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A INTERSEÇÃO ENTRE TEORIA QUEER E TRADUÇÃO: POR UMA EPISTEMOLOGIA QUEER APLICADA AOS ESTUDOS DE TRADUÇÃO

THE INTERSECTION BETWEEN QUEER THEORY AND TRANSLATION: FOR A QUEER EPISTEMOLOGY APPLIED TO TRANSLATION STUDIES

BAER, BRIAN. QUEER THEORY AND TRANSLATION STUDIES: LANGUAGE, POLITICS, DESIRE. NEW YORK AND LONDON: ROUTLEDGE, 2021

“As the sun sinks and the colors of the day turn, we offer a blessing for the twilight, for twilight is neither day nor night, but in-between. We are all twilight people. We can never be fully labeled or defined.

We are many identities and loves, many genders and none. We are in between roles, at the intersection of histories, or between place and place. We are crisscrossed paths of memory and destination, streaks of light swirled together. We are neither day nor night.

We are both, neither, and all.”

Reuben Zellman

Essa resenha é introduzida por um trecho do poema de Reuben Zellman porque ele ilustra algumas semelhanças entre a Teoria Queer e a prática tradutória. Brian James Baer, professor de Russo e Estudos da Tradução na Universidade Kent, nos Estados Unidos, discorre sobre a relação entre as duas áreas em seu livro Queer Theory and Translation Studies, aqui resenhado. Assim como pessoas queer estão no meio1 1 In-between , também está a tradução, que sempre ocupa um lugar entre línguas e culturas (WOLF, 2013WOLF, Michaela. (2013) A “vontade de poder”: tradução no campo de tensão entre poder e ética. Tradução: Rosvitha Friesen Blume. In: BLUME, Rosvitha.; PETERLE, Patricia. (Orgs.) Tradução e relações de poder. Florianópolis: PGET/UFSC, p. 149-168.). E o processo tradutório, o qual apesar de produzir um produto final, é sempre parcial, no sentido de que não é possível transpor completamente os significados de uma língua para a outra (TYMOCZKO, 2000TYMOCZKO, Maria. (2000) Translation and Political Engagement: Activism, Social Change and the Role of Translation in Geopolitical Shifts. The Translator, v. 6, n. 1, p. 23-47.). Consequentemente, gera-se um texto, que de acordo com Baer (2021), é separado do texto fonte, mas não o substitui e cria-se um novo texto, com novos significados e com implicações e consequências na cultura de chegada, ou seja, “ambos, nenhum e todos”2 2 “both, neither and all” . Além disso, como postula Baer (2021, p. 3) “A preocupação central de ambos os campos [Teoria Queer e Estudos da Tradução] tem sido a conceptualização e representação do semelhante e do diferente, das fronteiras e das adjacências - ou sobre como o lugar de alguém é ou não é” 3 3 “the central concern of both fields [Queer Theory and Translation Studies] has been the conceptualization and representation of sameness and difference, of borders and bordering-or of how one’s place is or is” colocando os Estudos da Tradução e a Teoria Queer “entre um lugar e outro”4 4 “between place and place” . Ao longo do livro, o autor busca mostrar como ambas as áreas estão nas interseções da história, contribuindo não somente entre si, mas também para outros campos e para a formulação de novas epistemes. Além disso, a escolha de iniciar a presente resenha com um poema surge em resposta a um chamado do próprio Baer (2021), no capítulo 5, para que retomemos o lírico queer e que pensemos a tradução como um processo poético.

Os objetivos de Baer (2021) nesse livro são: discutir as interfaces entre a sexualidade queer e a textualidade queer; traçar a circulação de textos queer, focando no papel da tradução nas antologias “gays”; destacar a tradução de poesia como um local distinto para performatividade queer; analisar traduções literárias e de filmes; observar o tratamento da tradução em estudos históricos e etnográficos sobre o outro, no que tange o aspecto sexual e linguístico; ressaltar o trabalho de tradutores queer e examinar a recepção de textos queer na tradução. É uma lista de objetivos extensa e que representa uma grande contribuição para um campo de estudo ainda incipiente.

No entanto, acredito que a maior contribuição do livro, que não foi explicitada pelo autor na Introdução, mas perpassa todos os seus objetivos, é a aplicação da Teoria Queer enquanto epistemologia aos Estudos da Tradução. Nesse sentido, a junção dos Estudos da Tradução e Teoria Queer vai além da análise de textos queer ou traduzidos por pessoas queer, buscando uma perspectiva de pesquisa indeterminada, móvel, complexa e questionadora, que desafia e repensa conceitos dos Estudos da Tradução, como a equivalência, a relação binária entre o texto fonte e o texto alvo, e a própria tarefa e agência da pessoa que traduz. Essa indeterminação da Teoria Queer pode ser um problema metodológico, como aponta von Flotow (2013)von FLOTOW, Luise. (2013) Traduzindo Mulheres: de histórias e re-traduções recentes à tradução ‘Queerizante. Tradução: Tatiana Nascimento dos Santos. In: BLUME, Rosvita; PETERLE, Patricia (eds). Tradução e Relações de Poder. Tubarão: Copiart, p. 169-172., que atribui a essa questão o motivo da Teoria Queer ainda não ser tão frutífera nos Estudos da Tradução. Todavia, ao decorrer dos capítulos, Baer (2021) consegue ilustrar as diversas conexões entre as áreas, como elas podem contribuir entre si e apresenta exemplos de estudos de caso comprovando que a metodologia queer funciona na prática.

Os objetivos do livro estão listados na Introdução, na qual Baer (2021) também explora brevemente a relação entre a Teoria Queer e os Estudos da Tradução, além de introduzir alguns conceitos que serão abordados posteriormente. No capítulo 1, intitulado Queering translation, or what queer theory can do for Translation Studies, o autor aprofunda a relação entre as duas áreas em um momento mais teórico do livro. No capítulo 2, que se chama Queering Global Sexuality Studies, or translation and unease, Baer (2021) discute o papel da tradução nas mudanças sociais e a responsabilidade da pessoa que traduz, introduzindo o conceito de “unease”, ou incômodo, durante o ato tradutório. Os dois capítulos seguintes: Queering the gay anthology, part I: Evolution in/ of a genre e Queering the gay anthology, part II: From appropriation to consecration to incorporation, abordam o tema das antologias “gays”, sendo o capítulo 3 mais teórico, definindo conceitos importantes sobre o gênero textual em questão, e o capítulo 4 mais analítico, trazendo exemplos e discutindo a presença da tradução nessas obras. Keep the lyric queer, or poetic translation as reparative reading é o nome do capítulo 5, em que o autor aborda a tradução de poesias e sugere uma contribuição relevante da Teoria Queer para a área, propondo uma leitura reparativa de poesias que foram descaracterizadas pelo processo de leitura ocidental, que tenta transformá-las em romances. O sexto e último capítulo é From sexual dissidence to sexual dissonance: Translating the queer life of Charlotte von Mahlsdorf, que analisa diversas traduções e releituras da biografia de Charlotte von Mahlsdorf, uma travesti alemã que viveu durante boa parte do século XX e testemunhou importantes eventos históricos. O autor relaciona as diferentes epistemologias locais e históricas com o modo como Charlotte é retratada nas traduções e em uma peça teatral. A conclusão, Uneasy reading, or putting the trans* in Translation Studies, propõe formas concretas de incorporar à tradução o que Baer (2021) chama de pedagogia queer contra-hegemônica.

Na Introdução, Baer expressa seu estranhamento em relação à separação entre a Teoria Queer e os Estudos da Tradução, considerando que James Holmes, o pai dos Estudos da Tradução, era abertamente gay, e Keith Harvey, que contribuiu consideravelmente para a Linguística Queer, também tem contribuições muito relevantes para os Estudos da Tradução. De fato, é curioso ter pesquisadores envolvidos em ambas as áreas, mas sem essa conexão entre elas. Baer (2021) atribui esse distanciamento à resistência de estudiosos da tradução a analisarem identidades além dos aspectos linguísticos ou culturais. No entanto, um campo de pesquisa semelhante bastante desenvolvido atualmente é a Tradução Feminista, que, apesar de se manter no binarismo de gênero homem x mulher questionado pela Teoria Queer, observa aspectos tradutórios que vão além do par língua e cultura.

O autor ilustra historicamente, ainda na Introdução, como a homossexualidade foi colocada à margem da sociedade, da mesma maneira que a associação entre nação e língua foi construída, resultando na ideia de nações monolíngues com implicações para a tradução, que passou a ser vista como imitação do processo criativo original da escrita. Isso ilustra outra semelhança entre a Teoria Queer e os Estudos da Tradução, pois os objetos de pesquisa de ambas as áreas foram posicionados à margem. No entanto, há uma vantagem no status atribuído aos textos traduzidos, os quais, por serem estrangeiros, são vistos como uma cópia e não como parte da cultura de chegada, o que permite sua circulação mesmo abordando temas que podem ser mal vistos na cultura alvo, como o caso de obras queer em algumas sociedades. Esses textos podem ser acompanhados de materiais paratextuais, uma técnica frequentemente usada na Tradução Feminista, possibilitando que as tradutoras se apropriem do texto e as visibilizando, mas que, como exemplifica Baer (2021), também foi utilizada para influenciar a leitura preconceituosa de textos queer. Assim como tradutoras feministas ressignificaram essa técnica, tradutores queer podem fazer o mesmo.

Ao final da Introdução, o autor faz duas observações importantes. A primeira é que ele escolheu concentrarse nas línguas e culturas com as quais está familiarizado, desta forma, focando no Norte Global. Considerando que o livro trata dos Estudos da Tradução e Teoria Queer e que advoga por uma epistemologia queer, espera-se diversidade e desafio às normas. Embora seja compreensível a escolha do autor, ele poderia ter aberto esse espaço para dar voz também a pesquisadores do Sul Global, convidando outros pesquisadores para colaborar durante a escrita do volume. A outra observação, bastante relevante, é o apontamento de que o uso dos termos “gay”, “homossexual” e “queer”, ao longo do livro, pode parecer inconsistente, mas é reflexo da variedade de uso e significado dessas palavras. Baer (2021) explica o significado que ele atribui aos três termos: “gay” refere-se ao modelo de homossexualidade ocidental; “queer” é usado tanto como termo guarda-chuva para outras identidades que fogem da heteronormatividade quanto para se referir a abordagens que criticam visões reducionistas de identidades associadas ao desejo pelo mesmo sexo; já a palavra “homossexual” é usada para descrições médicas, mas também, em alguns momentos, Baer afirma que “homossexual” é usado com o mesmo significado guardachuva de queer, sendo descrito como “a kind of grab bag”, em português “um tipo de caixa de surpresas”. Particularmente, discordo do uso intercambiável das palavras homossexual e queer, pois enquanto a palavra homossexual está ligada à atração por pessoas do mesmo sexo, o termo queer também se refere a identidades de gênero, que não estão relacionadas a orientação sexual, e a pessoas bi, pansexuais, assexuais e etc., que não se encaixam na categoria de “desejo pelo mesmo sexo”.

O capítulo 1 se inicia abordando as diferentes definições da palavra queer ao longo do tempo. O primeiro significado é “estranho”, encontrado pela primeira vez em uma tradução, seguido pelo uso pejorativo, pela reapropriação do termo por parte dos ativistas, em conjunto com o surgimento da Teoria Queer, e, por fim, queer passa a ser usado como termo guarda-chuva para outras sexualidades e identidades na sigla LGBTQIAPN+. O autor salienta que o surgimento de novos significados não anula os anteriores, todos sendo usados concomitantemente. Ao longo do capítulo, o autor se propõe a relacionar os Estudos da Tradução com a Teoria Queer. Esse objetivo é alcançado com sucesso, e o autor sugere uma epistemologia queer aplicada aos Estudos da Tradução. Baer (2021) também menciona superficialmente os conceitos de homógrafos e homófonos e os relaciona com os falsos cognatos na tradução, mas esses conceitos não são retomados posteriormente. Outros dois conceitos apresentados neste capítulo e retomados mais adiante são os empréstimos e a definição de “framing”. Empréstimos ocorrem quando palavras do texto fonte são mantidas no texto alvo por diversos motivos que serão detalhados a posteriori. Framing, ou enquadramento, é o processo pelo qual a cultura de chegada e o momento histórico moldam o processo tradutório. O capítulo 2 do livro é bastante teórico, assim como o primeiro, e apresenta ideias inovadoras. A mais relevante é a definição da tradução como uma “uneasy art”, ou arte incômoda, na qual Baer (2021) atribui o sentimento de desconforto da pessoa tradutora a sua inevitável falha, inerente ao processo de tradução, devido à sua natureza metonímica (TYMOCZKO, 2000TYMOCZKO, Maria. (2000) Translation and Political Engagement: Activism, Social Change and the Role of Translation in Geopolitical Shifts. The Translator, v. 6, n. 1, p. 23-47.). Além do mais, uma língua por si só é assimétrica e polissêmica, portanto, buscar equivalência entre duas línguas gera incômodo, e essa característica destaca o poder de escolha exercido pela pessoa que traduz. São abordados também a capacidade da tradução de gerar mudanças sociais e o papel de tradutores no processo de construção de identidades entendidas como “subalternas”, pois traduções não críticas e transparentes perpetuam a ideia de que o Ocidente é o original e as outras culturas são meras cópias. Essa ideia já havia sido discutida por Harvey (2000)HARVEY, Keith. (2000) Gay Community, Gay Identity and the Translated Text. TTR: Traduction, Terminologie, Rédaction, v. 13, n. 1, , p. 137-165., que associou a criação de comunidades queer à disponibilidade de textos queer e ao papel da tradução nesse processo. No capítulo 2, também há um alerta para os estudiosos que, ao ignorarem traduções nas suas pesquisas, perpetuam assimetrias colonizadoras. Por fim, Baer (2021) ressalta as tendências editoriais que promovem um multiculturalismo superficial, no qual as publicações em inglês são incentivadas, resultando em menos investimento em tradução.

Podemos concluir que, nessa primeira parte do livro, Baer atinge o seu primeiro objetivo, discutindo as interfaces entre a sexualidade queer e a textualidade queer. Isso é feito ao observar o tratamento da tradução em estudos históricos e etnográficos sobre o outro, o que também se apresenta como um dos objetivos da obra. Esses dois primeiros capítulos, apesar de apresentarem exemplos e estudos de caso, são mais teóricos e definem conceitos bastante úteis e aplicáveis à combinação dos Estudos de Tradução e da Teoria Queer. Trazem ainda um questionamento interessante: o fato dos estudos mencionados no capítulo 2 observarem a construção do desejo, mas ignorarem o desejo que leva pesquisadores a se envolverem com seus objetos de estudo.

O terceiro capítulo, no entanto, é inteiramente dedicado às características de antologias.

Uma descrição desse gênero textual é necessária, já que ele será minuciosamente analisado no capítulo seguinte, porém para o propósito do livro e do capítulo 4, não acredito ser necessária essa análise tão detalhada. Ainda assim, o capítulo pode ser de grande utilidade para aqueles interessados em estudar antologias e, ademais, traz uma contribuição interessante ao definir a compilação antológica como um processo metonímico, assim como a tradução. A antologia é uma visão parcial do texto e é substituída uma vez que uma nova antologia é compilada, o que para Baer (2021) é semelhante ao que acontece com traduções. Além disso, uma característica específica da antologia gay, que a torna tão relevante para o estudo em questão, é o fato de apresentar traduções para documentar tradições nacionais, enquanto antologias sobre outros temas focavam em textos produzidos na língua local.

Um tema recorrente no livro é a concepção e a materialização do desejo e do afeto, já que todas as obras analisadas buscam retratar a atração sexual e o amor homossexual. O autor, então, faz uma ressalva, apontando que, na maioria das vezes, o desejo de pesquisadores é ignorado e não se reflete naquilo que motiva alguém a dedicar-se ao seu tema de pesquisa. No capítulo 4, esse tema é retomado, por conta da natureza das antologias analisadas no livro, que foram compiladas com o objetivo de estabelecer uma história para a comunidade queer e legitimar o afeto entre duas pessoas do mesmo sexo. Baer (2021) também compila diversos estudos e referências para legitimar a relação entre Teoria Queer e Estudos da Tradução.

Ao longo do capítulo 4, o autor analisa diversas antologias gays publicadas em vários momentos da história, em locais diferentes, e enfatiza a relevância dessas antologias para movimentos ativistas e as mudanças sociais que ocorreram a partir dessas obras. Sendo assim ele realiza uma contribuição bastante relevante para os Estudos da Tradução e Teoria Queer e um exemplo metodológico para observação do impacto da tradução na sociedade. O autor aponta uma crise que reconhece a existência ontológica da homossexualidade enquanto se questiona epistemologicamente sobre o que ela é. Para ilustrar esse questionamento, Baer (2021) menciona uma antologia indiana que compilou textos escritos por lésbicas, na qual algumas autoras rejeitam o termo “lesbian”, por conta da imagem ocidental associada à palavra, e preferem o termo local “samyonik” (“sam” significa união e “yoni” a genitália feminina). A partir da observação desse conflito, o autor conclui que, apesar do uso constante dos termos “gay” e “lésbica”, as antologias são de fato queer, e esses eram os termos em voga na época. Subsequentemente, Baer (2021) cita uma crítica à antologia The Penguin Book of Homosexual Verse, compilada por Stephen Coote em 1983, que afirma ser inapropriado o uso da palavra homossexual para se referir a comportamentos e identidades variadas. Apesar de citar essa crítica e refletir sobre o uso da palavra homossexual, Baer afirma, em sua introdução, que utiliza o termo como guarda-chuva para se referir a identidades não-heteronormativas, como mencionado anteriormente.

No capítulo 4, Baer (2021) se dedica a análise detalhada de antologias anglófonas, russas e ucranianas, as línguas com as quais o autor está familiarizado. Contudo, a inclusão da antologia indiana provoca uma reflexão importante e sugere que outros textos do Sul Global poderiam oferecer contribuições diversas, complexas e questionadoras para o debate.

No capítulo 5, o foco é em outro gênero textual, a poesia. O principal argumento de Baer (2021) aqui é como a tradição de leitura ocidental de romances alterou a forma como lemos poesia, num processo que ele denomina “novelization”. Ou seja, atribuímos à poesia papéis típicos de romance: o eu lírico, o interlocutor e um observador. Além disso, lemos poemas em busca de pistas sobre a sexualidade do eu lírico e tentando decifrar os seus significados. Baer (2021) aponta que esse processo pode ser chamado de “leitura paranoica” e pede que, em contraponto, entenda-se a poesia como um evento linguístico único, escrito para ser enunciado, que pode ser memorizado e analisado para observar elementos prosódicos e retóricos, mas a recuperação semântica não é o objetivo principal ao se ler poesia. Essa insubordinação ao significado atribui o potencial contra-hegemônico à poesia, e é por isso que Baer (2021) reivindica o retorno do lírico e, segundo ele, essa é uma postura queer por buscar uma leitura indeterminada, móvel, limítrofe e independente das normas de interpretação ocidentais.

Para que essa leitura seja possível é necessário contestar um conceito muito relevante para a tradução: a “leitura paranoica”, que está diretamente relacionada a um gênero textual descrito por Baer (2021) como “coming out novel”, em português “romance de saída do armário”. Esse gênero, tipicamente ocidental, naturalizou o romance, marginalizou a presença da poesia em antologias, apagou a tradição literária da América do Sul, que era majoritariamente lírica até a década de 1960, e fez alguns autores acreditarem que temas como a homossexualidade precisam ser textualmente explícitos. A consequência disso para a tradução é que autores que expressavam sua sexualidade de forma indireta foram traduzidos de forma explícita por conta da leitura paranoica da pessoa tradutora. Baer (2021) propõe que façamos da tradução lírica queer um espaço de leitura reparativa, em que toda forma de performatividade queer seja respeitada, sem reforçar a narrativa ocidental da saída do armário. Essa ideia é reiterada por Castro (2017)CASTRO, Olga. (2017) (Re)examinando horizontes nos estudos feministas de tradução: em direção a uma terceira onda?. Tradução: Beatriz Barbosa. TradTerm, vol. 29, n. julho, p. 216-250., ao afirmar que o conceito de fidelidade na tradução apenas se aplica à interpretação que cada tradutor/a faz na sua leitura. Portanto, é necessário afastar-se da leitura paranoica e aproximar-se da realização consciente e crítica de uma leitura reparativa para, assim, realizar a tradução poética, proposta por Baer.

Ainda no capítulo 5, o autor traz um estudo de caso notável, as traduções líricas do poeta Apukhtin, que utiliza uma técnica já descrita pela tradução feminista como hijacking. O poeta tradutor remove indicadores de heterossexualidade e queeriza poetas que não se identificam como gays, demonstrando uma abordagem centrada no texto e na produção de literatura queer, que independe da orientação sexual do autor. Outro exemplo das traduções de Apukhtin mostra que o tradutor faz referências intertextuais a obras russas famosas, e Baer (2021) utiliza esse exemplo para argumentar que traduções podem fazer referências intertextuais com a cultura de chegada de forma intencional e que, por isso, textos traduzidos devem ser integrados aos estudos literários.

O capítulo 6 começa com um alerta muito importante para pesquisadores da Teoria Queer: o cuidado que devemos ter para não idealizar nossos sujeitos de pesquisa, permitindo que sejam pessoas complexas e evitando que nossas idealizações nos conduzam a conclusões inadequadas. A partir dessa observação, Baer (2021) analisa o que chama de “framing”, que aqui será traduzido como enquadramento, com base na história de Charlotte von Mahlsdorf. O conceito de enquadramento é explicado na Introdução do livro e é dividido entre enquadramento implícito e explícito. O enquadramento implícito ocorre de dentro do texto, através de traduções sem explicações sobre as escolhas tradutórias, enquanto o enquadramento explícito se dá através de paratextos, que nos permitem entender o processo tradutório. É importante ressaltar que, independentemente de ser explícito ou não, o enquadramento sempre acontece, e isso se torna evidente nas diferentes traduções da biografia de Charlotte von Mahlsdorf, enquadradas de acordo com o momento histórico ou com a cultura de chegada. Por exemplo, se comparamos o texto em russo e em inglês, as escolhas tradutórias americanas descrevem Charlotte como uma ativista, enquanto a versão russa preza pela privacidade. Esses exemplos ilustram como o enquadramento é aplicado com o foco na cultura alvo, uma característica da virada cultural dos Estudos da Tradução, que muda o foco dos aspectos linguísticos da tradução para a observação do papel que o texto alvo exerce na cultura de chegada (SNELL-HORNBY, 2006SNELL-HORNBY, Mary. (2006) The Turns of Translation Studies: New Paradigms or shifting viewpoints? Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company.).

Baer (2021) descreve dois tipos de enquadramento: conceitual, de certa forma estático, e outro que se altera através do tempo. Para ele, o segundo tipo de enquadramento é descrito por Baker (2015) e é dividido em quatro conceitos que ela chama de narrativas: ontológicas ou narrativas pessoais, narrativas públicas, narrativas conceituais e meta-narrativas. O papel da Teoria Queer é desconfiar dessas categorias exclusivas e observar como esses enquadramentos se perpassam construindo uma narrativa totalizante. Um exemplo dado pelo autor é a institucionalização do termo “transgênero” para descrever identidades que variam das normas binárias de gênero. Para algumas pessoas, a institucionalização desse termo foi libertadora, enquanto para outras foi delimitante. Nesse caso, vemos um entrelace das narrativas ontológicas e conceituais. Temos, portanto, nesse capítulo um exemplo metodológico de pesquisa nos Estudos da Tradução e Teoria Queer sobre enquadramentos e narrativas e um convite a pesquisadores da área para analisarem, sob a perspectiva queer, um conceito postulado por Baker (2015) nos Estudos da Tradução.

Por fim, na breve e importante conclusão do livro, encontramos sugestões para incorporar a Tradução a uma pedagogia queer contra-hegemônica, e Baer (2021) sugere que façamos isso através da leitura incômoda de textos, sem buscar resolver esses incômodos e sem incorporar vozes queer à epistemologia sexual ocidental. Essa leitura incômoda implica em não apenas sinalizar que um texto é uma tradução, mas evidenciar as formas em que os incômodos da pessoa que traduz se tornam visíveis. Duas formas mencionadas são as notas de rodapé e os empréstimos. A nota de rodapé pode revelar tanto o incômodo sentido pela pessoa tradutora quanto a sua posição contraditória em relação as escolhas de tradução ou o seu cuidado com a retórica da pessoa autora. Já os empréstimos podem demonstrar o incômodo causado pela divergência semântica ou epistemológica. Além disso, o uso de empréstimos em textos queer é um indicador da circulação de conhecimento queer. A escolha de usar empréstimos também é uma forma de apontar para a língua e o seu uso e desafia a noção de estados monolíngues.

Em suma, o livro Queer Theory and Translation Studies: language, politics, desire, de Brian Baer, é uma grande contribuição para o campo de Estudos da Tradução junto a Teoria Queer. O interesse do autor pela língua russa é evidente pelo uso de diversos exemplos de publicações em russo ao longo do livro. Baer tem outra publicação relevante para os Estudos da Tradução e Teoria Queer, o livro Queering Translation, Translating the Queer, organizado por ele e por Klaus Kaindl e publicado em 2017. Outras obras relevantes da área são: Queer in Translation, organizado por B.J. Epstein e Robert Gillet de 2017; Queer Excursions: Retheorizing Binaries in Language, Gender, and Sexuality, organizado por Lal Zimman, Jenny Davis e Joshua Raclaw; Translating Trans Identity(Re)Writing Undecidable Texts and Bodies, escrito por Emily Rose e publicado em 2021. Todas as publicações são bastante recentes, o que reitera o aspecto ainda incipiente da área. Além disso, a maioria das publicações sobre o tema são em inglês, portanto, há a necessidade de disseminar esse campo de pesquisa através da produção de traduções e de publicações em outras línguas.

No que diz respeito ao livro aqui resenhado, Baer (2021) contribui não só com uma base epistemológica para pesquisas na área, mas também com exemplos metodológicos de como essas pesquisas podem ser conduzidas de maneira bem-sucedida com base na Teoria Queer, contrariando afirmações de que a teoria apresenta um desafio metodológico. Visto que se trata de uma área incipiente, o livro é importante para estimular e basear pesquisas no campo. Além de postular conceitos importantes que podem ser aplicados a outras pesquisas sobre Tradução Queer, o livro também traz estudos de caso e uma variedade enorme de referências bibliográficas sobre o tema. Ressalto, porém, que por se tratar de um livro com uma proposta queerizante, espera-se que normas e convenções sejam desafiadas, mas vemos aqui a manutenção do foco em identidades e epistemes do Norte Global, pois, apesar da enorme lista de trabalhos citados, há breves menções a pesquisas do Sul Global e pouca presença de outras identidades da sigla LGBTQIAPN+ além de homens gays.

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Os dados públicos que apoiam as conclusões deste estudo estão disponíveis em BAER, BRIAN. QUEER THEORY AND TRANSLATION STUDIES: LANGUAGE, POLITICS, DESIRE. NEW YORK AND LONDON: ROUTLEDGE, 2021.

  • 1
    In-between
  • 2
    “both, neither and all”
  • 3
    “the central concern of both fields [Queer Theory and Translation Studies] has been the conceptualization and representation of sameness and difference, of borders and bordering-or of how one’s place is or is”
  • 4
    “between place and place”

REFERÊNCIAS

  • CASTRO, Olga. (2017) (Re)examinando horizontes nos estudos feministas de tradução: em direção a uma terceira onda?. Tradução: Beatriz Barbosa. TradTerm, vol. 29, n. julho, p. 216-250.
  • HARVEY, Keith. (2000) Gay Community, Gay Identity and the Translated Text. TTR: Traduction, Terminologie, Rédaction, v. 13, n. 1, , p. 137-165.
  • SNELL-HORNBY, Mary. (2006) The Turns of Translation Studies: New Paradigms or shifting viewpoints? Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company.
  • TYMOCZKO, Maria. (2000) Translation and Political Engagement: Activism, Social Change and the Role of Translation in Geopolitical Shifts. The Translator, v. 6, n. 1, p. 23-47.
  • von FLOTOW, Luise. (2013) Traduzindo Mulheres: de histórias e re-traduções recentes à tradução ‘Queerizante. Tradução: Tatiana Nascimento dos Santos. In: BLUME, Rosvita; PETERLE, Patricia (eds). Tradução e Relações de Poder. Tubarão: Copiart, p. 169-172.
  • WOLF, Michaela. (2013) A “vontade de poder”: tradução no campo de tensão entre poder e ética. Tradução: Rosvitha Friesen Blume. In: BLUME, Rosvitha.; PETERLE, Patricia. (Orgs.) Tradução e relações de poder. Florianópolis: PGET/UFSC, p. 149-168.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2023
  • Aceito
    12 Jul 2023
  • Publicado
    04 Ago 2023
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