Acessibilidade / Reportar erro

“(NÃO) LEIA OS COMENTÁRIOS”: A DISPUTA DA NOTÍCIA SOBRE O ASSASSINATO DE MARIELLE FRANCO

(DON’T) READ THE COMMENTS: DISPUTING THE STORY OF MARIELLE FRANCO’S MURDER

RESUMO

O presente artigo procura contribuir para a construção de entendimentos sobre o potencial semiótico dos comentários na interação em plataformas digitais. Toma-se como objeto a repercussão online de um caso notório: o assassinato da vereadora Marielle Franco, ocorrido em 2018. A tarefa analítica desta pesquisa é escrutinar discursivamente uma cauda de 1.600 comentários, entendidos aqui tanto como reentextualizações da própria notícia, quanto como lastros de sua trajetória textual em contextos de circulação variados. Os resultados iluminam os modos como os comentadores contribuem para a produção, expansão e disputa de certos discursos que marcam a polarização ideológica no cenário sócio-político contemporâneo.

Palavras-chave:
comentários; trajetórias textuais; Marielle Franco

ABSTRACT

This paper aims to advance contemporary understandings of the semiotic potential of comments in interactions carried out on digital platforms. We do so by observing the online repercussion of a widely discussed case: the murder of city councilor Marielle Franco. Our analytical enterprise consists in discursively scrutinizing a stream of 1.600 comments, here understood as re-entextualizations of the story itself and as vestiges of its textual trajectory in varied contexts of circulation. The results shed light on the ways in which commentators contribute to the production, expansion and dispute of discourses which characterize the ideological polarization in the contemporary socio-political landscape.

Keywords:
comments; Textual trajectories; Marielle Franco

INTRODUÇÃO

Em 14 de março de 2018, a então vereadora do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes, foram violentamente assassinados na região central do Rio de Janeiro. Marielle e uma assessora, guiadas por Anderson, retornavam de um compromisso em uma conhecida ONG dedicada a questões de raça e gênero quando um veículo se aproximou para disparar 14 tiros antes fugir. Uma assessora, Fernanda Gonçalves, estava no banco carona e sobreviveu. Marielle e Anderson morreram na hora. À época em que se deu o crime, Marielle vinha denunciando a atuação violenta da polícia militar e das milícias locais em favelas do Rio de Janeiro. Era um momento em que a cidade do Rio Janeiro, como política de segurança pública implementada pelo então presidente Michel Temer, vivia sob intervenção do Exército Brasileiro.

Com características de execução, o atentado contra Marielle, Anderson e Fernanda segue, até o momento de escrita deste texto - dois anos após o episódio -, sem solução satisfatória. As investigações, sob responsabilidade da delegacia de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro, com apoio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público, apontaram como autores do crime um policial reformado e outro expulso da Polícia Militar do Rio de Janeiro: Ronie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz. O primeiro foi preso pela autoria dos disparos; o segundo, por dirigir o automóvel na noite do crime. De acordo com a investigação, o assassinato de Marielle se enquadraria como um “crime de ódio por motivo torpe”, a saber, contrariedade às causas abraçadas por Marielle em sua atuação como vereadora. As informações oficiais, até o momento, dão conta de que os ex-policiais teriam agido sozinhos no planejamento do crime.

Mesmo após o aparente “desfecho”, todo o processo de investigação e da sua divulgação segue enfrentando polêmicas e sendo alvo de desconfiança por parte de diversos setores da população. Empilham-se há dois anos suspeitas de obstrução de inquérito, casos de afastamento de pessoas envolvidas no processo e hipóteses alternativas, como a que aponta envolvimento dos acusados com o Escritório do Crime, famosa milícia que atua na região de Rio das Pedras, alegadamente envolvida com a família do atual presidente Jair Bolsonaro. Para se ter uma ideia da sequência interminável de eventos que lança sombra sobre a morte de Marielle, em janeiro de 2020, um dos supostos líderes do Escritório do Crime, Adriano da Nóbrega, foi morto a tiros pela polícia da Bahia em circunstâncias ainda não inteiramente esclarecidas. Alguns alegam acaso; outros, queima de arquivo. Adriano, no passado, quando ainda membro da polícia, havia sido condecorado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro por iniciativa de Flávio Bolsonaro, então vereador no Rio de Janeiro, um dos filhos do presidente. O gabinete do mesmo Flávio já havia, anos antes, empregado esposa e filha de Adriano.

O fato é que, mesmo antes dos desdobramentos de sua investigação, o assassinato de Marielle e os discursos que se produziram sobre ele estiveram vocacionados a atualizar as polarizações ideológicas típicas do cenário político contemporâneo. Por um lado, a figura mesma de Marielle, carismática e popular - a vereadora mais votada do estado do Rio de Janeiro no ano de sua eleição -, converteu-se em símbolo de luta em meio à esquerda brasileira. Seu rosto e seu nome estampam inscrições grafitadas em muros e prédios da cidade, além de camisetas, bandeiras, cartazes e discursos em manifestações públicas brasileiras e estrangeiras. Por outro lado, e também graças a sua atuação como defensora dos direitos humanos e dos interesses da população periférica - portando ela mesma marcadores identitários minoritários (mulher, negra, mãe solo, favelada e lésbica) -, Marielle figurou, quiçá na mesma intensidade, mas com sinal invertido, no discurso da chamada “extrema direita”, dessa vez como catalisadora do que seus oponentes se acostumaram a chamar de “mimimi” da esquerda.

Para examinar os modos como esses embates em torno da figura de Marielle Franco se dão, examinaremos um evento discursivo iniciado no dia de seu assassinato: a própria notícia de sua morte, conforme veiculada em um dos maiores portais de notícias do Brasil - o G1, das Organizações Globo - na plataforma Facebook. No entanto, o que interessa particularmente como objeto de observação é menos o discurso da notícia em si do que o modo como os leitores e grupos sociais disputam seus rumos e sentidos. Embora o exame da coconstrução de sentido em interação seja empiricamente demonstrável em análise de dados de interações síncronas - e essa é de fato a agenda de investigação de empreitadas abrigadas sob os estudos da fala-em-interação -, o mesmo não se pode dizer da recepção e interação com textos escritos, com uma nova e notável exceção: em ambientes virtuais contemporâneos, possibilitadas pelas novas tecnologias de informação e comunicação, a circulação, reação e coprodução de conteúdos discursivos, por meio, por exemplo, de “curtidas”, “compartilhamentos” e comentários, é facilitada, acelerada, ampliada e tornada visível pelas próprias plataformas tecnológicas.

Este trabalho é, então, um exercício de ler, ao invés de evitar, as temidas profundezas da web 2.0 - parafraseamos aqui Reagle Jr. (2015)REAGLE JR, J. (2015). Reading the comments: likers, haters, and manipulators at the bottom of the web. Massachusetts: MIT Press., cujo trabalho apresentaremos mais adiante -, especificamente aquilo que nos fornece maior material analítico: as infames seções de comentários. Como se verá adiante, acreditamos que seguir as interações online, em geral, e as seções de comentários, em particular, permite examinar a trajetória de um texto e seus efeitos em múltiplos contextos de circulação, tal como já pensado por autores pioneiros na proposição direta ou indireta desse tipo de empreitada (AGHA, 2011AGHA, A. (2011). Meet mediatisation. Language & Communication, n. 31, pp. 163-170.; FABRÍCIO, 2014FABRÍCIO, B. (2014). The pragmatics of entextualizing a digital ‘Lusophone’ territory. In: Moita Lopes, L.P. (org.). Global Portuguese: linguistic ideologies in Late Modernity. London: Routledge.; SZABLA; BLOMMAERT, 2017SZABLA, M.; BLOMMAERT, J. (2017). Does context really collapse in social media. Plenary paper, conference on Moving Texts: Mediations and Transculturations. Plenary lecture at the conference on Moving Texts: Mediations and Transculturations. Universidade de Aveiro, Aveiro.). Com isso, o que esperamos, mais amplamente, é contribuir para os entendimentos sobre como comentários se relacionam com a produção, expansão e disputa de certos discursos que marcam a polarização ideológica no cenário sociopolítico contemporâneo.

Nas próximas seções deste texto, identificaremos os comentários como gênero discursivo, procurando revisar uma literatura que permite compreendê-lo em termos de suas características interacionais e funções pragmáticas. Também apresentaremos em mais detalhes o evento discursivo que nos serviu de corpus. Na sequência, mapearemos os comentários que compõem, com o texto inicial, a interação sobre a notícia, para em seguida analisar suas características e efeitos na interação.

1. COMENTÁRIOS COMO UM GÊNERO

Os “comentários da internet” são constituintes dos processos de socialização e de letramento das esferas de comunicação digital contemporâneas, nas quais qualquer pessoa munida de um celular ou um computador pode produzir conteúdo amplamente visível, replicável e independente de atravessamentos institucionais. Como parte integrante de nossas interações com jornais, revistas, blogs, sites de compras e redes sociais, lemos e produzimos comentários cotidianamente, em seções criadas especificamente para isso. Embora faltem descrições substanciais de comentários como gênero - e nesse sentido o trabalho de Reagle Jr. (2015)REAGLE JR, J. (2015). Reading the comments: likers, haters, and manipulators at the bottom of the web. Massachusetts: MIT Press., um dos estudos nos quais nos baseamos para esta pequena descrição inicial, se destaca como uma entrada interessante na história e nas polêmicas deste universo -, comentários, em tese, são modos de comunicação reativos, avaliativos e contextualmente fincados sobre o conteúdo que lhes motiva - vídeos, fotografias, textos, produtos comercializados etc. Comentários podem ser produzidos imediatamente após uma publicação disparadora, mas também depois de horas, dias ou anos, com poder inclusive de reacender - no sentido de tornar novamente visível - uma celeuma já esquecida. Comentários podem ter extensões e formas variadas: podem ser constituídos de signos não-verbais (como emojis e figurinhas), elaborações textuais em prosa feitas de um ou alguns parágrafos, ou uma combinação das duas coisas.

Um aspecto importante de uma web aberta a comentários é a sua crescente comodificação: produtos são mais vendidos quando mais comentados; notícias são mais clicadas quando fomentam discussões polêmicas graças à interação com seu público consumidor; redes sociais frequentadas por populações ativas de comentadores atraem mais patrocínio e propaganda paga. Sendo um commodity valioso nesse universo, comentários têm sido contabilizados, perseguidos e manipulados (REAGLE JR, 2015REAGLE JR, J. (2015). Reading the comments: likers, haters, and manipulators at the bottom of the web. Massachusetts: MIT Press.), são frequentemente criados por perfis falsos ou robôs disparadores e têm sido objeto de agências especializadas em marketing digital, tanto comercial quanto político, que agem impulsionando postagens e disparando mensagens digitais.

Falsos ou legítimos os comentários, a dinâmica interacional na qual eles estão envolvidos pode ser bem complexa: uma ação inicial, realizada em formato de postagem, notícia, fotografia, vídeo etc. encadeia ações em sequência, tais como “reações” (o ato de clicar em botões pré-especificados como “gostei”, “não gostei”, “chorei”, “amei”), comentários e/ou compartilhamentos (ação de replicar o conteúdo em outros espaços virtuais ou plataformas). À exceção das “reações”, que encerram a sequência interacional, comentários e compartilhamentos são ações que instauram, por sua vez, um novo evento com suas próprias ações sequenciais. Essas ações são também recursivas, isto é, podem gerar ações sequenciais que respondem a elas mesmas, e não à ação inicial, gerando estruturas do tipo comentários dentro de comentários, ou comentários, reações e compartilhamentos dentro de compartilhamentos. Se imaginarmos que não há limites para a replicação dessa dinâmica, teremos uma boa noção do tipo de interação ampla, rizomática, por vezes viral, de que os comentários são parte constitutiva.

Do ponto de vista pragmático, comentários são atitudes responsivas ativas (BAKHTIN, 1953BAKHTIN, M. (1953). Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) que ratificam a interlocução e nos informam sobre o tipo de sociabilidade e estruturas de participação que regulam encontros sociais virtuais (SZABLA; BLOMMAERT, 2017SZABLA, M.; BLOMMAERT, J. (2017). Does context really collapse in social media. Plenary paper, conference on Moving Texts: Mediations and Transculturations. Plenary lecture at the conference on Moving Texts: Mediations and Transculturations. Universidade de Aveiro, Aveiro.). Além das ações sequenciais imediatas - concordar, discordar, xingar, sugerir etc. -, os comentários inscrevem diferentes atores sociais em comunidades virtuais, e são também atos de identidade, já que comunicam sentidos para a própria rede de relações do ator que comenta (SZABLA; BLOMMAERT, 2017SZABLA, M.; BLOMMAERT, J. (2017). Does context really collapse in social media. Plenary paper, conference on Moving Texts: Mediations and Transculturations. Plenary lecture at the conference on Moving Texts: Mediations and Transculturations. Universidade de Aveiro, Aveiro.). Além disso, e de modo mais relevante para a discussão deste artigo, os comentários são parte integrante dos processos de contextualização dos discursos que circulam nas redes sociais, porque inserem a postagem disparadora e seus respectivos comentários públicos em outras configurações espaço-temporais, alterando sua circulação e os seus sentidos, (re)contextualizando-os. De fato, para Fabrício (2014)FABRÍCIO, B. (2014). The pragmatics of entextualizing a digital ‘Lusophone’ territory. In: Moita Lopes, L.P. (org.). Global Portuguese: linguistic ideologies in Late Modernity. London: Routledge., baseada em Agha (2011)AGHA, A. (2011). Meet mediatisation. Language & Communication, n. 31, pp. 163-170., responder e comentar mensagens é um ato de recontextualização da própria mensagem.

No desenvolvimento da noção de contextualização proposto por Bauman e Briggs (1990)BAUMAN, R.; BRIGGS, C. L. (1990). Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology, v. 19, pp. 59-88., os autores apresentam as noções de descontextualização - isto é, a possibilidade de extração de um texto, enquanto objeto relativamente autônomo, para fora do evento interacional e das circunstâncias específicas em que foi produzido - e (re)entextualização - a realocação desse texto em eventos interacionais distintos. Quando esses fenômenos ocorrem, a movimentação dos textos de seus contextos originais de produção para novos eventos semióticos incrementa as suas trajetórias de circulação, passando a envolvê-los em estruturas de participação distintas e abrindo rumos imprevisíveis na criação de seus públicos e contra-públicos, por vezes de forma infecciosa (BRIGGS, 2005BRIGGS, C. (2007). Anthropology, interviewing, and communicability in contemporary Society. Current Abthropology, v. 48, n. 4., pp. 551-580.).

Os rumos do texto também podem ser inesperados em relação à construção de seu sentido. Conforme argumentado por Fabrício (2014)FABRÍCIO, B. (2014). The pragmatics of entextualizing a digital ‘Lusophone’ territory. In: Moita Lopes, L.P. (org.). Global Portuguese: linguistic ideologies in Late Modernity. London: Routledge. em empreitada semelhante à aqui proposta, a circulação dos textos por novos contextos os confronta com novas ordens de indexicalidade (SILVERSTEIN, 2003SILVERSTEIN, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, v.23, pp.193-229.). Um texto, quando migra de seu contexto original de produção e recepção, passa a se relacionar a outros códigos identitários, discursos, expectativas culturais, valores e orientações ideológicas que alteram a relação indicial que ele funda com seu entorno. Neste artigo, em que tomamos como texto disparador uma notícia publicada online, vamos argumentar que os comentários, ao (re)entextualizar a postagem inicial, atuam negociando seu sentido, alterando seus enquadres e projeções metapragmáticas, isto é, alterando o que, a partir da materialidade linguística, se insinua sobre a maneira como o texto deverá ser recebido ou enquadrado; as instruções sobre o seu “modo de usar” (BLOMMAERT, 2006BLOMMAERT, J. (2006). Social linguistics scales. London: Working Papers Urban Language & Literacies.).

Mesmo com todo potencial semiótico, na socialização da internet, os comentários têm má reputação. São vistos como uma dimensão desregrada da internet, a ser evitada. “Não leia os comentários!” é um conselho frequente que nos alerta para a agressividade e diretividade típica desse “território sem lei”. A sensação é favorecida pela presença massiva de trolls, haters e robôs, que produzem discurso impolidos e/ou ofensivos com a liberdade que a distância física e/ou anonimização típicas dos ambientes online lhes garante.

A plataforma que hospeda a postagem e os comentários em foco neste estudo é o Facebook, uma das principais redes sociais do mundo, com mais de cem milhões de usuários no Brasil. Para Amossy (2014)AMOSSY, Ruth. (2017). Apologia da polêmica. São Paulo: Contexto., o Facebook pode ser considerado a praça pública dos debates no século XXI, portanto, um lugar privilegiado para o exame dos embates atuais. Entretanto, como em toda praça pública, atores sociais não são convocados de modo igualitário. À parte as questões socioeconômicas relativas à inclusão digital, a diversidade e dialogismo que a internet poderia fomentar têm sido fortemente restringidos por mecanismos de coleta de informações e algoritmos de visibilidade baseados em engajamento e interesses comuns. Se, para a plataforma, esses algoritmos são vantajosos para rastrear consumidores potenciais de propagandas pagas, refletindo a já mencionada comodificação da interação online - não se pode perder de vista que o Facebook é uma corporação bilionária cujo objetivo é gerar lucro -, para a esfera pública, os efeitos podem ser trágicos: os algoritmos nos confinam em bolhas monológicas com tendências extremistas. Vemos o que queremos ver; não confrontamos formas de vida divergentes (BLOMMAERT; JIE, 2019BLOMMAERT, J.; JIE, D. (2019). Ethnographic Fieldwork: A Beginner’s Guide. Bristol: Multilingual Matters.). A cada vez que “deixamos de seguir” ou “excluímos” alguém das nossas redes, um software aprende um pouco mais sobre as posições que não desejamos confrontar dialogicamente. Subtraem-se da promessa democrática da web 2.0 as consequências de se ter uma tecnologia capaz de funcionar ela mesma como um mecanismo de restrição e interdição de discursos (FOUCAULT, 1970FOUCAULT, M. (1970). A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012.).

Tendo essas questões em vista, reivindicamos aqui uma agenda de investigação atenta às mesmas tensões que marcam as distinções entre macro e microssociologia, estrutura e agência; isto é: importa analisar tanto as imposições e restrições sistêmicas da plataforma em relação aos seus usuários, moldando suas ações, quanto o que os usuários fazem interagindo com as plataformas, as possibilidades de afetação do seu próprio funcionamento.

2. O ESTUDO

Já dissemos que, com o objetivo de perseguir as trajetórias textuais da notícia sobre a execução de Marielle Franco, tomamos como corpus a notícia publicada na página online do G1 na plataforma Facebook. A postagem, conforme imagem abaixo, é publicada em 14 de março de 2018, mesmo dia do evento a que se refere, e aparece introduzida pelo seguinte enunciado: “Marielle e seu motorista foram baleados dentro do carro”. A isso se segue um link para a matéria completa hospedada no próprio site do G1. Abaixo do link, a postagem apresenta uma imagem do rosto de Marielle sorrindo para a câmera, acompanhada da seguinte manchete: “Vereadora do PSOL Marielle Franco é morta a tiros no Centro do Rio”.

Figura 1
Postagem disparadora do G1

Três meses após o assassinato e a divulgação da matéria no Facebook, ocasião em que esta pesquisa teve início, a postagem contava com 1,6 mil comentários, 21 mil reações e 3,9 mil compartilhamentos. Em fevereiro de 2020, momento de escrita deste artigo, o mesmo post conta com 2,3 mil comentários, 20 mil reações e 3,8 mil compartilhamentos. Nota-se um aumento do número de comentários e diminuição das outras formas de interação com a postagem.

A primeira fase do estudo consistiu na geração de dados. Os seguintes passos metodológicos foram dados nesse sentido: (i) na própria plataforma do Facebook, marcamos a opção que organiza os comentários na ordem dos mais recentes para os menos recentes; (ii) rolamos a sequência de comentários até o início e fotografamos todos os 1600 comentários, em ordem cronológica; (iii) arquivamos os comentários em fichas numeradas para análise posterior. Até esse momento, estávamos interessadas em perfazer uma trajetória cronológica da postagem, analisando verticalmente a sequência de comentários, dos mais antigos aos mais recentes. Embora a intenção não fosse fazer uma análise quantitativa, consideramos que o arquivamento de todos dados pudesse ser útil para investigações futuras, especialmente caso a postagem saísse do ar.

Em seguida, decidimos organizar os comentários, ainda na plataforma, de acordo com o critério de “relevância”. Nesta opção, o Facebook ordena os comentários em função do número de “reações” que receberam. Chegamos assim aos dois comentários mais repercutidos da postagem: o primeiro deles com 1.165 reações e 95 respostas seguindo a estrutura comentário dentro de comentário; o segundo com 1.478 reações e 50 respostas.

O passo seguinte foi observar, em perspectiva longitudinal, uma das rotas da postagem a partir das pistas que a trilha de comentários do G1 nos fornece. Na sequência, os mesmos comentários foram analisados e classificados de acordo com parâmetros discursivo-interacionais que pareceram relevantes ao tratamento qualitativo dos dados. As duas próximas seções relatam os resultados dessas etapas.

3. A TRAJETÓRIA DOS COMENTÁRIOS NA POSTAGEM DO G1

Vejamos, em primeiro lugar, como o texto da postagem inicial é formalmente apresentado: Marielle é nominalmente referida na chamada, apresentam-se sua função política e filiação partidária. Anderson é referido na reportagem apenas por sua profissão e associação com a personagem principal da notícia (“seu motorista”). Também é de Marielle a única imagem mostrada. Usando a voz passiva, com a agência omitida - não se conhecia a autoria do crime à época -, a postagem está enquadrada como notícia e projeta um público geral ainda desconhecedor dos fatos, mantendo o foco sobre as informações novas: o que aconteceu, como aconteceu (“baleada”; “a tiros”) e onde aconteceu (“dentro do carro”, “no centro do Rio”).

Nos primeiros comentários da sequência, feitos imediatamente após a veiculação da notícia, nota-se uma adesão mais explícita a essas projeções metapragmáticas. Ratificando o enquadre de “notícia nova” e movendo-se rente ao seu conteúdo, as primeiras respostas são “turnos preferidos” (esperados, comuns) em relação ao turno inicial: povoam as primeiras reações expressões reativas de espanto e tristeza e avaliações sobre a violência da cidade e do país. Também são comuns neste momento comentários que apenas “marcam” pessoas da rede do comentador, uma ação que convoca outras pessoas à estrutura de participação da interação. Até esse momento, é o relato narrado o elemento tornado relevante, sequencialmente, pelos interlocutores. Raras são as vezes, dentre os comentários iniciais, em que se observa a estrutura “comentário dentro de comentário”. Em geral, cada um dos comentários funciona como segundo par da sequência iniciada pela reportagem e isso encerra a interação.

Alguns comentários, ainda no começo da discussão, parecem provocar uma pequena inflexão nos “modos de uso” da postagem, ou seja, nos seus enquadres projetados, no modo como se imagina que ela será interpretada. Um desses, por exemplo, embora não friccione o enquadre de notícia, interpela avaliativamente as escolhas discursivas da postagem: “notícia muito vaga, pq ela foi baleada?”. Ainda sobre a falta da informação acerca da motivação do crime, um comentarista, mais à frente, apenas cola o link de uma matéria do El País, órgão de imprensa lido como “de esquerda”. Diz o título da matéria: “A campanha de ‘matar quem atrapalha’ nas eleições municipais no Rio”. O link, que denuncia execuções políticas na Baixada Fluminense, opera como um marcador de evidencialidade, e denuncia no lugar de lamentar. Pela estrutura paralelística, link respondido com link, o comentário compete com a notícia inicial.

Comentários como esses descritos até agora persistem ao longo da lista, mas, à medida que o texto viaja, aparentemente, os signos da postagem migram para uma ordem de indexicalidade diferente. Toma corpo cada vez mais espesso um conjunto de comentários “despreferidos”, menos aderentes ao formato e conteúdo da postagem disparadora, deixando de colaborar com suas projeções iniciais. São comentários que elegem como interlocutores grupos sociais mais específicos, e, alterando a relação figura-fundo do texto inicial, tornam relevante não o “o quê/como/onde” da notícia, mas quem Marielle era, suas identificações ideológicas, suas práticas como militante dos direitos humanos e sua filiação partidária, para citar alguns exemplos. Passando com relativa indiferença pelo episódio do assassinato, esses turnos posicionam os comentadores em disputas ideológicas, enquadrando a postagem como argumento para a suas teses sobre criminalidade, pena de morte, liberação de armas etc.

Conforme os comentários avançam, acompanhamos com perplexidade os ataques à vítima e a fragilização dos vínculos dos comentários com a notícia, com a convocação, cada vez mais intensa, de elementos contextuais ausentes do evento disparador. Embora os turnos mais aderentes às projeções da postagem não deixem de povoar a trilha de respostas, se adensam, com o tempo, os comentários menos aderentes. Esse movimento, que reenquadra a postagem, redireciona seu conteúdo e projeta novos públicos e contra-públicos, não vem desacompanhado de reações. Da outra ponta do espectro ideológico, emerge um tipo de mensagem que, também afastado do conteúdo da notícia, interpela os comentadores “de oposição”, realizando julgamentos morais e intelectuais sobre suas ações. Curiosamente, os dois posts mais “relevantes”, ou seja, os mais repercutidos, com inúmeras reações (os únicos dois com mais de mil delas) cada um deles, atualizam precisamente essas duas posições:

Figura 2
Comentário mais relevante
Figura 3
Segundo comentário mais relevante

Na próxima seção, descreveremos os principais tipos de comentários “pouco aderentes” que habitam a seção de comentários do G1, agrupando-os em coleções. Essa categorização levou em consideração não só os temas tornados relevantes pelos interlocutores e a persistência desses temas ao longo da “cauda” formada por 1.600 comentários, mas também a maneira como eles se relacionavam com o texto inicial da interação a partir dos seguintes parâmetros discursivo-interacionais: (i) quem é projetado como interlocutor; (ii) que elementos da postagem disparadora são topicalizados; (iii) como os comentários estão posicionados em relação aos embates discursivos tornados relevantes e (iv) como a postagem é (re)enquadrada.

4. OS COMENTÁRIOS EM COLEÇÕES

Na primeira coleção de comentários que queremos destacar, estão aqueles que acionam como interlocutores não os autores da postagem inicial, mas os aliados ou simpatizantes de Marielle, posicionados como opositores do comentador. Indiferentes ao fato noticiado no evento disparador, essas respostas convocam elementos contextuais ausentes da postagem do G1, topicalizando posições políticas dos interlocutores projetados e movendo a interação para um embate ideológico. O embate aqui se faz em torno de posições polêmicas sobre criminalidade, pena de morte e ressocialização. Os comentadores se posicionam contrariamente à causa dos direitos humanos, e tomam a notícia como argumento para sustentar sua tese, convocando os opositores a uma reanálise de suas posições.

Em geral trata-se de comentários irônicos, e em que o tema dos direitos humanos está nominalmente referido, como em: “Kd os direitos humanos?”; “#Evivaosdireitoshumanos”. Quando Marielle aparece referenciada, essa referência não indexa Marielle, o indivíduo, mas a amiga/colega de quem defende direitos humanos (aqui compreendido como proteção a bandidos). Vejamos abaixo um exemplo dessa categoria:

Figura 4
Defesa de bandidos

Nesse exemplar, a estratégia de interpelar interlocutores politicamente próximos de Marielle está potencializada pela nomeação direta de uma “defensora de vagabundos”, a deputada Maria do Rosário, do Partido dos Trabalhadores (PT), endereçada como representante de uma ala política ideologicamente identificada com a pauta dos direitos humanos. Em outros comentários dessa coleção, aparecem convocados nomes como Marcelo Freixo, Marcia Tiburi e Jean Wyllys, todos membros de destaque em partidos como PSOL e o PT. Outra estratégia discursiva que indexicaliza a “esquerda” no exemplo acima é a predicação “cuuumpanheira”, uma espécie de reprodução caricatural de uma forma de tratamento típica de movimentos de esquerda no Brasil. O autor do crime, aqui indexado como um agente qualquer da violência urbana, e a discussão pública e impessoal sobre como tratar desviantes são tornados relevantes para se propor uma provocação sobre um dilema pessoal: “vai defender esses também?”

Uma variação desse comentário se observa naqueles que, ao contrário do que se viu acima, não parecem estar interpelando companheiros ou simpatizantes de Marielle, mas os seus opositores; o comentário, assim, serve como uma espécie de piada interna:

Figura 5
Capitalismo opressor

É notável que o exemplo acima tenha tido quase duas mil reações, todas positivas (curtidas, risadas, corações): o comentador fala para iguais. Em um texto irônico, os argumentos da esquerda sobre pena de morte ou encarceramento em massa são canibalizados na construção de uma narrativa hipotética que os emula em simulacro. Predicações caricaturais como “capitalismo opressor” e “vítimas da sociedade” atualizam o que Baumgarten et. al. (2018)BAUMGARTEN, N. et al. (2019) Towards balance and boundaries in public discourse : expressing and perceiving online hate speech (XPEROHS). RASK: International Journal of Language and Communication, v. 50, pp. 87-108. já caracterizaram como uma das facetas mais comuns do “discurso de ódio” (hate speech).

Há uma segunda coleção de comentários que também se caracteriza por selecionar como interlocutores os aliados ou opositores das ideias representadas por Marielle, mas que escolhem, à diferença da coleção anterior, avaliar e dar relevo à própria figura individualizada da vereadora, sua atuação pública, as críticas que ela fazia à atuação da polícia militar e até sua dissertação de mestrado. São exemplos que continuam se posicionando de modo contrário ao discurso dos direitos humanos e construindo explicações para a morte da vereadora com base nessa posição. Nesse sentido, a postagem é tomada como argumento para uma tese segundo a qual há consequências para quem “defende bandidos”. Expressões populares como “quem mexe com cobra amanhece picado” ou “feitiço virou contra o feiticeiro” costumam indexar esse discurso nos comentários. Vejamos abaixo um exemplo dessa categoria:

Figura 6
Quem ela criticava

O comentário reproduz uma polarização frequente em nosso corpus: de um lado, os policiais; do outro, os bandidos. Estes são aqui indexados por “manos”, uma gíria de periferia que atualiza uma referência intertextual à expressão “direitos dos manos”, corruptela popular e crítica para “direitos humanos”. A polarização mencionada também posiciona esses dois grupos em relação a Marielle: de um lado, quem ela critica; de outro, quem ela defende. O comentador constrói então uma hipótese explicativa (“deve ser”) para a morte: o alegado “ódio” aos policiais.

Em uma variação dessa categoria estão comentários que banalizam ou comemoram a morte de que se fala - “foi tarde”, “bem feito”, “tô nem aí” -, muitas vezes amplificando a disputa ideológica a partir de um léxico truculento: “isso”, “essa mulher”, “essa idiota”, “maconheira”, “bandida”, “essa senhora”, “parceira de roubalheira”, “jumenta” são formas frequentes de se referir à vereadora.

Na terceira coleção de comentários relevantes para esta análise, a discussão se move da temática dos direitos humanos para uma avaliação sobre a relevância da morte de Marielle em relação a outras mortes, que são invocadas pelos comentadores em perspectiva comparativa. Figuram nos comentários menções a mortes de policiais em serviço, a mortes de cidadãos em geral (“pais de família”, “pagadores de impostos”, “trabalhadores honestos”), além de menções mais individualizantes, como a referência a uma professora morta num incêndio na escola em que trabalhava, a um empresário morto em frente ao filho e até a morte de Stephen Hawking, todas elas datando da mesma semana do assassinato de Marielle. Também à diferença das coleções anteriores, os comentadores aqui parecem interpelar os autores da postagem inicial, questionando o espaço concedido à vereadora. Nessas reações à notícia, a informação sobre o assassinato parece provocar indignação não pela sua natureza, mas por sua repercussão. É como se a própria existência da postagem servisse de evidência para a adesão do G1 a pautas de esquerda.

No comentário abaixo, por exemplo, volta-se a falar da morte de policiais:

Figura 7
Outras mortes

Neste exemplo, o comentador se refere especificamente a policiais mortos naquele mesmo ano do assassinato de Marielle, destacando a vantagem numérica deles, com efeito de banalizar a morte da vereadora via negociação da extraordinariedade da notícia. Um movimento retórico de diferenciação (THOMPSON, 1995THOMPSON, J. B. (1995). The media and modernity: a social theory of media. Stanford: Stanford University Press.) indexa uma rivalidade entre mortes que importam e não importam; que merecem ou não merecem visibilidade. Marielle desta vez é desindividualizada, referida como “político de esquerda”, e a enumeração das ações da mídia em relação a sua morte localiza indiretamente a postagem como aliada a suas pautas. O comentário atualiza a um só tempo duas das características que Cesarino (2019)CESARINO, L. (2019). On Digital Populism in Brazil. PoLAR: Political and Legal Anthropology Review. Disponível em: https://polarjournal.org/2019/04/15/on-jair-bolsonaros-digital-populism/. Acesso em: 20 fev. 2020.
https://polarjournal.org/2019/04/15/on-j...
apontou como típicas do “populismo digital” que marca as esferas de comunicação política contemporâneas: a deslegitimação dos meios de comunicação como fontes confiáveis de informação e a rivalização entre os políticos tradicionais e os verdadeiros representantes do povo (policiais, trabalhadores, pais de família etc).

Na quarta coleção de comentários, destacam-se exemplos como o que se vê abaixo:

Figura 8
Bolsonaro

Nesta categoria, projeta-se como público uma audiência geral. Embora esse tipo de comentário pareça indiferente à morte de Marielle, que não é mencionada, nota-se nele uma espécie de solução ao problema da criminalidade: o armamento da população, pauta histórica do então deputado Jair Bolsonaro, explicitamente nomeado. Bolsonaro era, à época, pré-candidato à presidência do país, e uma de suas principais pautas, a liberação do porte de armas, é trazida para o centro da interação. A postagem inicial é tomada simplesmente como pretexto para se fazer campanha, e Bolsonaro é projetado como uma espécie de salvador. Fazem parte dessa coleção de reações aquelas que tipicamente são atribuídas à ação de robôs disparadores de mensagens. Possivelmente, foram acionadas na interação em tela graças a uma leitura automática que identificou o tema da mensagem: o assassinato de alguém. Neste trabalho, no entanto, não fazemos distinção entre publicações reais ou falsas. Para o que nos importa, a saber, o modo como os comentários negociam a própria notícia sobre a morte de Marielle Franco, os comentários falsos não podem ser descartados, já que eles impactam de qualquer forma os rumos da interação.

A última coleção que gostaríamos de comentar apresenta uma diferença saliente em relação às demais, todas formadas por comentadores que se posicionam à direita do debate político. Em mensagens como a que se vê abaixo, a interlocução se estabelece não em relação à postagem original, mas aos comentários apresentados ao longo desta seção:

Figura 9
Gente burra

Como se reconhece no exemplo reproduzido acima, o que os comentadores avaliam, rejeitam ou lamentam não é exatamente a morte de Marielle, mas o conteúdo dos comentários sobre ela. Como nota Oliveira (no prelo)OLIVEIRA, C. V. (no prelo). Polarização como prática comunicativa: O ataque pessoal no ambiente virtual. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Centro de Teologia e Ciências Humanas. PUC, Rio de Janeiro., esse embate se caracteriza frequentemente em termos de disputa pela autoridade epistêmica, isto é, de acordo com como os participantes se posicionam e posicionam a alteridade em relação a um território de conhecimento, e isso se realiza como ofensas e ataques diretos à face (Goffman, 1967GOFFMAN, E. (1967). Interaction ritual. Garden City: Anchor Books.). Além da disputa epistêmica, as ofensas também tornam relevante o estatuto político (“fascista”), ou moral (“gente ruim”; “pessoas sem coração”) dos comentadores.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Figura 10
Ameaça enviada a sede do PSOL/Fonte: G1

Quase todos já nos surpreendemos, na experiência direta ou indireta em redes sociais, com uma postagem que “saiu do controle”, gerando uma enorme polêmica. Em uma linguagem mais técnica, “sair do controle” pode significar - ao menos é isso que vimos argumentando neste artigo - extrapolar as projeções metapragmáticas de seu evento gerador, isto é, ir além de como imaginamos que os nossos textos, vídeos e fotografias circulariam, seriam consumidos e afetariam as pessoas. Também argumentamos aqui que os comentários das postagens agenciam e fornecem pistas importantes sobre como esse fenômeno se dá.

A trajetória dos comentários e as coleções “pouco aderentes” descritas neste artigo procuraram mostrar como isso se deu desde o início do caso Marielle Franco. Vimos aqui como os enquadres iniciais da postagem do G1, via procedimentos de reentextualização da notícia, foram pouco a pouco sendo disputados (i) em termos dos públicos e contra-públicos a que se destinam; (ii) em termos de como elementos contextuais e discursos externos à notícia vão sendo convocados pela audiência, e (iii) em termos de como a própria postagem vai sendo redefinida como posição ou argumento de grupos sociais específicos. Minutos após sua publicação, a notícia de um assassinato torna-se uma virulenta discussão sobre os discursos encampados pela vítima e seus opositores. A postagem é reinterpretada, reenquadrada e usada como campo de uma batalha ideológica indexada em estratégias de diferenciação e expurgo do outro (THOMPSON, 1995THOMPSON, J. B. (1995). The media and modernity: a social theory of media. Stanford: Stanford University Press.).

Do ponto de vista de uma teorização sobre discurso, chama atenção a potência semiótica dos comentários (FABRÍCIO, 2014FABRÍCIO, B. (2014). The pragmatics of entextualizing a digital ‘Lusophone’ territory. In: Moita Lopes, L.P. (org.). Global Portuguese: linguistic ideologies in Late Modernity. London: Routledge.), que já não podem mais ser evitados, ou tratados como mero apêndice à notícia - como talvez funcionassem as antigas cartas dos leitores nos jornais impressos. Nas plataformas digitais, o poder de produzir, disseminar conteúdo e questionar suas fontes historicamente legitimadas parece mais distribuído, mas já dissemos na seção 2 que essa potência aparentemente positiva da web 2.0 não pode nos enganar. Seus algoritmos e bolhas tendem a nos confinar em discussões monofônicas bem pouco democráticas, que tendem ao extremismo e transformam as plataformas em terreno fértil para ascensão escalar de discursos de ódio. Os modos de socializar e as práticas de letramento da internet obviamente escorrem para fora dela, já que nossas interações digitais cada vez mais compõem nossas práticas diárias com a linguagem. Na imagem que abre essas considerações finais, temos um triste exemplo de como parte do que vimos ao longo deste artigo inunda também as ruas e as interações offline. Também acompanhamos, ao longo daquele ano de 2018, como essas dinâmicas de comunicação podem interferir em resultados eleitorais.

De fato, nos comentários analisados neste estudo, podemos reconhecer parte do fenômeno que naquele mesmo ano elegeria J. Bolsonaro à presidência. Algumas características descritas por L. Cesarino (2019)CESARINO, L. (2019). On Digital Populism in Brazil. PoLAR: Political and Legal Anthropology Review. Disponível em: https://polarjournal.org/2019/04/15/on-jair-bolsonaros-digital-populism/. Acesso em: 20 fev. 2020.
https://polarjournal.org/2019/04/15/on-j...
em sua etnografia sobre a campanha digital de J. Bolsonaro aparecem em nossos dados, com destaque para o acirramento das polarizações extremistas, na tentativa de se construir um inimigo comum, o ataque às fontes tradicionais de informação, que beneficiam fontes alternativas por vezes povoadas de fatos inventados, e toda expertise sobre comunicação digital, especialmente suas possibilidades recursivas de espraiamento transformadas em uma ciência do populismo aplicada a campanhas eleitorais (CESARINO, 2019CESARINO, L. (2019). On Digital Populism in Brazil. PoLAR: Political and Legal Anthropology Review. Disponível em: https://polarjournal.org/2019/04/15/on-jair-bolsonaros-digital-populism/. Acesso em: 20 fev. 2020.
https://polarjournal.org/2019/04/15/on-j...
).

Também como se viu nos dados, a reação a essas configurações frequentemente não faz mais do que se enredar na mesma lógica do expurgo e da diferenciação, produzindo pouco diálogo a partir da reivindicação, por vezes arrogante, de conhecimento e moral superiores. Enquanto essa for a munição para o contra-ataque, estaremos longe de inventar modos de resistência de fato compatíveis com o monstro que alimentamos. As transformações discursivas da política atual precisam vir acompanhadas da imaginação de novas formas de debate e disseminação de ideias, de inclusão da alteridade e de políticas de responsabilização ética das plataformas.

REFERÊNCIAS

  • AGHA, A. (2011). Meet mediatisation. Language & Communication, n. 31, pp. 163-170.
  • AMOSSY, Ruth. (2017). Apologia da polêmica São Paulo: Contexto.
  • BAKHTIN, M. (1953). Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • BAUMAN, R.; BRIGGS, C. L. (1990). Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology, v. 19, pp. 59-88.
  • BLOMMAERT, J. (2006). Social linguistics scales London: Working Papers Urban Language & Literacies.
  • BLOMAERT, J. (2006). Language ideology. In: Brown, K. (org.) Encyclopedia of Language ans Linguistics Oxford: Elsevier, pp. 510-52.
  • BLOMAERT, J. (2010). The sociolinguistics of globalization Cambridge: Cambridge University Press.
  • BLOMMAERT, J.; JIE, D. (2019). Ethnographic Fieldwork: A Beginner’s Guide Bristol: Multilingual Matters.
  • BRIGGS, C. (2007). Anthropology, interviewing, and communicability in contemporary Society. Current Abthropology, v. 48, n. 4., pp. 551-580.
  • CESARINO, L. (2019). On Digital Populism in Brazil. PoLAR: Political and Legal Anthropology Review Disponível em: https://polarjournal.org/2019/04/15/on-jair-bolsonaros-digital-populism/ Acesso em: 20 fev. 2020.
    » https://polarjournal.org/2019/04/15/on-jair-bolsonaros-digital-populism/
  • FABRÍCIO, B. (2014). The pragmatics of entextualizing a digital ‘Lusophone’ territory. In: Moita Lopes, L.P. (org.). Global Portuguese: linguistic ideologies in Late Modernity London: Routledge.
  • FOUCAULT, M. (1970). A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
  • GOFFMAN, E. (1967). Interaction ritual Garden City: Anchor Books.
  • GUMPERZ, J. (1982). Discourse strategies Cambridge: Cambridge University Press .
  • BAUMGARTEN, N. et al. (2019) Towards balance and boundaries in public discourse : expressing and perceiving online hate speech (XPEROHS). RASK: International Journal of Language and Communication, v. 50, pp. 87-108.
  • OLIVEIRA, C. V. (no prelo). Polarização como prática comunicativa: O ataque pessoal no ambiente virtual. Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem. Centro de Teologia e Ciências Humanas. PUC, Rio de Janeiro.
  • REAGLE JR, J. (2015). Reading the comments: likers, haters, and manipulators at the bottom of the web Massachusetts: MIT Press.
  • SILVERSTEIN, M. (2003). Indexical order and the dialectics of sociolinguistic life. Language & Communication, v.23, pp.193-229.
  • SZABLA, M.; BLOMMAERT, J. (2017). Does context really collapse in social media. Plenary paper, conference on Moving Texts: Mediations and Transculturations. Plenary lecture at the conference on Moving Texts: Mediations and Transculturations. Universidade de Aveiro, Aveiro.
  • THOMPSON, J. B. (1995). The media and modernity: a social theory of media. Stanford: Stanford University Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2020
  • Aceito
    19 Mar 2020
  • Publicado
    18 Maio 2020
UNICAMP. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) Unicamp/IEL/Setor de Publicações, Caixa Postal 6045, 13083-970 Campinas SP Brasil, Tel./Fax: (55 19) 3521-1527 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: spublic@iel.unicamp.br