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O PERCURSO GAMER COMO NOVO MODELO DE MATERIAL DIDÁTICO PARA O ENSINO DE ESCRITA

A GAMER ROUTE AS A NEW DIDACTIC MATERIAL FOR TEACHING WRITING

RESUMO

Neste artigo, buscamos refletir sobre as interfaces entre os games e o ensino de escrita, por meio do relato do desenvolvimento e da aplicação de um material didático com inspiração na lógica dos jogos eletrônicos, o qual chamamos de percurso gamer. O material criado é intitulado "Lara Croft nos templos do Camboja", em homenagem aos jogos da franquia Tomb Raider, na qual é possível assumir a identidade de uma arqueóloga fictícia. Vislumbramos nesses jogos a possibilidade de explorar os letramentos e os gêneros científicos e de divulgação científica. Embasam a criação desse novo modelo de material didático as teorias de letramentos, gamificação e Aprendizagem Baseada em Jogos. Para a aplicação em sala de aula, utilizamos a metodologia da pesquisa-ação e os seguintes instrumentos de geração de dados: questionário, videogravação das aulas, captura de imagens no computador, diário de pesquisa e entrevistas. Concluímos que o percurso gamer oferece aos estudantes a possibilidade de vivenciar uma profissão e escrever textos em diferentes gêneros a partir da assunção de um ethos discursivo previamente delimitado pelo personagem, o que permite mobilizar a prática social na produção textual e compreender com maior profundidade a cena da enunciação, devido à imersão na proposta narrativa.

Palavras-chave:
jogos eletrônicos; gamificação; material didático; letramentos; escrita

ABSTRACT

In this article, we seek to reflect on the interfaces between games and the teaching of writing, through the development and application of a didactic material inspired by the logic of games, which we call the gamer route. The material created is titled "Lara Croft in the temples of Cambodia", named after the Tomb Raider franchise games. In the game it is possible to assume the identity of a fictional archaeologist. We envision in these games the possibility of exploring literacies and scientific and science popularization genres. The theories of literacies, gamification and Game-Based Learning support the creation of this new model of didactic material. For the application in the classroom, we used the action research methodology and the following data generation instruments: questionnaire, video recording of classes, computer image capture, research diary and interviews. As a main result, we conclude that the gamer route offers students the possibility of experiencing a profession and writing texts in different genres from the assumption of a discursive ethos previously delimited by the character, which allows mobilizing social practice in textual production and understanding in greater depth the scene of enunciation, due to the immersion in the narrative proposal.

Keywords:
electronic games; gamification; didactic materials; literacies; writing

"PRESSIONE QUALQUER TECLA PARA COMEÇAR"

Emprestamos o enunciado "pressione qualquer tecla para começar", próprio dos jogos eletrônicos, com a intenção de inserirmos o leitor no universo gamer que abordaremos neste artigo. Esse comando permite ao jogador iniciar sua jornada em um mundo imersivo cheio de aventuras e, de forma comparativa, pretendemos começar a apresentação de algumas reflexões sobre as interfaces entre os games e as atividades de escrita escolares.

É necessário investigar qual pode ser o aproveitamento dos games no ensino de Língua Portuguesa, para além de mecânicas de jogos comuns em algumas aplicações educacionais disponíveis em repositórios e catálogos didáticos, por exemplo, testes de gramática tradicional que dão pontos ao jogador a cada resposta correta. Nas últimas décadas, expandiu-se o estudo do conceito de gamificação, entendido como a aplicação da mecânica, da estética e da dinâmica de games em contextos diversos que não sejam somente jogos (KAPP, 2012KAPP, K. M. (2012). The gamification of learning and instruction: game-based methods and strategies for training and education. San Francisco: Pfeiffer.). O que poderia parecer inovador nem sempre se mostrou dessa maneira, já que muitas vezes apenas a mecânica de jogos foi utilizada em diversas iniciativas, fazendo com que alguns críticos vissem na gamificação uma perda de tempo (BOGOST, 2011BOGOST, I. (2011). Gamification is bullshit! My position statement at the Wharton Gamification Symposium. Ian Bogost Blog. Disponível em: http://bogost.com/writing/blog/gamification_is_bullshit/. Acesso em: 14 jun. 2022.
http://bogost.com/writing/blog/gamificat...
). Chou (2014)CHOU, Y. K. (2014). Actionable gamification: beyond points, badges, and leaderboards. San Francisco: Octalysis Media. chamou esse tipo de gamificação baseada em mecânicas de PBL: Points, Badges and Leaderboards (Pontos, Insígnias e Classificação). Nesses casos, não há o envolvimento do jogador em uma jornada lúdica, o que não garante o engajamento do indivíduo (BURKE, 2014BURKE, B. (2014). Gamificar: como a gamificação motiva as pessoas a fazerem coisas extraordinárias. Tradução de Sieben Gruppe. São Paulo: DVS Editora, 2015.).

Era nosso desejo, portanto, desvendar novos caminhos investigativos. Para isso, produzimos um material didático digital baseado na lógica da franquia de games Tomb Raider, intitulado "Lara Croft nos templos do Camboja". O material teve como inspiração diversos títulos da franquia, mas foi criada uma narrativa inédita em que os estudantes podem vivenciar uma aventura arqueológica no Camboja e, ao mesmo tempo, aprender Língua Portuguesa. Aplicamos o material em sala de aula por meio de uma pesquisa-ação, na qual participamos como pesquisadora e professora de uma turma de Ensino Médio, em um curso popular para jovens de escolas públicas, realizado em uma universidade do Estado de São Paulo. A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética da universidade e obteve o consentimento explícito de todos os participantes e/ou seus responsáveis, que tiveram seus nomes modificados para a preservação de suas identidades.

De acordo com De Freitas (2006)DE FREITAS, S. (2006). Learning in immersive worlds: A review of game-based learning. JISC e-Learning Programme, v. 3, p 1-73. Disponível em: https://researchrepository.murdoch.edu.au/id/eprint/35774/1/gamingreport_v3.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
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, os games costumam ser estudados de forma fragmentada. Os psicólogos buscam entender os problemas da violência nos jogos; os teóricos culturais querem entender os estereótipos; os filósofos tentam definir o que é um game; os educadores refletem sobre como utilizar os games em sala de aula. Embora todos esses estudos sejam válidos, a autora argumenta que eles não são suficientes para compreender a complexidade de um game e, para isso, seriam necessárias pesquisas integradas entre diferentes áreas. Por essa razão, buscamos na Linguística Aplicada, um campo transdisciplinar de pesquisa, um campo de investigação apropriado para desenvolver o percurso gamer.

Para aplicar o material em sala de aula e verificar como ele seria utilizado na prática, realizamos uma pesquisa-ação. Segundo Noffke e Somekh (2005)NOFFKE, S.; SOMEKH, B. (2005). Action Research. In: SOMEKH, B.; LEWIN, C. (orgs.). Research methods in social sciences. London: Sage Publications, p. 89-96., essa metodologia é adequada para profissionais que desejam investigar e melhorar a própria prática, colocando-se como coparticipantes de uma pesquisa. Por essa razão, Burns (2010)BURNS, A. (2010). Doing action research in English language teaching: A guide for practitioners. New York: Routledge. entende que ela é muito produtiva para as pesquisas educacionais e do campo de estudos da linguagem, já que coloca os professores na posição de pesquisadores de suas próprias aulas, tornando-os reflexivos.

Como professora de um curso popular realizado na universidade, destinado a estudantes do Ensino Médio de escolas públicas, decidimos criar e aplicar o material em sala de aula. Conforme explica Burns (2010)BURNS, A. (2010). Doing action research in English language teaching: A guide for practitioners. New York: Routledge., os passos de uma pesquisa-ação consistem no planejamento, na ação, na observação e na reflexão. O planejamento de nossa pesquisa foi feito por meio do desenvolvimento do material. A ação e a observação foram realizadas em sala de aula, com interações gravadas pelos seguintes instrumentos de pesquisa: questionário inicial de sondagem dos conhecimentos prévios dos estudantes a respeito dos games, diário de pesquisa, videogravação das aulas, registro das produções textuais dos estudantes, software de captura de tela e realização de entrevista semiestruturada. Neste artigo, trazemos principalmente as impressões dos estudantes sobre o percurso gamer coletadas na entrevista.

Os participantes da pesquisa foram a professora, que também era a pesquisadora, e os estudantes de duas turmas, chamadas de A e B. A professora-pesquisadora, no momento da pesquisa, era formada em Letras e Mestre em Linguística Aplicada. Ela já havia lecionado as aulas de Língua Portuguesa do curso por dois anos e estava com as turmas desde o semestre anterior à aplicação do material. Como pesquisadora, tem interesses de investigação na relação entre as tecnologias digitais e o ensino de Língua Portuguesa. Nas horas vagas, gosta de jogar games. É também autora de materiais didáticos. Os estudantes, por sua vez, tinham o perfil definido pela seleção do curso: estavam no 2º ou 3º ano do Ensino Médio da rede pública de Campinas ou tinham completado integralmente o Ensino Médio em modalidade regular ou EJA (Educação de Jovens e Adultos). No total, conseguimos o consentimento de 40 participantes da pesquisa, divididos da seguinte maneira: 22 estudantes da Turma A e 18 estudantes da Turma B. Os menores de idade foram autorizados por seus responsáveis a atuar como participantes da pesquisa. Os maiores de idade assinaram suas autorizações. Para preservar a identidade de cada um deles, foram criados nomes fictícios (alguns dados por eles mesmos).

O material didático digital foi criado com base em um conceito novo chamado de percurso gamer, que pretendemos explorar ao longo do artigo. Em resumo, o percurso gamer é um conjunto de atividades didáticas, que possibilita a interação com um espaço virtual, a vivência de ações em um mundo imersivo e a encarnação de um personagem. Associaremos tais instâncias dos jogos a conceitos amplamente estudados na Linguística Aplicada, como letramentos, gêneros e ethos discursivo. Argumentaremos que se trata de um método de ensino-aprendizagem que funciona como operador na pedagogia linguística via letramentos, por meio da lógica de jogos.

Escolhemos os games da série Tomb Raider como inspiração para o material didático, pois encontramos neles potencialidades para o ensino de gêneros científicos e de divulgação científica, ao aliar nossa experiência como professora e jogadora. A personagem principal da série é Lara Croft, uma arqueóloga fictícia britânica. Lara Croft abre mapas, lê documentos históricos, analisa artefatos arqueológicos e faz apreciações sobre a aparência, a conservação e a origem dos objetos encontrados. Em seus acampamentos, tais reflexões são registradas em um diário de pesquisa. A partir dessa experiência, o jogador pode simular ser um arqueólogo profissional, ainda que com elementos de aventura e de ficção.

Do ponto de vista educacional, defendemos que as mecânicas de jogos podem ser aproveitadas, mas existem outros elementos lúdicos que podem ser mobilizados para engajar o estudante em uma jornada, ao mesmo tempo que podem ser ensinados conteúdos de Língua Portuguesa. A simulação em um mundo imersivo, no qual se desenrolam as ações da narrativa, permite a imersão em determinadas práticas de letramentos. Estas últimas são entendidas como práticas sociais de leitura e escrita, em uma perspectiva ideológica do conceito de letramento (STREET, 1995STREET, B. V. (1995). Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.). Nessas práticas, são mobilizados determinados gêneros discursivos (BAKHTIN, 1979BAKHTIN, M. M. (1979). Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2003, p. 261-306.), que também podem ser explorados pelo jogador. A assunção de um personagem, por sua vez, proporciona o movimento de se colocar no lugar do outro (GEE, 2007GEE, J. P. (2007). Pleasure, learning, video games, and life: The projective stance. In: KNOBEL, M.; L., Colin (orgs.). A new literacies sampler. New York: Peter Lang.), o que pode ser aproveitado como a experiência de ler e de escrever como um personagem em determinado ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2008MAINGUENEAU, D. (2008). A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (orgs.). Ethos discursivo. Tradução de Luciana Salgado. São Paulo: Contexto, p. 11-29.).

Para compreender melhor o conceito que pretendemos apresentar, definiremos o conceito de percurso gamer como um material didático na lógica dos jogos digitais. Para que a discussão seja concretizada, analisaremos alguns dados gerados na pesquisa-ação, no intuito de fazer uma reflexão sobre o uso do percurso gamer em sala de aula. Por fim, apresentaremos alguns caminhos possíveis para futuras pesquisas em Linguística Aplicada, tendo em vista a investigação aqui referenciada.

1. UM MATERIAL DIDÁTICO DIGITAL NA LÓGICA DOS GAMES

O percurso gamer, como um novo modelo de material didático, apresenta três características que aliam elementos dos jogos a aspectos do estudo das línguas e das linguagens: 1) Espaço virtual e mecânicas de games; 2) Mundo imersivo, práticas de letramentos e gêneros; 3) Encarnação de um personagem e ethos discursivo. Essas três facetas serão exploradas por meio de definição teórica e de exemplos de criação do material didático digital "Lara Croft nos templos do Camboja".

1.1 Espaço virtual e mecânicas de games

Referência no estudo dos jogos, Huizinga (2000) defende que todo jogo é uma atividade voluntária que tem um espaço previamente definido (uma arena, uma mesa de jogo, um tabuleiro etc.), um tempo específico em que as ações acontecem (todo jogo tem um "fim") e regras (o que pode ou não ser feito enquanto o jogo ocorre). Quando os jogos são digitais, podemos entender que o espaço pode ser virtual, o que amplia as possibilidades de interação, já que é possível não só imaginar, como realmente interagir com cenários e personagens que são apresentados visualmente ao jogador.

Essas características dos jogos costumam se refletir especificamente em suas mecânicas, isto é, em sua estrutura formal, seja virtual ou não. Em nossa concepção, o percurso gamer também pode apresentar as mesmas características, por meio da criação dos três elementos anteriormente citados, sem que isso signifique apenas a mera aplicação de pontos em questões múltipla-escolha, formato mais comum encontrado em repositórios digitais.

Para a criação do material didático digital "Lara Croft nos templos do Camboja", desenvolvemos um espaço interativo virtual, em uma plataforma gratuita para criação de sites. A plataforma Wix permite a qualquer usuário da internet criar um site, por meio de recursos simples e intuitivos, como personalização de cores, imagens, ícones e caixas de textos, além da edição de modelos pré-prontos. Podem ser agregados recursos diversos, como integração às redes sociais e inserção de mapas interativos do Google Maps.

Utilizando recursos disponíveis na plataforma, criamos uma estética semelhante a uma floresta cambojana, por meio de planos de fundo de folhagens tropicais (figura 1). A temática da arqueologia foi mobilizada, por sua vez, por meio de caixas de texto em cores bege e marrom, assim como por meio da adição de fotos de templos do Camboja, da integração com mapas reais dos locais e do direcionamento de links a visitas virtuais em 360° oferecidas por outros sites referenciados. O objetivo era que a estética do espaço permitisse ao estudante sentir-se em uma aventura no Camboja, tal como a personagem vivenciaria na narrativa. Inserimos, ainda, trilhas sonoras para enaltecer certos momentos de clímax e desfecho. Elas podem ser desligadas a qualquer momento pelo estudante.

Figura 1
Aspecto visual do percurso gamer "Lara Croft nos templos do Camboja".

Em relação ao tempo, assim como em um jogo autêntico, prevemos que o estudante poderia seguir as etapas de cada atividade em seu próprio ritmo, desvinculando-se das rotinas tradicionais de sala de aula. No entanto, para finalidades de organização do professor, um planejamento foi idealizado para a pesquisa, considerando-se aulas de 50 minutos, conforme demonstramos no quadro 1, a seguir.

Quadro 1
Distribuição das aulas no planejamento do percurso gamer – tempo, gêneros e objetivos.

Já as regras estabelecidas foram inspiradas especialmente no jogo mobile da franquia: Lara Croft: Relic Run (2015). Nesse game de corrida infinita para smartphones, Lara Croft precisa coletar moedas de ouro, que são convertidas em estrelas para passar de fase e em dinheiro fictício para comprar vantagens e benefícios que melhoram a experiência do jogador. No material, também estabelecemos determinada pontuação para algumas atividades, que servem, inclusive, para avaliação das propostas, seja entre pares de estudantes ou pelo professor. Os pontos podem ser convertidos em moedas, que compram dicas para os enigmas que antecedem o início de cada nova missão. A pontuação pode ser atribuída automaticamente, quando se trata de atividades de resposta automática feitas por meio de formulários, ou ainda atribuída manualmente, quando depende da apreciação de colegas e do professor.

1.2 Mundo imersivo, práticas de letramentos e gêneros

Segundo De Freitas (2006)DE FREITAS, S. (2006). Learning in immersive worlds: A review of game-based learning. JISC e-Learning Programme, v. 3, p 1-73. Disponível em: https://researchrepository.murdoch.edu.au/id/eprint/35774/1/gamingreport_v3.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
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, os games podem ser entendidos como mundos imersivos que proporcionam situações de aprendizagem, pois mobilizam simulações, nas quais é possível construir, investigar e interrogar situações hipotéticas. Na mesma linha de raciocínio, de acordo com Gee (2003)GEE, J. P. (2003). What video games have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan, 2014. [e-book]., por meio de um mundo imersivo, os games permitem que o jogador tenha experiências situadas de aprender e pensar. As situações vivenciadas no mundo virtual do jogo demandam que o jogador participe de ações, faça escolhas e defina diálogos, algumas vezes permitindo até mesmo uma interferência na narrativa, a depender do tipo de game envolvido. Conforme explica o autor, a aprendizagem nos games se dá por meio de um ciclo de sondagem, formulação de hipóteses, (re)sondagem e reconsideração.

O jogador faz uma sondagem do mundo virtual para saber quais decisões precisa tomar e, então, cria uma hipótese sobre algo que encontra (por exemplo, a funcionalidade de um objeto). Em seguida, ele precisa testar sua hipótese na prática, por meio de uma (re)sondagem do espaço. Como é próprio dos games, imediatamente o jogador poderá ter uma resposta se a sua hipótese está correta ou equivocada, o que o levará a seguir em frente ou a reconsiderar o que precisa ser feito. Isso pode ser entendido a partir da exemplificação de uma situação rotineira no game Rise of Tomb Raider (2015), um dos títulos da série que inspirou o material referenciado neste artigo.

No jogo mencionado, Lara Croft encontra uma tumba secreta. Essas tumbas costumam trazer desafios para serem solucionados pelo jogador. Há diversas barreiras que bloqueiam a passagem, de modo que a personagem não consegue prosseguir no cenário. No espaço, podem ser observados alguns objetos, como baldes, cordas, pedras, carrinhos de mão, escadas, ferramentas etc. Para que possa avançar, o jogador precisa sondar o espaço e formular uma hipótese a respeito de qual dos objetos pode desobstruir a passagem, por exemplo, quebrar uma pedra que deixava uma escada inacessível. Depois de colocada a hipótese em ação, o jogador terá uma resposta imediata do game, mostrando se sua ideia estava correta. Se a hipótese estiver correta, o jogador poderá seguir em frente; se estiver equivocada, precisará reconsiderar suas ações, fazer uma nova sondagem e criar novas hipóteses.

De acordo com Gee (2003)GEE, J. P. (2003). What video games have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan, 2014. [e-book]., vivenciar esse ciclo exploratório de aprendizagem é um potencial dos games para a educação, pois permite aprender por experiência e por meio da imersão em um mundo simulado, diferentemente de algumas aprendizagens escolares que solicitam que os estudantes apenas decorem fatos, sem saber utilizar o conhecimento na prática; ou ainda que aprendam a teoria para depois aplicá-la na prática.

No mundo imersivo, argumentamos ser possível mobilizar diversos letramentos e gêneros. No entanto, é preciso diferenciar dois "tipos" de letramento que podem ser mobilizados nos jogos digitais, com base no entendimento de dois modelos de jogos apontados por Gee (2007)GEE, J. P. (2007). Pleasure, learning, video games, and life: The projective stance. In: KNOBEL, M.; L., Colin (orgs.). A new literacies sampler. New York: Peter Lang.. Não pretendemos com essa discussão gerar novas classificações acerca do conceito, mas apenas diferenciar algumas práticas desse universo lúdico. Há letramentos próprios da mecânica dos jogos e há aqueles que são relacionados ao mundo imersivo criado pelo game.

Para exemplificar o primeiro tipo de letramento, podemos citar o game Super Lucky’s Tale (2017). Nesse jogo, o personagem principal é Lucky, uma simpática raposa. Ele está aprisionado no Livro das Eras, devido a uma ação dos vilões Los Gatitos, que querem dominar o mundo. Para escapar desse mundo, ele precisa percorrer fases, que demandam ações como correr, saltar, coletar itens e acertar inimigos. Trata-se de um game que reinterpreta os antigos jogos de plataforma, como o famoso Super Mario Bros. (1985). Ao longo do caminho, o jogador precisa associar certos botões a determinadas ações. Os letramentos mobilizados pelo game se resumem a ler placas indicativas, associar símbolos a funções e acompanhar diálogos entre os personagens. Conforme nos alerta Gee (2007)GEE, J. P. (2007). Pleasure, learning, video games, and life: The projective stance. In: KNOBEL, M.; L., Colin (orgs.). A new literacies sampler. New York: Peter Lang., jogos como esse são divertidos, mas não demandam do jogador nenhuma habilidade específica, além daquela de apertar botões para que determinada ação aconteça.

No intuito de exemplificar o segundo tipo de letramento, podemos citar os games da série Tomb Raider, como o mais recente Shadow of Tomb Raider (2018). Lara Croft é uma arqueóloga, portanto, boa parte de suas ações está relacionada a essa profissão, por exemplo, analisar e catalogar documentos, relíquias e artefatos históricos. Dessa maneira, o jogo incentiva a participação em práticas de letramento próprias dessa profissão, levando o jogador a pensar e a agir como uma arqueóloga. Tais práticas acabam por mobilizar certos gêneros próprios dessa esfera, como o diário de pesquisa, por exemplo. Assim, na mesma linha de raciocínio de Gee (2007)GEE, J. P. (2007). Pleasure, learning, video games, and life: The projective stance. In: KNOBEL, M.; L., Colin (orgs.). A new literacies sampler. New York: Peter Lang., podemos entender que games como esse mobilizam não somente letramentos relativos a uma ação técnica de jogar, mas também letramentos de uma determinada profissão, o que pode ser muito relevante para práticas educacionais. É por essa razão que escolhemos essa franquia de jogos como inspiração para o material didático produzido na pesquisa, levando ainda mais adiante a ideia de que não somente se pode pensar e agir como a personagem, mas também ler e escrever como ela.

Para entendermos como isso foi aplicado no percurso gamer, é necessário compreender como funcionam as práticas do campo de investigação da Arqueologia. Em relação à linguagem utilizada pelos arqueólogos, pode-se dizer que o texto científico arqueológico é multissemiótico, pois são utilizados textos associados às imagens, com a finalidade de fazer a documentação e o registro. De acordo com Oliveira et al (2013)OLIVEIRA, M. D. B. G. de et al. (2013). Arqueologia estratégica: abordagens para o estudo da totalidade e construção de sítios monticulares. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 8, n. 3, p. 517-533. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3940/394035001003.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
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, o diário de campo e os artigos científicos produzidos por esses profissionais incluem desenhos, croquis e fotografias. O croqui é um desenho técnico que detalha "aspectos de objetos ou áreas, considerados importantes pelo pesquisador" (OLIVEIRA et al., 2013, p. 525OLIVEIRA, M. D. B. G. de et al. (2013). Arqueologia estratégica: abordagens para o estudo da totalidade e construção de sítios monticulares. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 8, n. 3, p. 517-533. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3940/394035001003.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
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).

É interessante conhecer também como é realizada a metodologia arqueológica. Segundo Schober (2003)SCHOBER, J. (2003). Metodologia depende do objeto de estudo. ComCiência, 10 set. 2003. Disponível em: http://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/arqueologia/arq07.shtml. Acesso em: 14 jun. 2022.
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, ela é iniciada pela identificação de um sítio arqueológico, que pode ser identificado por meio de vestígios superficiais registrados em fotografias ou filmagens. Em seguida, os pesquisadores iniciam o levantamento de informações, o que inclui pesquisa bibliográfica, coleta de depoimentos de pessoas locais e sondagem por meio de tecnologias como laser, GPS, fotografias áreas, imagens por satélite, entre outras. Na sequência, é iniciado o trabalho de campo, que pode envolver escavação. Segundo Oliveira et al (2013)OLIVEIRA, M. D. B. G. de et al. (2013). Arqueologia estratégica: abordagens para o estudo da totalidade e construção de sítios monticulares. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 8, n. 3, p. 517-533. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3940/394035001003.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
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, durante o trabalho de campo é fundamental levar formulários para sistematizar descrições e nortear procedimentos, assim como para fazer registros no diário de campo. Segundo os autores,

o diário de campo é o recurso utilizado para documentar as atividades diárias de cada escavador e fornecer impressões individuais das pessoas diretamente envolvidas em diversas intervenções, além de complementar as informações dos formulários específicos. Inclui descrições, observações, desenhos e croquis, e comentários do sítio como um todo, estabelecendo uma narrativa sobre as atividades desempenhadas (OLIVEIRA et al, 2013OLIVEIRA, M. D. B. G. de et al. (2013). Arqueologia estratégica: abordagens para o estudo da totalidade e construção de sítios monticulares. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 8, n. 3, p. 517-533. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3940/394035001003.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
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, p. 524-525).

Após o trabalho de campo, Schober (2003)SCHOBER, J. (2003). Metodologia depende do objeto de estudo. ComCiência, 10 set. 2003. Disponível em: http://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/arqueologia/arq07.shtml. Acesso em: 14 jun. 2022.
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esclarece que os objetos são coletados e levados para análises que são feitas em laboratório, com o devido cuidado a depender do tipo de material e da condição de preservação do artefato. Por fim, as análises são documentadas em relatórios e podem ser transformadas em artigos científicos, artigos de divulgação científica e capítulos de livros.

Em Tomb Raider, essas práticas de letramentos são reproduzidas ao longo da narrativa. Em diversos jogos da série, em meio às suas aventuras, Lara viaja em expedições arqueológicas para realizar trabalhos de campo, que posteriormente são divulgados ao mundo, por meio da publicação de livros2 2 Lara Crof teve sua biografia modificada várias vezes ao longo da série de jogos. Apesar de sempre ter sido caracterizada como uma arqueóloga, nos primeiros jogos da série, a personagem era considerada uma caçadora de relíquias, furtando artefatos de diversos locais do mundo em busca de seus propósitos pessoais. Tratava-se de uma visão colonizadora, que não buscava respeitar o pertencimento dos artefatos às culturais locais. Essas ações foram retradas dos jogos atuais, de modo que Lara Crof hoje apenas cataloga os artefatos encontrados. . Um exemplo de como a personagem se coloca como arqueóloga pode ser encontrado em Shadow of The Tomb Raider (2018), conforme a figura 2. Ao se deparar com um artefato descoberto pelo jogador, Lara analisa-o de perto, faz reflexões sobre suas origens e, posteriormente, cataloga-o em sua coleção. Utilizando os controles (joystick ou mouse), o jogador pode aproximar-se do objeto, girá-lo e examiná-lo para encontrar informações escondidas, aprimorando a exploração e a investigação. Esse momento evidencia o trabalho de campo do arqueólogo, ao representar a prática de encontrar o objeto e fazer seu registro no diário.

Figura 2
Relíquia "Jarra de cerâmica" em Shadow of The Tomb Raider (2018).

Os movimentos de exploração, catalogação de artefatos e produção de diários de pesquisa foram ações aproveitadas para a elaboração do percurso gamer, com a finalidade de envolver o estudante em um mundo imersivo no qual as práticas de letramento dos arqueólogos e os gêneros mobilizados por eles fossem apresentados aos estudantes. Enxergamos, em especial, uma oportunidade para trabalhar com os gêneros científicos e de divulgação científica, tão importantes para a escolarização.

Tomamos como mote narrativo a história contada em Lara Croft: Relic Run (2015), em que Carter Bell, amigo de Lara e arqueólogo de sua equipe, desaparece em uma expedição que ambos fazem ao Camboja. Lara Croft então precisa encontrá-lo e, para isso, passa por uma série de desafios que envolvem coleta de artefatos e enfrentamento de inimigos. Inspirados por essa narrativa, em movimento similar ao que fãs fazem nas chamadas fanfics, criamos uma narrativa derivada. Em nossa história, a personagem acorda sem memória, em um hospital. Quando abre seus olhos, ainda confusa, é amparada pelo Professor Von Croy, chefe da equipe de arqueólogos e grande inspiração em sua vida. Ele conta para Lara Croft que ela voltou de uma expedição ao Camboja sem seu amigo e, portanto, precisa voltar ao local para poder resgatar o colega e descobrir o que aconteceu.

Assim inicia-se a jornada para o estudante, que deverá cumprir quatro missões nas quais será necessário fazer pesquisas, ler textos em diversos gêneros para descobrir mais informações, desvendar enigmas e catalogar os artefatos encontrados em um diário de pesquisa. Objetiva-se colocar o estudante na posição de uma arqueóloga, simulando as práticas de letramento mencionadas anteriormente. A seguir, mencionamos brevemente cada uma das missões.

  • a. Missão 1 – Mistérios do Sudeste Asiático. Lara acorda sem memória no hospital e descobre que precisa voltar ao Camboja para procurar o amigo. Colocando-se na posição da personagem, a primeira tarefa do estudante é fazer uma pesquisa sobre o país que deve visitar. É preciso responder um formulário sobre a pesquisa, no qual são exploradas informações geográficas, históricas, políticas e culturais sobre o Camboja. Em seguida, Lara Croft tem uma primeira lembrança: a de que ela e Carter Bell estavam em uma "cidade perdida". O estudante, então, é convidado a ler uma notícia de divulgação científica sobre Mahendraparvata, uma cidade cambojana descoberta por meio de tecnologia laser em meio às florestas tropicais do país. Na posição da personagem, o estudante deve fazer um primeiro registro no diário de pesquisa, escrevendo reflexões sobre as informações que encontrou. Algumas informações sobre o gênero começam a ser trabalhadas em uma janela pop-up que pode ser clicada pelo estudante.

  • b. Missão 2 – No templo da floresta: Mahendraparvata. Lara Croft chega à "cidade perdida" e encontra o diário de pesquisa de Carter Bell perdido no chão. Como as informações ainda não são suficientes para descobrir mais pistas, a personagem procura por um artigo enciclopédico a respeito do Povo Khmer, que também é oferecido como atividade de leitura. Professor Von Croy solicita que Lara Croft envie um resumo do artigo, o que configura uma atividade de produção textual. Dando sequência aos acontecimentos, em meio à sua jornada, a personagem faz uma descoberta arqueológica de uma escultura de elefante na floresta, que deve ser catalogada no diário de pesquisa. Uma janela pop-up aborda questões estilísticas do gênero, como a forma de descrição do artefato no diário.

  • c. Missão 3 – Um dos maiores complexos arqueológicos do mundo: Angkor Wat. O próximo local a ser visitado por Lara em sua jornada é Angkor Wat. No caminho, na posição da personagem, o estudante deve assistir a uma videorreportagem de divulgação científica sobre o complexo arqueológico. Para comentar a reportagem e algumas possíveis descobertas, Lara Croft conversa com o Professor Von Croy em um aplicativo de mensagens instantâneas. A atividade consiste em fazer apreciações pessoais, bem como estudar algumas características do gênero. Com base em uma galeria de fotos da UNESCO, os estudantes devem selecionar algumas delas para produzir uma fotorreportagem, outro gênero que também é apresentado por meio de exemplos e de leitura em janela pop-up. Quase ao fim da missão, Lara faz mais uma descoberta arqueológica que precisa ser documentada pelos estudantes no diário de pesquisa: uma parede com escultura de apsarás. Dessa vez, orientações sobre o relato e a subjetividade do diário de pesquisa são trabalhadas na atividade, em progressão ao que foi aprendido anteriormente.

  • d. Missão 4 – Entre árvores e ruínas: Ta Prohm. Lara Croft chega ao último local do percurso gamer: o templo Ta Prohm. Ela descobre que Carter Bell está refém de bandidos que fazem contrabando de relíquias arqueológicas. Em atividade lúdica, os estudantes precisam fazer um plano de salvamento do amigo, sem a utilização de violência. Voltando ao país de origem, encontram o Professor Von Croy, que solicita a escrita de um relatório sobre as descobertas encontradas no Camboja e um artigo de divulgação científica acompanhado de infográfico. Esta última produção deve ser feita em grupos. Ambos os gêneros contam com pop-ups explicativos e exemplos que embasam a escrita dos estudantes. Os artigos de divulgação científica produzidos pela turma devem ser editados e publicados em um blog para essa finalidade. Termina a aventura.

1.3 Encarnação de um personagem e ethos discursivo

Ainda que nem todos os jogos apresentem narrativa, conforme bem notou Santaella (2007)SANTAELLA, L. (2007). Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus., uma das características mais produtivas dos games da atualidade é a possibilidade de encarnar um personagem.

Na visão de Gee (2007)GEE, J. P. (2007). Pleasure, learning, video games, and life: The projective stance. In: KNOBEL, M.; L., Colin (orgs.). A new literacies sampler. New York: Peter Lang., quando o jogador assume o personagem, passa a pensar e a agir como ele, influenciado por um dinâmica de três identidades diferentes, considerando o entendimento de que os sujeitos apresentam múltiplas identidades. Para entender esse fenômeno, vamos trazer uma exemplificação, utilizando a série de games Tomb Raider e uma jogadora fictícia. A jogadora tem uma identidade real, que é aquela composta por suas múltiplas identidades multifacetadas, por exemplo, ser mulher, professora, universitária, amante de games etc. Já a personagem tem uma identidade virtual, por exemplo, Lara Croft é teimosa, corajosa, inteligente, obstinada etc. Quando a jogadora assume a personagem, passa a vivenciar uma identidade projetada, que é aquela em que a jogadora se vê como Lara Croft e nela projeta suas intenções e seus valores de vida. Por exemplo, a arqueóloga do game é corajosa, a jogadora pode não ser. Quando esta última deixa de explorar um local perigoso por medo, por exemplo, é possível perder uma relíquia escondida, o que têm consequências para o jogo.

Essa dinâmica identitária tem grande valor para a educação, pois permite ao estudante colocar-se no lugar do outro. Em nosso caso, escolhemos Lara Croft para que o estudante pudesse ter a experiência de vivenciar ser uma arqueóloga. No entanto, esse recurso pode ser utilizado para diferentes finalidades, como simular ser um médico, um professor, um artista, um personagem histórico, entre outras possibilidades. Gee (2003)GEE, J. P. (2003). What video games have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan, 2014. [e-book]. entende, inclusive, que alguns games mobilizam expertises profissionais, o que pode colocar os estudantes para aprender profissões na prática, algo que pode ser amplamente explorado em atividades educacionais.

Na área de estudo dos jogos digitais, o ato de encarnar um personagem é conhecido por assumir um avatar. A palavra avatar é emprestada do hinduísmo e significa as diversas formas que o deus Vishnu vem ao mundo. De forma análoga, pode-se entender que a palavra representa a ação do jogador de vivenciar um personagem no mundo virtual, assumindo uma forma diferente da realidade. Araujo (2014)ARAUJO, W. S. (2014). A construção de identidades: da leitura para o roteiro e do roteiro para a leitura - um estudo analítico de projetos de adaptação de textos literários para jogos digitais. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/14322. Acesso em: 14 jun. 2022.
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, ao estudar as relações discursivas presentes em jogos digitais, concluiu que o jogador assume o ponto de vista enunciativo eu-avatar, especialmente em games que demandam o posicionamento em diálogos e permitem alterar os rumos da narrativa. Podemos entender que o eu-avatar descreve em termos enunciativos a relação identitária explorada por Gee (2003)GEE, J. P. (2003). What video games have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan, 2014. [e-book]. entre a identidade real e a identidade do personagem, resultando na identidade projetada, já que corresponde ao ato de colocar-se no lugar do outro, inclusive no que diz respeito aos usos da língua.

A posição enunciativa eu-avatar, a nosso ver, também pode ser associada à construção do ethos discursivo de um personagem. De acordo com Maingueneau (2008)MAINGUENEAU, D. (2008). A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (orgs.). Ethos discursivo. Tradução de Luciana Salgado. São Paulo: Contexto, p. 11-29., há o ethos pré-discursivo, formado a partir das atribuições sobre o que se pensa do enunciador antes do momento da enunciação, e o ethos discursivo, construído no momento da enunciação propriamente dita. O ethos discursivo pode ser dividido entre o ethos dito3 3 O ethos dito é aquele em que o enunciador evoca a própria enunciação. e o ethos mostrado. Interessa-nos especialmente este último, que diz respeito ao modo como o enunciador se constrói em sua cena enunciativa.

Para entender como isso acontece, Maingueneau (2010)MAINGUENEAU, D. (2010). Doze conceitos em análise do discurso. Tradução de Adail Sobral et al. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. afirma que o ethos mostrado faz parte de uma cena de enunciação. Esta é composta por uma cena englobante, uma cena genérica e uma cenografia. A cena englobante é o tipo de discurso (por exemplo, literário, filosófico, religioso etc.), a cena genérica é o gênero do discurso (por exemplo, carta, reportagem, romance etc.) e, por fim, a cenografia é a forma como o enunciador constrói o discurso, o que não está relacionado necessariamente ao gênero, por exemplo, quando um político adota um tom de "homem do povo" ao fazer uma propaganda eleitoral. Na visão do autor, existem gêneros que admitem cenografias variadas, como um romance, por exemplo, enquanto outros seguem apenas uma cena rotineira, por exemplo, uma bula de remédio.

É importante trazer para a discussão a diferenciação que Maingueneau (2010)MAINGUENEAU, D. (2010). Doze conceitos em análise do discurso. Tradução de Adail Sobral et al. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. faz entre a situação de comunicação e a cena da enunciação. A situação de comunicação corresponde aos produtores e leitores reais dos enunciados, enquanto a cena de comunicação é uma abordagem interna ao enunciado, que só pode ser analisada na materialidade discursiva. Isso pode ser exemplificado nas práticas de produção escolar. Em geral, a situação de comunicação envolve estudantes que escrevem para professores, mas a cena da enunciação pode ser outra, por exemplo, um jornalista que escreve uma reportagem para um veículo de comunicação de grande circulação. Como argumentam Schneuwly e Dolz (1997)SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (1997). Os gêneros escolares – das práticas de linguagem aos objetivos de ensino. Tradução de Glaís Sales Cordeiro. Revista Brasileira de Educação, n. 11, p. 5-16, 2004., é inevitável que toda escrita escolar, em certa medida, seja simulada, pois não se trata do gênero em circulação real, mas do gênero a ser ensinado. Simulam-se interlocuções e propósitos da prática de referência.

Nos games, ao encarnar um personagem e assumir a posição enunciativa eu-avatar, entendemos que seja possível assumir o ethos discursivo de um personagem de forma inusitada, o que pode ser muito produtivo para o ensino da produção textual. Mais do que a mera solicitação da simulação de uma cena enunciativa, como "imagine que você é um jornalista...", é possível proporcionar ao estudante a imersão em determinadas práticas de letramento, que mobilizam gêneros e demandam do estudante a assunção de um ethos discursivo específico, de forma contextualizada. Não apenas simula-se, mas vive-se o personagem.

Em Tomb Raider, nos jogos atuais, Lara Croft costuma fazer apreciações sobre o local em que está e sobre as descobertas que encontra, como podemos ver no exemplo a seguir (figura 3), no qual ela discorre sobre as pirâmides maias.

Figura 3
Lara fazendo apreciações do cenário em Shadow of The Tomb Raider (2018).

Em "Lara Croft nos templos do Camboja", o estudante precisa assumir a posição enunciativa eu-Lara Croft para realizar as atividades de escrita, isto é, precisa se construir na cena da enunciação como a personagem. O objetivo é que o estudante possa se construir na cena enunciativa como uma arqueóloga, o que envolve certo modo de descrever o mundo e as ações realizadas ao encontrar um artefato histórico. Construímos a imagem de Lara como uma cientista, que avalia o mundo ao seu redor e decide pesquisar mais sobre tudo aquilo que encontra, incentivando o espírito investigativo do estudante, como exemplificado na missão 2, disponível no material digital: "– Como Carter não documentou essa descoberta!? A escultura é maravilhosa e uma grande relíquia histórica. Tenho que fazer isso agora mesmo. Como posso descrevê-la? (5 pontos – 50 moedas de ouro)".

2. REFLEXÃO SOBRE O USO DO PERCURSO GAMER EM SALA DE AULA

Nesta seção, apresentaremos alguns dos principais dados obtidos na aplicação do percurso gamer em sala de aula, divididos em duas categorias de análise: 1) Engajamento e interações em sala de aula; 2) Situação de produção dos textos, mundos imersivos e encarnação de personagens.

2.1 Engajamento e interações em sala de aula

Em relação a essa categoria de análise, comentaremos alguns aspectos sobre a caracterização visual e sonora, a dinâmica de tempo, a dinâmica de correção em pares e a pontuação.

Segundo os dados coletados nas entrevistas com os estudantes, a caracterização visual e sonora foi considerada fundamental para a experiência de imersão, como opinou Maia: "Eu gostei bastante das músicas da página, porque com os diálogos que ela tinha com o professor, aí você colocava aquelas músicas, parecia que você tava naquela floresta, falando com ele e tudo mais. A imaginação ia voando..."4 4 Todas as falas citadas foram retradas das entrevistas que compõem o corpus da pesquisa. Transcrevemos as falas respeitando o modo como foram ditas pelos entrevistados, sem produzir alterações para que se adequem à norma-padrão. . Os estudantes elogiaram o fundo verde de floresta tropical utilizado na construção do material, assim como as músicas que complementaram o sentido das atividades, trazendo sensação de conflito e mistério.

Com base nas falas dos participantes da pesquisa, embora pareça secundário, o ambiente virtual é importante para que os estudantes tenham a sensação de imersão esperada pelo percurso gamer, ampliando as possibilidades imaginativas de se colocar no lugar do outro. Assim como propõe Huizinga (2000) para os jogos, podemos concluir que o percurso gamer também precisa de um espaço delimitado, que pode ser digital. Alguns estudantes apontaram, inclusive, que seria interessante que o percurso gamer contasse com um espaço tridimensional, em que eles poderiam controlar a personagem. Reconhecemos a necessidade de aprimoramento nesse sentido, pois seria interessante um espaço virtual mais sofisticado, no entanto, sabemos que essa realidade é distante do professor e nossa intenção era oferecer um modelo que possa ser criado por ele mesmo, em plataformas que oferecem algumas possibilidades personalizáveis para não profissionais de computação ou de jogos.

Por outro lado, embora a experiência tenha sido predominantemente bem aceita, os estudantes apontaram o excesso de textos e a necessidade de ampliar as tarefas lúdicas. Maia, por exemplo, opinou que "era muito texto pra fazer, relatório, diário de pesquisa, era muito digitar". Para solucionar esse problema, Maju sugere "minijogos" que poderiam ser intercalados com as atividades. Esse conflito está diretamente relacionado ao que se espera de um game e o que se espera de uma atividade escolar. Como se trata de um material de ensino de Língua Portuguesa, é esperado que ele contenha atividades de leitura e de escrita, portanto, não sugerimos para futuros materiais a diminuição de textos, mas acreditamos ser importante o acréscimo de momentos lúdicos, para que o material se aproxime mais da lógica de jogos.

Sobre a dinâmica de tempo, os estudantes mencionaram que se sentiram mais livres e à vontade, podendo até mesmo fazer as atividades em casa. Para que o percurso gamer se assemelhasse aos jogos autênticos, nos quais o jogador pode sondar o ambiente e fazer suas hipóteses (GEE, 2003GEE, J. P. (2003). What video games have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan, 2014. [e-book].), deixamos que cada um fizesse as atividades em seu próprio ritmo. Essa possibilidade inédita para a sala de aula – que costuma contar com tempos pré-definidos para realização de tarefas – foi considerada por alguns como uma experiência produtiva. Nick, por exemplo, opinou na entrevista:

Nick: Eu acredito que foi uma coisa positiva, mesmo que as aulas tinham um limite, você tinha opções de fazer em casa. Então, achei que deu pra cada um respeitar... cada um teve seu tempo de fazer, deu pra entender bem o objetivo do jogo, pra que a gente conseguisse fazer com clareza mesmo. Não foi uma coisa que foi apressada, sabe?

Já outros sentiram a necessidade de que o professor conduzisse as missões. Coraline mencionou: "Talvez seria bom todo mundo junto, porque quando a gente postava na página para avaliar outras coisas, tinha gente que tava na missão 2, aí a gente tava na missão 3". O que a aluna menciona em sua fala é a dinâmica de avaliação definida para o material. Para que a avaliação não ficasse centrada apenas na professora-pesquisadora, organizamos uma dinâmica de correção em pares. Quando um estudante terminava um texto, deveria postá-lo em nosso ambiente virtual no Google Sala de Aula. Com base em formulários disponibilizados no material, um estudante deveria avaliar o texto do outro, o que geraria um número de pontos, que depois deveria ser registrado por nós na tabela de pontuação. No entanto, tivemos que interromper essa dinâmica, pois isso desanimava os estudantes que estavam em etapas diferentes nas missões.

Além disso, eles costumavam atribuir mais pontos uns aos outros para beneficiar os amigos. Alguns estudantes afirmaram levar à sério as perguntas feitas nos formulários, como Wagner, que diz: "Eu avaliava sim. [...] ele perguntou se o texto falava sobre uma cidade que aparecia, se ele citou. Se ele não citou a cidade não ia colocar que tinha citado". Já outros admitiram que ajudaram os amigos, como Leon, que diz: "Ah, como era amigo, muitas vezes dava mais ponto porque merecia". Trata-se de um conflito ético, relacionado ao engajamento na atividade. Alguns estudantes se engajaram na atividade escolar, enquanto outros se engajaram na ação do jogo. Aqueles que respeitaram a avaliação sugerida demonstraram conhecer os protocolos éticos da rotina escolar, entendendo ser aquele um momento de construção coletiva do conhecimento. Aqueles que não fizeram a atividade avaliativa como esperado, buscaram fortalecer os laços de amizade construídos na turma, em atitude ética com os amigos. É possível interpretar que essa forma de lidar com a pontuação seja um engajamento à dinâmica do jogo, pois em um game perder pontos é uma forma de estar "atrás" de outros participantes e isso significaria prejudicar os amigos. Essa atitude era esperada por nós, portanto, não repreendemos os estudantes que assim o fizeram, pois buscávamos tentar entender como eles lidariam com a pontuação.

Nos dados da pesquisa, a respeito da pontuação, concluímos que alguns alunos se engajaram pela competição e o desejo de ficar à frente dos colegas, enquanto outros consideraram os pontos desnecessários, engajando-se mais pelo envolvimento na narrativa. Costumávamos deixar a tabela de pontuação projetada no telão em sala de aula. Assim, no início, os alunos se entusiasmaram pela ideia de ver seus pontos exibidos pela sala, o que gerou o desafio de tentar refazer atividades para ganhar mais pontos e, portanto, mostrarem-se como superiores aos colegas. No entanto, essa dinâmica também foi perdendo a eficácia, à medida que eles se envolviam em tarefas mais complexas e que exigiam maior concentração, como a produção dos diários de pesquisa. Aos poucos, já não se interessavam tanto pela pontuação no telão, mas ainda se preocupavam em obter os pontos como medida de avaliação. Jorge, por exemplo, faz a seguinte consideração:

Jorge: Na minha opinião, sendo sincero, foi desnecessário. Eu não utilizei os pontos pra nada, eu não fiz nada com eles. Nem me importava com eles. Eu fui na aula, fiz porque eu gostava daquilo, eu não fiz por causa dos pontos. Porque o fato de você dar a dica por 10 pontos, pra mim ficava "Nossa, mas não é um desafio? A gente não tem que descobrir?".

A fala de Jorge, a nosso ver, sintetiza a conclusão que formulamos a respeito da função da pontuação em um percurso gamer. Embora possa motivar inicialmente os estudantes, ela não é suficiente para gerar engajamento a longo prazo. Para que isso aconteça, é preciso que os estudantes se sintam desafiados pela narrativa e pelas atividades propostas. É possível considerarmos até mesmo que, em outros materiais futuros, não seja necessária a preocupação em atribuir pontos às atividades, exceto se isso auxiliar o professor a realizar a avaliação.

2.2 Situação de produção dos textos, mundos imersivos e encarnação de personagens

Em relação a essa categoria de análise, exploraremos alguns aspectos sobre o aprendizado interdisciplinar, o mundo imersivo da arqueologia e a apropriação do ethos discursivo de Lara Croft.

Para além do ensino de Língua Portuguesa, os estudantes mencionaram a possibilidade que o percurso gamer trouxe para que pudessem estudar e conhecer melhor o Camboja. Arya, por exemplo, comentou: "Foi bom, porque foi uma maneira também da gente conhecer o lugar, algumas coisas típicas de lá, tipo, tipo os templos". Mário fez um comentário surpreendente ao dizer que nem sequer sabia da existência do Camboja. Portanto, houve destaque para o conhecimento sobre a cultura desse país, que parecia a eles tão longínquo.

A respeito do mundo imersivo da arqueologia, os dados indicaram a possibilidade de os estudantes se colocarem em posição ativa para realizarem as atividades. Wagner afirmou que: "Não é mais aquela coisa ‘tem aqui o tema e faz as questões’. Deu uma história, deu um objetivo pra gente". Kai, por sua vez, mencionou a dimensão da imersão, essencial para o envolvimento no percurso gamer: "Eu achei legal, porque dava a impressão de que a gente tava vivendo mesmo".

Houve apropriação da metodologia arqueológica (OLIVEIRA et al, 2013OLIVEIRA, M. D. B. G. de et al. (2013). Arqueologia estratégica: abordagens para o estudo da totalidade e construção de sítios monticulares. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 8, n. 3, p. 517-533. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3940/394035001003.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
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) e dos gêneros para aqueles que se envolveram com a narrativa e as missões. Nick, por exemplo, mencionou a sensação de ter uma experiência como arqueóloga e diz que "Foi uma coisa num estilo muito diferente e acredito que a gente conseguiu aprender mais sobre a profissão, de ver que é uma coisa importante". Tsuyoi também comentou sobre a oportunidade de pesquisar como um cientista, nem sempre proporcionada pela escola:

Tsuyoi: Achei muito empolgante, porque estimula realmente os alunos a pesquisar e ler. Porque geralmente isso não acontece, principalmente em escolas, porque geralmente eles instruem o trabalho, mas geralmente as pessoas nem lê, copia e imprime. Então, achei interessante por essa questão de pesquisa mesmo. E ler, realmente ler. A gente tinha que ler bastante, porque acho que não era só você entrar em um site ali, ler e falar "Nossa é isso daqui". A gente tinha que saber o porquê daquilo, localização incertas, sendo que tem o Google Maps e tal.

Luna, por sua vez, mencionou o aprendizado obtido por meio de práticas e gêneros explorados: "Eu conheci gêneros que a gente não conhecia também, por exemplo, power point, pra mim, eu nunca tinha feito. Diário de pesquisa também, eu nunca tinha feito nesse modelo". Já Mariana acrescentou o fato de que os textos tinham um propósito claro e interlocutores bem definidos no material: "É, foi uma experiência bem legal, tipo, fazer aqueles diários, sabe. E lá precisou porque tinha ‘Alguém vai ler depois’, ‘Ah, como alguém vai saber...’", o que se relaciona com a construção da cena da enunciação (MAINGUENEAU, 2005MAINGUENEAU, D. (2005). Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2ª ed. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2019.). Por meio da narrativa proposta e o envolvimento com o mundo imersivo, os estudantes conseguiram compreender qual era a cena englobante, a cena genérica e a cenografia esperada, diferentemente de outras produções escolares que podem soar mais descontextualizadas por carecerem de maiores informações antes da atividade. É possível dizer que o percurso gamer trouxe a instância da imersão para o momento da escrita.

No entanto, como é de se esperar em todo contexto escolar, o aprimoramento da escrita dependeu de inúmeros fatores. Em nosso caso, foi possível perceber que, quanto mais o estudante se envolvia na narrativa, maiores eram os seus progressos em produção textual. Alguns estudantes, como Valentina, por exemplo, demonstraram desenvolvimento das habilidades de escrita, ao aprimorar cada vez mais suas descrições a respeito dos artefatos arqueológicos encontrados. Já outros, como Douglas, menos interessados nas atividades, mostraram indícios de cópia de trechos de terceiros, em especial de textos disponibilizados na Wikipédia, algo que poderia ocorrer ao ser oferecida a possibilidade de consultar textos da internet.

Sobre a apropriação do ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2008MAINGUENEAU, D. (2008). A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (orgs.). Ethos discursivo. Tradução de Luciana Salgado. São Paulo: Contexto, p. 11-29.) de Lara Croft, os estudantes apontaram como aspecto positivo já ter o personagem "pronto" para escrever, isto é, consideraram produtiva a possibilidade de já ter um locutor definido antes mesmo do momento da produção textual. Alguns acontecimentos durante as aulas chamaram a atenção por demonstrar o envolvimento da turma com a arqueóloga fictícia. Comentaremos especificamente o caso de Jorge, um aluno que se engajou com o percurso gamer.

O aluno perguntou se seu texto estava adequado à proposta. Depois de ler, dissemos que ainda faltavam algumas reflexões de Lara Croft como pesquisadora, sugerindo que ele deveria pensar que seu diário serviria como fonte para a publicação de um artigo científico. O estudante então nos respondeu: "Lara Croft é uma aventureira e não tem tempo de pensar em artigos científicos". A resposta é muito inventiva e demonstra a assunção do ethos pré-discursivo da personagem, fora da instância textual, o que pode corresponder à identidade projetiva, evidenciada por Gee (2003)GEE, J. P. (2003). What video games have to teach us about learning and literacy. New York: Palgrave Macmillan, 2014. [e-book]., ao descrever o processo em que o jogador se coloca como o personagem.

A apropriação do ethos discursivo, por sua vez, se dá por meio da escrita, em maior ou menor intensidade, a depender do estudante. Jorge é um caso que chamou a atenção, por seu notável envolvimento com a personagem. Em suas produções textuais, costumava assumir um posicionamento explícito, chegando até mesmo a misturar a cenografia esperada pelo gênero, com a dos jogos e da própria narrativa do percurso gamer, como demonstra o trecho a seguir, retirado de uma de suas produções textuais no diário de pesquisa. Além de comentar sobre as descobertas do Camboja, o estudante se posiciona como Lara Croft ao narrar as suas sensações:

Os últimos acontecimentos estão roubando o meu sono…. O recente desaparecimento de Carter tem me levado a uma incessante busca por respostas. [...]

Após uma série de pesquisas descobri muitas informações relevantes sobre o Camboja (um país no sudeste da Ásia), um local misterioso, lar de vários templos antigos e com uma cultura fascinante, que já foi governado pelo antigo e poderoso Império Khmer! [...].

Em entrevista, o próprio estudante sintetiza a experiência de escrever como Lara Croft da seguinte maneira:

Jorge: [...] Eu acho que ajudou a desenvolver nosso raciocínio lógico e, conforme a gente vai escrevendo, a gente tem que se por na posição da Lara, a gente já pensando de uma maneira como se fosse, entre aspas, um escritor [...].

A nosso ver, essa fala conclui um dos principais diferenciais do percurso gamer em relação a outros materiais didáticos: a possibilidade de assumir o ethos discursivo de um personagem por meio da vivência e da simulação e, assim, envolver-se de maneira ativa na escrita durante uma produção textual.

3. E O JOGO NÃO TEM FIM...

Embora todo jogo tenha um "fim", concluímos que os estudos sobre o percurso gamer estão longe de acabar. Conforme os dados analisados demonstraram, ainda é possível aprimorar o espaço virtual com a implementação de uma interface 3D e a ampliação de mais atividades lúdicas em meio às atividades de língua portuguesa. Isso, possivelmente, pode gerar uma nova investigação em parceria com os estudos das Ciências da Computação, para que sejam criadas novas versões digitais.

Em relação à dinâmica em sala de aula, conseguimos perceber que o percurso gamer demanda do professor e dos estudantes uma nova dinâmica de tempo em sala de aula, pois a tradicional atividade escolar em que todos estão na mesma página e no mesmo conteúdo não é possível. Cada estudante pode personalizar o ritmo de seus estudos, o que indica a necessidade de o professor desenvolver novas habilidades de gestão em sala de aula. Esse aspecto pode ser melhor compreendido em futuras investigações na Linguística Aplicada e na Educação. Percebemos que essa nova dinâmica cria uma dificuldade de gerenciar correção em pares e outras atividades em grupo. Um caminho possível é que outros materiais do tipo percurso gamer já prevejam o estilo "multijogador", isto é, mobilizem atividades que devem ser feitas em equipes. A respeito da pontuação, observamos que o engajamento pode estar mais relacionado à atividade escolar ou ao jogo. Isso impacta na forma como os estudantes atribuem pontuações uns aos outros, em atitude ética de avaliação (atribuir pontos de acordo com avaliação) ou em atitude ética de amizade (dar mais pontos para os amigos). Os dados também indicam que a pontuação não é central em um percurso gamer, pois o envolvimento na narrativa pode ser mais interessante que o desejo de obter pontos. Outros estudos sobre engajamento e ética, em diferentes áreas do conhecimento, podem revelar diferentes nuances sobre esses dados em outros contextos de investigação sobre o percurso gamer.

Em relação às atividades de escrita, observamos que a imersão em uma determinada esfera social e a encarnação de um certo personagem por meio da assunção de um ethos discursivo possibilitam situar melhor os objetivos de uma produção textual solicitada aos estudantes, inclusive em relação à definição mais clara de locutores e interlocutores para a composição da cena de enunciação. Os estudantes mencionaram que a história da aventura no Camboja e todas as ações de Lara Croft fizeram com que os textos tivessem propósitos bem definidos, confirmando nossa interpretação. Kleiman (2006)KLEIMAN, A. B. (2006). Leitura e prática social no desenvolvimento de competências no ensino médio. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 23-36. já criticava a dissociação do ensino de gêneros da prática social, argumentando que esta deveria ser o ponto de partida do trabalho escolar, em uma pedagogia voltada para a promoção dos letramentos na aprendizagem escolar. Nesse sentido, o percurso gamer permite resgatar a instância da prática social, situando melhor a produção de determinados gêneros, conforme demonstramos por meio da associação entre a profissão da arqueóloga e a produção de textos como o diário de pesquisa. Assim, deixamos como modelo o material referenciado para que outras investigações da Linguística Aplicada desenvolvam novos percursos que explorem outras práticas e gêneros.

Por fim, houve também aproveitamento de aprendizados interdisciplinares, o que demonstra o potencial do percurso gamer como novo material didático alinhado às expectativas de organização interdisciplinar dos componentes curriculares, conforme orienta a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que norteia a produção de currículos escolares e materiais didáticos em todo o Brasil. Pode-se, inclusive, pensar no percurso gamer como um material produtivo para desenvolver itinerários formativos, isto é, uma parte da formação do estudante do atual Ensino Médio na qual ele pode escolher determinadas áreas e certos conhecimentos para aprofundamento.

Esperamos, portanto, que a apresentação desse novo modelo de material didático contribua para a reflexão sobre novos caminhos de utilização dos games em contextos de aprendizagem, para além das mecânicas de jogos eletrônicos, seja em aprendizado de línguas, como também em outras áreas e campos de investigação.

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

As entrevistas realizadas com os estudantes da pesquisa não estão disponíveis ao público, uma vez que este material contém informações que podem comprometer a privacidade e a segurança dos participantes na investigação.

  • 2
    Lara Crof teve sua biografia modificada várias vezes ao longo da série de jogos. Apesar de sempre ter sido caracterizada como uma arqueóloga, nos primeiros jogos da série, a personagem era considerada uma caçadora de relíquias, furtando artefatos de diversos locais do mundo em busca de seus propósitos pessoais. Tratava-se de uma visão colonizadora, que não buscava respeitar o pertencimento dos artefatos às culturais locais. Essas ações foram retradas dos jogos atuais, de modo que Lara Crof hoje apenas cataloga os artefatos encontrados.
  • 3
    O ethos dito é aquele em que o enunciador evoca a própria enunciação.
  • 4
    Todas as falas citadas foram retradas das entrevistas que compõem o corpus da pesquisa. Transcrevemos as falas respeitando o modo como foram ditas pelos entrevistados, sem produzir alterações para que se adequem à norma-padrão.

REFERÊNCIAS

  • ARAUJO, W. S. (2014). A construção de identidades: da leitura para o roteiro e do roteiro para a leitura - um estudo analítico de projetos de adaptação de textos literários para jogos digitais. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/14322 Acesso em: 14 jun. 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2022
  • Aceito
    22 Fev 2023
  • Publicado
    10 Mar 2023
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