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A VIRADA DOS AFETOS SOBRE A RAZÃO: UM CASO DE INTERVENÇÃO TRADUTÓRIA RESSIGNIFICADO

THE TURN OF AFFECTS OVER REASON: A CASE OF TRANSLATORIAL INTERVENTION RESSIGNIFIED

RESUMO

“Narrativas ontológicas são histórias pessoais que contamos a nós mesmos sobre nosso lugar no mundo e nossa história pessoal”. Essa definição, entre os quatro tipos de narrativas abordadas por Mona Baker (2006)BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge., é a que ela traz para os estudos da tradução, juntamente com outros conceitos desenvolvidos sobretudo na sociologia. A autora defende a socionarrativa como um processo que abrange diversos textos e que possibilita ao narrador-tradutor tomar posição frente a situações de conflito, cujas narrativas são reproduzidas ou construídas por meio da tradução e da interpretação. Depois de discutir a incidência dos afetos e emoções na prática da tradução, apresentamos uma narrativa ontológica de um fato acontecido com uma das autoras, que foi, num primeiro momento, interpretado por ela mesma como uma reação no nível da ética e da racionalidade, e acabou sendo ressignificado, após uma indagação de um examinador na arguição de seu Memorial a respeito do que a autora-tradutora havia sentido naquela situação. Com o auxílio de reflexões desenvolvidas nas Ciências Humanas em geral (AHMED, 2014AHMED, Sara. (2014). The cultural politics of emotion. 2a. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press.), e na tradução, em particular (ROBINSON, 1991ROBINSON, Douglas. (1991). The translator´s turn. Baltimore/ London: The Johns Hopkins Press.; 2003ROBINSON, Douglas. (2003). Performative linguistics. Speaking and translating as doing things with words. London/ New York: Routledge.; 2020ROBINSON, Douglas (2020) Becoming a Translator. 4th ed. London and New York: Routledge.), o objetivo principal deste artigo é trazer para a discussão as reações da tradutora e de alguns leitores do texto traduzido e possíveis impactos para as narrativas conceituais sobre tradução.

Palavras-chave:
tradução e afetos; narrativa ontológica; razão versus emoção nas Ciências Humanas

ABSTRACT

“Ontological narratives are personal stories that we tell ourselves about our place in the world and our own personal history”. This definition, among the four types of narratives presented by Mona Baker (2006)BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge., is the one she brings to translation studies, along with other concepts developed mainly in sociology. The author proposes socionarrative as a process encompassing several texts and enabling the narrator-translator to take a stand when faced with conflicting situations whose narratives are reproduced or built by means of translation and interpretation. After discussing the presence of affects and emotions in translation practice, we present an ontological narrative of an experience lived by one of the authors, which was, in a first moment, interpreted by herself as a reaction at the level of ethics and rationality, and that came to be ressignified, after a questioning from one examiner of the committee who discussed her Memorial, about what the author-translator had felt in that situation. With the help of reflections developed in the Human Sciences in general (AHMED 2014AHMED, Sara. (2014). The cultural politics of emotion. 2a. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press.), and in the field of translation in particular (ROBINSON, 1991ROBINSON, Douglas. (1991). The translator´s turn. Baltimore/ London: The Johns Hopkins Press.; 2003ROBINSON, Douglas. (2003). Performative linguistics. Speaking and translating as doing things with words. London/ New York: Routledge.; 2020ROBINSON, Douglas (2020) Becoming a Translator. 4th ed. London and New York: Routledge.), the main objective of this article is to discuss the reactions of the translator and of some readers of the translated text, as well as their possible impacts on the conceptual narratives about translation.

Keywords:
translation and affects; ontological narrative; reason versus emotion in the Human Sciences

O que definimos como violência emocional é a dor física causada pelas palavras. Pais esquizofrenogênicos podem enlouquecer seus filhos com palavras; psicoterapeutas podem curar com elas. As palavras também podem acariciar, confortar, apaziguar.

Douglas Robinson.1 1 What we mean by emotional violence is the physical hurt caused by words. Schizophrenogenic parents can drive their children insane with words; psychotherapists can cure with them. Words can also caress, soothe, placate. (ROBINSON, 1991, p. 5).

AFETOS E TRADUÇÃO DE LITERATURA

Já no início dos anos 1990, Douglas Robinson atentava para o fato de a linguagem afetar nossos corpos e de nossas emoções atravessarem nossas traduções. De diversas maneiras e com base em diferentes pressupostos, os estudiosos da tradução têm enfatizado a importância de considerarmos os efeitos das práticas tradutórias em nós mesmos, tradutores. Um exemplo relevante é a argumentação de Carol Maier que, em discussão sobre uma “virada ficcional” na área, defende que provavelmente não será possível desenvolver uma verdadeira definição abrangente dos Estudos da Tradução até que os teóricos tenham um entendimento mais completo do efeito da tradução sobre os tradutores e da relação dos tradutores com a teoria (MAIER, 2006, p. 167).2 2 Indeed, one might argue that until translation theorists have a fuller understanding of the effect of translation on the translator and the translator’s relation to theory [...] it may not be possible to develop a truly comprehensive definition of translation studies.

Se as palavras têm efeitos tão fortes sobre nossos corpos - fazem-nos rir, chorar, amar, odiar... -, a prática da tradução necessariamente afeta os tradutores de várias formas. No entanto, não deixa de provocar certo estranhamento o fato de que, mesmo concordando teoricamente com essa premissa, possamos nos surpreender quando nos vemos assim afetados, e, mais ainda, sequer termos percebido tais efeitos num primeiro momento. Este artigo é uma breve discussão sobre questões trazidas pela “virada afetiva” (CLOUGH, 2007CLOUGH, Patricia Ticineto. (2007) The Affective Turn. Durham and London: Duke University Press.) nas Ciências Humanas e nos Estudos da Tradução, seguida de um relato pessoal que foi percebido de duas maneiras diferentes em dois momentos diferentes. A narrativa dessa percepção será discutida juntamente com os impactos que a tradução teve para alguns leitores, mobilizando, para tanto, os quatro tipos de narrativas desenvolvidos por Mona Baker (2006)BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge. em um contexto no qual ela relaciona a maneira como os tradutores narram experiências de tradução e interpretação à tomada de posição diante de situações conflituosas e suas consequências para a área de estudos da tradução. Também são acionados conceitos que explicitam que a emoção é parte inerente de toda ação - no caso aqui abordado, a emoção atravessa o ato de tradução e de recepção dessa tradução.

NARRATIVAS ONTOLÓGICAS E O CORPO EM TRADUÇÃO

Se concordamos que se faz necessária uma reflexão sobre os efeitos da prática da tradução em nossos afetos e nossos corpos, daí necessariamente decorre que devemos tomar como tarefa o desafio de pôr em cena narrativas que deem testemunhos desses efeitos. Será preciso também uma breve discussão sobre o próprio gênero “narrativa” e sua importância nesse contexto.

Para dar início a esse exercício, valemo-nos da teorização proposta por Mona Baker (2006)BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge., que se baseia nas sociólogas Margaret Somers e Gloria Gibson (1994), e define as narrativas em quatro tipos: ontológicas, públicas, conceituais e metanarrativas. De forma bastante resumida, as narrativas ontológicas, definidas como “histórias pessoais que contamos sobre nosso lugar no mundo e nossa própria história pessoal” (p.3),3 3 personal stories that we tell ourselves about our place in the world and our own personal history. são interpessoais e sociais, e, inevitavelmente, envolvem tudo o que nos cerca. As narrativas públicas são histórias que circulam no meio social, como família, instituições religiosas, educacionais, mídia e até o país, para as quais tradutores e intérpretes têm um papel crucial, seja na disseminação, seja no questionamento dessas narrativas. As conceituais também são chamadas de disciplinares e dizem respeito a conceitos e explicações desenvolvidos em determinados campos do conhecimento. Por fim, as metanarrativas são narrativas de períodos que marcam a história, tais como industrialização, globalização, crise climática, etc. O enfoque sociopolítico das narrativas é o principal ponto de interesse de Baker, que visa destacar o papel da pessoa que traduz para a criação de narrativas que testemunhem situações de conflito que envolvem aquilo que resta do ato de traduzir.

Neste artigo, recorremos primeiramente à narrativa ontológica para analisar uma experiência de tradução que envolve questões de racismo e, como tal, apresenta características de narrativas públicas, uma vez que invoca demandas coletivas - por isso as narrativas ontológicas podem ser entendidas e reconhecidas como situações que ressoam não só as experiências pessoais, mas também se assemelham a experiências vividas pelas pessoas que se encarregam da tarefa da tradução, em geral. Como afirma Baker (2006, p.29)BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge.:

Em primeiro lugar, as narrativas compartilhadas, as histórias contadas e recontadas por vários membros de uma sociedade durante bastante tempo, fornecem os modelos das narrativas ontológicas, incluindo aqueles de papéis e espaços sociais que um indivíduo pode habitar.4 4 In the first instance, shared narratives, the stories that are told and retold by numerous members of a society over a long period of time, provide the blueprints for ontological narratives, including the blueprints for the social roles and spaces that an individual can inhabit.

Ao mesmo tempo, as narrativas ontológicas são primordiais para a elaboração e a manutenção das narrativas compartilhadas ou questionamentos que podem desestabilizar a ordem social. Isto é, elas “podem ser ‘resgatadas’ e enfatizadas de forma a resistir às narrativas dominantes, para elaborar uma narrativa alternativa do mundo”5 5 They can be ‘rescued’ and emphasized in order to resist dominant narratives, to elaborate an alternative narrative of the world. (BAKER, 2006BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge., p.30) e, no caso, da própria tarefa dos tradutores. As nossas narrativas pessoais são, em última análise, importantes para a sociedade e para os indivíduos com quem interagimos, porque “narrativas ontológicas são usadas para definir quem somos; isso, por sua vez, é uma condição prévia para saber o que fazer”6 6 [o]ntological narratives are used to define who we are; this in turn is a precondition for knowing what to do. (SOMERS e GIBSON 1994SOMERS, Margaret R; GIBSON, Gloria D. (1994). “Reclaiming the Epistemological “Other”: Narrative and the Social Constitution of Identity”. In Social Theory and the Politics of Identity. Edited by Craig Calhoun, 37-99. Cambridge MA and Oxford: Blackwell., p. 61, apudBAKER, 2006BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge., p.30).

Como será visto adiante, na narrativa aparece a ideia de que, nós, tradutoras e tradutores, como todos os seres, somos constituídos por razão e emoção, ou, como já defendia Spinoza no século XVII, “a ordem das ações e das paixões de nosso corpo concorda com a ordem das ações e das paixões da mente” (SPINOZA, 1677SPINOZA, Benedictus. (1677). Ética e Compêndio de Gramática da língua hebraica. Obra Completa IV. Tradução e notas J. Guinsburg e Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2014./2014, p.200).

Ao tratar de afetos na tradução, Kaisa Koskinen (2020)KOSKINEN, Kaisa. (2020). Translation and Affect. Essays on sticky affects and translational affective labour. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Company. lembra que Spinoza tem sido bastante citado nos estudos contemporâneos exatamente por contestar as dicotomias mente/corpo e razão/emoção, além de defender que “[p]ortanto, o afeto é um processo complexo que envolve o corpo e a mente, e que direciona uma pessoa para um estado de coisas desejado por meio de um processo de mudança” (KOSKINEN, 2020KOSKINEN, Kaisa. (2020). Translation and Affect. Essays on sticky affects and translational affective labour. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Company., p.13)7 7 So, affect is a body-mind complex that directs a person towards a desired state of affairs through a process of change. . Assim, o afeto, em Spinoza, diz respeito a afetar e ser afetado.

Voltemos a Douglas Robinson (2003)ROBINSON, Douglas. (2003). Performative linguistics. Speaking and translating as doing things with words. London/ New York: Routledge., que afirma que

A linguagem, então, se faz no e pelo corpo, por meio do corpo. Tomamos decisões sobre qual palavra ou frase usar com a ajuda de marcadores somáticos. Lembramos aquilo que as palavras e frases significam, não apenas suas denotações, mas suas conotações e colocações e implicações, com a ajuda de marcadores somáticos. (ROBINSON, 2003ROBINSON, Douglas. (2003). Performative linguistics. Speaking and translating as doing things with words. London/ New York: Routledge., p. 82)8 8 Language, then, is performed in and through and by the body. We make decisions about what word or phrase to use with the help of somatic markers. We remember what words and phrases mean, not just their denotations but their connotations and collocations and implications, with the help of somatic markers.

A hipótese do marcador somático foi desenvolvida por António Damásio ([1994DAMÁSIO, António R. (1994). O erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano. Tradução de Dora Vicente Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 3ª. ed. 2012.] 2012, p.10), que afirma que a emoção “é parte integrante do processo de raciocínio e poderia auxiliar esse processo ao invés de, como se costumava supor, necessariamente perturbá-lo.” Uma vez que a hipótese diz respeito à resposta a determinados estímulos sentidos no corpo, o neurocientista escolheu o termo somático por remeter à palavra grega soma (corpo). Ainda antes de Damásio, Robinson (1991ROBINSON, Douglas. (1991). The translator´s turn. Baltimore/ London: The Johns Hopkins Press., p.10) apresentou uma síntese de uma teoria que defendia que os sentidos e as interpretações são construídos e motivados pelos sentimentos e pelo corpo (pelas respostas somáticas), e são, ao mesmo tempo, controlados ideologicamente por grupos sociais. Assim, as marcas somáticas estão associadas a experiências que são concomitantemente individuais e idiossincráticas (que ele chama de idiossomáticas) e reguladas coletivamente (ideossomáticas) (2003, p.76).

Nesse contexto, o autor enfatiza o caráter somático, situacional, convencional e iterável do uso da linguagem, destacando, ainda, a relevância da inteligência emocional para o tradutor (ROBINSON, 1997ROBINSON, Douglas (1997) Becoming a Translator. London and New York: Routledge.). Alguns anos depois, na revisão da quarta edição de Becoming a Translator (2020), a questão afetivo-emocional aparece de forma mais contundente, em consonância com a própria virada afetiva, que explora as interrelações entre corpos, práticas discursivas, forças sociais, culturais e políticas que caracterizam os afetos e emoções.

Um dos exemplos dessa abordagem é o livro The Cultural Politics of Emotion, de Sara Ahmed (2014)AHMED, Sara. (2014). The cultural politics of emotion. 2a. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press., publicado originalmente em 2004, no qual ela defende que as emoções são produzidas como efeitos de circulação em discursos individuais e sociais construídos historicamente. A autora destaca a política cultural das emoções como algo que afeta os corpos e é afetada por eles de acordo com as experiências vividas e, nesse sentido, importa muito mais o que as emoções fazem do que a maneira como são conceituadas (ou a diferença entre emoção e afeto)9 9 Ahmed questiona a distinção entre afeto e emoção, priorizando o segundo por ser um termo usado no dia a dia para descrever o que ela estava abordando em cada capítulo (dor, raiva, medo, vergonha, amor), embora também use afeto em determinados momentos. No posfácio à segunda edição, a autora reitera que não considera os dois termos opostos e que a escolha se baseia principalmente na maneira como filósofos do século XVII relacionavam o conceito com movimento e impressões (AHMED, 2014). . As análises de Ahmed são feitas a partir de narrativas que podem ser classificadas como públicas - que se tornaram metanarrativas, conforme a definição de Baker (2006)BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge. -, pois trazem relatos de fatos ocorridos ao longo da história (aborígenes, colonização, imigração, entre outros) com a interpretação de agentes dessa história. Um dos exemplos da autora é a narrativa de Frantz Fanon, na qual encontra um menino branco que diz ter medo dele por ser negro (AHMED, 2014AHMED, Sara. (2014). The cultural politics of emotion. 2a. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press., p.62). Ela analisa a construção e reprodução do racismo como resultado de políticas e discursos que apresentam o negro como alguém que deve ser temido (reproduzido também na narrativa de Lovecraft, como será visto adiante).

Nas narrativas examinadas também podem ser observadas as características apontadas por Baker (2006)BAKER, Mona. (2006). Translation and conflict, a narrative account. London and New York: Routledge.: articulação causal, apropriação seletiva, relacionalidade e temporalidade. A articulação causal “significa que duas pessoas podem concordar com um conjunto de ‘fatos’ ou acontecimentos, mas discordar fortemente quanto à forma de interpretar esses fatos uns em relação aos outros” (p.67)10 10 In concrete terms, causal emplotment means that two people may agree on a set of ‘facts’ or events but disagree strongly on how to interpret them in relation to each other. . Essa característica é considerada a mais importante porque a identificação da causa e dos possíveis efeitos de um acontecimento pode ajudar a estabelecer as ações que devemos ou podemos tomar em cada situação, as quais dependem de fatores ideológicos e éticos. Há ainda a apropriação seletiva, que diz respeito ao recorte escolhido (de forma consciente ou não), e a temporalidade, que se refere tanto ao próprio momento histórico em que o acontecimento se deu quanto ao momento em que está sendo narrado. Por fim, a relacionalidade significa que cada evento deve ser interpretado dentro de uma configuração de eventos mais ampla - por exemplo, a narrativa de Fanon é relacionada com outras em que o negro é visto como ameaça. Essas caraterísticas serão retomadas ao longo do trabalho, após a narrativa ontológica apresentada a seguir.

AFETOS DO TRADUZIR: UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL

Passamos agora a relatar uma experiência de uma das autoras, relativa à tradução de um texto que é sensível em virtude das manifestações racistas do autor. No caso narrado, em determinados momentos houve “gatilhos” que podem ter ativado determinados marcadores somáticos e levado a sintomas sentidos no corpo. Além de efeitos no corpo, há também uma narrativa de consequências no trabalho, com negociações com o cliente e interações com o público leitor.

Trata-se de um conto de H. P. Lovecaft, intitulado “Herbert West, Reanimator”. Embora Lovecraft possa ser considerado um autor interessante, bastante imaginativo e original, há problemas que chamam a atenção em suas obras: é francamente racista, considera-se superior por ter nascido na Nova Inglaterra e não esconde seu preconceito contra os imigrantes. Nessa história, um médico faz experiências com a reanimação de cadáveres “recentes”. Acontece uma luta proibida pelas autoridades (porque essas lutas geralmente acabavam em tragédia), e o Dr. Herbert West, o Reanimador, é chamado para acudir um dos lutadores. No texto original, a descrição que se segue na trama é a seguinte:

The match had been between Kid O’Brien - a lubberly and now quaking youth with a most un-Hibernian hooked nose ‒ and Buck Robinson, «The Harlem Smoke.» The negro had been knocked out, and a moment’s examination shewed us that he would permanently remain so. He was a loathsome, gorila-like thing, with abnormally long arms which I could not help calling fore legs, and a face that conjured up thoughts of unspeakable Congo secrets and tom-tom poundings under an eerie moon. The body must have looked even worse in life ‒ but the world holds many ugly things. Fear was upon the whole pitiful crowd, for they did not know what the law would exact of them if the affair were not hushed up; and they were grateful when West, in spite of my involuntary shudders, offered to get rid of the thing quietly - for a purpose I knew too well. (LOVECRAFT, 2008LOVECRAFT, Howard Phillips. (2008). Herbert West, reanimator. In: H. P. Lovecraft - The fiction complete and unabridged. New York: Barnes & Noble., p. 191, grifos nossos)

A agressividade e o olhar explicitamente racista de Lovecraft fizeram a tradutora recordar um procedimento ético que ela mesma havia proposto no seu livro Atos de tradução (2014). Trata-se do princípio do “amortecimento”, que é uma das éticas de tradução sobre as quais discorre o livro. Basicamente a ideia é de que se um texto ou outro tipo de mensagem pode trazer conflito e acirrar a violência entre grupos sociais, o tradutor tem justificativa para suavizar os termos em sua tradução. Apesar de a proposta ser controversa, essa ética é defendida no livro, e a tradutora viu naquele momento a hora certa de colocar sua convicção em prática.

O termo “convicção” merece ser enfatizado. Apesar de saber que nem todos (ou talvez poucos) concordariam com ela, a tradutora estava convencida de que amortecer o texto era a coisa certa a fazer e, além disso, acreditava que estava sendo totalmente orientada por um pensamento racional e justificado. O próximo passo foi conversar com a editora, para ver se a equipe aceitaria essa manipulação.11 11 O termo “manipulação” tem aqui um sentido informado pela Teoria dos Polissistemas, entre cujos principais representantes estão Itamar Even-Zohar, Gideon Toury, Theo Hermans, André Lefevere e Susan Bassnett. A convicção principal é de que a tradução é uma prática que ocorre num determinado contexto social, sendo necessariamente moldada pelas regras vigentes nesse contexto social. Cada ato de tradução será moldado pela ideologia do tradutor e pelo modus operandi do sistema literário em que a tradução vai ser realizada. A manipulação pode ser consciente ou inconsciente, mas ela é inevitável. (Cf. HERMANS, 1985; LEFEVERE, 1992). Ficou combinado que a autora explicaria essa intervenção no prefácio à obra. Nesse texto, ela argumentou que

O amortecimento não é uma solução mágica, uma resposta salvadora aos conflitos enfrentados pelo tradutor, embora seja uma tentativa de lidar com eles de uma forma criativa e até inovadora. Pode ser considerado um tipo de censura, mas em alguns casos, censurar, ou pelo menos amortecer, apresenta-se como um caminho mais viável e menos agressivo. (ESTEVES, 2017ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. (2017). E se...? Lovecraft no século XXI. In Contos, v. 1. São Paulo: Martin Claret., p. 16)

Assim, a tradutora estava convencida de que sua intervenção poderia gerar discussões positivas, mesmo que não agradasse a todos. Ao mesmo tempo, ela percebia que essa intervenção tinha efeitos limitados, e que, em algumas situações, nem seria possível. Nessa situação específica, o racismo do narrador de Lovecraft não lhe parecia determinante para o fluxo da narrativa. No entendimento da tradutora, o personagem não precisava se parecer com um símio para ser assustador. Então sua opção foi retirar as comparações racistas explícitas (gorilalike thing, with abnormally long arms which I could not help calling fore legs) e atribuir ao personagem algumas características atraentes, talvez sedutoras, mas que poderiam igualmente despertar no leitor um medo, mesmo que fosse um medo mesclado com atração ou até sedução.

O trecho traduzido e “amortecido” ficou assim:

A luta havia sido entre Kid O’Brien - um tosco e agora trêmulo jovem com um nariz aquilino nada irlandês - e Buck Robinson, “O Assombro do Harlem”. O negro tinha sido nocauteado, e um minuto de exame nos mostrou que ele iria permanecer assim para sempre. Era um homem forte com corpo atlético, um deus de ébano cujo rosto sugeria sutis magias de mundos distantes e diabólicos rituais ao som de tambores noturnos. O medo se estampava em todos os rostos do deplorável grupo, pois ninguém ali sabia o que a lei lhes infligiria se o caso não fosse silenciado, e eles ficaram agradecidos quando West, apesar de meus arrepios involuntários, ofereceu-se para se livrar do corpo discretamente - com um propósito que eu conhecia muito bem. (LOVECRAFT, 2017LOVECRAFT, Howard Philips. (2017). Herbert West ‒ Reanimador. Tradução de Lenita Esteves. In Contos, v. 1. São Paulo: Martin Claret., p. 190)

Um leitor reclamou desse procedimento no Facebook da editora, dizendo que os tradutores não têm o direito de mudar o que o autor escreveu. No prefácio, a tradutora admitia que essas manifestações de Lovecraft podiam, em sua época, ser consideradas “naturais”, já que ainda existiam leis de segregação racial. Portanto, a tradutora conclui que “não é de admirar que ele manifestasse, sem pejo algum, sua hostilidade pelos estrangeiros e sua aversão aos negros”. E questiona: “É possível entender, mas será preciso aceitar?” (ESTEVES, 2017ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. (2017). E se...? Lovecraft no século XXI. In Contos, v. 1. São Paulo: Martin Claret., p. 15).

Mas o leitor não concordou com essa argumentação e com a sugestão de que talvez não devêssemos continuar propagando certos posicionamentos pessoais de Lovecraft. Ele registrou seu descontentamento nos seguintes termos:

Gente bonita da Martin Claret, gostaria de fazer uma crítica a respeito da tradução dos contos de H.P. Lovecraft. A “tal ética do amortecimento” utilizada em alguns contos inventou e deformou várias frases e conceitos do autor, em nome do “politicamente correto”, o que não existe no serviço de tradução. Imaginem que em nome da ética, alguém tivesse a “brilhante” ideia de retirar as frases racistas e que ofendem aos cristãos nas obras do filósofo Nietzsche? Não faria sentido algum. Tão pouco o objetivo de tal estratagema foi conseguido, exceto deturpar, diria até de maneira infantil, o pensamento de Lovecraft. Traduzir nunca significou concordar com o autor. Melhor seria se a equipe de edição responsável procedesse como a Darkside, incluindo notas de rodapé. Obrigado.12 12 A mensagem postada no Facebook da editora foi enviada à tradutora por e-mail. Não foi possível recuperá-la na própria página. Todas as postagens e comentários de leitores foram reproduzidos exatamente como publicados na internet.

Indagada pelos editores se tinha algum desejo de responder à mensagem, a tradutora apenas sugeriu que a editora respondesse que respeita as ideias do leitor, mas se ele preferia a tradução da editora Darkside, que a adotasse como a sua predileta. Esse pequeno incidente ganha um certo significado se pensarmos que um malestar da tradutora diante do que ela julgou ofensivo gerou algum movimento: a negociação com os editores, a elaboração de um Prefácio e da própria tradução manipulada e a reação de pelo menos um leitor.

A tradutora achou o incidente relevante o suficiente para incluí-lo em um Memorial, cuja apresentação era um dos requisitos para que ela participasse de um concurso em sua Universidade para progressão de carreira. Foi considerado relevante por ser um incidente de sua experiência como tradutora, que está intimamente relacionada com sua atuação universitária.

Durante o concurso, na arguição do Memorial, dois membros da banca mencionaram o incidente. Um desses membros interveio contrapondo o incidente narrado no Memorial à existência de várias outras obras literárias que trazem conteúdo hoje considerado ofensivo: o que fazer com todas elas? Bani-las do cânone e dos currículos escolares? Apresentá-las aos estudantes juntamente com alguma observação, disclaimer ou coisa que o valha?

Já o outro membro da banca fez uma pergunta que, no momento, a tradutora respondeu quase automaticamente, mas que depois voltou várias vezes à sua memória e a pôs a pensar: O que a tradutora havia sentido a respeito desse dilema e do racismo do autor? No momento, a tradutora respondeu que sentira uma sensação quase física, como uma pressão no pescoço, como se algo a sufocasse. E essa pergunta e a resposta gerada por ela ressignificaram o incidente para a tradutora, que gradativamente foi percebendo que a questão do racismo do autor a incomodava não só racional ou intelectualmente, mas também afetiva e fisicamente.

Voltando ao tal prefácio publicado em 2017, a tradutora releu um trecho do qual nem se lembrava, mas que já indicava esse efeito emocional, afetivo, que tinha repercussão no corpo (a sensação de sufocamento):

Traduzir uma frase ou uma expressão ofensiva pode “doer”. Pois mais que o tradutor julgue ser apenas um veículo, por mais que não se identifique com o autor e consiga se “descolar” dele, não se julgando responsável pelo que traduz, as coisas têm um limite. Há conteúdos que um profissional talvez não aceitasse traduzir, simplesmente porque ferem seus princípios de convivência e cidadania. (ESTEVES, 2017ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. (2017). E se...? Lovecraft no século XXI. In Contos, v. 1. São Paulo: Martin Claret., p. 15)

Embora na época da redação do prefácio a tradutora estivesse convencida de que o incômodo com o racismo do autor se localizava numa instância racional, moral ou filosófica, o próprio texto mostra sintomas de um desconforto físico, como na frase “traduzir... pode doer”. Talvez o incidente não tivesse conquistado a dimensão que conquistou para a tradutora se não fosse por essas novas abordagens da atividade tradutória que têm trazido a dimensão afetiva para as discussões na área da tradução.

De acordo com Robinson (2003)ROBINSON, Douglas. (2003). Performative linguistics. Speaking and translating as doing things with words. London/ New York: Routledge., tanto as marcas somáticas positivas (sensação de bem-estar, conforto, receptividade, etc.) quanto as marcas desagradáveis (ansiedade, sensação de aperto na garganta ou no peito, mãos suadas, etc.) ou de indignação (proveniente de identificação com alguém que está sofrendo uma injustiça, por exemplo), levam a decisões tradutórias que muitas vezes são consideradas intuitivas ou instintivas. Ele completa, entretanto: “Não é que temos uma escolha entre pensar e sentir, e realmente deveríamos nos permitir sentir mais, basear mais nos sentimentos nossas decisões relacionadas à linguagem A questão é que não existe pensamento sem sentimento”13 13 It´s not that we have a choice between thinking and feeling and really should allow ourselves to feel more, to base more of our language-related decisions on feelings; it’s that there is no thinking without feeling. . (2003, p.71) (destaque do autor). No caso narrado, ainda que, na época da tradução, a decisão tenha sido considerada racional e pensada, já havia, mesmo inconscientemente, a associação da experiência idiossomática da tradutora com aspectos ideossomáticos (a ideia de que não parece certo o uso de determinados termos para descrever uma pessoa negra). Não é objetivo deste trabalho advogar pela estratégia de amortecimento como a mais adequada ou indicada para qualquer texto literário em que o racismo esteja explícito. A questão é muito mais complexa e merece reflexões e estudos, como têm ocorrido nos últimos anos em relação à tradução da literatura afrodescendente14 14 Citamos, como exemplo desses trabalhos, dois artigos publicados na Trabalhos de Linguística Aplicada: Não me chame de mulata: uma reflexão sobre a tradução em literatura afrodescendente no Brasil no par de línguas espanhol-português, de Liliam Ramos da Silva (2018) e Raça e interseccionalidade na tradução: algumas considerações para uma ética no fazer tradutório, de Lima, Filice e Harden (2022). . Importa, aqui, verificar os impactos da tradução para os leitores e a percepção que a tradutora teve daquilo que a afetou durante a tradução e, posteriormente, quando suas decisões e suas reações foram questionadas.

Nesse contexto, cabe lembrar que, como defende Ahmed (2014)AHMED, Sara. (2014). The cultural politics of emotion. 2a. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press., “As emoções são relacionais: elas geram (re)ações ou relações de atração ou aversão referentes a esses objetos” (2014, p.8).15 15 Emotions are relational: they envolve (re)actions or relations of ‘towardness’ or ‘awayness’ in relation to such objects As emoções não são apenas individuais ou sociais, mas circulam entre diferentes corpos, “contagiando” ou não outras pessoas. Há situações, então, em que achamos que outras pessoas estão sentindo o que estamos sentindo, e descobrimos que os sentimentos podem ser totalmente diferentes (AHMED, 2014AHMED, Sara. (2014). The cultural politics of emotion. 2a. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press., p.10).

Quando a tradutora opta por amortecer o trecho, em resposta à dor e ao sufocamento provocados pela leitura, ela entende que é preciso explicitar a decisão - o que é feito no prefácio. Essa ação recebe a aceitação e o elogio de uma página intitulada Estante Diagonal, cuja editora, Joice Cardoso, comenta num post sua primeira experiência com Lovecraft, a partir da leitura do livro em que o conto polêmico está incluído:

O debate levantado pela tradutora Lenita Esteves, professora e pesquisadora da área, no texto de introdução, também foi uma ótima porta de acesso para os novos leitores de H. P. Lovecraft. Além de apresentar uma breve história sobre a vida do autor e suas obras, ela detalha muito bem a importância que a imaginação do autor teve em tempos onde o ceticismo era tão enraizado. Outro levantamento da tradutora é direcionado justamente para a tradução dos contos e a liberdade que ela precisou tomar, juntamente com a editora, para apresentar ao leitor contemporâneo histórias mais aceitáveis. Lovecraft para quem não sabe, foi um grande conservador e possivelmente racista e xenofóbico, por este motivo, passagens de seus contos que descreviam personagens de formas pejorativas precisaram ser alteradas, mas claro, sem distorcerem os enredos. Achei de estrema importância, a tradutora trazer este tipo de questionamento e falar abertamente sobre a ética do amortecimento quando estamos falando de autores e obras que foram escritas em outros tempos, com outros tipos de pensamentos, principalmente na real situação em que vivemos hoje. Sem dúvidas é um texto que vale a leitura não só por apresentar todas estas curiosidades sobre o autor, mas também para que entendamos um pouco sobre o trabalho de um tradutor e as dificuldades que eles podem encontrar pela frente. (CARDOSO, 2018CARDOSO, Joice. (2018). Resenha: H. P. Lovecraft ‒ Contos: Volume I. Estante Diagonal, 31 de jan. Disponível em: https://www.estantediagonal.com.br/2018/01/resenha-h-p-lovecraft-contos-volume-i.html Acesso em 17 jul 2023.
https://www.estantediagonal.com.br/2018/...
).

As palavras de aprovação da intervenção/manipulação, que trouxeram conforto e satisfação para a tradutora, geraram um comentário nada favorável ao “amortecimento”:

Essa tradução da Martin Claret foi uma das maiores ofensas a obra de Lovecraft. Comprei o livro Contos 1 sem saber desse

“amortecimento” e me arrependi amargamente.

É um tipo de tradução que além de mutilar a obra original, ofende a capacidade do leitor de conseguir contextualizar o que é tratado no período em que é feito. A DarkSide Books em contrapartida fez um trabalho realmente digno mantendo o texto original e trazendo notas de rodapé para explicar as partes racistas da obra de Lovecraft.

Ninguém retoca a Monalisa; ninguém cadencia a Quinta Sinfonia; ninguém nivelou a Torre de Pizza. Mas a Martin Claret resolveu “melhorar” a obra de Lovecraft. É muito egocentrismo, (MORCEGO, 2020MORCEGO, Bruce. (2020). Comentário. Resenha: H. P. Lovecraft - Contos: Volume I. Disponível em: https://disqus.com/by/brucemorcego/?l=pt. Acesso em 17 jul 2023.
https://disqus.com/by/brucemorcego/?l=pt...
).

Uma notável semelhança entre os dois posts é a indicação da editora DarkSide como aquela que administrou a questão do racismo de Lovecraft da forma correta, principalmente se levarmos em consideração que existem muitas traduções de obras de Lovecraft circulando no mercado desde que sua obra caiu em domínio público. O leitor não só critica a tradução, mas usa palavras que expressam uma reação emocional (arrependimento, amargura), sinalizando que sua “avaliação” é atravessada por esses sentimentos.

O mesmo argumento de preservação do original é trazido pelo Fantasticursos (YouTube), em que Meireles da Silva, o responsável pelo canal, promete indicar qual é a melhor e qual é a pior edição de Lovecraft. No vídeo sobre o assunto, ele menciona editoras que publicaram obras de Lovecraft, como Clock Tower, Pandorga, Nova Fronteira, DarkSide, Hedra, Companhia das Letras, Ex Machina (cuja tradução considera a melhor). Nos comentários ao post, são também citadas as editoras GRD, L&PM, Iluminuras, Excelsior, Princips, Camelot, Chronos, Amoler e Novo Século.16 16 Essa profusão de editoras sugere que um estudo sobre esse fenômeno de existirem muitas traduções diferentes da mesma obra em domínio público e o fato de elas aparentemente serem bem comercializadas seria muito interessante. Seria o fenômeno apenas brasileiro?

Transcrevemos, a seguir, um trecho do comentário do autor sobre a tradução em questão:

E aí a gente chega no momento de qual é a pior edição. A pior edição é aquela que não respeita o trabalho do H. P. Lovecraft. Eu tô falando aqui da edição da Martin Claret (...) Eu tô com a tradução da Lenita Esteves. E por que que você tem que evitar, já que a Martin Claret está fazendo todo um trabalho... principalmente um trabalho gráfico (...) Essa edição aí, de 2017, ela passa por um processo que a editora... a tradutora Lenita Esteves, ela, na visão dela, amorteceu o H. P. Lovecraft. Isso quer dizer na prática o quê? Ela eliminou, ela alterou, todas as passagens que o H. P. Lovecraft manifestava o preconceito em relação a grupos raciais, a pessoas de etnias específicas (...) mas, independente da questão, do autor, do racismo dele, isso é uma total falta de respeito com quem quer começar a ler o autor, pra quem quer pesquisar o escritor. Não se mexe no texto de um escritor ou de uma escritora, ninguém vai retocar a Monalisa, lá do da Vinci, ninguém vai retocar lá... o desenho do Michelangelo na Capela Sistina, da criação do homem. Não se mexe, isso é falta de respeito, é censura, não tem outra palavra que passa sobre isso. (...) o argumento da Lenita Esteves num texto que ela publicou em 2009 e que eu vou deixar aqui embaixo pra você poder ver a teoria dela do amortecimento. Amortecimento que, como ela mesmo fala, também tem o sentido de entorpecimento, tem... a palavra “amortecer” também tem o sentido de “entorpecer”, de você suavizar, proteger. Será que é isso mesmo? Você quer realmente criar leitores e leitoras entorpecidas, proteger... isso já não vai ao encontro de toda essa discussão de você querer ficar protegendo demais o seu leitor e a sua leitora? Será que você tem que subestimar realmente a inteligência de um leitor e de uma leitora? (...)Então, essa edição aí, evite. Não pegue de jeito nenhum. No meu ponto de vista como pesquisador do Fantástico e que leciona H. P. Lovecraft em sala de aula, beleza? (MEIRELES DA SILVA, 2020MEIRELES DA SILVA, Alexander. (2020). Qual é a melhor e a pior edição de H. P. Lovecraft no Brasil? In Fantasticursos, video do Youtube. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=XSbzKfFUW90, acesso em 18 jul 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=XSbzKfFU...
, 8m45s a 12m43s, grifos nossos).

Até a data da escrita deste trabalho, o vídeo tinha gerado 678 comentários, que giram em torno principalmente de elogios ao post e de manifestações sobre as edições que os “inscritos” tinham, com perguntas sobre qual edição era ou não aceitável. Também houve quem lamentou ter comprado a edição da Martin Claret por não saber desse “problema”, ao lado de questionamentos se outras obras lançadas pela mesma editora poderiam apresentar essa mesma característica.

Lendo os comentários, a tradutora foi obviamente afetada, principalmente porque o autor do post diz que “todas as passagens” em que se manifestava o racismo de Lovecraft foram alteradas, o que está longe de ser verdade. O Prefácio deixa bem claro que a alteração foi realizada em uma única passagem. Além disso, o livro tem contos traduzidos por outras pessoas, então não existe um “movimento censurador” em todo o volume. O amortecimento foi pontual. Outra coisa que provocou certo impacto foi o autor do post atribuir à tradutora uma concepção que é sua. Em “Amortecimento que, como ela mesmo fala, também tem o sentido de entorpecimento”, ele dá a entender que a tradutora considera uma boa ideia “entorpecer” os leitores, quando em nenhum momento é sugerido isso. Se fizermos uma busca do termo em dicionários, entorpecer de fato aparece como um dos sinônimos do verbo, assim como abrandar, atenuar, enfraquecer, abafar, diminuir e afrouxar. A ideia, como a tradutora explicita no prefácio, é suavizar a descrição, uma estratégia usada em várias traduções, mesmo que não seja nomeada ou reconhecida como amortecimento.17 17 Algo bastante semelhante às críticas feitas a essa tradução aconteceu em 2020 com a proposta de modificar alguns termos que descrevem a personagem Tia Anastácia em obras de Monteiro Lobato. Na ocasião, Cleo Monteiro Lobato foi “acusada” de “limpar a obra do racismo”. Durante sua participação nas Jornadas Monteiro Lobato da FFLCH/USP (2021), a bisneta de Lobato afirma “continuo achando que fiz a coisa certa” e defende que as alterações refletem os valores contemporâneos sem que haja qualquer prejuízo para a interpretação da obra. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FzfnunmyBuE. Acesso em 05/08/2023.

Como mencionado anteriormente, impera nos comentários o “respeito ao autor e à obra de arte”, que não pode e não deve ser “retocada”. Embora os “inscritos” do canal concordem quase unanimemente com a ideia de que é “falta de respeito” “mutilar” a obra do “Cavaleiro de Providence”, a tradutora, revisitando a situação vivida, acaba percebendo que sua recusa em reproduzir o trecho racista e sua iniciativa de abrandá-lo parte mais de um receio de ofender alguns leitores do que de qualquer posicionamento ético. Como se sente uma pessoa negra hoje em dia lendo aquela descrição de Buck Robinson? Será que porque o texto vem de uma época em que manifestações racistas como essa podiam ser consideradas “normais”, o leitor negro poderia não se ofender?

Vemos, de um lado, a ação da tradutora que procura neutralizar uma dor coletiva e, empaticamente (uma característica apontada por Koskinen (2020)KOSKINEN, Kaisa. (2020). Translation and Affect. Essays on sticky affects and translational affective labour. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Company. como essencial para o tradutor), tenta se colocar no lugar do outro, que poderia ser ofendido com a descrição do autor racista. De outro, a crítica dos leitores que, também em respeito ao leitor, afirmam que a estratégia usada não é correta, pois impede que esse leitor “conheça” o autor e tire suas próprias conclusões.

Pode-se observar que há um preconceito (um juízo que se forma antes, como lembra Gadamer, 1999GADAMER, Hans-Georg. (1999). Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3ª. ed. Petrópolis: Vozes., p.407)18 18 Gadamer fala de opiniões prévias, antecipações e preconceitos (nem sempre com sentido negativo) que nos constituem e que influenciam a interpretação que temos de cada texto, e, por extensão, de tudo o que nos rodeia. relacionado àquilo que é entendido como o papel de quem traduz ou a um habitus (BOURDIEU, 1992BOURDIEU, Pierre. (1992). Structures, habitus, practices. In The logic of practice, translated by Richard Nice. Redwood City: Stanford University Press.; SIMEONI, 1998SIMEONI, Daniel (1998) The Pivotal Status of the Translator´s Habitus. Target. 10 (1), p.1-39.) criado há séculos e que ressoa a ideia de que as tomadas de decisão podem (e devem) ser feitas sem que haja um posicionamento, ou seja, há uma narrativa de busca de neutralidade, afastamento e imparcialidade por parte do público leitor que não condiz com o próprio entendimento do que seria trabalhar com linguagem.

No que concerne à afetividade no campo da literatura e da tradução, um dos comentários ao post se faz bastante pertinente, trazendo uma nova dimensão para o julgamento de traduções:

@jolicori: Falando como leitor, e não como pesquisador, acho que a preferência por uma tradução envolve também a relação afetiva que você estabelece com ela, o impacto que te causa, se é a primeira vez que você lê aquele texto ou não. Li primeiro a tradução de à procura de Kadath da editora Iluminuras, e fiquei arrebatado pelo livro, foi lá que me apaixonei por Lovecraft. Mas quando li a edição da Hedra, não fiquei tão entusiasmado, parecia que a escolha de palavras e a construção do clima não estavam “certos”.

Dois aspectos merecem destaque: a relação afetiva/paixão que o leitor reconhece como determinante para a preferência por uma ou outra tradução e o fato de especificar que está “falando como leitor e não como pesquisador”, remetendo ao comentário de autoridade (“No meu ponto de vista como pesquisador do Fantástico e que leciona H. P. Lovecraft em sala de aula, beleza?”) e a uma concepção do senso comum de que pesquisador não se envolve afetivamente, um aspecto que pode ser observado no próprio discurso de Meireles da Silva, que não usa palavras que explicitem uma emoção sobre a avaliação feita, embora pareça indignado com o “desrespeito” ao original e ao leitor.

O leitor revela, ainda, um aspecto que pode ser observado em grande parte das manifestações de diferentes pessoas sobre traduções, e principalmente sobre a questão da tradução de títulos e da tradução (ou não) de nomes próprios em obras literárias: numa espécie de fidelidade a um primeiro afeto, o leitor ou espectador prefere, na maioria das vezes, a tradução que leu primeiro. Nesse sentido, citando a Bíblia King James, Robinson (1991ROBINSON, Douglas. (1991). The translator´s turn. Baltimore/ London: The Johns Hopkins Press., p.225) afirma que traduções que nos são familiares, e que muitas vezes memorizamos, provocam uma resposta somática de segurança.

Koskinen (2020)KOSKINEN, Kaisa. (2020). Translation and Affect. Essays on sticky affects and translational affective labour. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Company. também aponta que a literatura infantil é outro gênero nostálgico que traz uma memória afetiva que influencia a aceitação ou não de novas traduções. Isso fica demonstrado, por exemplo, quando algumas pessoas ficam indignadas com o fato de a minifada Sininho aparecer no cinema com outro nome, mesmo que seja o nome original, Tinker Bell. Nesse exemplo, mais do que qualquer argumento racional contra a invasão da língua inglesa no nosso meio brasileiro, provavelmente o que domina é uma impressão afetuosa de que “‘Sininho’ é tão mais gracioso e expressivo!” 19 19 Também ocorrem críticas em casos de alterações de títulos, como a obra “Ten Little Niggers”, de Agatha Christie, conhecida como “O caso dos dez negrinhos”, recentemente traduzido por “E não sobrou nenhum”; ou de obras clássicas, como “Animal Farm”, de George Orwell, inicialmente traduzido por “A revolução dos bichos” e há pouco tempo traduzido por “A fazenda dos animais”. Vemos assim que, muito mais do que se possa admitir num primeiro momento, as emoções e os afetos estão sempre determinando nossas opiniões e julgamentos. E isso, obviamente, não exclui o campo da tradução.

As repercussões do caso narrado mostram a necessidade e urgência de serem discutidas as questões relacionadas ao racismo estrutural e à tradução, levando a uma maior conscientização do papel do tradutor nessa luta. Nesse sentido, um último exemplo que gostaríamos de mencionar diz respeito ao projeto de tradução e adaptação do livro Our Bodies, Ourselves (Nossos Corpos por Nós Mesmas), coordenado por uma das autoras. Em conjunto com uma equipe multidisciplinar formada por professoras, advogadas, médicas, entre outras profissionais da área de saúde e direitos da mulher, discentes que fizeram parte do projeto participaram de reuniões online para dialogar sobre a tradução de alguns termos sensíveis para a comunidade negra, tais como black woman e women of color. Além de questões tradutórias, também foram discutidas as inclusões de depoimentos de mulheres negras com narrativas sobre experiências racistas vividas por causa da cor da pele e do cabelo crespo (especialmente relevantes no capítulo Imagem Corporal) (The Boston Women´s Health Collective, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2023The Boston Women´s Health Book Collective, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. Nossos corpos por nós mesmas. Um clássico do feminismo mundial. Coordenação da tradução: Érica Lima e Janine Pimentel. 1ª ed. São Paulo: Ema Livros; Editora Timo, 2023.). Um dos pontos discutidos foi o fato de não existir um consenso, no momento, sobre o uso de “mulher negra” ou “mulher preta”, e de como a negação da branquitude (“mulher não branca”) pode remeter ao racismo. Ao longo dos 28 capítulos e mais de mil páginas, em consonância com a proposta do livro original, cada grupo de mulheres de diferentes vivências pode escolher entre um ou outro termo (“preta” ou “negra”, por exemplo), sempre atentando para uma questão ética e de escuta das mulheres negras (uma dessas narrativas pode ser vista em LIMA e PIMENTEL, 2023LIMA, Érica; PIMENTEL, Janine. (2023) Nossos corpos por nós mesmas: viagens do feminismo e a busca por uma linguagem inclusiva na tradução. In: SILVA_REIS, Dennys; FLORES, Vinícius Martins (org.). Estudos da Tradução & comunidade LGBT. Salvador: Editora Devires (no prelo) (no prelo))

Cabe lembrar que Baker afirma que “a abordagem narrativa trata as escolhas tradutórias não como desafios linguísticos pontuais, mas, principalmente como práticas humanas com um impacto direto sobre a vida social e política” (ZAIDAN, BAKER, 2019ZAIDAN, Junia; BAKER, Mona (2019). Tradução e transformação social: uma entrevista com Mona Baker. Dossiê: Tradução & Transformação Social. PERcursos Linguísticos. Vitória (ES), v. 9, n. 21, p.14-35., p.18-19). Nesse sentido, tanto o exemplo mencionado quanto a ação da tradutora correspondem ao “esforço ético” que Baker defende, que não se aplica a um caso isolado de tradução, mas a um esforço constante de reflexão crítica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto buscou iluminar, a partir de uma situação real relatada como uma narrativa ontológica, como os tradutores, em sua prática, podem se envolver e efetivamente se envolvem com o texto que estão produzindo de formas que vão muito além do que costumamos classificar como racionalidade. Na narrativa aqui apresentada, houve dois momentos de percepção desses efeitos. Numa primeira instância, a tradutora julgou que a reação produzida pelo texto racista estava no campo da ética, da sociologia, da história e até da filosofia. Ao ser questionada sobre essa sua reação, a tradutora acabou por ressignificá-la, ao se dar conta de que os tais efeitos não tinham sido apenas racionais ou “cerebrais”, mas haviam tido um alcance físico, numa sensação de sufocamento. Tal mudança de percepção pode apontar para o fato de ainda estarmos engatinhando na reflexão sobre as emoções e seus efeitos em nossa prática tradutória.

O pré-conceito referido anteriormente, segundo o qual o tradutor deve manter a neutralidade, sem se envolver com o que traduz, é tão arraigado em nossa cultura que a tradutora, mesmo percebendo sua reação e realizando uma intervenção no texto, provavelmente apagou para si mesma a dimensão afetiva de seu gesto, atribuindo-o apenas a uma posição racional, intelectual, diante de uma manifestação do autor. Talvez precisemos discutir mais o assunto e as situações em que os afetos se exasperam, para nos acostumarmos com elas e entendêlas melhor.

Foi possível constatar que, a partir do momento em que o ato de amortecimento ecoa em algum ambiente, para ser aplaudido ou rechaçado, essa narrativa passa a ser também pública: mais pessoas opinam sobre o ato e expõem seus próprios pontos de vista, suas paixões e afetos, às vezes manifestando alguma hostilidade. E, principalmente, para quem ler todos os comentários àquele post e outros que foram também aqui mencionados, entra em cena um aspecto de narrativa conceitual que diz respeito a “conceitos e explicações desenvolvidos em determinados campos do conhecimento”: alterar algum aspecto do texto original na tradução é algo grave e inadmissível, é mutilação, é censura, e censura não cabe em lugar algum. Essa é a opinião quase unânime de todos os que participaram da discussão, embora no campo especializado da tradução já tenha ficado bastante claro que a manipulação, num sentido amplo, seja ela consciente ou inconsciente, é inevitável.

Em relação à temporalidade das narrativas, há diversos momentos em que a ação de amortecimento foi interpretada: durante o processo tradutório, quando a tradutora resolveu modificar a tradução minimizando o aspecto racista; quando a editora entrou em contato sobre o questionamento do leitor; quando o avaliador questionou os motivos da ação e no momento da escrita deste artigo. Embora tenham ocorrido com anos de intervalo entre eles, não são eventos isolados, ou seja, há entre as narrativas uma relacionalidade construída a partir da apropriação seletiva feita pela tradutora e pelas pessoas envolvidas (editora, avaliador, leitores). No caso narrado, temos, de um lado, uma questão ética para a tradutora, que não quer reproduzir uma descrição racista e, de outro, os leitores, que consideram antiético não haver essa reprodução. Essa divergência mostra a articulação causal, que se refere aos sentidos construídos a partir das narrativas que apresentam uma significação moral e ética e que dependem tanto das experiências individuais quanto de convenções sociais (ou, nos termos de Robinson, de marcas idiossomáticas e ideossomáticas).

Vale retomar a constatação de que uma narrativa que inicialmente poderia ser classificada como ontológica, por ser do nível pessoal (o nível da pessoa e de tudo o que a envolve), acabou se tornando pública devido aos desdobramentos e à má recepção do ato de amortecimento pela maioria dos leitores e fãs de Lovecraft que ali se manifestaram. Subjacente a essa narrativa pública, acabam por eclodir traços de uma narrativa conceitual, que reitera a tradição do texto intocável e do autor irretocável. Cabe lembrar, ainda, que “[a] abordagem narrativa baliza, portanto, estudos mais engajados que rejeitam níveis altos de abstração, favorecendo caracterizações complexas e reflexivas sobre o impacto da tradução em situações concretas da vida real” (ZAIDAN e BAKER, 2019ZAIDAN, Junia; BAKER, Mona (2019). Tradução e transformação social: uma entrevista com Mona Baker. Dossiê: Tradução & Transformação Social. PERcursos Linguísticos. Vitória (ES), v. 9, n. 21, p.14-35., p. 19).

Nesse sentido, pode-se observar que há uma função social subjacente à decisão da tradutora que escapa aos leitores quando veem unicamente a ideia de não interferir no texto original e que acabam por naturalizar o racismo do autor. Na esteira do que defende Ahmed (2014)AHMED, Sara. (2014). The cultural politics of emotion. 2a. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press., ao sentirmos vergonha da descrição ou ao tentarmos nos colocar no lugar do outro, da dor do outro, somos capazes de agir contra as injustiças sociais.

Com diferentes narrativas sobre o processo e decisões tradutórias talvez possamos incentivar novas maneiras de ver a tradução e a importância do tradutor, explorando o que nos afeta, lembrando (e contradizendo Platão) que o emocional é político, e talvez proporcionando uma valorização há muito devida ao tradutor e à tradução.

  • 1
    What we mean by emotional violence is the physical hurt caused by words. Schizophrenogenic parents can drive their children insane with words; psychotherapists can cure with them. Words can also caress, soothe, placate. (ROBINSON, 1991ROBINSON, Douglas. (1991). The translator´s turn. Baltimore/ London: The Johns Hopkins Press., p. 5).
  • 2
    Indeed, one might argue that until translation theorists have a fuller understanding of the effect of translation on the translator and the translator’s relation to theory [...] it may not be possible to develop a truly comprehensive definition of translation studies.
  • 3
    personal stories that we tell ourselves about our place in the world and our own personal history.
  • 4
    In the first instance, shared narratives, the stories that are told and retold by numerous members of a society over a long period of time, provide the blueprints for ontological narratives, including the blueprints for the social roles and spaces that an individual can inhabit.
  • 5
    They can be ‘rescued’ and emphasized in order to resist dominant narratives, to elaborate an alternative narrative of the world.
  • 6
    [o]ntological narratives are used to define who we are; this in turn is a precondition for knowing what to do.
  • 7
    So, affect is a body-mind complex that directs a person towards a desired state of affairs through a process of change.
  • 8
    Language, then, is performed in and through and by the body. We make decisions about what word or phrase to use with the help of somatic markers. We remember what words and phrases mean, not just their denotations but their connotations and collocations and implications, with the help of somatic markers.
  • 9
    Ahmed questiona a distinção entre afeto e emoção, priorizando o segundo por ser um termo usado no dia a dia para descrever o que ela estava abordando em cada capítulo (dor, raiva, medo, vergonha, amor), embora também use afeto em determinados momentos. No posfácio à segunda edição, a autora reitera que não considera os dois termos opostos e que a escolha se baseia principalmente na maneira como filósofos do século XVII relacionavam o conceito com movimento e impressões (AHMED, 2014AHMED, Sara. (2014). The cultural politics of emotion. 2a. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press.).
  • 10
    In concrete terms, causal emplotment means that two people may agree on a set of ‘facts’ or events but disagree strongly on how to interpret them in relation to each other.
  • 11
    O termo “manipulação” tem aqui um sentido informado pela Teoria dos Polissistemas, entre cujos principais representantes estão Itamar Even-Zohar, Gideon Toury, Theo Hermans, André Lefevere e Susan Bassnett. A convicção principal é de que a tradução é uma prática que ocorre num determinado contexto social, sendo necessariamente moldada pelas regras vigentes nesse contexto social. Cada ato de tradução será moldado pela ideologia do tradutor e pelo modus operandi do sistema literário em que a tradução vai ser realizada. A manipulação pode ser consciente ou inconsciente, mas ela é inevitável. (Cf. HERMANS, 1985HERMANS, Theo (ed.). (1985). The manipulation of literature. London/New York: Routledge.; LEFEVERE, 1992LEFEVERE, André. (1992). Translation, rewriting, and the manipulation of literary fame. London/New York: Routledge.).
  • 12
    A mensagem postada no Facebook da editora foi enviada à tradutora por e-mail. Não foi possível recuperá-la na própria página. Todas as postagens e comentários de leitores foram reproduzidos exatamente como publicados na internet.
  • 13
    It´s not that we have a choice between thinking and feeling and really should allow ourselves to feel more, to base more of our language-related decisions on feelings; it’s that there is no thinking without feeling.
  • 14
    Citamos, como exemplo desses trabalhos, dois artigos publicados na Trabalhos de Linguística Aplicada: Não me chame de mulata: uma reflexão sobre a tradução em literatura afrodescendente no Brasil no par de línguas espanhol-português, de Liliam Ramos da Silva (2018)SILVA, Liliam R. (2018) Não me chame de mulata: uma reflexão sobre a tradução em literatura afrodescendente no Brasil no par de línguas espanhol-português. Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 71-88, jan./abr. e Raça e interseccionalidade na tradução: algumas considerações para uma ética no fazer tradutório, de Lima, Filice e Harden (2022)LIMA, Gardênia N.; FILICE, Renisia C. G.; HARDEN, Alessandra R. (2022) O. Raça e interseccionalidade na tradução: algumas considerações para uma ética no fazer tradutório. Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(61.1): 197-209, jan./abr..
  • 15
    Emotions are relational: they envolve (re)actions or relations of ‘towardness’ or ‘awayness’ in relation to such objects
  • 16
    Essa profusão de editoras sugere que um estudo sobre esse fenômeno de existirem muitas traduções diferentes da mesma obra em domínio público e o fato de elas aparentemente serem bem comercializadas seria muito interessante. Seria o fenômeno apenas brasileiro?
  • 17
    Algo bastante semelhante às críticas feitas a essa tradução aconteceu em 2020 com a proposta de modificar alguns termos que descrevem a personagem Tia Anastácia em obras de Monteiro Lobato. Na ocasião, Cleo Monteiro Lobato foi “acusada” de “limpar a obra do racismo”. Durante sua participação nas Jornadas Monteiro Lobato da FFLCH/USP (2021), a bisneta de Lobato afirma “continuo achando que fiz a coisa certa” e defende que as alterações refletem os valores contemporâneos sem que haja qualquer prejuízo para a interpretação da obra. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FzfnunmyBuE. Acesso em 05/08/2023.
  • 18
    Gadamer fala de opiniões prévias, antecipações e preconceitos (nem sempre com sentido negativo) que nos constituem e que influenciam a interpretação que temos de cada texto, e, por extensão, de tudo o que nos rodeia.
  • 19
    Também ocorrem críticas em casos de alterações de títulos, como a obra “Ten Little Niggers”, de Agatha Christie, conhecida como “O caso dos dez negrinhos”, recentemente traduzido por “E não sobrou nenhum”; ou de obras clássicas, como “Animal Farm”, de George Orwell, inicialmente traduzido por “A revolução dos bichos” e há pouco tempo traduzido por “A fazenda dos animais”.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2023
  • Aceito
    01 Set 2023
  • Publicado
    04 Set 2023
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