa muito das aulas, gostou muito da música e ressaltou que apenas no Brasil os usuários de drogas são rotulados de marginais. [ROA_Escrita_2014, p. 14-5]

Segue-se, a partir desse início, um movimento de presentificação de um aspecto temático particular (opinião favorável e opinião contrária à legalização) e, simultaneamente, o direcionamento da atenção dos alunos para outros elementos (composicionais e linguísticos) do texto12 12 Faz-se referência aqui aos dois gestos fundamentais do trabalho de ensino: por um lado, os objetos de saber são tornados presentes (presentificados) na cena didática “por diferentes procedimentos de ensino (objetos, textos, fichas, exercícios, situações-problema etc.)”; tornam-se, portanto, objetos de uso, de consumo, “a propósito do qual novas significações podem e devem ser elaboradas” (SCHNEUWLY, 2009: 31). Por outro lado e em relação de reciprocidade com esse gesto de presentificação, os objetos são topicalizados, ou seja, determinadas dimensões ou aspectos deles constitutivos são eleitos como pontos ou tópicos a serem tratados como objetos de estudo particulares (gesto de topicalização). Como postula Chevallard (1985), trata-se de um processo de dupla semiotização, pelo qual os objetos de ensino adquirem existência material na cena didática, o que permite que sejam introduzidos, retomados, reformulados, reintroduzidos e se reconstituam, desse modo, no calor da interação entre professor e alunos em sala de aula, conforme um movimento potencialmente dinâmico. . Para tanto, recorre-se à leitura oral compartilhada seguida de discussão coletiva do texto, com base em novo questionário - instrumento central para a abordagem dos textos da coletânea uma vez que ancora a discussão oral.

Essas duas fases focadas em atividades de recepção dos textos da coletânea auxiliam, em seu conjunto, a proposição posterior de uma tarefa voltada à ação de produção dos alunos (o debate oral), cuja realização tem função similar àquela dos instrumentos implementados nas fases anteriores (repertoriar os alunos com argumentos que pudessem subsidiar um posicionamento favorável ou contrário à legalização das drogas), visando sobretudo o texto escrito que produziriam na fase posterior e final do percurso. O uso do debate oral como instrumento didático catalisa um conjunto amplo de reações dos alunos e torna inteligível aquilo que emerge como mais saliente para eles com relação ao tema proposto no projeto.

Esta etapa teve como objetivo gerar uma ampla discussão sobre a temática. A turma se dividiu em dois grupos: um a favor e o outro contra a legalização das drogas. Os alunos escolheram em qual grupo participariam. Essa etapa motivou mais a classe que as duas anteriores; segundo a professora A, ‘eles gostam de falar, de discutir’, não gostam muito de escrever. Vários alunos falaram ao mesmo tempo durante essa etapa, por isso, uma das dificuldades foi a de organizar o grupo. No início da atividade, a turma pediu que se discutisse a questão da maconha; então esta foi a droga mais debatida. [ROA_Escrita_2014, p. 18]

A produção escrita de um texto argumentativo, um parágrafo argumentativo posicionando-se a favor ou contrariamente à legalização das drogas, é a tarefa final do percurso didático trilhado. Além de instrumento didático, a produção escrita adquire a função sobretudo de regulação da aprendizagem. Pelo menos três efeitos do emprego desse instrumento são assinalados pela graduanda em seu relatório, a saber: o primeiro refere-se à saliência que adquire para vários alunos uma categoria de droga específica, a maconha, o que parece decorrer da saliência desse tópico temático na fase anterior, do debate oral. Outro efeito é o deslize do tema da legalização para o tema do uso de drogas. Um terceiro efeito é o posicionamento hegemônico contrário a esse uso com base em dois pressupostos complementares: de que a droga “faz mal” e de que a legalização incentiva o uso.

A turma se reuniu em pequenos grupos. Houve muita conversa. Neste dia, estavam presentes 30 alunos. No final da aula, as estagiárias receberam 16 produções escritas. O tamanho delas variou entre duas linhas e meia página. A grande maioria dos textos se mostra contra a legalização, sendo o principal argumento usado foi: o uso de drogas faz mal à saúde e a legalização incentiva o uso. [ROA_Escrita_2014, p. 19]

Os textos produzidos são objeto de análise pela graduanda em seu relatório. Nesse trabalho de análise, três agrupamentos de textos são propostos: i) aqueles que teriam fugido ao tema; ii) os que oscilam entre os posicionamentos favorável e contrário e iii) aqueles que apresentam argumentos não sustentados ou fracamente ancorados em fontes explícitas.

Quanto ao primeiro agrupamento de textos, a fuga ao tema considerada refere-se ao deslocamento do tema da legalização para o tema do uso. O dado relevante nesses textos assinalado pela graduanda é sua ancoragem em certo sema negativo quando da abordagem do tema:

Nessas produções escritas, percebemos que os alunos tentam defender o não uso das drogas. Entretanto, nenhum deles dá uma explicação detalhada sobre seus efeitos no corpo humano, como podemos observar no trecho: “causam coisas ruins”. Talvez, em algum momento, a comunidade escolar tenha de fazer atividades que abordem essa temática. Observamos também que, em geral, não são usados argumentos fortes para sustentação da tese sobre os efeitos negativos das drogas. [ROA_Escrita_2014, p. 22]

O segundo agrupamento remete àqueles textos em que há oscilação dos posicionamentos pelos alunos, o que gera, em alguns casos, efeito de contradição. Conforme a apreciação da graduanda, esse efeito pode ser decorrência de uma estratégia de preservação de face por parte dos autores:

Nas produções acima, os alunos parecem ter dificuldade para tomar um ponto de vista, talvez porque ele ainda esteja em processo de desenvolvimento. Trabalhamos também com outra hipótese: talvez os alunos não se sentiram à vontade para dizer sua opinião no contexto escolar. A maioria se mostrou contra a legalização no debate e nas produções escritas. Entretanto, vemos alguns hesitarem nos textos e também no debate. [ROA_Escrita_2014, p. 24-5]

Por fim, o terceiro agrupamento comporta aqueles textos em que há explicitação de um posicionamento, embora desprovido de ancoragem em fontes para além de uma percepção pessoal da questão polêmica. Conforme a graduanda, nesse caso, os alunos tomam como ponto de referência para a explicitação de seu posicionamento (contrário ao uso de drogas) uma verdade ou premissa considerada dada, universal:

Em geral, esse grupo de alunos tentou usar sua opinião como verdade universal sem justificá-la. Outro aspecto identificado é a ausência de uma descrição detalhada sobre os efeitos das drogas no corpo humano. [ROA_Escrita_2014, p. 26]

Os registros do relatório de estágio expostos ilustram os desafios de colocar em ação o projeto didático de um objeto de ensino tradicional na história da disciplina língua portuguesa - o texto escrito argumentativo. As diferentes nomeações que esse objeto vai adquirindo nessa história (Redação escolar; Dissertação: expositiva e argumentativa; Redação do ENEM; Artigo de Opinião; Texto argumentativo/de opinião etc.) é um dado não desprezível da não-obviedade de seu estatuto nas práticas de ensino.

Um desafio desse processo de implementação, não explicitado no relatório embora pertinente para a apreciação dos rumos que o projeto tomou, relaciona-se à relevância do princípio da transversalidade das tarefas de produção textual no percurso de implementação de projetos didáticos em torno da prática de produção textual escrita, em duas direções complementares:

  1. retrospectivamente, a prática de produção textual contínua e processual operaria como dispositivo de recepção das coletâneas de textos auxiliando, nessa direção, o processo de compreensão/apreciação dos temas;

  2. prospectivamente, a prática de produção textual contínua e processual ensejaria um horizonte de possibilidades para a planificação e a formulação de outros textos, textos a cada vez mais incrementados ao longo do percurso didático e ao fim dele.

Nesse desafio - relativo ao estilo de mediação didática -, o que está em jogo é a centralidade da produção do aluno no percurso didático, não apenas como elemento de diagnóstico (o que é sempre pertinente) nem como pretexto para a construção de meta-discurso sobre o objeto de estudo, mas como o motor constante e contínuo do processo. Em outros termos, o que se busca é promover o acesso dos jovens a uma multiplicidade significativa de textos e práticas de produção escrita em relação complexa com outros sistemas semióticos (outras linguagens), suportes (v. JORDÃO; NONATO, 2018JORDÃO, H. G.; NONATO, S. (2018). Forma escolar, trabalho docente e produção textual: novas configurações. Diálogo das Letras, v. 7, p. 208-227.) e práticas de produção multimodais, como ocorre no caso da produção semiótica em ambiente digital (ROJO, 2017ROJO, R. (2017). Entre Plataformas, ODAs e Protótipos: Novos multiletramentos em tempos de WEB2. The Especialist, v. 38, p. 1-20.).

Complementarmente, outro desafio - não menos relevante e talvez mesmo radial no ensino da produção escrita - é aquele relativo à natureza dos repertórios culturais ou das “coleções de ideias” que circulam em sala de aula, cuja abordagem não é óbvia dado o lugar que assumem historicamente nas práticas e nos discursos sedimentados no campo escolar. O tema do uso e legalização de drogas integra esses repertórios. A mediação do processo de construção de opinião com relação a tais temas pelos jovens coloca o professor em formação em face de representações atravessadas por nacos de discursos de fonte diversa. Nos termos da graduanda:

A consideração das práticas escritas nos levou a refletir sobre diversas motivações que geraram as dificuldades de produção de texto de opinião. Observamos que a maioria dos alunos redigiu contra a legalização, fazendo uma forte aproximação entre esse tema e o uso das drogas; talvez tenha faltado uma explicação sobre a diferença entre legalização e utilização dessas substâncias. A questão dos efeitos das drogas também poderia ter sido mais discutida. Observamos também nos textos que houve uma dificuldade de se pensar coletivamente, pois muitos consideraram sua opinião - ou talvez, a opinião da escola - como verdade universal; o projeto poderia ter desenvolvido mais esse aspecto. A maioria foi contra a legalização, talvez os alunos tenham adotado o posicionamento da professora A - e talvez o posicionamento da escola enquanto instituição - e não tenham se sentido à vontade para dizer e defender sua real opinião; podem ter achado que seu ponto de vista não é válido no contexto escolar, isto é, não se consideraram sujeitos nesse contexto. [ROA_Escrita_2014, p. 27]

É a propósito desse problema das coleções de saberes escolares - particularmente dos temas e das coletâneas de textos - para os quais se volta a prática de produção escrita na aula de língua portuguesa que proponho algumas considerações, a título de conclusão deste estudo, a seguir.

Considerações finais: a produção escrita entre repertórios culturais, saberes escolares e direitos educacionais

Quando retorna no percurso mais recente de elaboração curricular do ensino de língua portuguesa, a produção escrita constitui seu estatuto pela combinação ou mixagem de saberes e instrumentos de ensino tecidos em práticas escolares no solo de uma tradição centenária, na concorrência de modelos de ensino e concepções de linguagem e, principalmente, sob a perspectiva de finalidades ideológicas em que se ancora o papel da escola e da linguagem no percurso de formação das gerações de crianças e jovens, em diferentes conjunturas históricas, sociais, culturais e políticas.

Entre as múltiplas dimensões desse estatuto historicamente construído, o problema da natureza dos repertórios culturais gerados e tornados pertinentes para a produção escrita na aula de língua portuguesa é um tópico de discussão de relevância capital na reflexão sobre o conjunto de desafios atuais colocados para o futuro professor. Em que estaria a particularidade do tratamento da produção escrita na conjuntura intelectual e política em que adquire visibilidade oficial (nos currículos, programas e materiais didáticos) o modelo interacionista e a vocação emancipatória do ensino de língua portuguesa, a partir principalmente dos anos 1980? Em que se difere do tratamento a ela dispensado pelo modelo clássico, distantes que nos encontramos da arte de escrever ou das técnicas de redação ou composição praticadas na história do ensino de língua portuguesa?

A esse propósito, consideremos os diferentes temas para a produção escrita do texto argumentativo de que nos ocupamos: A caridade, no Livro de Composição, e Legalização das drogas, no projeto de ensino descrito no relatório de estágio. As condições de emergência desse último no percurso didático representado pela graduanda em seu relatório não são um dado lateral considerando que, entre outros aspectos, é exatamente a natureza dos repertórios culturais que está em jogo em uma concepção de linguagem como ação e de ensino como incorporação de repertórios sócio-culturalmente condicionados, na esteira da frente de força que se vem construindo, como mencionado, desde os anos 1980, como alternativa ao modelo tradicional de ensino de língua portuguesa na escola brasileira. É ao processo de redefinição curricular do ensino de língua portuguesa desencadeado há quarenta anos que se pode remeter - em documentos oficiais, projetos curriculares, materiais didáticos, programas de formação docente - a profusão de temas historicamente invisibilizados ou considerados marginais na escola, nas coletâneas de textos que frequentam as salas de aula da escola brasileira desde sempre, como é o caso de temas relativos à cultura afro-brasileira, às culturas infantis e juvenis, às questões de gênero e etnia, à inclusão e à educação especial, à cultura e literatura oral, à literatura marginal, à poesia feminina, à diversidade linguística etc.

Abordar esse problema da natureza dos repertórios culturais (entre os quais, os temas) convertidos em saberes escolares nas práticas didáticas exige considerar a lógica sob a qual a razão ou forma escolar constitui-se no processo de sua gênese e consolidação na modernidade. Por um lado, do ponto de vista da gênese dessa forma social, é o capital cultural, o conhecimento - seus modos de des-contextualização, de seleção, de circulação e de recontextualização nas práticas escolares - um dos elementos fundantes da invenção da escola e da possibilidade de sua reprodução histórica, processo que se constrói sob o signo da contradição fundante entre promover o acesso de todos ao capital cultural considerado legítimo para a formação das novas gerações e, ao mesmo tempo, promover distinção nos percursos de apropriação desse capital pelos sujeitos (progressão curricular, progressão das aprendizagens, progressão de níveis de escolarização)13 13 Schneuwly; Hofstetter (2017) qualificam essa contradição quando de sua discussão sobre o conceito “sedutor” de forma escolar. Com base na tradição da teoria histórico-cultural, os autores assinalam a centralidade do problema do conhecimento para a compreensão dos processos de aprendizagem e desenvolvimento. Em seus termos, “(…) ‘A construção de objetos de ensino e objetos ensinados parece estar, com efeito, no centro da questão sociocultural’. Esses objetos refletem, em seu cerne, a contradição constitutiva da forma escolar no sentido moderno em que ela se constitui no século XIX e que ainda hoje determina profundamente todo trabalho em seu interior: ‘acesso a uma cultura considerada comum, porventura universal, e, ao mesmo tempo, transmissão de conteúdos que assegurem a ordem e a diferença. […] A escola assume essa tarefa contraditória com o material do passado que ela transforma em função da evolução social: os próprios meios que promovem o acesso são também sempre parcialmente aqueles da diferenciação e da exclusão’ (Schneuwly, 2007, p. 20).” (SCHNEUWLY; HOFSTETTER, 2017, p. 164). . Os limites dessa contradição aparecem problematizados nos estudos sobre as culturas escolares e os modos com que nelas se reconstituem as finalidades ideológicas e os programas políticos que embasam historicamente a escola.

Por outro lado e complementarmente, do ponto de vista da expansão, da consolidação e das reconfigurações da forma escolar como agência central de letramento nas sociedades industriais modernas, o problema da natureza dos repertórios culturais tornados saberes escolares permite discutir o pressuposto da educação como direito. Nesse caso, estaríamos em face da emergência, especialmente a partir do final do século XX e início do novo milênio, daquilo que Boto (2005BOTO, C. (2005). A educação escolar como direito humano de três gerações: identidades e universalismos. Educação e Sociedade. Campinas, vol. 26, no. 92, p. 777-798.; 2006)BOTO, C. (2006). Um credo pedagógico na democracia escolar: algum traçado do pensamento de John Dewey. Educação, Porto Alegre, RS, ano XXIX, n 3 (60), p. 599-619. qualifica como “terceira geração de direitos públicos em educação” 14 14 A autora postula a distinção histórica de três sucessivas gerações de direitos públicos em educação na modernidade ocidental: a primeira geração de direitos públicos constitui-se em “direito subjetivo de ir à escola; de ter acesso à escolarização”, a partir do final do século XVIII; a segunda geração constitui-se em “direito ao respeito, por um ensino atraente, que colocasse o aluno e o aprendizado como protagonistas do ‘acontecer escolar’”, a partir do final do século XIX (BOTO, 2006, p. 600). , a saber:

(...) o direito de ter alterado o conteúdo das matérias ensinadas e aprendidas. Ou seja, a preocupação com a diversidade, com a plurali- dade das culturas, com os direitos difusos do ambiente e das minorias (dentre as quais as crianças) poderá fazer com que seja desconstruído o modelo dos espaços, dos tempos e dos saberes curriculares. Tal iniciativa requererá uma modificação mais ampla de algumas interpretações de mundo, de sociedade e de Estado que passavam pela escola... Trata-se agora de enfrentar, não apenas o método, mas o próprio conteúdo da ação pedagógica desenvolvida pelos sistemas de ensino. (BOTO, 2006BOTO, C. (2006). Um credo pedagógico na democracia escolar: algum traçado do pensamento de John Dewey. Educação, Porto Alegre, RS, ano XXIX, n 3 (60), p. 599-619., p. 600)

Ora, quando se busca tratar da prática escolar é, entre outros aspectos, fundamentalmente com processos de acumulação, apropriação ou geração de repertórios culturais aquilo com que estamos lidando. No caso da discussão proposta neste estudo, esse pressuposto da centralidade do saber é imprescindível para o exercício de contraste do estatuto curricular da produção escrita no modelo clássico e no modelo interacionista de ensino de língua portuguesa, conforme caracterizados. Estaríamos, assim, em meio a uma disputa histórica entre duas frentes de força: por um lado, uma concepção imanentista de linguagem e uma concepção de ensino como transmissão de repertórios culturais tomados como blocos monolíticos e, por outro lado, uma concepção interacionista de linguagem e uma concepção de ensino como mediação do processo de incorporação ativa de múltiplos repertórios culturais. Por hipótese, é o jogo complexo entre essas duas frentes de força que se reconstitui ou se recontextualiza, historicamente, nas práticas de ensino de língua portuguesa e, mais particularmente, nas práticas de ensino da produção escrita15 15 Dolz, Gagnon e Thévenaz-Christen (2009), na elaboração de um panorama histórico do ensino de língua francesa na escola genebrina, observam dois modelos em que se ancora esse ensino: um modelo clássico fundado em uma concepção representacionista de linguagem (linguagem como representação do pensamento) e um modelo comunicativo, fundado em uma concepção de linguagem como interação. A transição da ênfase no modelo clássico para a ênfase no modelo comunicativo dá-se, no contexto suíço, por ocasião das reformas escolares ocorridas a partir dos anos 1970. .

Nessa direção, do ponto de vista particularmente dos temas tornados pertinentes para a prática de produção escrita, o desafio (teórico e aplicado) a ser encarado pela pesquisa científica atualmente seria fundamentalmente aquele de problematização do projeto político em que se fundam essas duas frentes de força. Não nos esqueçamos de que se trata de projeto político porque supõe fundamentalmente processos de produção do sujeito-aluno-autor, processo de subjetivação de sujeitos, portanto.

Esse é o dado central na tarefa de problematizar os discursos institucionais que, no Brasil destes nossos dias, buscam colocar em xeque aquilo que está mesmo entre as finalidades mais tradicionais da escola, talvez a central - a geração, a distribuição e o consumo de capital simbólico -, o que promovem por meio de um conjunto de expedientes enunciativos institucionais, como, por exemplo, aqueles de colocação sob suspeição do conhecimento científico historicamente construído pela humanidade, de confiscação da palavra divergente, de diluição da historicidade das referências culturais e de profusão digital de simulacros (fakenews) dessas referências por robôs e por humanos-robôs... Na base desses e de outros expedientes encontra-se talvez aquilo que Safatle (2016) menciona, quando de sua análise da conjuntura política brasileira nos dias atuais, como “a arte de desaparecer”. Para o filósofo,

(…) Nada disso pode ser compreendido sem levar em conta o tipo de violência que caracteriza o Brasil. Pois o Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência. Na verdade, uma violência baseada no desaparecimento. Aqui, não são apenas os corpos que desaparecem sem deixar marcas - corpos vítimas de genocídios e de uma gestão social da brutalidade. São as classes vulneráveis que desaparecem sendo expulsas do espaço público de visibilidade. (…) O debate não é sobre ‘valores’. Ele é sobre práticas de desaparecimento. Mas essa violência da desaparição é ainda mais profunda. Ela tem como seu espaço natural a história. (SAFATLE, 2019)

O projeto político que fundamenta a possiblidade de circulação - ou de sua contra-face, a desaparição, a interdição ou denegação - de repertórios culturais na escola é igualmente dado central para se pensar sobre o lugar do trabalho docente na mediação didática dos processos de recepção-produção-edição-distribuição desses repertórios na escola, o que supõe a disputa em torno das próprias condições de possibilidade de atribuição de sentido, pela produção escrita (mas também pelas práticas de produção oral, de leitura e de análise gramatical), às relações sociais que se reconstituem no espaço escolar. Nessa mediação, o desafio central do trabalho do professor estaria na possibilidade de instanciação da ação de linguagem do aluno como o ponto radial dos percursos didáticos propostos em sala de aula, conforme uma concepção de ensino como incorporação de repertórios suscetíveis de promover a inserção protagonista e politicamente empoderada do aluno em múltiplas práticas sociais. Uma espécie de contraponto político à arte de desaparecer16 16 Em uma perspectiva freiriana, esse desafio implicaria a ação emancipatória de redirecionar o olhar para a atividade intelectual do sujeito, sua curiosidade epistemológica, no quadro de uma pedagogia da liberdade ou da educação como prática de liberdade (FREIRE, 1967). .

A meu ver, a qualificação desse desafio está entre os principais tópicos de discussão na concepção e implementação de projetos e políticas de formação acadêmica inicial do futuro professor de língua portuguesa.

  • 1
    Este estudo recupera um interesse de longa data pela investigação da produção escolar da escrita materializado, inicialmente, na dissertação de Mestrado “O gesto de recontar histórias: gêneros discursivos e produção escolar da escrita” (SANTOS, 1999), defendida há exatos vinte anos no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação de Raquel Salek Fiad, a quem agradeço pela presença generosa até hoje. Também agradeço aos(às) pareceristas anônimo(a)s pelos comentários sobre o texto. Seu conteúdo e o estilo de composição são, todavia, de minha plena responsabilidade.
  • 2
    Curso Médio, no sistema educacional francês, correspondente ao segundo segmento de nosso Ensino Fundamental. A versão traduzida de excertos de obras não publicadas em português é de minha responsabilidade.
  • 3
    Em estudo seminal sobre a história da disciplina curricular Português, Soares (2002)SOARES, M. (2002). Português na escola - história de uma disciplina curricular. In: Bagno, M. (org.), Linguística da Norma. São Paulo: Edições Loyola, p. 155-177. qualifica nos seguintes termos o processo de disciplinarização ou escolarização: “Extrair de uma área de conhecimento uma ‘disciplinar curricular’ é, fundamentalmente, escolarizar esse conhecimento, ou seja, é instituir um certo saber a ser ensinado e aprendido na escola, um saber para educar e formar através do processo de escolarização. Na verdade, entre disciplina curricular, ou melhor, entre currículo e disciplina, de um lado, e escola, de outro, há, de certa forma, uma relação de causa-efeito: o surgimento da instituição escola está indissociavelmente ligado à instituição de saberes escolares, que se corporificam e se formalizam em currículos, disciplinas, programas, exigidos pela invenção, que a escola criou, de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem.” (SOARES, 2002SOARES, M. (2002). Português na escola - história de uma disciplina curricular. In: Bagno, M. (org.), Linguística da Norma. São Paulo: Edições Loyola, p. 155-177., p. 155).
  • 4
    Tais estudos representam grande parte da ainda modesta produção acadêmica brasileira voltada à abordagem histórica do ensino da produção escrita particularmente como componente curricular da disciplina língua portuguesa, na escola brasileira. A restituição do percurso histórico desse componente com base nas sínteses propostas nesses estudos, tal qual apresentada aqui, consiste em um movimento tanto de cotejo de fatos e fenômenos nelas descritos e qualificados, quanto de proposição de uma operação metodológica de contraste de dois modelos de ensino de língua portuguesa, conforme configurados em duas conjunturas delimitadas sócio-historicamente.
  • 5
    A edição ora considerada é a nona (9ª., “revista e augmentada”), publicada em 1930, pela Livraria Francisco Alves.
  • 6
    Na transcrição de excertos da obra em tela, manteve-se a grafia do original.
  • 7
    Figura dessa dupla concepção de argumentação é a distinção difusa que se sedimentou e se mantém presente, no discurso escolar, em materiais didáticos etc. entre dissertação expositiva e dissertação argumentativa.
  • 8
    Os princípios e orientações curriculares do ensino de língua portuguesa na conjuntura social, política e econômica do Brasil dos anos do governo militar são institucionalizados pela Promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei 5692/71 (BRASIL, 1971). Nas orientações curriculares dispensa-se atenção central aos procedimentos implicados na produção do texto, especialmente àqueles de planificação ou estruturação, razão da relevância e da multiplicação de roteiros, de esquemas de produção, bem como da explicitação, em discurso meta-expositivo, desses procedimentos. A esse propósito, Bunzen (2006)BUNZEN, C. (2006). Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: Bunzen, C.; Mendonça, M. (orgs.), Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, p. 139-161. assinala, entre outros elementos, “um aumento considerável, especificamente, na década de 1970, da produção de LDs [Livros Didáticos] para o EM [Ensino Médio], voltados para o ensino de redação” (BUNZEN, 2006BUNZEN, C. (2006). Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: Bunzen, C.; Mendonça, M. (orgs.), Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, p. 139-161., p. 144). Pelos limites de espaço deste estudo, evito expor em maior detalhe o modelo de ensino de língua portuguesa suposto no currículo da disciplina, no período em questão (anos 1960 e 1970), nomeado e qualificado por vários estudos como modelo comunicativo.
  • 9
    As práticas de ensino de língua portuguesa de que toma parte o licenciando na posição de estagiário são alçadas por ele ao estatuto de objeto de reflexão por meio do relatório de estágio. Nele, saberes e métodos de ensino são colocados à distância e se tornam objetos de discurso - objetos de descrição e de análise. Como têm mostrado diversos estudos sobre a formação do professor de língua portuguesa (cf. GOMES-SANTOS; SEIXAS, 2012GOMES-SANTOS, S. N.; SEIXAS, C. (2012). Gêneros textuais da formação docente inicial: o projeto de ensino de língua portuguesa. Scripta (PUCMG), v. 16, p. 151-168.; SILVA, 2013SILVA, W. R. (2013). Escrita do gênero relatório de estágio supervisionado na formação inicial do professor brasileiro. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 13, p. 171-195.; SILVA; MELO, 2008SILVA, W. R.; MELO, L. C. de. (2008). Relatório de estágio supervisionado como gênero discursivo mediador da formação do professor de língua materna. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 47, p. 131-149.), a consideração desse artefato material da prática de formação profissional pode trazer múltiplos indícios de questões, problemas e desafios que o processo de atualização dos saberes e métodos de ensino da disciplina língua portuguesa coloca para o professor em formação. Do ponto de vista de sua abordagem como dado da pesquisa sobre formação docente, não é inútil lembrar que o exercício de interpretação dos rastros das práticas de ensino nele representadas constitui-se em uma interpretação sobre outra interpretação, uma espécie de metainterpretação. Trata-se, nessa direção, de uma abordagem orientada pelo interesse em qualificar tais rastros como indícios dos processos históricos de disciplinarização do ensino de língua portuguesa de que essas mesmas práticas tomam parte.
  • 10
    Os dados considerados neste estudo integram o corpus do projeto de pesquisa Formação inicial e letramento do professor de língua portuguesa: conceber, implementar e avaliar projetos de ensino (GOMES-SANTOS, 2016-2019GOMES-SANTOS, S. N. (2019). Formação inicial e letramento do professor de língua portuguesa: conceber, implementar e avaliar projetos de ensino (Projeto de Pesquisa). Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Bolsa de Produtividade em Pesquisa 310898/2015-3.). A seleção do relatório em tela neste estudo considerou: i) o componente curricular nele focalizado (a produção escrita), tendo em vista a discussão proposta neste estudo e iii) a supervisão explícita que procedi, na condição de professor formador, de seu processo de produção. Cabe assinalar que a consideração de um único relatório foi motivada pelo interesse em abordar, como unidade textual global, a seção em que o processo de implementação do projeto de ensino aparece descrito e analisado (tarefa mais complexa caso se optasse por dois ou mais relatórios). Embora não se possa proceder a generalizações com base no relatório eleito, é possível tomá-lo em seu caráter indiciário (ilustrativo) com relação a ênfases temáticas, estilos de descrição, ensaios analíticos etc. ensejados em um conjunto de outros relatórios que compõem o banco de dados de que ele faz parte.
  • 11
    Para a caracterização global do percurso de implementação do projeto de ensino, recorro, na descrição e análise do relatório, à contribuição dos estudos sobre o trabalho docente em uma perspectiva didática desenvolvidos por Bernard Schneuwly, Joaquin Dolz e seus colaboradores (SCHNEUWLY; DOLZ, 2009SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (orgs.). (2009). Des objets enseignés en classe de français - Le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes, p. 29-43.).
  • 12
    Faz-se referência aqui aos dois gestos fundamentais do trabalho de ensino: por um lado, os objetos de saber são tornados presentes (presentificados) na cena didática “por diferentes procedimentos de ensino (objetos, textos, fichas, exercícios, situações-problema etc.)”; tornam-se, portanto, objetos de uso, de consumo, “a propósito do qual novas significações podem e devem ser elaboradas” (SCHNEUWLY, 2009SCHNEUWLY, B. (2009). Le travail enseignant. In: Schneuwly, B.; Dolz, J. (orgs.), Des objets enseignés en classe de français - Le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes, p. 29-43.: 31). Por outro lado e em relação de reciprocidade com esse gesto de presentificação, os objetos são topicalizados, ou seja, determinadas dimensões ou aspectos deles constitutivos são eleitos como pontos ou tópicos a serem tratados como objetos de estudo particulares (gesto de topicalização). Como postula Chevallard (1985)CHEVALLARD, Y. (1985). La transposition didactique. Grenoble: La Pensée Sauvage., trata-se de um processo de dupla semiotização, pelo qual os objetos de ensino adquirem existência material na cena didática, o que permite que sejam introduzidos, retomados, reformulados, reintroduzidos e se reconstituam, desse modo, no calor da interação entre professor e alunos em sala de aula, conforme um movimento potencialmente dinâmico.
  • 13
    Schneuwly; Hofstetter (2017) qualificam essa contradição quando de sua discussão sobre o conceito “sedutor” de forma escolar. Com base na tradição da teoria histórico-cultural, os autores assinalam a centralidade do problema do conhecimento para a compreensão dos processos de aprendizagem e desenvolvimento. Em seus termos, “(…) ‘A construção de objetos de ensino e objetos ensinados parece estar, com efeito, no centro da questão sociocultural’. Esses objetos refletem, em seu cerne, a contradição constitutiva da forma escolar no sentido moderno em que ela se constitui no século XIX e que ainda hoje determina profundamente todo trabalho em seu interior: ‘acesso a uma cultura considerada comum, porventura universal, e, ao mesmo tempo, transmissão de conteúdos que assegurem a ordem e a diferença. […] A escola assume essa tarefa contraditória com o material do passado que ela transforma em função da evolução social: os próprios meios que promovem o acesso são também sempre parcialmente aqueles da diferenciação e da exclusão’ (Schneuwly, 2007, p. 20).” (SCHNEUWLY; HOFSTETTER, 2017SCHNEUWLY, B.; HOFSTETTER, R. (2017). Forme scolaire: un concept trop séduisant? In: Dias-Chiaruttini, A.; Cohen-Azria, C., Théories-didactiques de la lecture et de l’écriture: fondements d’un champ de recherche en cheminant avec Yves Reuter. Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, p. 153-167, p. 164).
  • 14
    A autora postula a distinção histórica de três sucessivas gerações de direitos públicos em educação na modernidade ocidental: a primeira geração de direitos públicos constitui-se em “direito subjetivo de ir à escola; de ter acesso à escolarização”, a partir do final do século XVIII; a segunda geração constitui-se em “direito ao respeito, por um ensino atraente, que colocasse o aluno e o aprendizado como protagonistas do ‘acontecer escolar’”, a partir do final do século XIX (BOTO, 2006BOTO, C. (2006). Um credo pedagógico na democracia escolar: algum traçado do pensamento de John Dewey. Educação, Porto Alegre, RS, ano XXIX, n 3 (60), p. 599-619., p. 600).
  • 15
    Dolz, Gagnon e Thévenaz-Christen (2009)DOLZ, J.; GAGNON, R.; THÉVENAZ-CHRISTEN, T. (2009). Éclairage historique des objets d’enseignement analyses. In: Schneuwly, B.; Dolz, J. (orgs.), Des objets enseignés en classe de français - Le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes, p. 45-64., na elaboração de um panorama histórico do ensino de língua francesa na escola genebrina, observam dois modelos em que se ancora esse ensino: um modelo clássico fundado em uma concepção representacionista de linguagem (linguagem como representação do pensamento) e um modelo comunicativo, fundado em uma concepção de linguagem como interação. A transição da ênfase no modelo clássico para a ênfase no modelo comunicativo dá-se, no contexto suíço, por ocasião das reformas escolares ocorridas a partir dos anos 1970.
  • 16
    Em uma perspectiva freiriana, esse desafio implicaria a ação emancipatória de redirecionar o olhar para a atividade intelectual do sujeito, sua curiosidade epistemológica, no quadro de uma pedagogia da liberdade ou da educação como prática de liberdade (FREIRE, 1967FREIRE, P. (1967). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz & Terra.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2019
  • Aceito
    21 Set 2019
  • Publicado
    10 Out 2019
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