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“RESISTINDO NA BOCA DA NOITE UM GOSTO DE SOL”: PEDAGOGIA DA PERGUNTA COMO RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA NA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA1 1 Agradecemos às Profas. Laryssa Paulino de Queiroz Sousa e Viviane Pires Viana Silvestre, ao Prof. Pedro Augusto de Lima Bastos e às/aos revisoras/es, pela leitura cuidadosa e pelos valiosos comentários que resultaram em um texto mais bem construído. A primeira autora também agradece ao CNPq pela concessão da bolsa de produtividade em pesquisa, muito importante para a realização deste estudo.

“A RAY OF SUN RESISTING AS NIGHT FALLS”: PEDAGOGY OF INQUIRY AS DEMOCRATIC RESISTANCE IN LANGUAGE EDUCATION

RESUMO

Valendo-nos de pressupostos pós-estruturalistas e dos letramentos queer, em especial da pedagogia da pergunta proposta por Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391., nosso objetivo, neste artigo, é mostrar como repertórios sobre diversas esferas da vida social podem ser abordados democraticamente na educação linguística, propiciando a mobilização de significados plurais e contraditórios, bem como a articulação de resistências democráticas em sala de aula. Para tanto, revisitamos repertórios e performances de gênero e sexualidade discutidos na dissertação de mestrado de Hoelzle (2016)HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia., fazendo uma reentextualização do material empírico gerado pela autora e uma discussão em que defendemos a pedagogia da pergunta, que é habilmente desenvolvida por ela, embora esse não seja um construto praxiológico da sua pesquisa. A escolha desses dois temas de discussão, gênero e sexualidade, é providencial no contexto brasileiro, já que ambos atravessam uma parte considerável dos repertórios mobilizados e das medidas tomadas pelo atual governo para restringir a construção de sentidos críticos nos contextos educacionais. Nos seis eventos comunicativos, a pedagogia da pergunta é sempre marcada pelo conflito, advindo de diferentes historicidades e performances socioidentitárias das pessoas envolvidas nos eventos comunicativos. Assim, concluímos argumentando que, pelo fato de a linguagem permitir a produção de significados múltiplos e alternativos sobre a vida social, não podemos deixar de construir, nos contextos de educação linguística, sentidos que possibilitem a construção de enquadres mais democráticos. Essa construção é nosso “gosto de sol” que resiste na boca da noite.

Palavras-chave:
educação linguística; letramentos queer; pedagogia da pergunta; pós-estruturalismo; resistência democrática

ABSTRACT

Drawing on assumptions from post-structuralism and queer literacies, especially the “pedagogy of inquiry” proposed by Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391., our aim, in this article, is to show how repertoires about different spheres of social life can be approached democratically in language education, allowing the mobilization of plural and contradictory meanings, as well as the articulation of democratic resistances in the classroom. To this end, we revisit repertoires and performances of gender and sexuality discussed in Hoelzle’s master’s dissertation (2016)HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia., reentextualizing the empirical material generated by the author and making a discussion in which we defend the pedagogy of inquiry, which is very well constructed by her, although this is not a praxiological construct of her study. The choice of the two topics for discussion, gender and sexuality, is providential in the Brazilian context, since both of them cross a considerable part of repertoires mobilized and measures taken by the current government to restrict the construction of critical meanings in educational contexts. In the six communicative events, the pedagogy of inquiry is always marked by conflict, arising from different historicities and socio-identity performances of the people involved in the communicative events. Thus, we conclude by arguing that, because language allows the production of multiple and alternative meanings about social life, we cannot fail to build, in the contexts of linguistic education, meanings that enable the construction of more democratic frames. This construction is our “ray of sun” that resists as night falls.

Keywords:
language education; queer literacies; pedagogy of inquiry; post-structuralism; democratic resistance

E A HISTÓRIA SE REPETE...

[...] no dia seguinte, nós fomos embarcados, eu numa ambulância, meu marido num caminhão do Exército, e eles deixaram entender que iam nos levar para Curitiba, a gente saiu e ninguém sabia o nosso destino. Mas eles trouxeram a gente para o Batalhão de Fronteira. O prazer deles era torturar um frente ao outro e dizer “olhe, sua vadia, ó ele está apanhando por culpa sua que você não quer colaborar”, entendeu? Ou o contrário, entende? Era um jogo de tortura psicológica, física, pra desestruturar mesmo, desestabilizar a gente. Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um carma, a gente, além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era “puta”, “menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta”, enfim, eu não me lembro bem se no terceiro, quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja. E o meu marido dizia “por favor, não façam nada com ela, podem, podem me torturar, mas ela tá grávida”, e eles riam, debochavam, “isso é história, ela é suja, mas não tem nada a ver”, enfim. Em nenhum momento isso foi algum tipo de preocupação, em relação [pausa, voz embargada]. Eu certamente abortei por conta dos choques que eu tive nos primeiros dias, nos órgãos genitais, nos seios, ponta dos dedos, atrás das orelhas, aquilo provocou obviamente um desequilíbrio, eu lembro que eu tinha muita, muita, muita dor no pescoço, porque quando a gente, quem sofreu choque, sabe? A gente joga a cabeça pra trás, aí tinha um momento que eu não sabia mais aonde doía, o que, doía em todo lado, mas enfim. [...]

Como se percebe nesse trecho do relato da professora Izabel Fávero (REDAÇÃO NONADA, 2019REDAÇÃO NONADA. (2019). Para nunca esquecer: 8 relatos de vítimas da ditadura militar no Brasil. Diálogos do Sul, Opera Mundi. Disponível em: <https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/55553/para-nunca-esquecer-8-relatos-de-vitimas-da-ditadura-militar-no-brasil>. Acesso em: 26 out. 2020.
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), a ditadura civil-militar no Brasil, que durou 21 anos (1964-1985), foi um dos momentos de maior tensão e violência em nossa história. Afinal, qualquer transgressão às normas impostas pelos governos militares poderia levar à prisão, à tortura e à morte. Uma professora poderia ser presa e torturada, como mostra o relato, simplesmente por se posicionar contra essas normas na escola ou em qualquer outro contexto. No relatório final da Comissão Nacional da Verdade, consta que mais de 400 pessoas foram mortas ou desapareceram na época (BRASIL, 2014BRASIL. (2014). Comissão Nacional da Verdade. Mortos e desaparecidos políticos. In: BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade, v. 3. Brasília: CNV.). A professora Izabel foi apenas um dentre os inúmeros corpos invadidos e marcados pela violência da ditadura civil-militar brasileira.

Com o término dos governos ditatoriais, muitas pessoas e grupos passaram a se ocupar de pautas progressistas voltadas para a construção de um mundo menos injusto e desigual. Encorajadas/os pela chamada Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 2017aBRASIL. (2017a). [Constituição (1988)].Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 51. ed. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, Edições Câmara.), que implementou direitos e liberdades civis, e pelas mudanças discursivas inauguradas, sobretudo, a partir dos anos 2000, começamos2 2 Usamos a primeira pessoa plural aqui e alhures para nos referir não apenas ao trabalho de nossa autoria, mas também a vários estudos de dois grupos de pesquisa, Formação de Professoras/es de Línguas e Rede Cerrado de Formação Crítica de Professoras/es de Línguas, cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e liderados pela primeira autora deste artigo, tendo como colíderes a Profa. Viviane Pires Viana Silvestre (UEG) e o Prof. Kleber Aparecido da Silva (UnB), respetivamente. a inserir essas pautas em nossas práticas de ensino e pesquisa na área dos estudos linguísticos (PESSOA, 2014PESSOA, Rosane R. (2014). A critical approach to the teaching of English: pedagogical and identity engagement. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 14, n. 2, p. 353-372. ; PESSOA; URZÊDA-FREITAS, 2012PESSOA, Rosane R.; URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de. (2012). Challenges in critical English teaching. TESOL Quarterly , v. 46, n. 4, p. 753-776., 2016PESSOA, Rosane R.; URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de. (2016). Língua como espaço de poder: uma pesquisa de sala de aula na perspectiva crítica. Revista Brasileira de Linguistica Aplicada, v. 16, n. 1, p. 133-156.; URZÊDA-FREITAS; PESSOA, 2014URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de; PESSOA, Rosane R. (2014). Discursos de identidades, ensino crítico de línguas e mudança social: análise de uma experiência localizada. In: MATEUS, Elaine; OLIVEIRA, Nilceia B. (org.), Estudos críticos da linguagem e formação de professores/as de línguas: contribuições teórico-metodológicas. Campinas-SP: Pontes Editores, p. 365-395.). Isso porque passamos a entender que, aliada a outras materialidades, a linguagem possui um papel fundamental na construção de cenários mais igualitários e democráticos, bem como na produção de significados múltiplos e alternativos para a educação linguística e para a vida social. Por um momento, esse trabalho nos pareceu legítimo, pois começamos a problematizar desigualdades de todo tipo em nossos estudos e práticas, e nada parecia mais sensato e urgente do que trabalhar com possibilidades diversas de ser, saber e viver, e lutar para que elas fossem reconhecidas. Parecia-nos óbvio que deveria haver mais igualdade e liberdade no mundo e que as pessoas, por meio da politização, poderiam entender melhor essa necessidade e buscar meios de supri-la. Parafraseando Adorno (1995)ADORNO, Theodor W. (1995). Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz & Terra. , acreditávamos - e ainda acreditamos - que a exigência de que a ditadura não se repita é a primeira de todas as exigências para a educação brasileira.

Mesmo confiantes no trabalho que realizávamos, nunca enxergamos nossas atividades e os sentidos que elas mobilizavam como repertórios homogêneos, pois sempre tivemos que lidar com a multiplicidade de sentidos e com posicionamentos resistentes a compreensões mais críticas sobre a realidade. Entretanto, parecíamos não ter consciência de que na própria gênese da civilização está contida a barbárie, como o próprio Adorno (1995)ADORNO, Theodor W. (1995). Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz & Terra. observa, e que, por essa razão, não poderíamos tomar o nosso presente como fato, pois a história pode se repetir a qualquer momento, ainda que com outras roupagens. É o que temos visto acontecer nos últimos anos, especialmente após a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República, em 2018. Como ex-militar da reserva e apreciador confesso da ditadura civil-militar, Bolsonaro tem se esforçado para desmantelar projetos e diretrizes sociais de cunho progressista, além de comprometer o exercício da liberdade, o direito de oposição ao governo e, consequentemente, o pleno funcionamento das instituições democráticas. Em uma reportagem da Revista Piauí, Gugliano (2020)GUGLIANO, Mônica. (2020). Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo. Revista Piauí. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vou-intervir/?amp>. Acesso em: 03/09/2020.
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narra o dia em que o presidente ameaçou enviar tropas das Forças Armadas à Suprema Corte, ao saber que seu smartphone e o de seu filho, Carlos Bolsonaro, poderiam ser apreendidos por decisão do ministro Celso de Mello. Segundo a jornalista, no dia 22 de maio de 2020, Bolsonaro teria declarado: “Vou intervir!”.

A ascensão da extrema direita ao poder e a tolerância das instituições às suas premissas antidemocráticas são nítidos exemplos de como as democracias podem ser desmanteladas na atualidade. Como lembram Levitsky e Ziblatt (2018)LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar., grande parte dos colapsos democráticos que aconteceram após a Guerra Fria não se deram por meio de golpes militares ou por outras formas violentas de tomada do poder; esses colapsos tiveram início nas urnas, pois foram articulados por governos democraticamente eleitos, como foi o caso de Trump, Maduro e Bolsonaro. Para os autores, a situação se mostra delicada porque, como não há nenhum golpe ou declaração que institua a suspensão da Constituição, a implosão da democracia se torna quase imperceptível aos olhos do povo. Nesse sentido, o trágico paradoxo da ascensão do autoritarismo por vias eleitorais “é que os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia - gradual, sutil e mesmo legalmente - para matá-la” (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar., p. 19).

Em relação ao contexto brasileiro, a educação, a cultura, a imprensa e a ciência são as áreas que mais têm sentido o peso desse movimento autoritário, já que a principal estratégia discursiva da política bolsonarista é o ataque ao conhecimento formal, às artes, à informação e aos discursos médicos e científicos sobre a Covid-19, através da divulgação em massa de fake news. Na educação, além da perseguição declarada às/aos professoras/es - vistas/os como doutrinadoras/es pelo atual governo -, temos sido forçadas/os a lidar com uma série de restrições que buscam limitar a mobilização de significados críticos nos contextos educacionais. Exemplo disso é o dossiê produzido pelo Ministério da Justiça, em 2020, que reúne informações pessoais de servidoras/es públicas/os identificadas/os como integrantes de movimentos antifascistas, o qual inclui três professores universitários. Outro exemplo de restrição no trabalho docente são os ataques à abordagem de temas que envolvam as categorias gênero e sexualidade em sala de aula, já que ambos os termos foram banidos da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017bBRASIL. (2017b). Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 26 out. 2020.
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) em um momento simbólico na transição de um período mais democrático para o período de obscuridade que vivemos atualmente.

Mesmo com essa restrição, o texto da BNCC não impede um trabalho que problematiza diferenças e desigualdades sociais em sala de aula, já que nesse texto, e em todos os documentos educacionais brasileiros, afirma-se que a educação brasileira deve se voltar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. Soma-se a isso o fato de que ministras/os do STF têm julgado inconstitucionais leis estaduais e municipais que proíbem o ensino sobre questões de gênero e sexualidade na rede pública (STF, 2020STF. (2020). Julgadas inconstitucionais leis sobre Escola Livre e proibição de ensino de sexualidade. Imprensa. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=450392&ori=1>. Acesso em: 15 nov. 2020.
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). Em outras palavras, mesmo sob constante vigilância, as/os professoras/es estão legalmente respaldadas/os para atuar criticamente. Outra questão a ser considerada é que as diferenças execradas pelo governo Bolsonaro constituem nossas salas de aula. Ou seja, podem-se banir termos e interditar conteúdos, mas não se podem apagar nossas corporeidades e os espaços multiculturais pelos quais transitamos. É nessas fissuras discursivas e nesse complexo mosaico de performances socioidentitárias que temos nos apoiado para continuar realizando nosso trabalho. Afinal, mais do que nunca, devemos investir na expansão de significados, o que requer um esforço constante de problematizar discursos que se coadunam com as barbáries sociais perpetradas por políticas autoritárias.

Uma vez que conflitos, e não consensos, têm prevalecido no Brasil e no mundo -, consideramos que essas problematizações devem partir do dissenso e caminhar para além de uma pedagogia meramente inclusiva. Em nosso caso, temos nos engajado com perspectivas educacionais que promovam o estranhamento de eventos e performances dadas como naturais na sociedade, o que remete a um dos objetivos centrais dos chamados letramentos queer. Partindo da força contestadora e subversiva das praxiologias3 3 Uma de nossas fontes de inspiração para o uso do termo praxiologias é a ideia de práxis pedagógica de Freire (2005), advinda da interrelação entre reflexão (teoria) e ação (prática) dos seres humanos sobre o mundo e que leva à transformação. Assim, nosso objetivo ao usar o termo praxiologias é romper com a dicotomia teoria-prática no âmbito da linguística aplicada. queer (JAGOSE, 1996JAGOSE, Annamarie. (1996). Queer theory: an introduction. Ney York: New York University Press.; MISKOLCI, 2012MISKOLCI, Richard. (2012). Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica Editora.; SULLIVAN, 2003SULLIVAN, Nikki. (2003). A critical introduction to queer theory. New York: New York University Press.), esses letramentos buscam desnaturalizar binarismos identitários e compreensões únicas sobre o sujeito e a vida por meio da mobilização de significados múltiplos, incertos e/ou contraditórios, fomentada pelas práticas discursivas de sala de aula. Com base em Louro (2012, p. 367)LOURO, Guacira L. (2012). Os Estudos Queer e a educação no Brasil: articulações, tensões, resistências. Contemporânea: Dossiê Saberes Subalternos, v. 2, n. 2, p. 363-369., entendemos que os letramentos queer buscam, através da leitura crítica de repertórios textuais diversos, colocar em xeque o corpo de conhecimentos que estrutura o currículo tradicional, o que envolve a problematização “[d]o que é conhecido e [d]as formas como chegamos a conhecer determinadas coisas e a não conhecer (ou a desconhecer) outras”.

No campo da educação linguística, um dos trabalhos mais inspiradores nessa área é o da pesquisadora Cynthia Nelson. Em seu texto “Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry”, publicado em 1999, a autora sugere a adoção de uma pedagogia da pergunta4 4 termo inquiry é traduzido por pergunta, pois consideramos que a proposta de Nelson (1999) dialoga e expande a “pedagogia da pergunta” defendida por Freire e Faundez (1985, p. 27), os quais defendem que todo conhecimento começa não por respostas, mas por perguntas: “[a] existência humana é, porque se fez perguntando, a raiz da transformação do mundo. Há uma radicalidade na existência, que é a radicalidade do ato de perguntar”. - pedagogy of inquiry - em aulas de línguas no lugar da pedagogia da inclusão - pedagogy of inclusion. Seu principal argumento é que a primeira perspectiva pode ser mais relevante pedagogicamente, já que, ao invés de incluir identidades sexuais minorizadas nas atividades de sala de aula, ela propõe examinar a construção sociodiscursiva de todas as identidades sexuais. Tal como Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391., reconhecemos também a necessidade do trabalho com pedagogias identitárias (ou seja, pedagogia de inclusão), como as pedagogias feministas e as pedagogias lésbicas e gays, pois elas têm sido importantes nos processos de visibilização e conquista de direitos civis de grupos historicamente marginalizados. Entretanto, levando-se em conta nosso atual momento no Brasil, marcado pela disputa polarizada entre macro e micronarrativas culturais, políticas e identitárias, acreditamos ser mais profícuo apostar na problematização de múltiplas práticas discursivas e na compreensão de como determinados modos de vida se tornaram naturais em nosso contexto. É essa problematização que subjaz à pedagogia da pergunta, como evidenciaremos na discussão do material empírico.

Uma das principais manifestações artísticas utilizadas para contestar a repressão e as violências produzidas pela ditadura civil-militar no Brasil foi a música popular brasileira, o que se configura como um forte exemplo de que há sempre “um gosto de sol na boca da noite” (NASCIMENTO, 1972NASCIMENTO, Milton. (1972). Nada será como antes. Odeon. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/47436/>. Acesso em: 26 out. 2020.
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). Valendo-nos de pressupostos dos letramentos queer, em especial da pedagogia da pergunta introduzida por Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391., pretendemos elucidar como esse “gosto de sol” pode ser construído em nossas práticas cotidianas. Assim, nosso objetivo, neste artigo, é mostrar como repertórios sobre diversas esferas da vida social podem ser abordados democraticamente na educação linguística, propiciando a mobilização de significados plurais e contraditórios, bem como a articulação de resistências democráticas em sala de aula. Entendemos por resistência democrática os esforços articulados na contemporaneidade para desafiar os discursos autoritários que ameaçam o pleno funcionamento e exercício da democracia. Para tanto, revisitamos repertórios e performances de gênero e sexualidade discutidos na dissertação de mestrado de Hoelzle (2016)HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia., fazendo uma reentextualização5 5 Utilizamos esse termo com base em Bloomaert (2008, p. 107) para evidenciar “o movimento do discurso através dos contextos”, ou seja, fizemos um deslocamento do material empírico de Hoelzle (2016) objetivando construir uma discussão original desse material neste artigo. do material empírico gerado pela autora e uma discussão em que defendemos a pedagogia da pergunta, que é habilmente desenvolvida por ela, embora esse não seja um construto praxiológico da sua pesquisa.

A escolha dos temas gênero e sexualidade para nossa discussão é providencial, uma vez que eles integram os “processos históricos de privação e de ofensa à dignidade da maioria dos seres humanos [...] que sobrevive até hoje” (BRAGATO, 2016BRAGATO, Fernanda F. (2016). Discursos desumanizantes e violação seletivo de direitos humanos sob a lógica da colonialidade. Quaestio Iuris, v. 9, n. 4, p. 1806-1823., p. 1806). Além disso, no tocante ao contexto brasileiro, ambos os temas atravessam uma parte considerável dos repertórios mobilizados e das medidas tomadas pelo atual governo para restringir a construção de sentidos críticos nos contextos educacionais. Nossa intenção é mostrar como um recorte do material empírico do estudo em foco ilustra o trabalho com a pedagogia da pergunta (NELSON, 1999NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391.) no âmbito do ensino de línguas. Isso porque, apesar da vigilância e das constantes interdições, acreditamos que nossas práticas devem se voltar para a construção de repertórios que evidenciem a importância e os valores da liberdade e da democracia. Como defende Oliveira (2018, p. 6)OLIVEIRA, Marcus Vinícius X. (2018). Quais as bases para a resistência democrática? É possível pensarmos em um agir puramente estratégico? In: O crescimento do fascismo e os desafios da resistência democrática. Universidade Federal de Rondônia: Pró-reitoria de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis, p. 1-6., precisamos estar e permanecer firmes diante da verdade, que, em nosso presente contexto, pode ser entendida “como a inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais e [d]o exercício ativo e responsável da cidadania”.

A seguir, ampliamos nossa reflexão sobre os letramentos queer, o que envolve uma discussão sobre a crítica pós-estruturalista e suas contribuições para os estudos da linguagem e para o campo educacional.

1. LETRAMENTOS QUEER E A DISPUTA DEMOCRÁTICA DE SIGNIFICADOS

Como dito anteriormente, nossa discussão está pautada em pressupostos dos chamados letramentos queer e, de modo especial, na pedagogia da pergunta, proposta por Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391.. Segundo a autora, ao contrário da pedagogia da inclusão - que objetiva dar visibilidade a sujeitos não heterossexuais no contexto da sala de aula -, a pedagogia da pergunta propõe “analisar como a língua e a cultura operam na construção de todas as identidades sexuais”6 6 Todas as traduções de citações do inglês para o português são de nossa autoria. (NELSON, 1999NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391., p. 377). Ela presume que perguntar pode se revelar pedagogicamente mais acessível que incluir, “pois não é esperado que as/os professoras/es tenham todas as respostas, mas que façam perguntas, facilitem as investigações e explorem o que é desconhecido” (NELSON, 1999NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391., p. 377). A nosso ver, a ideia é que, a partir da pergunta, múltiplos sentidos sobre as questões abordadas sejam democraticamente colocados em circulação.

Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391. exemplifica como essa ideia pode ser colocada em prática através de uma atividade em que são apresentadas imagens, e as/os alunas/os devem pensar em três ou quatro diferentes possibilidades para explicar o que está acontecendo em cada uma. Duas dessas imagens descritas no texto são: “os meninos estão se batendo” e “duas mulheres estão andando de mãos dadas”. No caso da primeira, eles poderiam estar brigando, simulando uma briga, brincando etc. No caso da segunda, elas poderiam ser amigas, irmãs, mãe e filha ou um casal. O que a autora propõe é assumir a fluidez das identidades e confrontar os efeitos normativos das políticas identitárias, de modo a criar o que Seidman (1995, p. 118)SEIDMAN, Steven. (1995). Deconstructing queer theory, or the under-theorization of the social and ethical. In: NICHOLSON, Linda; SEIDMAN, Steven. (ed.), Social postmodernism: beyond identity politics. Cambridge: CUP, p. 116-141. chama de um “pluralismo democrático radical”. Em outras palavras, trata-se de desconstruir fronteiras identitárias e construir uma política da diferença em sala de aula.

Levando em conta nosso objetivo de revisitar o estudo de Hoelzle (2016)HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia., que focaliza repertórios e performances de gênero e sexualidade, parafraseamos, então, alguns objetivos mais específicos da pedagogia da pergunta colocados por Nelson (1999, p. 377)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391.:

[c]onstruir repertórios sobre todas as performances identitárias, não apenas sobre as marginalizadas; reconhecer que as questões identitárias podem ser importantes para diferentes pessoas por diferentes razões; explorar discursos dominantes e alternativos sobre os eventos e as performances identitárias em questão; atentar-se para diferentes formas de produção e leitura das identidades, em relação a diferentes discursos e práticas culturais.

A proposta de Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391. se baseia em premissas do que temos chamado de praxiologias queer (JAGOSE, 1996JAGOSE, Annamarie. (1996). Queer theory: an introduction. Ney York: New York University Press.; MISKOLCI, 2012MISKOLCI, Richard. (2012). Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica Editora.; SULLIVAN, 2003SULLIVAN, Nikki. (2003). A critical introduction to queer theory. New York: New York University Press.), as quais se afirmam epistemologicamente através do diálogo com diversas áreas do conhecimento, dentre as quais o pós-estruturalismo. Mason e Clarke (2010)MASON, Mark; CLARKE, Matthew. (2010). Post-Structuralism and education. In: PETERSON, Penelope; BAKER, Eva; MCGRAW, Barry. (ed.), International Encyclopedia of Education. 3. ed. Oxford: Elsevier, p. 175-182. traçam um percurso construtivo para o que nos propomos a discutir aqui. Para os autores, as/os intelectuais pós-estruturalistas defendem que a língua não representa a realidade; os signos linguísticos atuam de forma relacional e não referencial, ou seja, palavras e conceitos são definidos em relação a outras palavras e outros conceitos, ad infinitum. Assim, “todas as verdades são textuais” (MACLURE, 2003MACLURE, Maggie. (2003). Discourse in educational and social research. Buckingham: Open University., apud MASON; CLARKE, 2010MASON, Mark; CLARKE, Matthew. (2010). Post-Structuralism and education. In: PETERSON, Penelope; BAKER, Eva; MCGRAW, Barry. (ed.), International Encyclopedia of Education. 3. ed. Oxford: Elsevier, p. 175-182., p. 176) e construídas por meio de uma relação de forças e condições sócio-historicamente determinadas, que, apesar de serem percebidas como fixas e hegemônicas, são provisórias e podem ser rearticuladas. Segundo Mason e Clarke (2010, p. 176), o fato de os sentidos poderem ser contestados é crucial para a educação, pois nenhum sentido está resolvido; por exemplo, o sentido e as implicações de termos como democracia e liberdade exigem debate e negociação contínuos. Essa premissa se revela especialmente importante para nossa discussão, uma vez que ambos os termos citados pelos autores, somados ao termo ditadura, constituem o cerne das disputas discursivas que atravessam o atual cenário político do Brasil.

Tais disputas corroboram a percepção de que discursos são narrativas parciais sobre a realidade (ARONOWITZ, 1987ARONOWITZ, Stanley. (1987). Postmodernism and politics. Social Text, v. 18, p. 99-115., apud MASON; CLARKE, 2010MASON, Mark; CLARKE, Matthew. (2010). Post-Structuralism and education. In: PETERSON, Penelope; BAKER, Eva; MCGRAW, Barry. (ed.), International Encyclopedia of Education. 3. ed. Oxford: Elsevier, p. 175-182., p. 177) e se pluralizam na medida em que o mundo se torna mais globalizado e intercultural, o que resulta em salas de aulas cada vez mais diversas e complexas. No entanto, essas narrativas ou “jogos de verdade” não circulam livremente, “sem obstáculos, sem restrições e sem efeitos coercitivos” (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. (1988). The ethic of care for the self as a practice of freedom. In: BERNAUER, James; RASMUSSEN, David M. (ed.), The final Foucault. Cambridge, MA: MIT Press, p. 1-20., apud MASON; CLARKE, 2010, p. 177); elas estão intimamente relacionadas a questões de poder. Nesse sentido, para Mason e Clarke (2010, p. 177)MASON, Mark; CLARKE, Matthew. (2010). Post-Structuralism and education. In: PETERSON, Penelope; BAKER, Eva; MCGRAW, Barry. (ed.), International Encyclopedia of Education. 3. ed. Oxford: Elsevier, p. 175-182., uma pedagogia pós-estruturalista teria por objetivo “abraça[r] um questionamento contínuo das relações entre conhecimento e poder”. Embora reconheçamos que alguns conhecimentos se impõem em detrimento de outros e se sobressaem os repertórios discursivos de quem tem mais poder econômico, político e cultural, acreditamos que outros repertórios de sentido podem ser engendrados e colocados em circulação por meio de nossas ações pedagógicas, especialmente aquelas orientadas por perguntas.

No caso da sala de aula, presume-se que as relações entre docentes e discentes sejam assimétricas, prevalecendo quase sempre as narrativas das/os docentes. No entanto, o poder, segundo Foucault (1978FOUCAULT, Michel. (1978). The history of sexuality - volume 1: an introduction. New York: Pantheon Books., apud MASON; CLARKE, 2010, p. 180)MASON, Mark; CLARKE, Matthew. (2010). Post-Structuralism and education. In: PETERSON, Penelope; BAKER, Eva; MCGRAW, Barry. (ed.), International Encyclopedia of Education. 3. ed. Oxford: Elsevier, p. 175-182., não opera somente em uma direção, mas em várias, e não é uma força apenas repressiva, mas também produtiva. Desse modo, as relações de poder não são ruins em si mesmas e não podem ser eliminadas, sendo preciso compreendê-las e lidar com elas, buscando reduzir ao mínimo o poder de dominação (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. (1988). The ethic of care for the self as a practice of freedom. In: BERNAUER, James; RASMUSSEN, David M. (ed.), The final Foucault. Cambridge, MA: MIT Press, p. 1-20., apud MASON; CLARKE, 2010, p. 177). Sendo possível criar condições para que a dominação se arrefeça e entendendo que os sujeitos não são definidos essencialmente, mas estão engajados em jogos de poder socialmente localizados (PINHO, 2004PINHO, Osmundo de A. (2004). Qual é a identidade do homem negro? Democracia Viva, n. 22, p. 64-69. ), sentidos sobre qualquer esfera da vida social podem ser negociados em sala de aula. Por exemplo, no caso do trabalho com as duas imagens, proposto por Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391., podem ser feitas perguntas sobre diversas performances socioidentitárias, que incluem categorias como idade, classe social, nacionalidade, identidade racial, escolaridade, religiosidade etc. O objetivo é mostrar a diversidade de sentidos construída a partir das performances em foco e dos posicionamentos sociais de cada aluna/o, possibilitando a visibilidade ou a articulação de outras formas de ser, viver e saber. Como propõe Fabrício (2006, p. 62)FABRICIO, Branca F. (2006). Lingüística aplicada como espaço de desaprendizagem. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo. (org.), Por uma lingüística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, p. 45-65. , trata-se de desaprendermos os essencialismos, as homogeneidades e as cristalizações, e apostarmos “na fluidez e nos entre-espaços como um modo privilegiado de construção de conhecimento[s] [...] pautado[s] não por valores universais, mas sim por valores democraticamente definidos na esfera pública e no diálogo aberto”.

Essa intenção de mobilizar e pluralizar sentidos compõe o escopo dos chamados letramentos queer, os quais entendemos aqui como práticas discursivas que fomentam a negociação de significados por meio do engajamento crítico com diferentes recursos semióticos, como imagens, vídeos, pichações, textos orais e escritos etc. Nesse sentido, a palavra queer é utilizada para enfatizar o objetivo de estranhar concepções moderno-coloniais de corpo, identidade e sujeito, “[colocando] em crise seus modos de performativização como caminho único” (ROCHA, 2013ROCHA, Luciana L. (2013). Teoria queer e a sala de aula de inglês na escola pública: performatividade, indexicalidade e estilização. Tese de Doutorado em Linguística Aplicada. Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, UFRJ, Rio de Janeiro., p. 69) e contribuindo com o “processo de construção de compreensões textuais múltiplas” (URZÊDA-FREITAS, 2018URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de. (2018). Letramentos queer na formação de professorxs de línguas: complicando e subvertendo identidades no fazer docente. Tese de Doutorado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia., p. 45). Embora o trabalho com letramentos queer seja sempre situado, aspecto que revela o seu caráter plural e movente, consideramos que sua proposta central é fazer das práticas discursivas de sala de aula espaços democráticos de problematização que encorajem os sujeitos envolvidos - professoras/es e alunas/os - a tomar uma posição que nos parece bastante atual e urgente: “passar dos limites, atravessar-se, desconfiar do que está posto e olhar de mau jeito [...] o que há de estável naquele ‘corpo de conhecimentos’; enfim fazer uma espécie de enfrentamento das condições em que se dá o conhecimento” (LOURO, 2004LOURO, Guacira L. (2004). Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica., p. 64, grifo no original). Em resumo, o que se propõe é a pluralização e a possível re-leitura de visões e conceitos que estruturam os sistemas de significação que nos atravessam e que constituem as relações em que nos engajamos diariamente.

Entretanto, é importante salientar que a mobilização democrática de significados não sugere que seus processos comunicativos se darão de forma tranquila, pois a comunicação é uma atividade sempre complexa e atravessada por relações de poder. A ideia de fixidez e homogeneidade linguística apresentada por Saussure (2006)SAUSSURE, Ferdinand de. (2006). Curso de lingüística geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paez e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix. em seu famoso circuito da fala se sustenta apenas se as/os participantes do evento comunicativo forem, como ressalta Pratt (2012)PRATT, Mary Louise. (2012). “If English was good enough for Jesus…”: Monolinguismo y mala fe. Critical Multilingualism Studies, v. 1, n. 1, p. 12-30., dois sujeitos masculinos e caucasianos de mesma faixa etária, destituídos de outras marcas socioidentitárias, interagindo em um vácuo e compartilhando a mesma historicidade, os mesmos repertórios ideológicos, as mesmas posições sociais e as mesmas condições de vida - se é que se sustenta! A título de comparação, vejamos o circuito de fala representado na seguinte imagem:

Figura 1
Jair Bolsonaro falando à imprensa no Palácio do Planalto

Essa imagem foi registrada na manhã do dia 5 de maio de 2020, na área externa do Palácio do Planalto, em Brasília-DF, quando o presidente Jair Bolsonaro falava a suas/seus apoiadoras/es e à imprensa sobre uma reportagem a seu respeito publicada pelo jornal Folha de São Paulo. O momento capturado pela foto retrata o exato instante em que o presidente, após ter se referido à Folha de São Paulo como “imprensa canalha”, se dirigiu a um jornalista que havia pedido a palavra, em tom bastante efusivo e autoritário, e disse: “Cala a boca, não perguntei nada. Cala a boca! Cala a boca!” Obviamente, estamos diante de um evento comunicativo do qual participam sujeitos que carregam diferentes historicidades e marcas socioidentitárias, e que ocupam diferentes lugares sociodiscursivos no contexto em foco e na estrutura social mais ampla. Essas diferenças, por sua vez, enquadram o processo comunicativo e os sujeitos que dele participam em espaços hierarquizados de poder e, portanto, de fala. Além disso, todas as materialidades em jogo - como a posição dos corpos no espaço, o jornal que o presidente leva nas mãos, os smartphones e as câmeras fotográficas, os óculos escuros e as máscaras que algumas pessoas estão usando etc. - se mostram fundamentalmente ativas na construção de significados.

Como vemos, essa representação do circuito de fala “retrata tudo que o desenho de Saussure procura dissipar” (PRATT, 2012PRATT, Mary Louise. (2012). “If English was good enough for Jesus…”: Monolinguismo y mala fe. Critical Multilingualism Studies, v. 1, n. 1, p. 12-30., p. 19). Nesse caso em específico, a imagem ilustra tanto a complexidade do processo comunicativo quanto a crise democrática que temos experimentado no Brasil, já que ela representa a forma autoritária com que o atual governo tem se posicionado em relação à imprensa e, sobretudo, aos meios de comunicação que têm contribuído para revelar suas irregularidades institucionais. Ao apontar o dedo para o jornalista e mandá-lo calar a boca, Bolsonaro deixa explícito seu autoritarismo e sua falta de habilidade para construir um diálogo democrático com a imprensa e com a oposição. É evidente que estamos nos referindo, aqui, a um evento de particular tensão. No entanto, é preciso ter em mente que a complexidade por ele retratada perpassa grande parte dos eventos comunicativos e, assim, a mobilização de significados, em qualquer contexto, sempre se dará dentro desse complexo e disputado arranjo (URZÊDA-FREITAS; PESSOA, 2020URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de; PESSOA, Rosane R. (2020). Disinventing and reconstituting the concept of communication in language education. L2 Journal, v. 12, n. 3, p. 61-76.). Em poucas palavras, a diferença e o conflito são elementos constitutivos da comunicação.

Um caminho produtivo para lidar e transitar pelas diferenças que atravessam o processo comunicativo é compreender a linguagem como performance, compreensão que, a nosso ver, parte de dois pressupostos. O primeiro é que a linguagem se configura como uma prática social, ou seja, nossas práticas discursivas estão intrinsecamente relacionadas à vida e à realidade social (FABRÍCIO, 2006). O segundo pressuposto é que a linguagem é performativa, o que, grosso modo, significa dizer que nossas práticas discursivas não apenas constatam ou descrevem, mas (re)fazem o mundo, a realidade e a vida (ROCHA, 2013ROCHA, Luciana L. (2013). Teoria queer e a sala de aula de inglês na escola pública: performatividade, indexicalidade e estilização. Tese de Doutorado em Linguística Aplicada. Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, UFRJ, Rio de Janeiro.). Nesse sentido, os significados que nos constituem não são exteriores ao discurso, mas, ao contrário, são por ele mediados: tudo se (re)constrói no ato de dizer (BUTLER, 1997BUTLER, Judith. (1997). Excitable speech: a politics of the performative. New York: Routledge.; PINTO, 2002PINTO, Joana P. (2002). Performatividade radical: ato de fala ou ato de corpo. Gênero, v. 3, n. 1, p. 101-110. ; ROCHA, 2013; URZÊDA-FREITAS, 2018URZÊDA-FREITAS, Marco Túlio de. (2018). Letramentos queer na formação de professorxs de línguas: complicando e subvertendo identidades no fazer docente. Tese de Doutorado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia.). Uma compreensão da linguagem como performance requer, portanto, assumir que as práticas discursivas construídas por diferentes sujeitos performam sentidos localizados, os quais refletem a constituição desses sujeitos em contextos específicos. Além disso, implica reconhecer que esses sentidos, bem como o próprio sujeito, estão sempre em movimento, em um constante processo não de ser, mas de se tornar.

Com base nessa concepção, entendemos as práticas discursivas de sala de aula como performances socioidentitárias que mobilizam significados múltiplos, transitórios e conflitantes. São práticas localizadas que nos instigam a compreender os atos de fala que as constituem como atos de corpo, já que “[o] sujeito de fala é aquele que produz um ato corporalmente”, de modo que “[o] agir do ato de fala [se torna] o agir do corpo” (PINTO, 2002PINTO, Joana P. (2002). Performatividade radical: ato de fala ou ato de corpo. Gênero, v. 3, n. 1, p. 101-110. , p. 105). Aqui, retomamos a pedagogia da pergunta proposta por Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391. como forma de explorar essa rede de atos corporais sob a ótica da pluralidade, do fluxo e da indeterminação, já que essa é a ótica da linguagem, dos textos e da própria vida. O maior desafio que temos pela frente é instaurar essa disputa pelo significado e pelo poder de forma democrática, que se alinhe com nossos atuais anseios de liberdade e mudança política.

2. ENQUADRES DEMOCRÁTICOS DA PEDAGOGIA DA PERGUNTA: SIGNIFICADOS EM DISPUTA

Segundo Goffman (1974GOFFMAN, Erving. (1974). Frame analysis: an essay on the organization of experience. Boston: Northeastern University Press, 1986. , 2002)GOFFMAN, Erving. (2002). Footing. In: RIBEIRO, Branca T.; GARCEZ, Pedro M. (org.), Sociolinguística Interacional. São Paulo: Edições Loyola, p. 107-148. , o enquadre é um elemento do processo de contextualização, remetendo a uma espécie de imagem do que está acontecendo. Para analisar os enquadres, é importante considerar o conceito de alinhamento, que corresponde aos posicionamentos das/os participantes em relação às outras pessoas, a si próprias/os e aos repertórios mobilizados em determinado enquadre (GOFFMAN, 1974GOFFMAN, Erving. (1974). Frame analysis: an essay on the organization of experience. Boston: Northeastern University Press, 1986. , 2002)GOFFMAN, Erving. (2002). Footing. In: RIBEIRO, Branca T.; GARCEZ, Pedro M. (org.), Sociolinguística Interacional. São Paulo: Edições Loyola, p. 107-148. . Nesse sentido, o que chamamos de enquadres democráticos se referem a conjuntos de eventos comunicativos em que os significados são mobilizados e disputados com a participação dos sujeitos envolvidos, participação essa que geralmente reflete a construção de alinhamentos plurais, conflitantes e transitórios.

Focalizaremos seis eventos comunicativos extraídos da pesquisa de mestrado de Hoelzle (2016)HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia., os quais possibilitam, em nossa releitura, observar como a pedagogia da pergunta (NELSON, 1999NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391.) pode ser viabilizada em aulas de línguas, propiciando a construção de enquadres democráticos para a disputa de significados. Maria José Hoelzle é professora da rede pública e doutoranda em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás. Em sala de aula, ela se mostra sensível à realidade das/os alunas/os e problematiza a vida social, e, em sua dissertação de mestrado, buscou “desnaturalizar as sociabilidades, entendidas como posicionamentos discursivos (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2013MOITA LOPES, Luiz Paulo da; FABRÍCIO, Branca F. (2013). Desestabilizações queer na sala de aula: “táticas de guerrilha” e a compreensão da natureza performativa dos gêneros e das sexualidades. In: PINTO, Joana P.; FABRÍCIO, Branca F. (org.), Exclusão social e microrresistências: a centralidade das práticas discursivo- identitárias. Goiânia: Cânone Editorial, p. 283-301.), que se cristalizaram ao longo do tempo em relação a temas como família, raça, gênero e classes sociais” (HOELZLE, 2016HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia., p. 6, grifos no original). São enquadres desse trabalho que trazemos aqui para focalizar a mobilização de significados sobre questões de gênero e sexualidade, que têm sido alguns dos mais disputados pelo atual governo e suas/eus apoiadoras/es, já que compõem o que se tem chamado de “agenda de costumes” (SHALDERS, 2019SHALDERS, André. (2019). Por que a ‘agenda de costumes’ de Bolsonaro deve continuar parada no Congresso em 2020. BBC News Brazil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50898836>. Acesso em: 6 set. 2020.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50...
). Tal agenda compreende, principalmente, o Estatuto da Família, que limita a definição de família à união entre um homem e uma mulher; a Escola sem Partido, que objetiva impedir que docentes se posicionem “ideologicamente”; e o combate à falaciosa “ideologia de gênero” (SHALDERS, 2019, on-line, grifos no original).

A pesquisa de Hoelzle (2016)HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia. foi desenvolvida no segundo semestre de 2014 em uma turma de 6º ano de uma escola municipal de Goiânia, composta por 11 alunos e 7 alunas, com idade entre 11 e 12 anos. Sobre o perfil das/os alunas/os, a pesquisadora resume: “a cor predominante é a parda e a maioria delas/es é natural de Goiânia. Grande parte delas/es vive em casas alugadas e a maioria das/os responsáveis exerce profissão de baixo prestígio social e de menor remuneração” (HOELZLE, 2016HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia., p. 49). Ela analisa interações de sala de aula e produções das/os alunas/os referentes a seis temas, dos quais discutiremos apenas um: atividades de lazer. As interações mesclam português e inglês, mas, neste estudo, traduziremos os textos/trechos das interações em inglês e não mencionaremos as discussões sobre ensino de gramática, vocabulário e pronúncia, pois nosso objetivo é problematizar a construção de significados feita pelas/os alunas/os e pela professora nas atividades desenvolvidas. Usaremos os nomes fictícios escolhidos por elas/es para figurarem na dissertação.

Na aula sobre atividades de lazer, a professora trouxe figuras de diversas atividades e focalizou essa imagem de três meninos brincando com bonecas:

Figura 2
Meninos brincando com bonecas

Ela pergunta quem brinca com bonecas e Alaska diz: “Antigamente eu brincava com Max Steel, eu e meu colega, assim, a gente fazia um monte de obstáculos e destruía os bonecos”, mas, quando a professora chama a atenção delas/es para a imagem, e elas/es percebem que são dois meninos brincando com bonecas, temos:

Evento comunicativo 1

Professora: O que vocês acham dessa imagem?

Edumix (M)7 7 Como os nomes fictícios escolhidos não permitem a identificação de sexo - o que é interessante, pois contribui para desestabilizar classificações binárias -, optamos por marcar o gênero das/os alunas/os usando M para masculino e F para feminino nos eventos comunicativos, visto que consideramos relevante para a discussão saber que alinhamentos são tomados por meninos e meninas. : Ridícula.

Lulu Pink (F): Estranho.

Professora pesquisadora: Por quê?

Snow White (F): Porque meninos não brincam de bonecas.

Professora: Meninos não brincam de bonecas?

Snow White (F): A maioria não brinca, né?

Velocispider (M): Mas tem os bonecos de ação, meu primo brinca.

Professora: Mas essas bonecas aqui são tipo bebês. Elas parecem bebês de verdade.

Alaska (M): Ninguém brinca com isso.

Professora: Quem decidiu isso, que menina brinca só de boneca e menino de carrinho, por exemplo?

Alaska (M): Os criadores.

Edumix (M): Eu não gosto nem de carrinho nem de boneca.

Professora: Quem decidiu isso?

Alaska (M): Os criadores?

Velocispider (M): Que criadores? Foi o povo.

Professora: Por que a gente costuma falar que menino não brinca de boneca?

Aluno não identificado: Porque menino brincar com boneca é meio estranho.

Professora: É estranho? Mas escutem, esse menino aqui quando ele crescer ele não pode se tornar um pai e brincar com os filhos deles?

Alunas/os: Sim.

Professora: E aí?

Meninage (F): Se a mulher brincar de carrinho durante a infância é porque ela vai dirigir caminhão?

Os alinhamentos desse primeiro evento comunicativo apontam para os papéis de gênero atribuídos a meninos e meninas, marcados nestes atos de fala: “[a imagem é] ridícula”, “estranh[a]”, “meninos não brincam de boneca”, “ninguém brinca com isso”, “porque menino brincar com boneca é meio estranho”. Esses papéis são reforçados pela ideia de que há bonecos para meninos e bonecas para meninas, quando a professora faz a primeira pergunta: “meninos não brincam de bonecas?”. Por sua vez, o ato de fala “elas parecem bebês de verdade” incita a reflexão sobre outro papel de gênero, referente ao cuidado das/os filhas/os, que é retomado pela professora quando ela sugere que meninos eventualmente poderão se tornar pais e brincar com as/os filhas/os. No entanto, essa posição é refutada por dois atos de fala: “e aí?” e “se a mulher brincar de carrinho durante a infância é porque ela vai dirigir caminhão?”, sendo este último um alinhamento que recusa o que a aluna parece ter entendido como uma afirmação determinista por parte da professora. A pergunta da professora, “quem decidiu isso?”, reflete a compreensão de que se trata de uma construção social, que, mesmo não sendo aprofundada na aula, suscita alinhamentos de reflexão: “os criadores [dos brinquedos]”; e de contestação: “que criadores? Foi o povo”.

Pelo fato de a imagem representar uma situação em que normas de gênero são imediata e enfaticamente acionadas, não nos surpreende que as desestabilizações dessas normas sejam, nesse primeiro evento, provocadas pelas perguntas da professora. No entanto, tais perguntas de modo algum parecem constranger as/os alunas/os, já que não somente reagem a elas de forma bastante assertiva, mas também contestam a professora, de forma veemente, nos dois momentos mencionados no parágrafo anterior. Relevante também é o fato de que Velocispider contesta o que diz Alaska, contribuindo para a compreensão dessa sala de aula como um espaço democrático em que significados são contínua e fortemente disputados. Embora não se possa negar a presença das relações de poder, esse primeiro evento constrói um enquadre em que a autoridade é genuinamente compartilhada entre as/os participantes, fazendo com que os jogos de sentido sejam “jogados com o mínimo possível de dominação” (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. (1988). The ethic of care for the self as a practice of freedom. In: BERNAUER, James; RASMUSSEN, David M. (ed.), The final Foucault. Cambridge, MA: MIT Press, p. 1-20., p. 18).

Nessa mesma aula, a professora pede que as/os alunas/os construam frases sobre a imagem dos meninos brincando com bonecas e duas delas são discutidas na dissertação. A primeira é “garotos diferentes brincam com bonecas”:

Evento comunicativo 2

Professora: Pessoal, garotos diferentes brincam com bonecas. O que são esses garotos diferentes?

Alaska (M): Garotos deficientes.

Alunas/os: Risos

Professora: O que são diferentes?

Meninage (F): Em vez de brincar com carrinhos, eles brincam de bonecas.

Professora: Mas eu quero saber de onde saiu isso, por que que o menino tem que brincar de carrinho e a menina só de boneca, se ele vai crescer e vai se tornar um pai e vai brincar com os filhos deles também8 8 Essa visão essencialista e generalizante é problematizada pela pesquisadora na dissertação. . E aí, turma?

Mulan (M): Bonecas são mais para meninas.

Alaska (M): Porque bonecas foram criadas para meninas e carros foram criados para os meninos.

Lulu Pink (F): Isso que eu ia falar.

Professora: Mas a mulher não dirige carro também?

Alaska (M): Sim, mas na época a mulher não era valorizada na sociedade, na época a mulher era deixadas pra lá, elas não eram contadas na escola, não podiam nada, a única coisa que elas podiam fazer era viver, crescer pra virar mãe de casa.

Professora: E por isso você acha que elas brincam mais de bonecas?

Aluno não identificado: Na época também não podiam candidatar.

Professora: Okay, vocês me explicaram porque é diferente, mas em quais outros sentidos vocês acham que pode ser diferente?

Alunas/os: (silêncio)

Professora: Por que garotas são rosa e garotos são azul?

Wyads (M): Aí eu acho que não tem nada a ver.

Mulan (F): Eu acho que todas as cores são para todos.

Professora: Então, quem pode definir o gosto desse menino? Será que ele não pode brincar com a boneca também porque a bone-

Velocispider (M): Tem boneca pra menina e boneco pro menino, e tem carrinho de menino e carrinho de menina.

Os alinhamentos iniciais desse evento seguem a mesma direção do Evento 1, mas a professora recupera a pergunta sobre a historicidade da referida performance e argumenta que mulheres também dirigem atualmente, o que possibilita a reflexão de Alaska de que essa prática de brincar com bonecas está relacionada a um passado em que as mulheres tinham papéis sociais muito limitados - casar e reproduzir -, ideia que é corroborada por um aluno não identificado. Já a pergunta sobre garotas serem rosa e garotos serem azul é refutada por Wyads e Mulan, mas, quando a professora retoma o argumento anterior sobre a imposição da norma de que meninos brincam com carrinho e meninas, com bonecas, essa norma é reafirmada. Temos, nesse segundo evento, um exemplo de como os enquadres democráticos envolvem a mobilização de significados instáveis e contraditórios, possibilitando-nos, como professoras/es, abdicar de certezas e “[a]preciar a transgressão e o atravessamento das fronteiras (de toda ordem), explorar a [e transitar pela] ambigüidade e a fluidez [dos corpos e sentidos]” (LOURO, 2004LOURO, Guacira L. (2004). Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica., p. 50).

A segunda frase discutida na dissertação, “garotos felizes gostam de brincar de bonecas”, do Wyads, potencializa a fluidez de sentidos defendida por Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391., evidenciando que nenhum sentido está resolvido (MASON; CLARKE, 2010MASON, Mark; CLARKE, Matthew. (2010). Post-Structuralism and education. In: PETERSON, Penelope; BAKER, Eva; MCGRAW, Barry. (ed.), International Encyclopedia of Education. 3. ed. Oxford: Elsevier, p. 175-182., p. 176), mesmo em relação a um comportamento estabilizado e afirmado repetidas vezes em uma turma de pré-adolescentes. O ato de fala de Wyads é inclusive reafirmado por um aluno não identificado:

Evento comunicativo 3

Wyads (M): Garotos felizes gostam de brincar de bonecas.

Professora: É essa sua opinião? Por quê?

Wyads (M): Sim, minha opinião, é gosto de cada um.

Professora: Então garotos feli-

Wyads (M): Gostam de brincar.

Aluno não identificado: Porque eles têm a opinião, é o gosto deles.

Entretanto, na continuação desse evento, o alinhamento de Pocahontas esclarece a razão pela qual meninos brincarem com bonecas é um comportamento tão “ridículo” e, em geral, tem um sentido tão estabilizado:

Evento comunicativo 4

Professora: Deixa eu ouvir a Pocahontas.

Pocahontas (F): Não é professora, homem não pode namorar com homem e mulher não pode namorar com mulher, tem que ser só homem e mulher. Na antiguidade não podia.

Princesa do Rímel Borrado (F): Mas isso era antigamente, porque hoje,

Pocahontas (F): Muitas mulheres namoram com mulher, homem com homem.

Alaska (M): Hoje em dia elas sofrem muito mais preconceitos, hoje em dia pessoas que gostam de outro sexo do mesmo sexo9 9 Consideramos que Alaska quis dizer: “pessoas que gostam de outras do mesmo sexo”. são horrorizadas na área de trabalho e na sociedade.

Pocahontas (F): Sofrem muito bullying.

Mulan (F): A gente tem que ajudar essas pessoas porque elas têm problema.

Professora: Onde que a gente consegue ver isso?

Alunas/os: Nas ruas.

Alunas/os: Na televisão.

Alunas/os: Nas fotos.

Alunas/os: Na internet.

Pocahontas deixa claro que essa norma de gênero - meninas brincarem com bonecas - se relaciona com padrões de sexualidade, abrindo espaço para a compreensão de que meninos que brincam com bonecas são vistos como femininos e propensos à homossexualidade, apontando o dedo na ferida que mais sangra entre políticos e religiosos conservadores, que é a desestabilização da heteronormatividade, intimamente relacionada à desestruturação da família nuclear. No entanto, os sentidos continuam se esgarçando quando Princesa do Rímel Borrado e Pocahontas reconhecem que performances sexuais dissidentes às normas hegemônicas são hoje comuns; quando Alaska, que anteriormente havia se manifestado agressivamente contra o comportamento dos meninos na imagem - “Ninguém brinca com isso” e “garotos deficientes” - ressalta os preconceitos sofridos pelas/os gays em nossa sociedade; e quando os alinhamentos de várias/os alunas/os denunciam que esses corpos dissidentes são agredidos em vários espaços sociais. Esse esgarçamento é referendado em:

Evento comunicativo 5

Professora: Será que a gente pode julgar uma pessoa pelas preferências dela?

Alunas/os: Não.

Mulan (F): Você tem que acolher porque elas têm problemas.

Professora: Mas que tipo de problema, Mulan?

Mulan (F): De escolher uma coisa diferente da normalidade de hoje em dia.

Professora: Mas então pessoal, a Mulan está falando que a gente tem que acolher essas pessoas porque elas têm problemas, porque fazem escolhas diferentes. Mas quem estipulou isso? Quem falou assim: essa escolha é certa e essa escolha é errada?

Alaska (M): Ninguém.

Velocispider (M): Da cabeça do povo, da população.

Edumix (M): Da mente.

Professora: E isso gera o quê, gente?

Alunas/os: Preconceito.

Alunas/os: Violência.

Alaska (M): Hoje em dia, das 100 mortes no Brasil, cerca de mais de 40 por cento eles são gays ou lésbicas.

Professora: Nessa simples imagem aqui, eles escolheram brincar de bonecas.

Alunas/os: Sim.

Professora: Será que é uma escolha errada só porque a sociedade fala que é errada?

Pocahontas (F): É igual o serial killer [referindo-se a Tiago Henrique Gomes da Rocha, que matou 39 pessoas em Goiânia] a metade das pessoas que ele matou era metade travesti, começou com eles e depois foi pra mulher.

Professora: E o que vocês acham dessa intolerância?

Edumix (M): Acho feio.

Wyads (M): Eu acho errado, mas não tenho preconceito, mas igual o Edumix disse, a gente precisa de um homem e de uma mulher pra formar uma família, tipo eu não tenho preconceito, eu só acho errado.

Alaska (M): Eu acho que a gente tem que ter respeito por essas pessoas pra elas terem respeito com a gente. E é assim que tem que ser.

Professora: Mas espera aí, vocês acham por exemplo que uma pessoa que tem uma escolha diferente está te desrespeitando de algum modo?

Alaska (M): Não, exatamente por isso. A gente tem que respeitar as decisões dela, as escolhas dessa pessoa.

Wyads (M): Eu vi o homem gay na rua, só que eu não fui lá ofender ele, “ó seu gay, o que você está fazendo aí?”.

Professora: Olha eu acho assim, você não precisa aceitar, mas respeitar.

Alaska (M): Eu acho que hoje em dia os homofóbicos deveriam ter tratamento especial e cada homofóbico que matasse cada gay deveria ser preso e ficar lá por mais de sessenta anos.

Professora: Então homofóbico tinha que ter tratamento especial?

Ghost Lol (M): Professora, o preconceito, as pessoas não aceitam. Por exemplo, essa foto, os meninos estão brincando de boneca e o povo fala: “ah, você vai ser gay quando crescer”.

Professora: E isso tem alguma coisa a ver?

Ghost Lol (M): Não.

Como temos observado, o espaço de questionamento pautado pela professora teve um papel fundamental na construção desses enquadres democráticos, pois foram eles que potencializaram a emergência de alinhamentos diversos e inesperados. Mesmo que esses alinhamentos tenham, inicialmente, se materializado como repulsa e negação em relação ao comportamento dos meninos na imagem e, depois, como compreensão desse comportamento, desdobrando-se em aceitação e acolhimento de corpos que escapam à heteronormatividade, a professora continua instigando uma reflexão sobre a construção social das normas hegemônicas de sexualidade: “Mas quem estipulou isso? Quem falou assim: essa escolha é certa e essa escolha é errada?”; e sobre a desnaturalização da ideia de que meninos não podem escolher brincar com bonecas: “Será que é uma escolha errada só porque a sociedade fala que é errada?”. E quando Wyads diz que é preciso respeitar as pessoas que fazem escolhas sexuais diferentes, ela pergunta se uma pessoa que tem uma escolha diferente o estaria desrespeitando de algum modo.

Assim, nesse evento comunicativo, a violência contra pessoas não heterossexuais é descrita por Alaska e Pocahontas e rechaçada pelos alunos Edumix, Wyads e Alaska (Alaska se manifestando duramente contra a violência), mas, ao mesmo tempo, a norma da família e da reprodução é reforçada por Wyads, e a norma de gênero - no que diz respeito a brincar com bonecas - é reafirmada por Ghost Lol. É certo que, historicamente, as brincadeiras têm refletido os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres na sociedade (FERRARI, 2020FERRARI, Juliana S. (s.d.). Diferenças entre as brincadeiras de meninos e meninas.Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/psicologia/diferencas-entre-as-brincadeiras-meninos-meninas.htm>. Acesso em: 6 set. 2020.
https://brasilescola.uol.com.br/psicolog...
), mas é também verdade que esse modelo binário de sociedade vem sofrendo fissuras, com a inserção cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho, por exemplo. Isso mostra que os sentidos mobilizados em sala de aula e na vida social mais ampla se forjam a partir de rupturas e continuidades (FABRÍCIO, 2006FABRICIO, Branca F. (2006). Lingüística aplicada como espaço de desaprendizagem. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo. (org.), Por uma lingüística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, p. 45-65. ), o que confirma a premissa de que as verdades são textuais (MACLURE, 2003MACLURE, Maggie. (2003). Discourse in educational and social research. Buckingham: Open University.) e os significados estão em constante processo de fluxo (MASON; CLARKE, 2010MASON, Mark; CLARKE, Matthew. (2010). Post-Structuralism and education. In: PETERSON, Penelope; BAKER, Eva; MCGRAW, Barry. (ed.), International Encyclopedia of Education. 3. ed. Oxford: Elsevier, p. 175-182.).

Neste último evento comunicativo, relacionado ao tema atividades de lazer, além de três alinhamentos que desnaturalizam uma norma de gênero, temos um novo elemento no ato de fala de Dedé Chocolate:

Evento comunicativo 6

Alaska (M): Tem um filme [referindo-se a Billy Elliot], professora, que fala exatamente assim, que o menino tinha muito futuro pra ser boxeador e o pai dele fez de tudo, mas ele largou a mão de tudo pra fazer balé. Só que ele sofreu tanto bullying e tanto preconceito, até da família, que ele foi embora de casa. Aí, muito tempo depois, ele ficou rico e famoso por causa que ele dançou balé. Aí todas as pessoas preconceituosas tentaram voltar a ser amiga dele por causa do dinheiro e da fama dele.

Professora: O pai queria que ele fosse boxea-

Dedé Chocolate (M): Professora, eu gosto de dançar. A minha professora é mulher e ela dança também, e eu gosto de dançar. E quando eu falei pra minha mãe que deve que eu vou ser dançarino, meu padrasto falou que deve que eu não vou ser, porque tem muito dançarino que é gay, e falou que eu não posso dançar porque eu sou homem.

Professora: Mas a gente tem muitos homens nos corpos de balé que fazem muito sucesso, e que nasceram para fazer isso.

Alaska (M): Eu tava vendo um cara no documentário que ele faz balé e ganha mais de cinco mil reais por mês e é mega rico.

Mulan (F): Na Malhação tá passando agora, tem um menino que ele queria dançar, só que o pai dele não deixa-

Alaska (M): Exatamente, na Malhação o menino gosta de dançar e o pai dele tem preconceito de que todo homem que dança tem que ser gay, mas isso não é verdade. O pai do menino acha que todo dançarino é só gay, que dança é uma coisa pra mulher.

Professora: E como vocês acham que fica o coração de uma pessoa que queria fazer uma coisa e a família não deixou?

Alaska (M): Fica triste.

Esse novo elemento que o ato de fala de Dedé Chocolate inaugura é seu alinhamento em relação ao próprio desejo de dançar profissionalmente, o qual parece ter sido interpelado pelo relato do Alaska descrevendo um filme de um menino que escolheu a profissão de bailarino e foi bem-sucedido, conferindo um sentido positivo a essa identidade profissional masculina. A desnaturalização da norma de que homens não podem dançar profissionalmente continua nos atos de fala da professora, quando menciona a quantidade de homens nos corpos de balé, e de Alaska, quando se refere à renda financeira de um bailarino e à frustração de ter uma escolha profissional barrada pela família. Como um todo, o evento reflete o medo e a negação da legitimidade das performances não heterossexuais; porém, ao mesmo tempo, como resultado de seu viés democrático, seus alinhamentos abrem espaço para a livre circulação de sentidos múltiplos sobre os repertórios em jogo.

Vemos, nesses seis eventos comunicativos, como os significados vão se (re)constituindo por meio das perguntas colocadas pela professora - dos 34 atos de fala, 28 são perguntas -, mas também pelos múltiplos repertórios trazidos pelas/os alunas/os, evidenciando que os sentidos são plurais, transitórios, se conflitam e podem ser contestados. A própria professora, na dissertação, contesta alguns comentários que ela faz (nota de rodapé 8), pois somos constituídos também por discursos essencialistas, os quais escapam mesmo quando nos propomos a confrontá-los. Exemplo disso se materializa no evento comunicativo 6: “nasceram para fazer isso”. Também contradizendo o seu trabalho, em que se pretende ir muito além do respeito, ela afirma, no evento comunicativo 5: “Olha eu acho assim, você não precisa aceitar, mas respeitar.” No entanto, na maioria de suas intervenções, ela busca uma construção democrática dos sentidos sobre gênero e sexualidade. É essa construção democrática, marcada pela fluidez e pelos entrecruzamentos, que defendemos para a educação e que está de acordo com nossos anseios em relação a uma sociedade em que corpos, identidades e sujeitos possam se (re)construir e performar sentidos com mais liberdade e autonomia.

POR OUTRAS HISTÓRIAS...

Neste estudo, buscamos defender a ideia de que, pelo fato de a linguagem permitir a produção de significados múltiplos e alternativos sobre a vida social, não podemos deixar de construir, nos contextos de educação linguística, sentidos que possibilitem a construção de enquadres mais democráticos. Consideramos que um dos pontos centrais na mobilização de práticas democráticas é reconhecer as corporeidades que atravessam os atos de fala e, por assim dizer, os sentidos colocados em circulação em sala de aula. Com base em Pinto (2002)PINTO, Joana P. (2002). Performatividade radical: ato de fala ou ato de corpo. Gênero, v. 3, n. 1, p. 101-110. , afirmamos que se trata de atos e sentidos que dizem sobre os corpos que os produziram, os quais se localizam em espaços sociodiscursivos e matrizes de poder específicas. São atos e sentidos atravessados pela diferença.

Como vimos nos seis eventos comunicativos, a pedagogia da pergunta é sempre marcada pelo conflito, advindo de diferentes historicidades e performances socioidentitárias das pessoas envolvidas nos eventos comunicativos. Embora defendamos que a pluralidade deva ser acolhida, pois a liberdade e a diferença constituem a base da democracia, acreditamos que toda prática educacional democrática apresenta limites éticos. Aqui, em diálogo com Simon (1992)SIMON, Roger I. (1992). Teaching against the grain: essays towards a pedagogy of possibility. London: Bergin & Garvey., não estamos nos referindo à ética como um código moral fixo, mas que se pauta pelas responsabilidades que assumimos ao interagir com outras pessoas, responsabilidades essas que privilegiam a diversidade, o respeito, a justiça e a garantia de condições para a transformação da vida em bases mais afetivas e igualitárias. Nosso compromisso deve se pautar pela problematização de repertórios de sentido que causam sofrimento, produzem violência e reduzem direitos e oportunidades. Obviamente, não estamos falando de “calar a boca” de quem mobiliza tais repertórios, mas de engendrar formas democráticas de contestação, assim como fez Hoelzle (2016)HOELZLE, Maria José L. R. (2016). Desestabilizando sociabilidades em uma sala de aula de Língua Inglesa de uma escola pública. Dissertação de Mestrado em Estudos Linguísticos. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia.. Nossas experiências sociais e pedagógicas têm nos mostrado que não é pela imposição que conseguiremos expandir e/ou rearticular sentidos.

Os enquadres democráticos propiciados pela prática da professora mostram que os significados são sempre instáveis, estão sempre em movimento e podem apontar para outras histórias educacionais e políticas no Brasil. É essa instabilidade dos significados que nos leva a terminar este texto de forma instável: que perguntas podemos fazer para que repertórios sobre todas as performances socioidentitárias sejam democraticamente mobilizados? Uma educação questionadora de ontoepistemologias eurocentristas pode se contrapor aos discursos de ódio que incitam a violência contra diferentes grupos sociais no Brasil e no mundo, que crescem vertiginosamente nas redes sociais? Que perguntas são necessárias para confrontarmos as ameaças à democracia? Será que viveremos para ver que nossa democracia não foi apenas “um sonho efêmero” (DEMOCRACIA em vertigem, 2019DEMOCRACIA em vertigem. (2019). Direção de Petra Costa, Tiago Pavan, Joanna Natasegara, Shane Boris. Brasil: Netflix. Televisão.)? E haverá sempre “um gosto de sol na boca da noite” (NASCIMENTO, 1972NASCIMENTO, Milton. (1972). Nada será como antes. Odeon. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/47436/>. Acesso em: 26 out. 2020.
https://www.letras.mus.br/milton-nascime...
)?

  • 1
    Agradecemos às Profas. Laryssa Paulino de Queiroz Sousa e Viviane Pires Viana Silvestre, ao Prof. Pedro Augusto de Lima Bastos e às/aos revisoras/es, pela leitura cuidadosa e pelos valiosos comentários que resultaram em um texto mais bem construído. A primeira autora também agradece ao CNPq pela concessão da bolsa de produtividade em pesquisa, muito importante para a realização deste estudo.
  • 2
    Usamos a primeira pessoa plural aqui e alhures para nos referir não apenas ao trabalho de nossa autoria, mas também a vários estudos de dois grupos de pesquisa, Formação de Professoras/es de Línguas e Rede Cerrado de Formação Crítica de Professoras/es de Línguas, cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e liderados pela primeira autora deste artigo, tendo como colíderes a Profa. Viviane Pires Viana Silvestre (UEG) e o Prof. Kleber Aparecido da Silva (UnB), respetivamente.
  • 3
    Uma de nossas fontes de inspiração para o uso do termo praxiologias é a ideia de práxis pedagógica de Freire (2005)FREIRE, Paulo. (2005). Pedagogia do oprimido. 47. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra ., advinda da interrelação entre reflexão (teoria) e ação (prática) dos seres humanos sobre o mundo e que leva à transformação. Assim, nosso objetivo ao usar o termo praxiologias é romper com a dicotomia teoria-prática no âmbito da linguística aplicada.
  • 4
    termo inquiry é traduzido por pergunta, pois consideramos que a proposta de Nelson (1999)NELSON, Cynthia. (1999). Sexual identities in ESL: queer theory and classroom inquiry. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 371-391. dialoga e expande a “pedagogia da pergunta” defendida por Freire e Faundez (1985, p. 27)FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. (1985). Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra., os quais defendem que todo conhecimento começa não por respostas, mas por perguntas: “[a] existência humana é, porque se fez perguntando, a raiz da transformação do mundo. Há uma radicalidade na existência, que é a radicalidade do ato de perguntar”.
  • 5
    Utilizamos esse termo com base em Bloomaert (2008, p. 107) para evidenciar “o movimento do discurso através dos contextos”, ou seja, fizemos um deslocamento do material empírico de Hoelzle (2016) objetivando construir uma discussão original desse material neste artigo.
  • 6
    Todas as traduções de citações do inglês para o português são de nossa autoria.
  • 7
    Como os nomes fictícios escolhidos não permitem a identificação de sexo - o que é interessante, pois contribui para desestabilizar classificações binárias -, optamos por marcar o gênero das/os alunas/os usando M para masculino e F para feminino nos eventos comunicativos, visto que consideramos relevante para a discussão saber que alinhamentos são tomados por meninos e meninas.
  • 8
    Essa visão essencialista e generalizante é problematizada pela pesquisadora na dissertação.
  • 9
    Consideramos que Alaska quis dizer: “pessoas que gostam de outras do mesmo sexo”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2021
  • Aceito
    09 Mar 2021
  • Publicado
    16 Mar 2021
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