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MICROFONE ABERTO

OPEN MICROPHONE

RESUMO

Microfone Aberto é um dispositivo-arte dos saraus que acontecem na periferia de Fortaleza (CE). Neste texto, tecemos uma escrita-acontecimento da pesquisa que vem sendo realizada junto às coletivas de artistas que se encontram nesse espaço em relação ao qual se afirma uma política de re-existência. A palavra incorporada, imageada e transmutada em canto ecoa à margem do Estado e suas instituições, arquiteturas moderno-colonial-capitalistas, para além das fortificações que amarram a política e a crítica na arquitetura colonial do tempo presente, tempo linear e de repetição da engrenagem necropolítica das ficções de poder que cerceiam as vozes da periferia. Pensamos a voz aqui não de uma perspectiva abstrata ou tornada propriedade para os “senhores da voz”, “os donos da razão e da crítica” que chegam para “dar voz àqueles e àquelas forjados como outros”. Trabalhando com a Poética da Relação de Édouard Glissant, a radicalidade da performance preta fugitiva, os conceitos de escrevivência e re-existência em um pensamento atmosférico da liberdade e da imaginação, este texto encruzilha as artes com os fazeres de um devir-poeta no meio de uma sociologia que se faz canto e voo nas grafias de um território movente de criação de um “em-comum”.

Palavras-chave:
microfone aberto; sarau; poeta; Édouard Glissant; re-existência

ABSTRACT

Open Microphone is an art device of soirées that take place in the outskirts of Fortaleza, Ceará - Brazil. This text weaves happening writing drawn from ongoing research with artist collectives that gather at this place, where a politics of re-existence unfolds. There, the words are incorporated, imaged, and transmuted into chanting to echo the State margins and its institutions, modern-colonial-capitalist architectures, beyond the fortresses that tie the politics and the criticism to present-time colonial architecture, linear and repetitive time of necropolitics gears, power fictions which constrain outskirters’ voices. We think of voices not as abstract conceptions or as property of “voice landlords”, the “owners of sense and critics”, who come to “give voice to those forged as others”. This text draws from Poetics of Relation, by Édouard Glissant, from the radicality of fugitive Black performance, the concepts of escrevivência and re-existence, at an atmospheric thought of freedom and imagination. Hence, the text builds crossroads joining arts and the making of a poet-to-be among a sociology that is chant and flight on the marks of a moving land of “in-common” creation.

Keywords:
Open microphone; soirée; poet; Édouard Glissant; Re-existence


Colagem: ritual para a palavra, fragmento I, 2021

Em voz alta, para assinalar o desvio. (Édouard Glissant, 2011GLISSANT, Édouard. (2011). Poética da Relação. Tradução: Manuela Ribeiro Sanches. Portugal: Porto., p. 87)

INTRODUÇÃO

O microfone aberto, como dispositivo1 1 Para Gilles Deleuze (1996), dispositivo é antes de mais uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente. E, no dispositivo, as linhas não delimitam ou envolvem sistemas homogêneos por sua própria conta, como o objeto, o sujeito, a linguagem, etc., mas seguem direções, traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se afastam uma das outras. Qualquer linha pode ser quebrada - está sujeita a variações de direção - e pode ser bifurcada, em forma de forquilha - está submetida a derivações. Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como vectores ou tensores. de re-existência, é uma manifestação da palavra aberta e da relação à escuta. O dispositivo microfone aberto aciona a espontaneidade dos saraus da periferia e a sua imprevisibilidade inerente. A abolição da “lista de inscrição”, de uma “ordem” quase litúrgica preservada na história dos saraus2 2 Para saraus de periferias, consultar Nascimento Silva (2019) e Santos Silva (2020). rompe e ao mesmo tempo recria outro modo possível de ser e fazer saraus. É o desejo ainda sem nome por uma efetiva abolição do mundo como o conhecemos, assim como por uma língua que está por ser inventada à medida que já está sendo gestada. Começando com a ideia de “Palavra Aberta”, poetizada por Glissant (2011GLISSANT, Édouard. (2011). Poética da Relação. Tradução: Manuela Ribeiro Sanches. Portugal: Porto., p. 191): “a palavra, que não é feudo de ninguém, junta-se à materialidade do mundo. A Relação diz-se”. Como veremos adiante, o microfone aberto não negligencia as assimetrias (a desigual distribuição da vida e da morte), pelo contrário, a poética e a política do microfone aberto não supõem o fim das dominações de maneira harmoniosa, ou seja, não é uma poética do indiferenciado ou do neutro.

O “microfone aberto” como palavra aberta subverte e ao mesmo tempo ressignifica a própria noção de “sarau”, criando relações entre as pessoas e o espaço de forma a desfazer os estratos colonial-capitalistas cisheterosexista-patriarcais de modo que, a um só tempo, “aceitem transformar-se ao permutar com o outro” (GLISSANT, 2005GLISSANT, Édouard. (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. - Juiz de Fora: Editora UFJF., p. 46) como gestos de cuidado a [re]conduzir a fuga inventiva; possibilidade não somente de fala, mas, sobretudo, de escuta. Por possuir certa espontaneidade no encontro, cria ordenações múltiplas e relações possíveis entre os participantes e a própria comunidade - o microfone aberto inspira a reorganização das relações mais do que uma redistribuição de lugares. “Podem não saber ler e escrever, mas sabem falar o que sentem. Isso é poesia!”, lembra Samuel em Transe3 3 Samuel em Transe é poeta, tatuador, residente no Conjunto São Cristóvão (Jangurussu) e um dos organizadores do Sarau da B1 juntamente com a escritora e poeta nina rizzi e com o poeta e professor Carlos Melo desde 2015. Sob o sobrenome artístico “Denker”, a ideia de organizar encontros em volta da poesia na comunidade do São Cristóvão (Jangurussu), uma das periferias de Fortaleza (CE), surgiu no final da década 2000 juntamente com outros três poetas. “Embora na época ainda não denominassem como sendo um ‘sarau’, foi deste emaranhado de encontros e ‘conversas barulhentas’ regadas a vinho e poesia, geralmente no Bar do Seu Valdir, na Avenida ‘A’, que no final da primeira década de 2000 surgiram os ‘Poetas de Lugar Nenhum’, com Jair Xavier, Hit Ty, Aglailson de Almeida e Samuel Denker, todos, na época, moradores do Conjunto São Cristóvão, Grande Jangurussu (cf. SILVA, 2019, p. 29-30; DENKER, 2016). ao se referir a alguns moradores em volta, poetas e frequentadores do Sarau da B1.

1. SARAU DA B1: LUGAR-ENCONTRO

Sarau B1 é um evento realizado uma vez por mês desde 2015 e leva este nome por acontecer na Praça da Avenida Bulevar 1, nº 121, no Conjunto São Cristóvão, coração comercial de um dos bairros mais pobres de Fortaleza (CE), o Grande Jangurussu (SER VI)4 4 Alguns territórios receberam a denominação de “grandes” por sua complexa dinâmica interna de formação territorial, luta política de afirmação dos movimentos sociais e populacional. Além do “Grande Jangurussu”, temos, por exemplo, o Grande Bom Jardim que abriga cinco bairros, cada um composto por algumas comunidades. Em 2007, por exemplo, o Conjunto Palmeiras deixou de compor o Jangurussu e tornou-se bairro (CAVALCANTE, 2011). . Desde o início do isolamento social devido à pandemia da Covid-19, acontece por meio de lives no Instagram @saraudab1.

Quando, presencialmente, dezenas de pessoas vêm de diferentes lugares da Cidade e região metropolitana ocupando o espaço aberto do Sarau. A maioria jovens de diferentes bairros espalhados pela periferia da Cidade: Planalto Ayrton Senna, Pirambu, Bom Jardim, Curió, Serrinha, Messejana, Conjunto Palmeiras, Benfica, Serviluz, Barra do Ceará, dentre outros, tornavam aquele lugar-encontro um espaço de festa, poesia, luta e afetos.

Alguns traziam decoradas muitas de suas poemas, outros publicados na internet ou salvo em blocos de textos que eram lidos em seus celulares, enquanto poucos traziam poemas anotadas em rascunhos ou pequenos cadernos. Cada poeta é uma poema, um arquivo-vivo de territórios perecíveis - por ser da ordem da transmutação, a fumaça que se transforma em outra coisa antes de queimar. Entre o dentro e o fora, a Poeta é uma caminhante, um griot que tem [e está sendo] no corpo escrituras de luta e sonhos germinando.

Há aquelas e aqueles que escrevem em fanzines individuais ou coletivas e publicam as suas poemas, fotografias e arte-colagens autorais. Os saraus são lugares de partilha da palavra escrita e declamada. O sarau da B1 nos últimos anos organizou e lançou diferentes edições da zine-coletiva intitulada “Jangu Livre”. Publicação alternativa impressa, organizada inicialmente pelas e pelos poetas Carlos Melo, nina rizzi e Samuel em Transe. A fanzine é uma produção bimestral colaborativa contendo poesias e outros escritos autorais, fotopoéticas e artecolagens de frequentadores, artistas e poetas da Cidade e Região Metropolitana.

Poetas, organizadores e participantes de saraus de outros bairros da Cidade, poetas de cambão5 5 Para poesia-no-cambão, consultar Silva e Freitas (2020b). , músicos e artistas locais, esqueitistas, educadores sociais e arte-educadores, escritores, intelectuais e pesquisadores participam recitando, cantando ou simplesmente ouvindo.

Jovens de bonés com abas retas e outros com abas em côncavo sublimados manualmente, cobrindo parte do rosto, alguns usando blusas de tamanho superior ao que vestem. Os corpos tatuados, alguns perfurados por piercings e alargadores nas orelhas, nariz e lábios são também corpos-utópicos e estigmatizados, por este motivo “torna-se sofrimento”, conforme Foucault (2013, p. 14)FOUCAULT, Michel. (2013). O corpo utópico, as heterotopias. Tradução: Salma Tannus Muchail, São Paulo: n-1 Edições.; mais do que isso, trata-se de um corpo-passante “que só existe por sua ausência” (MBEMBE, 2020MBEMBE, Achille. (2020) Políticas da Inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. - São Paulo: n-1 edições., p. 207). É por meio das poemas e canções que essas e esses poetas denunciam e relatam casos de racismo, misoginia e LGBTQIAP+fobia, assim como a violência policial, violência doméstica, ao mesmo tempo em que recitam poemas eróticos, de utopia e de amor. Alguns cantam a capela ou voz e violão, dançam com e sobre a superfície dos abismos daquilo que nos falta…

Um lugar aberto, feito de poesia, festa e afetos. Os saraus nas periferias e favelas são como uma espécie de rebelião festiva que confronta determinadas gramáticas do Estado e suas instituições que tentam capturar ou regulamentar esses e outros eventos similares. É possível perceber que esses eventos, à medida que reúnem pessoas em volta da poesia oral e escrita, procuram ocupar lugares públicos sem pedir permissão, inclusive de espaços institucionalizados, para realizar seus propósitos festivos. Uma maneira de “estar juntos”. Conforme Bey (2011BEY, Hakim. (2011). TAZ: Zona Autônoma Temporária. Tradução de Renato Resende. 3ª ed. São Paulo: Conrad., p. 26, grifos do autor):

[...] a emergência de uma cultura festiva distanciada ou mesmo escondida dos pretensos gerentes do nosso lazer. “Lute por direito de festejar” não é, na verdade, uma paródia da luta radical, mas uma nova manifestação dessa luta, apropriada para uma época que oferece a TV e o telefone como maneiras de “alcançar e tocar” outros seres humanos, maneiras de “estar juntos!” [...] Seja ela apenas para poucos amigos, como é o caso de um jantar, ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa é sempre “aberta” porque não é “ordenada”. Ela pode até ser planejada, mas se ela não acontece é um fracasso. A espontaneidade é crucial.

Meninas/es/os usando cabelos black power, outros de tranças e dreadlocks naturais ou feitos com lã, enfeitados com fitas coloridas. Alguns portando mochilas, bolsas ou pochetes trazem consigo livros, objetos e acessórios pessoais, como a seda para o cigarro de pacaia6 6 Cigarro feito das folhas de fumo desfiado, mais comum na região do Nordeste. O mesmo que fumo de corda. , fumo e isqueiro. Alguns dos bandos que chegam juntos ou que se encontram na B1 consomem durante o Sarau “vinho São Brás” ou cachaça Ypióca amarelinha.

Jovens, poetas e frequentadores de diversos lugares da Cidade ocupam a praça. A favor de outra forma de vida [já] sendo inventada, poetas são corpos-fronteira que desfazem, atravessam e pulam os muros daquilo que enclausura, castra e estupra. Um corpo político e em permanente disputa. A presença dos elementos do Hip Hop (Grafite, DJ, MC, B-boy/B-girl) nas músicas e na estética, seja na forma ou na performance ao recitar poemas autorais, é um dos aspectos predominantes, embora se tenham percebidos marcadamente elementos de outros estilos e estéticas, desde o reggae até as múltiplas vertentes do rock nacional e internacional, influências da tradição oral, como por exemplo, o repente.

Quando, presencialmente, alguns vizinhos colocam suas cadeiras na calçada e conversam entre si, assistem ao sarau. Outras pessoas, de suas calçadas, varandas ou janelas de frente ao evento, fotografam por ter uma visão panorâmica do todo e do tudo. Não diferente, outros “copiam” atento o movimento e, sem chamar atenção, comunicam-se. Enquanto isso, poetas, músicos e dançarinos fazem do espaço uma festa, algumas pessoas preferem apreciar das mesas distribuídas ao lado, entre uma dose, uns tragos, um petisco e outro.

A estrutura básica para o evento conta apenas com uma caixa de som, microfone e mesa de som simples, equipamentos algumas das vezes alugados por um comerciante, dono de um bar que funciona em frente ao local onde acontece o Sarau, o “Boteco Poético”7 7 Nome fictício do local. , e de onde a energia elétrica é “puxada” para o equipamento de som. Mas nem sempre foi assim. Algumas edições, conforme organizadores, não puderam contar com estes equipamentos de som. Quando não era possível o empréstimo com amigos e amigas, o evento acontecia no “gogó”, isto é, sem microfone. A grande maioria dos saraus que acontece nas periferias e favelas de Fortaleza não conta com equipamento próprio, alguns deles dependem de empréstimo ou aluguel. Tem sido através da venda de alguns livros e zines que o Sarau da B1 pretende comprar o seu próprio equipamento de som e iluminação.

Os corpos-ocupantes ali presentes, sentados, em pé, abraçados, bebendo, fumando, conversando, fotografando e filmando, atentos ao movimento da rua... Além dos corpos em família de sangue e os de “consideração”, encontram-se ali corpos-ameaçados, “cabreiros”, alguns desinteressados, outros expressando seu ódio contra os diferentes tipos de violências vividas no cotidiano, sentidas na pele e na consciência, tantas outras “dormentes” ou naturalizadas. Não somente por ser aberto, os encontros-saraus nas periferias ganham outra dimensão: corpos aliançados, uma estética circular espontânea envolta de um microfone, em torno da Palavra Aberta, recitando relatos-de-vida e ouvindo outras poetas e artistas com certo “assombro” - literatura, poesia e arte antes engavetadas, invisibilizadas e silenciadas dão um “salto na existência” (FANON, 2008FANON, Frantz. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA., p. 189).

2. POLÍTICA DE RE-EXISTÊNCIA

Não é suficiente “resistir”. É preciso re-existir para inventar outra forma possível de existência como potência. Inventar é re-existir. A invenção se diferencia da criação ao passo que ela acrescenta ao criado, de certa forma, uma espécie de futuro no agora-do-presente.

Re-existir é contrário à multiplicidade da força que mantém determinados corpos enclausurados nas metafísicas destrutivas da raça e do gênero como fabricação do Outro enquanto objeto, mercadoria, código, fluxo, isto é, existências supérfluas circunscritas à lógica do poder colonial-capitalista-cisheterosexista-patriarcal. As políticas de re-existências não são exclusivamente a favor das identidades, mas sim das forças [coletivas] anticoloniais, linhas que inventam modos de existir a todo-instante. Re-existir significa liberar-se do “trampolim constituído pela resistência dos outros” (FANON, 2008FANON, Frantz. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA., p. 27). Libertar-se do fardo da resistência que tem como horizonte as políticas de assimilação. Trata-se ainda de um devir ou uma práxis “não somente reativa”, pois “sempre há ressentimento em uma reação”. Re-existir, portanto, seria conduzir a existência não somente como “reação” ou idealismo, mas tornar-se um “ser acional” (idem, p. 184).

Embora não utilize o termo re-existência, Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA., p. 189) se aproxima da noção aqui adotada, ao afirmar que “o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na existência”. Esse “salto” não é apenas um confronto face a face com a existência aprisionada que insiste (e não se cansa) de criar para existir, mas um gesto inventivo - por vezes silencioso e perspicaz - de fuga, subversão, recriação e apropriação de lugares. O encontro-sarau, o relato-protesto, a poesia no “cambão”, as bibliotecas-livres e de iniciativa popular8 8 Atualmente existem pelo menos 15 bibliotecas-livres e de iniciativa popular em Fortaleza (CE). produzem afetos que inventam políticas de re-existências - táticas e estratégias que inventam zonas existenciais e mais do que subverter, recusam os códigos de dominação. Pois os afetos inventam novas geografias - um mapa constantemente refeito pela Palavra-Praticada nas territorialidades do corpo, assim como nas esquinas e calçadas entre os becos e asfaltos das mentes.

Para Souza (2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. (2009). Letramentos de Reexistência: culturas e identidades no movimento hip-hop. 206 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp., p. 57), a luta por reconhecimento passa por uma permanente disputa política: o uso da palavra re-existir “envolve ação humana em relação a alguém, em um contexto interacional específico no qual ocorre a busca pela apropriação, a batalha pelas palavras e seus sentidos, a disputa por identidades sociais”. Ainda consoante Souza, são nesses espaços de produção cultural da diáspora negra que “também se configuram as relações dialógicas de reexistências inscritas em um processo que envolve negociação, reinvenção e subversão de relações assimétricas de poder”.

Ao analisar os processos de entextualizações nas interações entre movimentos sociais do bairro da Serrinha, na periferia de Fortaleza (CE), e a Universidade Estadual do Ceará (UECE), Maciel, Alencar e Sousa (2018MACIEL, T. W. N.; ALENCAR, C. N. de; SOUSA, A. O. de B. (2018). Entextualizações em eventos de letramentos de arte e reexistência das juventudes: ressignificar para reexistir em contextos periféricos. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 10, p. 651-676, jan. Disponível em: <http://www.abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/558>. Acesso em: 03 maio 2021, às 14h52min.
http://www.abpnrevista.org.br/revista/in...
, p. 671) afirmam que “reexistir” para poetas da periferia e favela significa:

[...] discordar das imposições do capitalismo neoliberal e além disso, acreditar na força dos grupos sociais que constituem a periferia, reivindicando direitos e propondo soluções para ressignificar os espaços urbanos. Isso indica a construção de novas identidades para os sujeitos da periferia, pois os atores sociais estão utilizando-se da reexistência por meio da arte, construindo uma nova identidade - povo periférico é agora também aquele que reexiste, redefinindo sua posição na sociedade, buscando a transformação da estrutura social opressora.

Com esteio nessas proposições, compreendemos que essas poetas não apenas resistem aos diversos tipos de opressão e criminalização, “provocadas pelo sistema-mundo colonial capitalista” (idem, p. 673), mas, sobretudo, inventam formas de re-existência, isto é, formas de vida por meio de suas práticas poéticas e da organização política das coletividades periféricas na Cidade e região metropolitana.

A este emaranhado de práticas poéticas em constante movimento, sem começo e fim, chamamos de Rede de Afetos (NASCIMENTO SILVA, 2019SILVA, Francisco Rômulo do Nascimento. (2019). Rede de Afetos: práticas de re-existências poéticas na cidade de Fortaleza (CE). 212 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual do Ceará.), uma das atuais formas de resistência e re-existências nas periferias e favelas de Fortaleza, Ceará. A Poética da Relação que é também o Pensamento do Tremor de Édouard Glissant (2011GLISSANT, Édouard. (2011). Poética da Relação. Tradução: Manuela Ribeiro Sanches. Portugal: Porto.; 2014) pode ser tomada como a base da Rede de Afetos, que questiona e desafia o pensamento da raiz única, dos mundos-cercados, dos conclaves apaixonados pelo poder, da origem que é totalitária e que fixa um ponto. A política de re-existências convoca-nos para o desconhecido-absoluto de “Todo-o-Mundo” - a poética do imprevisível por excelência: “a multiplicidade que entra em nós e bate sem parar à nossa porta” (GLISSANT, 2014GLISSANT, Édouard. (2014). O pensamento do Tremor. La Cohée du Lamentin. Tradução: Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard., p. 43). Uma Rede tecida pelas práticas inventivas das e dos poetas, em sua maioria, jovens, negras e moradores e moradoras de periferias e favelas.

Sacudida pelo caos, a Poeta não tem medo da imprevisibilidade. Na política de re-existência e na poética do microfone aberto, não há representante que fala em nome de, não há “isso” que fala por. Pois aquilo ou aquela que fala é multiplicidade inumerável. A política de re-existência é composta por uma multiplicidade de falantes. Tudo parte de um lugar e retorna para ele de forma espiralar. Não se trata de desenraizar, mas de conceber a raiz como menos autoritária, menos sectária que não mata tudo à sua volta, mas voa e mergulha em direção às outras raízes. A isso chamamos de po-ética das mermazárias a partir da noção de “Todo-o-Mundo” de Édouard Glissant (2014)GLISSANT, Édouard. (2014). O pensamento do Tremor. La Cohée du Lamentin. Tradução: Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard..

Mas como ser um eu mesmo sem sufocar o outro e como abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo? A pergunta de Glissant (2005)GLISSANT, Édouard. (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. - Juiz de Fora: Editora UFJF. é ao mesmo tempo um convite a sairmos dos confinamentos que nos foram impostos e reimaginarmos um em-comum que não mais legitime o universal generalizante.

Ao som viral e sufocante do “eu não consigo respirar” no interior do Mundo-Branco, essa força motriz colonial-capitalista cisheterosexista-patriarcal inventora do Outro, a política e poética do Microfone Aberto entende que só existe sujeito no gesto de viver. Se no embate colonial na contemporaneidade viver significa não morrer, morte e vida participam da possibilidade de agir no presente e modelar o amanhã, seja por meio da transgressão ou pela demolição de toda e qualquer clausura. Pois para os Poetas, estar vivo é se ver aberto ao mundo. Essa fenda anuncia por si só a chance de corrigir as assimetrias das relações, mais do que dos lugares-defala. Essa correção passa também pela dimensão da reciprocidade, prestação de cuidado e mutualidade festiva e pedagógica, portanto política do Microfone Aberto nos encontros-saraus e nas bibliotecas-livres, mas também de tudo e do todo que é vivo - humanos ou mais que humanos.

3. A PALAVRA-ABERTA

Microfone Aberto como imensidão do lugar de onde se emite a voz, o texto e o grito, mas também como o lugar da experiência do encontro com outras pessoas que abre caminho para uma consciência de si em nível coletivo ou de reimaginar um em-comum. O Poeta sabe que é impossível sair ileso de um encontro e que há uma multiplicidade de encontros acontecendo a todo-instante.

Poetas de lugar nenhum, das mermazárias e de todos os lugares (SILVA; FREITAS, 2020aSILVA, Francisco Rômulo do Nascimento. & FREITAS, Geovani Jacó de. (2020a) Toda Periferia é um Centro. Revista Desenvolvimento Social, Vol. 26, n. 1, p. 144-168, jan/jun. PPGDS/Unimontes-MG. Disponível em https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/rds/article/view/3266 . Acesso em 10 de mai. 2021 às 03h45min.
https://www.periodicos.unimontes.br/inde...
) inventam a “palavra aberta” (a produção poética e literária) imersas/os em uma sociedade que reedita e tem como base um “sistema fechado” muito semelhante à estrutura colonial e escravocrata da Plantação (GLISSANT, 2011GLISSANT, Édouard. (2011). Poética da Relação. Tradução: Manuela Ribeiro Sanches. Portugal: Porto.; 2014; KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. (2019). Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó.), como ato de sobrevivência. Em outras palavras, o sistema fechado trata de produção de humanidades supérfluas que experienciam cenas de sujeição (HARTMAN, 1997HARTMAN, Saidiya V. (1997). Scenes of Subjection: Terror, Slavery and Self-Making in Nineteenth-Century America. New York: Oxford University Press.) e genocídio cotidiano, isto é, processos históricos de silenciamento, invisibilização e extermínio de populações inteiras majoritariamente negras, pobres e dissidentes de gênero e sexualidade. Prevendo o pior daquilo que tiram possibilidades, a poética dos encontros-saraus, da mediação de leituras nas bibliotecas-livres e a poesia-no-cambão possuem “a capacidade de transformar os recursos da morte em força germinativa” (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. (2018). Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições., p. 233). A palavra aberta são corpos em permanente combate.

O lugar fechado são delimitações que têm como objetivo o corpo como lugar central de dominação - uma forma de vida construída sobre a violência-colonial e pelo encapotamento das cercas raciais e de gênero. Não somente envolve, mas também “fabrica” vidas indignas, supérfluas e a morte-por-antecipação justificada, geralmente com assentimento social e midiático. Ao mesmo tempo em que estamos confinados neste sistemafechado, logo é possível abordar o aspecto intrínseco à Plantação que é a da “palavra aberta”, a partir da expressão oral e escrita, ou seja, da literatura evocada por meio do microfone aberto [que também é uma das formas de mediação-de-leitura] cercamos a política (HARNEY; MOTEN, 2013HARNEY, Stefano & MOTEN, Fred. (2013). The Undercommons: fugitive planning & black study. New York/Brooklyn. Oxford University Press.). Inclusive escrita, o caráter oral nos saraus nos quais se desenvolve a poética do encontro entre múltiplas linguagens artísticas pressupõe uma relação distintiva com o corpo, questões já manifestas com certa impaciência pelo poeta e filósofo Édouard Glissant (1989GLISSANT, Édouard. (1989). Caribbean Discourse. Tradução de J. Michael Dash. Charlottesville: University of Virginia Press., p. 248),

Não é nada novo declarar que para nós a música, o gesto e a dança são formas de comunicação, com a mesma importância que o dom do discurso. Foi assim que inicialmente conseguimos emergir da plantation: a forma estética em nossas culturas deve ser moldada a partir dessas estruturas orais.

O microfone aberto é, por assim dizer, uma “extensão” do corpo, da fala, do texto escrito e da existênciarelatada da e do poeta nos encontros-saraus. Microfone Aberto é um acontecimento. Uma poética que não é somente “um divertimento, nem uma exibição de sentimentos ou de belezas”, conforme Glissant (2011GLISSANT, Édouard. (2011). Poética da Relação. Tradução: Manuela Ribeiro Sanches. Portugal: Porto., p. 83), pois “ela também dá conta de um conhecimento, que não pode ser atingido de caducidade”.

Gritam “microfone aberto” não somente devido à especificidade dos saraus das periferias e sua função simbólica. Mas, sobretudo, devido a sua materialidade. Trata-se de uma materialidade possível da fala e da escuta, ambas que sempre estiveram acompanhadas historicamente de brutalidades inomináveis de silenciamentos e apagamentos - corpos de uma história fragmentada e enclausurada. Nas palavras de Oliveira (2018), ao discutir a trajetória de um dos maiores grupos do Hip Hop brasileiro, os Racionais MCs, aborda o caráter essencialmente aberto das canções, pois passam a apresentar as diversas perspectivas de forma mais complexa possível das realidades. “Longe de tornar o conjunto incoerente, a multiplicidade de vozes e olhares oferece uma percepção mais densa da realidade periférica ao conferir à dispersão das experiências particulares fragmentárias um sentido geral de coletividade” (OLIVEIRA, 2018, p. 29).

O caráter aberto das canções mencionado acima pode ser lido na potência de encantamento que quebra a lógica da máscara, do silenciamento e da domesticação da língua nos episódios cotidianos de circunscrição da realidade na memória da plantação. A Plantation, por exemplo - essa forma piramidal de organização e compreensão social, assim como estrutura de confinamento que retroalimenta as lógicas escravagistas -, é uma dessas imagens que produziam diferentes formas de inculcamentos coloniais em mulheres e homens africanos (GLISSANT, 2011GLISSANT, Édouard. (2011). Poética da Relação. Tradução: Manuela Ribeiro Sanches. Portugal: Porto.). Comparado ao Sistema da Plantação (e também a experiência da violência-fundadora do Navio Negreiro), foi o corpo-negro - essa figura múltipla e inventiva, ao ser arrancado de sua terra de origem, apartado dos ritos aos seus deuses protetores e da sua comunidade tutelar - que se viu despojado de tudo e de toda e qualquer possibilidade de existência, inclusive da sua própria língua, pois nunca se colocavam mulheres e homens africanos que falavam a mesma língua juntas no ventre dos Navios Negreiros e no interior das Plantações (GLISSANT, 2005GLISSANT, Édouard. (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. - Juiz de Fora: Editora UFJF.). A linguagem é o próprio sistema da vida. Essa crítica da vida enquanto crítica da linguagem é precisamente aquilo a que o termo “negro” nos convida: transgressão e opacidade. Nesse sentido, a linguagem é um ato em sua dimensão política.

A palavra-relato, a palavra cantada, lida e gritada é a manifestação de uma maneira específica de expressar “o mundo” e agir sobre ele por meio do uso das gírias locais, do “estar juntos”, existir e re-existir na fala do outro - “ressoar”, pois, conforme Fanon (2008FANON, Frantz. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA., p. 33), “falar é existir absolutamente para o outro”. Algumas Poetas não escrevem, outras recitam e escrevem. Recitam suas poemas9 9 “Eu digo que existem também os poetas e as poetisas que dormem em modo de alerta, porque são poemas, janelas abertas. Sal sarau, é sal sarau, é sal!”, canção de Parahyba e Cia. Bate Palmas. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=jh_IjTWgQ0U> Acesso em 27 de novembro de 2021, às 13h20min. Em Sereia no copo d’água (2019), a poeta nina rizzi encerra seu livro afirmando que “toda mulher é uma poema” (p. 77). “de cor” (diminutivo de “sabe de coração”) e estas geralmente são poemas que “ganham corpo”. São poemas-performance. No seu trabalho acerca das tradições dos Congados de Minas, Leda Maria Martins (2003)MARTINS, Leda Maria. (2003). Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, (23), 63-81. define o conceito de performances da oralitura e fala de um corpo em movimento que também é grafia, inscrição, já que a performance se dá enquanto ação na qual o corpo se manifesta como lugar da memória. O que a teoria da performance de Leda Maria Martins traz pode ser de grande riqueza aqui para entender que a palavra recitada e o poema-performance são também movimentos do corpo, coreo-grafias, portanto oralitura. O corpo em movimento é grafia da memória em um trabalho que se afirma enquanto poético. Além disso, Fred Moten (2020)MOTEN, Fred. (2020). A Resistência do Objeto: O Grito de Tia Hester. Tradução: Matheus Araújo dos Santos. Revista ECOPÓS, v.3, n.1, pp. 14-43., ao ressituar a questão da performance preta, acentua a recusa desse corpo em se emoldurar enquanto objeto, o que, na mesma operação, joga com a ideia de tornar-se “sujeito” de um certo regime da sujeição, ou seja, a sequencialidade de passar de objeto a sujeito da enunciação tal nas armadilhas de “conferir voz ao outro subalternizado” nos jogos políticos em torno da representação. A questão aqui é menos uma questão do tornar-se “sujeito” nos limites das políticas de reconhecimento do que afirmar esse corpo na sua presença incomensurável que irrompe da cena de sujeição. A palavra-performance instaura relação, se movimenta por coreografias espiralares.

Não somente a voz, mas o próprio corpo diz. A palavra como uma flecha que afeta como uma espécie de irradiação espiralar. Despistador, não somente o corpo-poeta é indomável, mas a poema-performance riscada não pode ser capturada e completamente compreendida - ainda que gravada em vídeo usando o celular e publicada nas redes sociais da internet. Neste sentido, ao perguntar ao poeta e mediador de leituras cearense Talles Azigon qual a diferença entre a poesia lida, escrita e falada, ele respondeu:

A literatura escrita e a literatura oral elas duas são tão importantes quantos, porque cada um funciona de um formato e pede determinadas estruturas, e pede determinadas coisas. Tem algumas repetições que eu escrevo ou então algumas grafias no meu poema que ali tem um sentido, né?! Aquele ponto de exclamação, aquela vírgula têm um sentido. Mas quando eu tô dizendo, não vai ser através de uma grafia. Vai ser através de uma respiração, vai ser através de uma pausa, vai ser através de um olhar, né?! E isso foi uma coisa que eu aprendi lá no Templo da Poesia, porque eu posso dizer o poema aqui olhando pra cima e não vai funcionar não! Mas se eu falar o poema e eu falar pra você, pra você, pra você, pra você, aí o público ele já vai se envolver mais. Ele vai sentir que aquele poema é pro público. E eu acho que esse é o maior ganho, da literatura oral e do poema dito, é porque a sua poesia tem público e ela é pro público. Ela não tá só sendo lançada ali e tal. Mas eu tenho esse duplo trabalho da poesia escrita, da escrita. Eu devo um bom pedaço da minha formação à literatura oral. (Talles Azigon, poeta e escritor, entrevista em 26 de setembro de 2018)

O sarau, a biblioteca-livre e a poesia-no-cambão, com suas especificidades e constantes transformações, são lugares do encontro, portanto, da fala e da escuta. Estas políticas de re-existências em Fortaleza materializam a possibilidade de uma forma de vida mais democrática. Para Mbembe (2020MBEMBE, Achille. (2020) Políticas da Inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. - São Paulo: n-1 edições., p. 201), a palavra e a linguagem na contemporaneidade transformaram-se em “ferramentas, em nano-objetos e tecnologias” que se autonomiza e relata à história presente, a poeta com suas poemas escrevem na tábua do nosso espírito as memórias individuais e coletivas, presencialmente e/ou por meio dos efêmeros algoritmos da luz-branca das telas-planificadas.

Mafalda Leite (2012LEITE, Ana Mafalda. (2012). Oralidades & escritas pós-coloniais: estudos sobre literaturas africanas. Rio de Janeiro: EdUERJ., p. 17), à semelhança da poética do “rastro-vestígio”10 10 Através do pensamento de “rastro-vestígio”, Édouard Glissant (2005) reimagina uma língua e manifestações artísticas válidas para todos. A mulher e o homem africano deportados de África não tiveram a possibilidade de manter, conservar determinadas heranças. Daí a invenção de algo imprevisível composta por línguas crioulas ou determinadas artes (a música de jazz ou a poética dos saraus de periferias). Uma nova dimensão daquilo que devemos nos opor, isto é, ao pensamento de sistema ou os sistemas de pensamento que são fecundos em conquista em flecha (autoritária/vertical/um em frente), portanto, mortais. pensada por Glissant (2005GLISSANT, Édouard. (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. - Juiz de Fora: Editora UFJF.; 2014), trata a oralidade na produção e na crítica literária africana, retomando a ideia de “continuum” entre as tradições orais e a literatura africana do poeta senegalês Leopold Sédar Senghor. O poeta, segundo a autora (LEITE, idem), é um dos primeiros africanos a exprimir esta noção tratando não somente da prática em “sua escrita poética os recursos reclamados, mas também doutrinando sobre o assunto em vários textos ensaísticos”. Tal importância da herança da oralidade para a escrita e vice-versa que pode ser percebida por meio do microfone aberto, as poetas-mediadoras-de-leituras e as poetas-de-cambão são praticantes da oralidade.

A escrita-decorada-recitada se inverte e ausenta-se o tempo todo a depender da ou do poeta e das circunstâncias. Existem aquelas e aqueles que já possuem um “estilo próprio”, entretanto, quando se trata do ato de recitar nos saraus, a poesia declamada “ganha corpo” como “ato” com toda a sua potência cênica que lhe é inerente, por este mesmo motivo, possui maior capacidade performativa de “prender a atenção”, de afetar o outro. Permitir habitar a encruzilhada que é o agora. O “agora” não é o “hoje”, o agora é uma brecha. Respirar na brecha para não morrer agora.

Portanto, o microfone aberto contém em si o corpo, a fala e a escrita. Mas uma escrita específica, uma escrita-relato ou uma “escrevivência”, nas palavras de Conceição Evaristo (2017)EVARISTO, Conceição. (2017). Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas., um texto que funde “escrita e vivência”. A escrita-relato é uma escrevivência, o lugar de onde a Poeta, a artista, a mediadora-de-leituras, a poetade-cambão emitem a sua voz, o seu canto.

Texto literário criado a partir de uma vivência. Isso não significa, por exemplo, o que eu crio é inteiramente o que eu vivi, se fosse isso eu teria que ser uma pessoa de múltiplas personalidades. Não é inteiramente o que eu vivi. É uma experiência, quer dizer, é uma escrita que está marcada tanto pela minha experiência pessoal como pelo histórico do meu coletivo. [...] uma memória histórica que vai contaminar minha literatura. [...] esse processo que os africanos e seus descendentes sofreram no Brasil, e mesmo o processo de subalternização que as classes mais pobres sofrem no Brasil, é um processo que precisa ser explicitado, e a memória, ela precisa, essa memória da dor, ela precisa ser exaurida. É uma literatura que incomoda. (EVARISTO, 2016EVARISTO, Conceição. (2016). Conceição Evaristo fala sobre o conceito de Escrevivência. Estação dos Livros / Rádio da Universidade: 1080 AM/UFRGS. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/estacaodoslivros/conceicao-evaristo-falasobre-o-conceito-de-escrevivencia/>. Acesso em 2 de jul. 2021.
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)

A literatura periférica nos saraus de favela, nos corres das e dos poetas de “cambão” - que não é somente pelo ganha-pão -, algumas poetas que gravam ou são filmadas e difundidas pelas efêmeras redes sociais das telasplanificadas nos celulares e computadores são também relatos da vida cotidiana, das memórias coletivas e da luta pela sobrevivência (SILVA; FREITAS, 2020bSILVA, Francisco Rômulo do Nascimento. & FREITAS, Geovani Jacó de. (2020b). Práticas de re-existências poéticas: a poesia no “busão” em Fortaleza (CE). INTERSEÇÕES [Rio de Janeiro] v. 22 n. 1, p. 97-123, mai. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/view/51166. Acesso em 17 de jun. 2021 às 13h23min.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
). O conteúdo presente nos escritos-relatos aborda os mais diferentes temas e questões: desde poemas eróticos, românticos até aqueles denunciando o genocídio da população negra e pobre. De acordo com Talles Azigon, o tema do extermínio da juventude, assim como de denúncia das violências contra a LGBTQIAP+ e mulheres, tem sido recorrente nestes encontros-saraus.

A quantidade de poesia que eu escuto sobre a chacina que houve na Grande Messejana e aqui no Curió ou a quantidade de poesia que eu escuto sobre o caso da Dandara, que foi brutalmente assassinada no caso de transfobia, um crime de ódio, né, de transfobia nítido; é muito superior a quantidade de reportagens e de reflexões que saiu na mídia. Porque a mídia só pega o espetáculo, né, ela não faz a reflexão, ela só fala do acontecimento, mas ela não esmiúça o acontecimento. E acho que a gente consegue, a nossa poesia ela vai agir nessa questão da violência porque ela reflete. Ela pensa criticamente o quê que essa violência é. Né?! (Talles Azigon, poeta e escritor, entrevista em 26 de setembro de 2018)

É uma literatura, um grito, um canto que rompe a cena do valor inaugurada e posta a funcionar no regime da Plantation (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. (2019). A dívida impagável. Tradução: Amilcar Packer e Pedro Daher. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons.; MOTEN, 2020MOTEN, Fred. (2020). A Resistência do Objeto: O Grito de Tia Hester. Tradução: Matheus Araújo dos Santos. Revista ECOPÓS, v.3, n.1, pp. 14-43.)11 11 Denise Ferreira da Silva (2019) e Fred Moten (2020) nos propiciaram ferramentas críticas para problematizar a performance preta em uma leitura fractal que nos permite perceber tais gestos enquanto disruptores da economia do capital racial que encapsula o signo negro na imagem negativa do valor do trabalho expropriado/“desaparecido” no regime da escravidão, este tornado obliterado na desimplicação daquilo que constitui os pilares jurídicos e econômicos do presente global. . Um sentimento de perda contínua, mas também de um esforço inventivo no presente que, por meio do microfone aberto nos encontros-saraus, nas bibliotecas-livres e na poesia no “cambão”, ensaia ao vivo um duplo movimento de transgressão e deslocamento igualmente contínuos. Esta literatura são escrevivências relatadas e difundidas nas redes sociais da internet, em livrosantologias e fanzines coletivas.

4. LEITURAS PO_ÉTICAS

Da vila para a cidade Entre prosa e poesia Circula o ser que semeia

O florescer de um novo dia (Ray Lima)

Passos firmes, pisando leve, o suor, o som, o ritmo dos corpos. É o cortejo da Coletiva Viva a Palavra pelas ruas da Vila Garibaldi na Serrinha. O pisar leve das poetas e cenopoetas que saltam pelos fios de lama, afluentes dos esgotos abertos da favela, contrasta com a força das vozes cantando a palavra do poeta Ray Lima, vozes que se misturam com a batida dos instrumentos de percussão. O sol bate também em lampejos de fim de tarde. As crianças correm com as suas arraias, papagaios coloridos, enquanto as mulheres nas calçadas sorriem para o cortejo. O cortejo, que naquela tarde de 29 de junho de 2019, era parte do ato cenopoético da Coletiva Viva a Palavra, costuma ser o preâmbulo do Sarau Viva a Palavra.

A cenografia de movimento “da Vila para a cidade”, na poema de Ray Lima cantada no cortejo, indexa o mapa real onde a Vila Guaribal ou favela Guaribal, como denominam seus moradores, está situada a poucos metros da grande avenida Silas Munguba, a entrada por uma ruela, a Antônio Botelho, fica defronte ao Campus do Itaperi, da Universidade Estadual do Ceará.

Como narra Claudiana Alencar (2019)ALENCAR, Claudiana Nogueira de. (2019). “Tudo aqui é poesia”: a pragmática cultural como pesquisa participante com movimentos sociais e coletivos juvenis em territórios de violência urbana. Interdisciplinar. Dossiê Temático 2: Pragmáticas da vida social: perspectivas em linguagem e sociedade v. 31: Ano XIV - jan-jun., para enfrentar o extermínio da juventude e para fortalecer as práticas culturais, artísticas e políticas de resistência e de esperança, artistas, escritores, ativistas, acadêmicos e militantes de movimentos sociais e culturais e articuladores dos saraus da Serrinha reuniram-se em 2014, no bairro da Serrinha, na favela Guaribal e construíram a Coletiva Viva a Palavra. A poema de Edmar Eudes para a Coletiva Viva a Palavra perfomatiza a palavra-sarau como resistência, insurgência, uma arma mesmo:

(...)

Viva a Palavra

do nosso artista de rua com sua arte fenomenal Viva a Palavra

essa arma santa

que sai de cada garganta

na apresentação de um sarau

Palavra como arma, sarau como ato. A poema enuncia a força da palavra como um dizer-fazer. Por metáforas do teatro, o filósofo John Austin (1976)AUSTIN, J. L. (1976). How to do things with words. 2 ed. Oxford: Oxford University Press. anuncia que a palavra é ato, é performance. Revirando a perspectiva representacionista que focalizava em sentenças declarativas como proposições que constatam uma realidade anterior à linguagem, Austin nos mostra que até mesmo as sentenças declarativas são atos performativos, pois trazem a força de um dizer-fazer. A linguagem é ato em três dimensões: locucionário, o dizer algo com sentido e referência; ilocucionário, o fazer algo ao dizer uma sentença (afirmar, perguntar, prometer etc.) e perlocucionário que é o ato de produzir efeitos ao dizer.

Ao enunciar “Viva a Palavra/ essa arma santa/ que sai de cada garganta/na apresentação de um sarau”, o poeta mostra não apenas consciência dessa pragmática dos atos de fala (o dizer, o fazer ao dizer e os efeitos desse dizer), mas também realiza uma metapragmática, ou seja, uma reflexão sobre o uso da linguagem como ação. Na pesquisa de Alencar (2020)ALENCAR, Claudiana Nogueira de. (2020). Resistências feminizadas: coletivas de poetas afro-brasileiras da periferia de Fortaleza. Research Seminar. Faculty of Medieval and Modern Languages, University of Oxford, Oxford. sobre as coletivas de poetas periféricos, a autora cartografa essa metapragmática da palavra como parte de uma gramática de resistência das coletivas de poetas periféricas.

Microfone aberto é metapragmática de um dizer-fazer. É palavra-manifesto que performatiza as lutas das juventudes periféricas (ALENCAR, 2020ALENCAR, Claudiana Nogueira de. (2020). Resistências feminizadas: coletivas de poetas afro-brasileiras da periferia de Fortaleza. Research Seminar. Faculty of Medieval and Modern Languages, University of Oxford, Oxford.). Os atos de fala não são apenas enunciados linguísticos, mas corpos que falam, sujeitos que refletem, enunciam e denunciam em atos de fala, atos de corpo. Para Pinto (2002PINTO, Joana Plaza. (2003). Performatividade radical: ato de fala ou ato de corpo? Revista Gênero, Niterói, v. 3, n. 1., p. 101), “o sujeito que fala é aquele que produz um ato corporalmente; o ato de fala exige o corpo”.

Na Serrinha, o microfone aberto é palavra-corpo que se move em defesa das causas populares e encerra o grito das gentes da Lagoa de Itaperaoba em meio aos saraus de luta em defesa de um dos últimos mananciais de Fortaleza. O microfone aberto tornou-se tribuna popular também na Associação de Moradores do bairro da Serrinha (AMORBASE) em Saraus em defesa da democracia. A palavra-manifesto é dizer-fazer nos Saraus Viva a Palavra, às margens da lagoa ou na Praça da Juventude, a Praça da Cruz Grande, na Av. Silas Munguba, espaço ocupado por outros tantos saraus do Movimento político-Cultural Ensaio Rock, como enunciada nos versos de Poemar:

(...)

tem o sarau que anuncia e denuncia o que o jornal não vê o rapper se antena e passa a legenda pra gente tecer

essa teia que se produz, na praça da cruz a nos fortalecer

(Clau, Gillian Brito e Raquel Jolie)

A “teia” na poema encena uma polifonia constituída no Sarau Viva a Palavra. Pensar a polifonia é trazer Bakhtin quando, em Problemas da Poética de Dostoiévski, observa no discurso do romance russo vozes que soam em pé de igualdade com a voz do autor (BAKHTIN, 1981BAKHTIN, Mikhail. (1981). Problemas da poética de Dostoiévski, Rio de Janeiro: Ed. Forcnse Universitária, p. 24). Também a busca no Sarau é não apenas pela plurivocidade, mas por uma horizontalidade de vozes. O movimento Pró-Parque Lagoa de Itaperaoba, o coletivo Flor de Cactus, o coletivo Enquadro Rap, o movimento Ensaio Rock estiveram no nascer dos círculos de cultura da Coletiva Viva a Palavra, em 2014. Desde então, os movimentos sociais, coletivos culturais, grupos de artistas têm participado dos saraus tecendo, nas duas vozes de sujeitos coletivos, uma heterogeneidade enunciativa. Considerar o microfone aberto como polifônico é considerar o que trouxemos no início do capítulo com Glissant (2011, p. 191)GLISSANT, Édouard. (2011). Poética da Relação. Tradução: Manuela Ribeiro Sanches. Portugal: Porto.: “A Relação diz-se.”

5. INVENTAR-MEMÓRIAS: UMA RELAÇÃO À ESCUTA

.inventar-memórias. (Rômulo Silva)

inventar o futuro no agora-do-presente

instante pausa

pausa do corpo pausa da letra pausa da voz

.sonhar com o direito ao silêncio a medida que se quebra mandíbulas dos silenciamentos.

nada dorme

.há eternidades em cada história tudo tem história, mas nem toda história é contada

// conhecimento // conhecida.

.saudade do futuro na eternidade

não morrer na eternidade do esquecimento y da memória.

não morrer no ontem, existir no agora.

.como imaginar y imagiar juntando cacos, farelos-de-nós-mesmos?

.o mestre Cartola me chamou de amor y pediu uma pausa:

“ouça-me bem, amor, preste atenção, o mundo é um moinho...”

.esse texto-efêmero (mais um), nesse mar que pode caber entre as palmas das mãos

y atravessar continentes ao toque de dedos chamado ecrã, não possui rascunho.

Nasce agora y já está morto. Como a condição de muitas existências. Da maioria, aliás.

.o tornar-se dói, sabe... tomar “consciência” do lugar que ocupamos no mundo.

milhares de páginas y páginas tentam me convencer feito cantiga de ninar que “não somos, estamos sendo”.

sim, de fato. não sou o mesmo de horas, semanas, anos atrás.

mas como posso remover essa gargalheira que me sufoca,

me culpa y atualiza cenas de sujeição a todo-instante?

.cada vez que eu a conheço, traço maneiras de removê-la, mas dói, fere...

será a imaginação a fuga da repetição? há um jeito de removê-la porque houve (há) formas de mantê-la.

.cenas

de su.je.i.ção.

.de.clo.dir:

.um quadro.

.uma cerca.

.uma visibilidade.

.clarão da meia-noite.

.luz-branca queima minha pele.

.ácido para meu estômago.

.o fardo da representatividade.

.a angústia y a saudade é ter sido criança um dia.

imaginar, inventar brinquedos.

mas também confiar y aprender a não dizer “sim” y “não”.

ser arrastado pela reprodução.

.a ignorância y a inocência são privilégios Branco.

.junto-me a Dona Conceição Evaristo y faço uma prece apenas:

“vida, me dá licença, me dá licença...”

.mais cedo, enquanto a água lavava meu corpo que ainda em parte dormia,

ouvi um acalanto de mamãe Oxum: “Yèyé e yèyé s’oròodò, yèyé o yèyé s’oròodò Olóomi ayé s’óromon fée s’oròodò”.

.respirar na brecha para não morrer agora

Estrutura de escuta é uma força que só pode ser coletiva a favor do reconhecimento radical. As estruturas de escuta são invenções cotidianas de insubmissão, elas existem e re-existem na sua forma perecível e de transmutação. Por não se tratar de uma instituição ou de um aparato técnico refém de logísticas previsíveis, catalogadas, rostificadas, mas sim da imagem do encontro. Por estrutura não entendemos por pontos fixos que se deixa nomear, mas por planos de fuga como imaginação.

A imagem mais próxima, se pudéssemos visualizar, é a do Quilombo ou da Comunidade, não no sentido do Uno, mas sobretudo, do Diverso (GLISSANT, 1981GLISSANT, Édouard. (1981). Le discours antillais. Paris: Seuils.). O Diverso não significa o relativo, mas sim o gesto de nomear sem fixar; sempre a favor e a partir das existências das histórias incompletas, apagadas, despossuídas, silenciadas. Trata-se do gesto sempre em movimento de borrar o que foi borrado, isto é, entender como o poder está se metaformoseando no “agora” para então inventar uma arma de combate e de defesa totalmente provisória e perecível.

Outra imagem pode ser, conforme pensado aqui, além dos saraus de periferias, das bibliotecas-livres, da poesia-no-cambão; as manifestações e engajamentos sem rosto nas ruas e nas Redes Sociais da internet contra toda forma de populismo autoritário que é por natureza racista, misógino e desigual socioeconomicamente, isto é, um estado social de guerra que está ancorado nessas ficções coloniais de dominação.

Utopia é aquilo que nos falta, logo a possibilidade de inventar estruturas de escuta é tudo aquilo que as democracias ainda não conseguiram materializar, visto que só é possível uma democracia radical se reimaginarmos uma forma de vida anticolonial. Isso se lembrarmos que colonizar significa objetificar, classificar, selecionar e enclausurar o Outro, isto é, colonizar repousa no profundo consciente e inconscientemente desejo de explorar e a tentação de eliminar o Outro. E esse outro é racialmente visto como inferior, assim como quando se trata das múltiplas formas de mulheridades e das dissidências de gênero e sexualidade.

Há uma indecisão cortante que chia, que estala ou que grita entre “escuta” e “entendimento”: entre duas oitivas, entre duas condições do Mesmo. Em outras palavras, não se trata aqui de compreender, assimilar, mas sim de uma Relação. Diríamos uma Poética da Relação. Eis a questão: uma relação da escuta ou por uma relação à escuta? Desde o início nos referimos a essa força que nos dispõe a, que vulnerabiliza, que perturba, que afeta e coloca-nos em crise.

A pergunta de Édouard Glissant (2005)GLISSANT, Édouard. (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. - Juiz de Fora: Editora UFJF., talvez seja a questão capital do nosso tempo: Como ser um eu mesmo sem sufocar o outro e como abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo? Essa pergunta nos chega como um convite para sairmos dos confinamentos que nos foram [nos são] impostos.

Conforme Mbembe (2020)MBEMBE, Achille. (2020) Políticas da Inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. - São Paulo: n-1 edições., as fronteiras deixaram de ser lugares que atravessamos e passaram a ser lugares que separam. Vivemos em uma sociedade da inimizade. Paradoxalmente, no tempo em que estamos todos conectados, ou podemos nos conectar, estamos separados, enclausurados. A impossibilidade de uma relação radical fala/escuta no Mundo Moderno parece ser a manutenção de uma força baseada na relação colonial de poder/saber (tripé ontoepistemológico) deste Mundo Ordenado, conforme Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise. (2019). A dívida impagável. Tradução: Amilcar Packer e Pedro Daher. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons..

Inventar estruturas de escuta é um convite: a de(s)colonização na contemporaneidade que deve passar por uma extensa reorganização das relações, não somente por uma redistribuição de lugares. Nos resta mais essa questão: como podemos, entretanto, operar o em-Comum, isto é, a reunião em torno da renúncia de determinadas formas de apropriação e extrativismo exclusivos e, ao mesmo tempo, operar a favor do reconhecimento?

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Os dados públicos que apoiam as conclusões deste estudo estão disponíveis em http://programavivaapalavra.blogspot.com/?m=1 e em https://www.youtube.com/live/2WDPuIu0K6E?feature=share

  • 1
    Para Gilles Deleuze (1996)DELEUZE, Gilles. (1996). O mistério de Ariana. Tradução e prefácio de Edmundo Cordeiro. Lisboa: Ed. Vega - Passagens., dispositivo é antes de mais uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente. E, no dispositivo, as linhas não delimitam ou envolvem sistemas homogêneos por sua própria conta, como o objeto, o sujeito, a linguagem, etc., mas seguem direções, traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se afastam uma das outras. Qualquer linha pode ser quebrada - está sujeita a variações de direção - e pode ser bifurcada, em forma de forquilha - está submetida a derivações. Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como vectores ou tensores.
  • 2
    Para saraus de periferias, consultar Nascimento Silva (2019)SILVA, Francisco Rômulo do Nascimento. (2019). Rede de Afetos: práticas de re-existências poéticas na cidade de Fortaleza (CE). 212 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual do Ceará. e Santos Silva (2020)SILVA, Bruna Santos. (2020). “Toda periferia é um centro!”: cartografia do jogo de linguagem sarau Okupação. 107 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual do Ceará..
  • 3
    Samuel em Transe é poeta, tatuador, residente no Conjunto São Cristóvão (Jangurussu) e um dos organizadores do Sarau da B1 juntamente com a escritora e poeta nina rizzi e com o poeta e professor Carlos Melo desde 2015. Sob o sobrenome artístico “Denker”, a ideia de organizar encontros em volta da poesia na comunidade do São Cristóvão (Jangurussu), uma das periferias de Fortaleza (CE), surgiu no final da década 2000 juntamente com outros três poetas. “Embora na época ainda não denominassem como sendo um ‘sarau’, foi deste emaranhado de encontros e ‘conversas barulhentas’ regadas a vinho e poesia, geralmente no Bar do Seu Valdir, na Avenida ‘A’, que no final da primeira década de 2000 surgiram os ‘Poetas de Lugar Nenhum’, com Jair Xavier, Hit Ty, Aglailson de Almeida e Samuel Denker, todos, na época, moradores do Conjunto São Cristóvão, Grande Jangurussu (cf. SILVA, 2019SILVA, Francisco Rômulo do Nascimento. (2019). Rede de Afetos: práticas de re-existências poéticas na cidade de Fortaleza (CE). 212 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual do Ceará., p. 29-30; DENKER, 2016DENKER, Samuel [Org] (2016). Sarau da B1: com os poetas de lugar nenhum. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.).
  • 4
    Alguns territórios receberam a denominação de “grandes” por sua complexa dinâmica interna de formação territorial, luta política de afirmação dos movimentos sociais e populacional. Além do “Grande Jangurussu”, temos, por exemplo, o Grande Bom Jardim que abriga cinco bairros, cada um composto por algumas comunidades. Em 2007, por exemplo, o Conjunto Palmeiras deixou de compor o Jangurussu e tornou-se bairro (CAVALCANTE, 2011CAVALCANTE, Ricardo Moura Braga. (2011). Vidas Breves: investigação acerca dos assassinatos de adolescentes em Fortaleza. 2011. 156 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade-MAPPS) - Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade, Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza (CE).).
  • 5
    Para poesia-no-cambão, consultar Silva e Freitas (2020b)SILVA, Francisco Rômulo do Nascimento. & FREITAS, Geovani Jacó de. (2020b). Práticas de re-existências poéticas: a poesia no “busão” em Fortaleza (CE). INTERSEÇÕES [Rio de Janeiro] v. 22 n. 1, p. 97-123, mai. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/view/51166. Acesso em 17 de jun. 2021 às 13h23min.
    https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
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  • 6
    Cigarro feito das folhas de fumo desfiado, mais comum na região do Nordeste. O mesmo que fumo de corda.
  • 7
    Nome fictício do local.
  • 8
    Atualmente existem pelo menos 15 bibliotecas-livres e de iniciativa popular em Fortaleza (CE).
  • 9
    “Eu digo que existem também os poetas e as poetisas que dormem em modo de alerta, porque são poemas, janelas abertas. Sal sarau, é sal sarau, é sal!”, canção de Parahyba e Cia. Bate Palmas. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=jh_IjTWgQ0U> Acesso em 27 de novembro de 2021, às 13h20min. Em Sereia no copo d’água (2019), a poeta nina rizzi encerra seu livro afirmando que “toda mulher é uma poema” (p. 77).
  • 10
    Através do pensamento de “rastro-vestígio”, Édouard Glissant (2005)GLISSANT, Édouard. (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. - Juiz de Fora: Editora UFJF. reimagina uma língua e manifestações artísticas válidas para todos. A mulher e o homem africano deportados de África não tiveram a possibilidade de manter, conservar determinadas heranças. Daí a invenção de algo imprevisível composta por línguas crioulas ou determinadas artes (a música de jazz ou a poética dos saraus de periferias). Uma nova dimensão daquilo que devemos nos opor, isto é, ao pensamento de sistema ou os sistemas de pensamento que são fecundos em conquista em flecha (autoritária/vertical/um em frente), portanto, mortais.
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    Denise Ferreira da Silva (2019)FERREIRA DA SILVA, Denise. (2019). A dívida impagável. Tradução: Amilcar Packer e Pedro Daher. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons. e Fred Moten (2020)MOTEN, Fred. (2020). A Resistência do Objeto: O Grito de Tia Hester. Tradução: Matheus Araújo dos Santos. Revista ECOPÓS, v.3, n.1, pp. 14-43. nos propiciaram ferramentas críticas para problematizar a performance preta em uma leitura fractal que nos permite perceber tais gestos enquanto disruptores da economia do capital racial que encapsula o signo negro na imagem negativa do valor do trabalho expropriado/“desaparecido” no regime da escravidão, este tornado obliterado na desimplicação daquilo que constitui os pilares jurídicos e econômicos do presente global.
  • DECLARAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO DAS/OS AUTORAS/ES

    Todas/os as/os quatro autoras/es participaram do planejamento e redação do presente manuscrito. Kaciano Barbosa Gadelha, um dos autores deste trabalho, faleceu meses depois da finalização do artigo. Dedicamos esta escritura à memória-infinita de Tia Kacy (como muitas/es/os de nós a chamávamos). Enquanto esteve conosco neste plano, nos inspirou a escrever a nossa história com nossas próprias mãos, pés e rosto e, sobretudo, a lutar por uma efetiva redistribuição da palavra, dos afetos e da escuta. Foi professor Adjunto de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG e coordenador do Neabi (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas) da FURG. Era doutor em Sociologia pela Freie Universität Berlin (2010-2014) e realizou estágio de pós-doutorado em Artes com bolsa PNPD CAPES no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará (2015-2018).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2022
  • Aceito
    06 Jun 2023
  • Publicado
    16 Jun 2023
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