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Para além da racionalidade: outras dimensões da ação entre organizações familiares de produção agrícola: uma discussão a partir da realidade de famílias de agricultores no sul de Santa Catarina

Beyond rationality: dimensions of the actions between agricultural family organizations in the southern part of the state of Santa Catarina: a discussion

Resumo:

A discussão a respeito da racionalidade que orienta a ação em organizações tem enfatizado a dualidade entre as racionalidades instrumental e substantiva. “Para além da racionalidade...”, busca compreender nos significados compartilhados entre organizações familiares de agricultores outras dimensões da ação nos modos de organizar a atividade de produção agrícola. O estudo de caráter qualitativo foi realizado com 13 famílias em localidades de descendentes de imigrantes no Sul do Brasil. Recorremos à observação das organizações familiares em que seus integrantes compartilham atividades de produção agrícola em pequenas propriedades rurais no sul do estado de Santa Catarina. Nos três modos de organizar a produção agrícola identificados como integrado, semi-integrado e não integrado, os significados compartilhados apontaram indícios da ação orientada pelo afeto e tradição, indo além das dimensões da ação orientada pela racionalidade instrumental e/ ou de caráter substantivo. Observou-se que as relações afetivas e as práticas produtivas baseadas em tradições assumem papel significativo nos modos de organizar e estão associados ao caráter substantivo das relações sociais, segundo os referenciais teóricos adotados. Conclui-se que seja relevante que essas dimensões da ação, renegadas na discussão sobre racionalidades, sejam consideradas entre organizações familiares vinculadas a atividades de produção agrícola.

Palavras-chave:
orientação da ação; organizações; afeto e tradição; produção agrícola; famílias

Abstract:

The discussion surrounding the rationale guiding the actions of organizations has highlighted the duality between instrumental and substantive rationalities. “Beyond rationality” seeks to understand other dimensions of action in the context of the organization of agricultural production, through the meanings shared by family organizations of farmers. A qualitative study was carried out involving the participation of 13 families, living in locations characterized by a strong presence of descendants of immigrants who settled in southern Brazil. The authors performed the observation of family organizations, whose members shared agricultural production activities in small rural holdings in the south of Santa Catarina State. In the three modes of organizing agricultural production identified as integrated, semi-integrated and nonintegrated. The shared meanings showed evidence of action guided by affection and tradition, extending beyond the dimensions of action guided by rationality of an instrumental and/or substantive nature. It was noted that affective relations and productive practices based on traditions play an important role in the modes of organizing and are associated with the substantive character of social relations, according to the adopted theoretical frameworks. It is understood that the dimensions of action, rejected in the discussion on rationality, are in fact relevant and should be considered with regards to family organizations involved in agricultural production activities.

Keywords:
action orientation; organizations; affection and tradition; agricultural production; families

1. INTRODUÇÃO

A ascensão do capitalismo industrial teve, segundo Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., a influência preponderante da adoção da razão instrumental como orientadora da ação dos indivíduos. As organizações formais1 1 Por organizações formais compreendem-se, neste estudo, aquelas que exibem características específicas, sendo orientadas por objetivos determinados por uma racionalidade que estabelece em todas as suas ações o cálculo utilitário entre meios e fins, visando ao interesse de uma coletividade (Parsons, 1956; Blau & Scott, 1979). Essa mesma racionalidade define a forma como os controles de recursos e resultados são determinados (Child, 2012) e apresenta um sistema de autoridade hierarquizada assentada no conhecimento especializado de seus agentes, buscando a impessoalidade de seus processos (Weber, 2009). , racionalmente orientadas, passaram a representar os interesses de coletividades em um complexo sistema de relações de trocas monetarizadas. De acordo com Guerreiro Ramos (1981)Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
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e Abbott (2009)Abbott, A. (2009). Organizations and the Chicago School. In P. Adler (Ed.), The Oxford handbook of sociology and organization studies: classical foundations (pp. 399-420). Oxford: Oxford University Press., historicamente, considera-se que um mundo determinado essencialmente pelas organizações formais, caracterizadas pelas empresas e instituições, constitui um fenômeno recente da condição humana predominante, particularmente no século XX. Por outro lado, organizações sociais baseadas em costumes tradicionais e culturalmente situadas não têm feito parte do repertório de fenômenos investigados pelos estudos organizacionais e de gestão, realizados principalmente no âmbito das ciências da administração (Vizeu et al., 2015Vizeu, F., Seifert, R. E., & Hocayen-Da-Silva, A. J. (2015). Non-capitalist organizations in Latin America: lessons from the Brazilian Faxinal grass root community. Cadernos EBAPE, 13(2), 369-389. http://dx.doi.org/10.1590/1679-395116997
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). Esses autores defendem que a identificação de práticas de gestão, de recursos e modos de produção, apoiadas em princípios culturalmente herdados de organizações sociais tradicionais, pode contribuir para a discussão de alternativas concretas às organizações formais.

Ainda que seja possível observar a preponderância das organizações formais, orientadas por uma racionalidade instrumental mediando as diversas esferas das relações humanas na sociedade de mercado, não se pode afirmar que há uma homogeneidade desse tipo de organização na sociedade, nem se pode simplificar a integralidade da ação humana reduzida à adoção do cálculo utilitário entre meios e fins. As generalizações, bem como a conclusão baseada em conceitos teóricos parciais, impedem o alcance da complexidade a que estamos sujeitos na realidade que buscamos compreender. Nesse sentido, a discussão que muitos teóricos organizacionais têm empreendido (Guerreiro Ramos, 1981Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
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; Serva, 1996Serva, M. R. (1996). Racionalidade e organizações: o fenômeno das organizações substantivas (Tese de doutorado). Programa de Pós-graduação Administração, Escola de Administração Fundação Getúlio Vargas, São Paulo., 1997Serva, M. R. (1997). A racionalidade substantiva demonstrada na prática administrativa. Revista de Administração de Empresas, 37(2), 18-30.; Caitano & Serva, 2012Caitano, D. O., & Serva, M. R. (2012). Racionalidade substantiva nas organizações: consolidação de um modelo metodológico de pesquisa teórico-empírica. In Anais do 36º Encontro Nacional da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Administração. Rio de Janeiro: ANPAD.; Delagnello & Machado-da-Silva, 2000Delagnello, E. L., & Machado-da-Silva, C. (2000). Novas formas Organizacionais: onde se encontram evidências empíricas de ruptura com o modelo burocrático de Organizações. Organizações & Sociedade, 7(19), 19-33.) acerca da racionalidade instrumental versus substantiva da ação representa uma dimensão parcial de conceitos com origem na teoria da ação social weberiana, com base em conceitos típico ideais que podem reduzir a compreensão da realidade a uma visão dicotômica.

Através da pesquisa empírica sobre organizações que também têm se mostrado, ao menos parcialmente, resistentes à hegemonia da ação racionalizada, as organizações familiares vinculadas à atividade de produção agrícola2 2 Para Schneider (2003) e Mattei (2007), organização familiar de produção agrícola compreende a organização composta por indivíduos de um grupo familiar que realizam alguma atividade compartilhada, ligada à produção agrícola. Conforme Lamarche (1998), a organização familiar vinculada à produção agrícola, de forma distinta da organização formal, orienta-se por uma lógica familiar caracterizada pelas relações sociais entre seus integrantes, pela divisão interna do trabalho e pela relação da família com a propriedade. em pequenas propriedades rurais reproduzem práticas de produção orientadas por relações afetivas de parentesco bem como por hábitos e costumes tradicionais. Elas demonstram outras facetas da ação social que não podem ser meramente justificadas pela instrumentalidade da ação ou pela adoção de princípios ético-valorativos alicerçados em princípios religiosos ou emancipatórios.

Este artigo tem por objetivo identificar nos significados compartilhados entre organizações familiares de agricultores outras dimensões da ação vinculadas à tradição e ao afeto nos modos de organizar a atividade de produção agrícola. Na discussão dos conceitos teóricos, são recobradas outras dimensões da ação presentes na teoria da ação weberiana, bem como se questiona a apropriação que se faz do caráter substantivo da ação entre diferentes autores como Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., Guerreiro Ramos (1981)Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
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e Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, ..

O presente trabalho contribui com as discussões realizadas na área dos estudos organizacionais, a respeito da orientação da ação que caracteriza modos alternativos e não hegemônicos de organizar, e que têm sido alvo de debates nos ambientes acadêmicos (Costa et al., 2018Costa, P. A., Seifert, R. E., Meira, F. B., & Hocayen-da-Silva, A. J. (2018). Provocações epistemológicas, teóricas e metodológicas a partir de experiências empíricas de organizações alternativas e contra hegemônicas. Farol Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 5(13), 477-495.). A partir do questionamento da abordagem da racionalidade instrumental versus substantiva, que suplanta uma compreensão mais complexa da ação, entre diferentes modos de organizar a atividade produtiva, este artigo explora, no contexto das organizações familiares de produção agrícola, outras lógicas de agir.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A discussão de diferentes instituições sociais e econômicas assim como a delimitação de diferentes sistemas de autoridade, feitas no início do século XX pelo sociólogo alemão Max Weber, são reconhecidas como determinantes nos estudos de organizações até os dias atuais (Sell, 2013Sell, C. E. (2013). Max Weber e a racionalização da vida. Petrópolis: Vozes.). Quando se trata de conceitos relacionados à lógica da ação predominante nas organizações, faz-se necessário reconhecer a complexidade a que estão associados os conceitos de orientação da ação e racionalidade na obra de Weber. É preciso admitir, ao analisar os conceitos apontados por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., que as definições de racionalidade e orientação da ação são tratadas segundo a metodologia do tipo ideal, e, segundo o próprio autor, não se observa a ação social orientada por um sentido único. A ação concreta é complexa, sendo que os tipos ideais são utilizados como instrumento heurístico para compreender a ação. De acordo com Gabriel Cohn, no prefácio da tradução de Economia e Sociedade (Weber, 2000Weber, M. (2000). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB.), o sentido na ação social corresponde ao sentido subjetivamente visado pelo indivíduo. Cabe destacar que os conceitos de sentido e significado são empregados como sinônimos quando tratamos do conceito weberiano traduzido como sentido da ação. A preocupação de Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. se concentra sobre aspectos metodológicos para a compreensão do sentido da ação social. Para ele, o conhecimento científico busca evidências racionais, mas também intuições compreensivas dos fenômenos. Às evidências racionais está associada interpretação de ações racionalmente orientadas para uma finalidade, a partir da compreensão dos meios empregados. Àquelas ações tidas como dissociadas de um comportamento racional (de ordem afetiva ou tradicional) emprega-se a busca de evidências de forma “intuitivamente compreensiva” (Weber, 2009Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., p. 4). Os tipos ideais de ação social propostos por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. compreendem: a ação racional referente a fins, a ação racional referente a valores, a ação orientada de modo afetivo e a ação orientada de modo tradicional. Os tipos de ação social ditos racionalizados compreenderiam a ação orientada por fins, também reconhecida como instrumental, e a ação orientada por aspectos ético-valorativos, identificada por uma racionalidade substantiva. Conforme Sell (2012)Sell, C. E. (2012). Racionalidade e racionalização em Max Weber. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27(79), 163-171. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092012000200010
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, a partir de uma análise hermenêutica dos intelectuais que se debruçaram sobre a obra weberiana, as discussões acerca da ação racional têm sido tradicionalmente concentradas na dualidade entre a racionalidade instrumental e a racionalidade substantiva, como discutido por Kalberg (1980)Kalberg, S. (1980). Max Weber’s types of rationality: cornerstones for the analysis of rationalization in history. American Journal of Sociology, 85(5), 1145-1179. http://dx.doi.org/10.1086/227128
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e Habermas (1984)Habermas, J. (1984). The theory of communicative action (Vol. 1). Boston: Beacon Press., em detrimento das outras duas dimensões relacionadas à orientação pelo afeto e pela tradição.

Segundo Parsons (1956)Parsons, T. (1956). Suggestions for a sociological approach to the theory of organizations I. Administrative Science Quarterly, 1(1), 63-85. http://dx.doi.org/10.2307/2390840
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, um dos intérpretes de Weber no século XX, a organização formal estaria fortemente vinculada à orientação da ação racionalmente orientada por fins, reconhecida como racionalidade instrumental. Essa condição constitui a base para o desenvolvimento de uma argumentação mais complexa, em que o uso da racionalidade instrumental nas organizações seria o mecanismo mais importante pelo qual uma sociedade com elevados padrões poderia evoluir e alcançar seus objetivos além dos interesses individuais.

Na perspectiva weberiana, a ação orientada por uma racionalidade substantiva, por sua vez, rejeita o exclusivo interesse personalista para privilegiar o critério ético-valorativo, associado a uma norma, tradição ou religião. A discussão da dimensão da ação racional substantiva, seja a partir de Guerreiro Ramos (1981)Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
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, seja a partir da crítica de Habermas (1984)Habermas, J. (1984). The theory of communicative action (Vol. 1). Boston: Beacon Press., enfatizou o caráter emancipatório dado à racionalidade substantiva. Guerreiro Ramos (1981)Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
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assinala que a sociedade deveria buscar a oposição da hegemonia da racionalidade instrumental através de uma racionalidade substantiva de caráter emancipatório. Sob essa perspectiva, alguns estudiosos de organizações procuraram enxergar na realidade organizacional maior aproximação ou distanciamento de práticas orientadas por uma racionalidade instrumental com características do modelo típico-ideal da burocracia. A busca por evidências empíricas, em que houvesse um distanciamento da lógica formal instrumental e uma dinâmica orientada por uma racionalidade substantiva, foi um dos alvos de Rotschild-Whitt (1979)Rotschild-Whitt, J. (1979). The collectivist organization: an alternative to rational-bureaucratic models. American Sociological Review, 44(4), 509-527. Recuperado em 23 de março de 2015, de http://www.jstor/stable/2094585
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e Serva (1997)Serva, M. R. (1997). A racionalidade substantiva demonstrada na prática administrativa. Revista de Administração de Empresas, 37(2), 18-30.. Rotschild-Whitt (1979)Rotschild-Whitt, J. (1979). The collectivist organization: an alternative to rational-bureaucratic models. American Sociological Review, 44(4), 509-527. Recuperado em 23 de março de 2015, de http://www.jstor/stable/2094585
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vislumbrou no contexto norte-americano da década de 1970 a proliferação de “instituições alternativas” compostas voluntariamente por indivíduos que decidem constituir organizações voltadas para serviços de saúde, alimentação, educação, sem recorrerem à autoridade burocrática como modelo.

Do lado oposto às orientações ditas racionalizadas, Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. reconhece a dimensão da ação orientada de modo afetivo, vinculada às relações afetivas ou estados emocionais, enquanto que a ação orientada pela tradição seria caracterizada pela repetição continuada de hábitos e costumes. Como tais dimensões não se expressam em estado puro, o afeto e a tradição integrariam facetas da ação social percebidas de forma intuitivamente compreensiva, a partir dos significados compartilhados por seus agentes, seja por aspectos emocionais e afetivos, seja em decorrência da reprodução de hábitos cotidianos (Weber, 2009Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB.). A tais dimensões da ação, é possível resgatar estudos que têm procurado demonstrar como a afetividade e tradição integram a realidade de grupos e organizações sociais. Hyden (2008)Hyden, G. (2008). The economy of affection: why the African peasantry remain uncaptured. In G. Hyden & I. Kimambo (Eds.), Contemporary perspectives on African moral economy (pp. 16-32). Tanzânia: Kimambo. Recuperado em 5 de novembro de 2017, de http://asq.africa.ufl.edu/files/Volume-9-Issues-1-2.pdf
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discutiu a permanência de camponeses na África, utilizando o conceito de afetividade em Max Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., aliado às noções de clientelismo, cooperação solidária e autodefesa, como forma de resistência às instituições para manter sua identidade e modo de produção. Ferraz (2012)Ferraz, E. E. (2012). “Do meu lugar nem Morto”: uma relação de topofilia num sertão em retração. In Anais do 6º Colóquio de História (pp. 139-151). Recife: UNICAP. Recuperado em 24 de outubro de 2014, de http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wp-content/uploads/2013/11/6Col-p.03-05.pdf
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, ao analisar famílias ligadas à agricultura familiar no sertão nordestino, identificou a ligação afetiva dos membros mais velhos dos grupos familiares com seu local de origem.

Com relação à ação orientada pela tradição, Campbell (2009)Campbell, B. C. (2009). Ethnoecology of the Ozark highlands: agricultural encounter. Ethnology, 48(1), 1-20. realizou uma investigação a respeito da percepção dos agricultores no Missouri (EUA) sobre as transformações das práticas tradicionais de atividades de produção agrícola. Entre as conclusões, o autor informa que enquanto para agricultores influenciados pelo que se denomina de uma ideologia tecnocrática as práticas de cultivo e criação tradicionais são consideradas obsoletas, para outros que vivem em regiões isoladas as práticas tradicionais permanecem válidas. Da mesma forma, tendo como objeto comunidades rurais do semiárido brasileiro, Souza Cruz & Corá (2014)Souza Cruz, M. T., & Corá, M. A. J. (2014). Desencantamento do Mundo: análise da desarticulação e dissolução de comunidade rural na Chapada Diamantina. Amazônia, Organizações e Sustentabilidade, 3(1), 61-75. http://dx.doi.org/10.17800/2238-8893/aos.v3n1p61-75
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investigaram o processo de desarticulação de comunidades em decorrência da tensão entre a economia racionalizada e a influência do conhecimento científico acerca das práticas baseadas no conhecimento tradicional. Destacam-se, nesse trabalho, as dimensões da ação social ligadas aos costumes no contexto das relações sociais de ordem comunitária, segundo uma compreensão weberiana.

Como o complexo de conceitos vinculados à ação social propostos por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. não se restringe ao âmbito individual, ele conceitua um tipo específico de ação social que compreende as relações sociais. Para o autor, as relações sociais constituem comportamentos reciprocamente referidos entre indivíduos quanto a seu conteúdo de significado. Por relações sociais associativas caracterizam-se aquelas estabelecidas nas organizações empresariais. Por relações sociais comunitárias caracterizam-se as relações familiares, afetivas e de vizinhança. Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. distingue ainda as relações sociais economicamente orientadas, fundamentais na compreensão da ação social. A ação economicamente orientada pode se dar sob duas formas: a) atender necessidades cotidianas quando há escassez de recursos por meio de trocas; b) aquisição, aproveitando-se da situação de escassez de bens a fim de obter lucro pela disposição sobre esses bens.

Conforme Schluchter (2014)Schluchter, W. (2014). Capitalism from a World-Historical Perspective para as comemorações dos 150 anos de nascimento de Max Weber. Florianópolis: Curso de Ciências Sociais, Universidade Federal de Santa Catarina. Palestra proferida pelo professor catedrático da Universidade de Heidelberg, Wolfgang Schluchter., intérprete contemporâneo da obra weberiana, essa distinção pode ser verificada nas diferentes formas de relações econômicas da sociedade (informação verbal)3 3 Palestra proferida pelo professor catedrático da Universidade de Heidelberg, Wolfgang Schluchter, no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: agosto, 2014. Título da palestra: Capitalism from a World-Historical Perspective para as comemorações dos 150 anos de nascimento de Max Weber. . De um lado, o modelo da household economy orientado para a provisão de recursos necessários ao atendimento das necessidades de sobrevivência observado entre comunidades agrárias. De outro, a economia capitalista orientada para o processo de aquisição e geração da riqueza por meio da ênfase na produção e circulação de mercadorias.

De acordo com Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., à medida que a sociedade se torna mais individualizada, revertendo a importância da comunidade doméstica para a segurança dos indivíduos, a ação institucionalizada do poder político desloca a condição que a comunidade doméstica detinha de fonte de produção e consumo (como representado pelas organizações familiares vinculadas à atividade de produção agrícola) para constituir apenas a unidade de consumo comum (o que pode ser exemplificado por famílias urbanas). Guerreiro Ramos (1981)Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
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argumenta que, na sociedade de mercado, a organização econômica passa a determinar todas as condições do indivíduo na sociedade, sufocando as outras dimensões que anteriormente eram ocupadas por outros sistemas sociais como a família e a comunidade, onde se identificam aspectos ligados ao afeto e às tradições. Vinculado a esse argumento, o mesmo autor propõe a retomada de uma racionalidade substantiva que uniria preceitos de caráter emancipatório com princípios da economia substantiva identificada por Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, . em comunidades agrárias.

Nesse ângulo, recorremos à noção de substantividade em Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, ., autor que fundamenta o que denomina de economia substantiva, nas relações sociais baseadas nos princípios da domesticidade (consumo próprio), da reciprocidade (troca em favor de ações colaborativas) e redistribuição de bens, inerentes a economias domésticas e comunitárias. Tais princípios estariam presentes nas práticas percebidas entre pequenas comunidades e nos grupos familiares. Nesse sentido é que se percebe uma distinção entre os conceitos de economia substantiva de Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, . nas relações sociais; da racionalidade substantiva de caráter emancipatório de origem habermasiana e da ação orientada racionalmente por aspectos ético-valorativos propostos por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB.. Considera-se o argumento de Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, . de que as trocas econômicas estão imersas em relações sociais e não necessariamente em relações de mercado que visam ao lucro. Assim é possível estabelecer uma conexão entre a economia substantiva (Polanyi, 1980Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, .) nas relações comunitárias e familiares de produção com as dimensões ditas “não racionalizadas” da ação baseadas nas relações de parentesco de base afetiva e orientadas por hábitos e tradições segundo a classificação weberiana. Como a decomposição em tipos puros de ação se torna um instrumento teleológico que restringe a percepção que temos da realidade, não se pode negar a integralidade das dimensões do afeto e da tradição nas relações sociais em que estamos imersos, merecendo, portanto, um reconhecimento para além da ênfase na dualidade da ação racional instrumental × substantiva.

É nesse contexto que as relações de base doméstica e comunitária (e no contexto específico dessa pesquisa, no âmbito das organizações familiares vinculadas à atividade de produção agrícola), nas quais a ação economicamente orientada visa à sobrevivência de seus membros, através de processos colaborativos e em que se estabelecem vínculos afetivos e de parentesco, que as ações orientadas pela tradição e afeto podem representar aspectos relevantes da ação imersa nas relações sociais. Quando discutimos a noção de organização familiar enquanto unidade de consumo e produção, ainda que o foco da discussão se concentre nas dimensões da orientação da ação em Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., cabe elevar a discussão à questão mais ampla da organização familiar de produção agrícola. Para Woortmann (1995)Woortmann, E. (1995). Herdeiros, parentes e compadres: colonos do Sul e sitiantes no Nordeste. São Paulo: Hucitec., Schneider (2003)Schneider, S. (2003). Teoria social, agricultura familiar e pluriatividade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 18(51), 99-120. e Wanderley (2003)Wanderley, M. N. B. (2003). Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos Sociedade e Agricultura, 21, 42-61. Recuperado em 10 de setembro de 2014, de http://wp.ufpel.edu.br/leaa/files/2014/06/Texto-6.pdf
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, as teorias clássicas de base econômica apresentam teóricos que indicavam a inexorável predominância da produção baseada na mecanização e no trabalho assalariado, provocando o desaparecimento de pequenos proprietários rurais e camponeses voltados para a produção de subsistência.

Sob outro prisma da questão agrária (Woortmann, 1995Woortmann, E. (1995). Herdeiros, parentes e compadres: colonos do Sul e sitiantes no Nordeste. São Paulo: Hucitec.), Chayanov (2014)Chayanov, A. V. (2014). Teoria de sistemas econômicos. In H. M. Carvalho (Ed.), Chayanov e o campesinato. São Paulo: Expressão Popular., economista e agrônomo russo que estudou a realidade dos camponeses em seu país no início do século XX, considerava que o grupo familiar visava atender primeiramente as necessidades fundamentais de seus membros, de modo que a unidade econômica camponesa vinculada à produção agrícola na sua época não era compreendida por esse autor como estritamente orientada para o mercado. Por tal motivo, essa unidade econômica e social não estaria fadada ao desaparecimento com a evolução dos sistemas econômicos como previam outros teóricos à época, inclusive Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB.. No Brasil, segundo o Censo Agropecuário de 2006 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2006Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2006). Censo agropecuário. Rio de Janeiro: IBGE. Recuperado em 9 de julho de 2018, de http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/50/agro_2006_agricultura_familiar.pdf
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), mais da metade da produção de alimentos consumidos no país teve origem nesse período, nas atividades produtivas das pequenas propriedades rurais dirigidas por famílias em diversas regiões do país. As afirmações de Chayanov (2014)Chayanov, A. V. (2014). Teoria de sistemas econômicos. In H. M. Carvalho (Ed.), Chayanov e o campesinato. São Paulo: Expressão Popular. convergem no contexto contemporâneo, com o caráter dualista do conceito de agricultura familiar, conforme Wanderley (2003)Wanderley, M. N. B. (2003). Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos Sociedade e Agricultura, 21, 42-61. Recuperado em 10 de setembro de 2014, de http://wp.ufpel.edu.br/leaa/files/2014/06/Texto-6.pdf
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. De um lado, o conceito é introduzido pelo Estado quando reconhece a necessidade de desenvolver políticas para esse segmento da população que emprega, entre os membros do grupo familiar, a força de trabalho e a propriedade privada a ela associada na produção agrícola. De outro, o conceito renovado remete ao que denomina de campesinato tradicional, portador de múltiplas culturas, saberes tradicionais e historicamente vinculados à propriedade rural do minifúndio ou como mão de obra da grande propriedade rural.

O que Wanderley (2003)Wanderley, M. N. B. (2003). Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos Sociedade e Agricultura, 21, 42-61. Recuperado em 10 de setembro de 2014, de http://wp.ufpel.edu.br/leaa/files/2014/06/Texto-6.pdf
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propõe é que essas duas dimensões do agricultor familiar, como ator social, mostram rupturas e continuidades à medida que reconhecemos sua existência e suas transformações. A questão que distingue o conceito de agricultura familiar, para Wanderley (2003)Wanderley, M. N. B. (2003). Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos Sociedade e Agricultura, 21, 42-61. Recuperado em 10 de setembro de 2014, de http://wp.ufpel.edu.br/leaa/files/2014/06/Texto-6.pdf
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, apesar de sujeita a um processo de modernização da atividade produtiva, permanece orientada pela lógica familiar e, portanto, à dimensão camponesa mencionada anteriormente. Nesse sentido, as dimensões ditas não racionalizadas da ação, na perspectiva weberiana, assim como a perspectiva da racionalidade substantiva (Weber, 2009Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB.) e das relações sociais e econômicas de caráter substantivo (Polanyi, 1980Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, .), constituem elementos de investigação no âmbito da realidade das organizações familiares de produção agrícola, que apresentam esse caráter múltiplo de simbolizarem ao mesmo tempo agentes dinâmicos da economia e organizações sociais que visam à reprodução da condição de vida compartilhada de seus membros.

3. METODOLOGIA

A aproximação com o fenômeno em questão exigiu a adoção de uma perspectiva epistemológica de caráter interpretativista que possibilitasse investigar aspectos da organização familiar de produção agrícola (Grix, 2002Grix, J. (2002). Introducing students to the generic terminology of social research. Politics, 22(3), 175-186. http://dx.doi.org/10.1111/1467-9256.00173
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). Suas atividades, a divisão do trabalho, bem como as relações familiares e os aspectos que orientam as ações dos seus integrantes, fizeram parte da investigação. É a partir dessas dimensões que caracterizaram os modos de organizar a produção agrícola familiar que buscamos compreender os significados compartilhados entre as famílias de agricultores, identificados a partir dos discursos e observações de seus integrantes.

Empregou-se o método de estudo de múltiplos casos. O delineamento adotado foi o corte transversal em que as informações foram coletadas em um período único no tempo (Flick, 2009Flick, U. (2009). Desenho da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed.). Esse período compreendeu setembro de 2014 a junho de 2015. A pesquisa foi realizada no município de São Bonifácio, que se situa ao sul da região da Grande Florianópolis, no estado de Santa Catarina. Foram escolhidas duas localidades rurais com predominância de famílias descendentes de imigrantes alemães. Conforme Farias (2013)Farias, J. G. (2013). Do pasto à paisagem (Tese de doutorado). Programa de Pós-graduação em Geografia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis., a população do município tem como atividade predominante a agropecuária, abrangendo as atividades pastoril, florestal, apícola e lavouras. Cerca de 75% das propriedades rurais daquele município possuem menos de 50 hectares, logo, predomina a pequena propriedade rural. A seleção dos casos ocorreu de forma intencional, com integrantes de 13 famílias, totalizando 27 membros participantes. Foram selecionadas famílias de agricultores proprietários de propriedades rurais que apresentavam alguma atividade de produção agrícola e que o trabalho realizado fosse compartilhado entre os integrantes do grupo familiar. Foram excluídas aquelas que não se enquadravam dentro do que é classificado de acordo com os critérios para agricultura familiar segundo o Censo Agropecuário de 2006. Das 13 famílias entrevistadas, 10 residem no distrito A, enquanto as outras 3 residem no distrito B.

A pesquisa foi realizada pelo primeiro autor, na propriedade das famílias, através de entrevistas gravadas e observação direta. As perguntas foram abertas, deixando o entrevistado livre para narrar sua interpretação, e posteriormente novas perguntas mais focadas visando o seu aprofundamento. O roteiro semiestruturado das entrevistas e das observações contemplou a caracterização da família e da propriedade rural em que ocorrem as atividades de produção, as atividades produtivas realizadas, as tecnologias empregadas, a relação com os trabalhos efetuados pelos integrantes das famílias bem como a organização do trabalho da família na propriedade.

A entrada no campo ocorreu gradativamente, com o auxílio de um morador local que se tornou o facilitador das coletas ao acompanhar o pesquisador nas visitas. O papel do facilitador foi fundamental para estabelecer um clima de confiança entre o pesquisador e os pesquisados. As visitas às famílias foram realizadas preferencialmente nos finais de semana, tendo em vista a maior disponibilidade dos agricultores. Diante da principal dificuldade, que era a falta de comunicação telefônica, fazia-se uma visita prévia à família para explicar o objetivo da pesquisa, solicitar o consentimento da participação e agendar o horário mais propício. Essa visita prévia propiciava oportunidade de observação das áreas externas da propriedade e, na ocasião da entrevista, a observação mais interna da residência da família. As entrevistas foram realizadas com o casal, pais e filhos, ou individualmente.

Adotou-se a triangulação baseada em diferentes fontes de dados: entrevistas e observações (Creswell, 2007Creswell, J. W. (2007). Qualitative Inquiry and research design: choosing among Five approaches (2nd ed.). Thousand Oaks: SAGE Publications.). Em seis famílias, houve retorno para complementar as informações, o que propiciou maior consistência aos dados.

As entrevistas foram gravadas, em sua maioria. Isso não ocorreu em três famílias pelo fato de os entrevistados não terem concedido autorização para a gravação. Nesses casos, foram feitas anotações resumidas e logo em seguida registradas em detalhes, juntamente com as observações realizadas nos locais. As observações realizadas eram fotografadas, quando possível, com a permissão das famílias. Anotações rápidas eram detalhadas imediatamente após as visitas. As anotações de observação por ocasião das entrevistas, ou observações realizadas em encontros informais, forneciam informações que foram reunidas no diário de campo.

As diferenças nos modos de organizar a produção agrícola possibilitaram a posterior classificação em três grupos de famílias de acordo com Altmann (1997)Altmann, R. (1997). A agricultura familiar e os contratos: reflexões sobre os contratos de integração, concentração da produção e a seleção dos produtores. Florianópolis: Palloti.: os integrados, os não integrados e os semi-integrados.

A análise de dados foi efetuada buscando-se na narrativa dos entrevistados e nas observações realizadas os significados de cada caso, e posteriormente os dados semelhantes e contrastantes foram dispostos comparativamente, possibilitando o agrupamento em subcategorias que evidenciaram as seguintes categorias principais: os modos de organizar a produção agrícola, os recursos utilizados nos modos de organizar a produção, os significados associados à renda, à divisão do trabalho familiar e organização do tempo e à permanência na propriedade. Esses significados compartilhados entre os entrevistados, ao longo dessas categorias associadas aos modos de organizar, é que foram relacionados com os conceitos teóricos que designam as diferentes orientações da ação identificadas por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. seguindo uma abordagem compreensiva de análise. Significados compartilhados associados à capacidade em se obter a renda através da produção agrícola foram relacionados com a ação orientada pela racionalidade instrumental. Indícios que evidenciassem a ação orientada por bases afetivas foram apreendidos a partir de significados compartilhados sobre expectativas que os membros das famílias demonstraram entre si acerca da divisão do trabalho, na colaboração das atividades produtivas e no compartilhamento dos recursos produzidos. Indícios da presença ou ausência da ação orientada pela tradição foram captados nas observações de ações orientadas por costumes, reproduzidos a partir dos conhecimentos dos antepassados. E significados compartilhados que evidenciassem práticas orientadas por valores e princípios racionalizados foram relacionados com a racionalidade substantiva weberiana.

4. RESULTADOS

4.1 As famílias participantes do estudo e os modos de organizar a produção agrícola

As famílias entrevistadas se caracterizam por possuírem de um a três filhos. A maior parte é formada por casais na faixa de 50 a 60 anos, com filhos na idade adulta; exceto a família 11, com uma filha adolescente e um filho adulto; e a família 13, com filhos adolescentes. Das 13 famílias, em 4 delas convivem, na mesma propriedade, pais e filhos de três gerações e que realizam atividades conjuntas de produção. Entre as famílias entrevistadas também foi possível identificar tanto casais em que os filhos adultos já não residem mais com os pais quanto famílias em que eles permanecem convivendo com a geração anterior. As famílias são vinculadas à religião católica com predominância na localidade A e à religião luterana na localidade B. Todas têm origem em famílias do próprio município ou de regiões próximas. O nível de escolaridade dos pais, na faixa entre 50 e 60 anos, é de quatro anos de escola fundamental. A geração dos filhos possui, na sua maioria, o segundo grau completo, exceto nas famílias 11 e 13, em que os filhos ainda são adolescentes.

As diferenças na orientação da produção bem como o emprego de recursos tecnológicos e de financiamento também mostraram diferenças entre as 13 famílias, permitindo identificar três modos característicos de organizar a produção agrícola, de acordo com suas atividades produtivas principais: integrado, não integrado e semi-integrado. O conceito de sistema integrado é aquele no qual o volume mínimo de produção, os insumos e a tecnologia empregada na produção são determinados pela agroindústria, enquanto recai sobre o produtor a responsabilidade pela mão de obra e os investimentos em instalações e equipamentos. Já nos contratos de semi-integração, o produtor é quem determina o volume de produção e os insumos empregados na criação, da mesma forma que responde pela mão de obra e investimento em instalações e equipamentos (Altmann, 1997Altmann, R. (1997). A agricultura familiar e os contratos: reflexões sobre os contratos de integração, concentração da produção e a seleção dos produtores. Florianópolis: Palloti.).

No modo integrado, identificado no Grupo I, uma das principais atividades familiares compreende a produção associada à criação de aves orientada para uma única empresa agroindustrial que determina e supervisiona todo o processo produtivo e os recursos empregados na produção de cada uma das duas famílias desse grupo. O Grupo II, identificado como não integrado, abrange famílias em que a produção está orientada para o autoconsumo dos seus integrantes ou para a troca e comercialização local de excedentes, com a adoção de tecnologias e práticas artesanais e tradicionais de produção. No Grupo III, o modo semi-integrado compreende as famílias que produzem leite para comercialização junto à empresa de laticínios local, concorrente com a produção de verduras para comercialização e autoconsumo, em diferentes volumes e com uma diversidade de recursos tecnológicos, evidenciando tanto o uso de recursos tecnológicos modernos quanto o emprego de técnicas tradicionais de produção.

No Grupo I, em que se identificou a destinação da produção de aves associada ao modo de produção integrado, foram incluídas as famílias 5 e 9, que obtêm sua fonte de renda exclusivamente da atividade agrícola, produzindo principalmente aves, de modo consorciado com a criação de gado bovino de corte e de leite (no sistema semi-integrado) e também outros produtos para o autoconsumo. O alto volume de produção e o uso intensivo de tecnologias automatizadas fazem parte da realidade dessas famílias, como também o uso de recursos de financiamento externo para expansão da atividade produtiva. A composição familiar indicou a existência de mais de um núcleo familiar (avós, pais e filhos) convivendo na mesma propriedade e o compartilhamento das tarefas de produção e dos resultados entre os núcleos dos avós, pais e filhos. Constatou-se também que a atividade produtiva sofreu, no que diz respeito às atividades do sistema integrado (aves) e/ou semi-integrado (leite), uma expansão ao longo da trajetória familiar.

De modo oposto, no Grupo II, denominado modo não integrado, composto por 3 famílias (F7, F8 e F10), as fontes de renda e consumo se alternam entre aquelas de origem em atividades agrícolas de produção familiar associadas a ocupações não agrícolas de pais e filhos fora de suas propriedades. No entanto, nesse grupo, a produção agrícola ou está orientada exclusivamente para o autoconsumo ou para a comercialização de produtos produzidos de forma artesanal destinados ao mercado local sem possuir orientação para a agroindústria. A limitação de recursos fundiários e tecnológicos, bem como o uso reduzido de recursos de financiamento, é uma constante nesse grupo. Entre essas famílias, a atividade produtiva sofreu redução ao longo do tempo, não existindo uma definição clara sobre a expectativa dos filhos em dar continuidade às atividades agrícolas.

O grupo III, compreendendo 8 famílias, caracterizou-se por núcleos em que as fontes de renda e consumo têm origem em atividades agrícolas de produção familiar orientada para a agroindústria no sistema semi-integrado da produção leiteira, associada a outras criações e plantações para comercialização local e autoconsumo, além de ocupações não agrícolas realizadas por pais e filhos em empresas locais ou em atividades autônomas (construção civil). Também não há uso intensivo de recursos tecnológicos e o financiamento é restrito para a aquisição de microtratores e/ou resfriadores de leite exclusivamente.

4.2 A orientação pela razão instrumental

Os significados apreendidos das entrevistas e observações das famílias dos três grupos, a respeito dos modos de realizar a atividade produtiva, indicaram a presença da racionalidade instrumental na representação dos processos produtivos entre os diferentes grupos de famílias (Grupos I, II e III). Os reflexos da ação orientada pela razão instrumental são percebidos entre todas as famílias de algum modo. A ação orientada pela racionalidade instrumental é fortemente evidenciada pela noção compartilhada da capacidade em se obter a renda através da produção agrícola. No questionamento sobre o que produziam, invariavelmente todos começavam a descrição das atividades que geravam renda, e somente num segundo questionamento relatavam atividades orientadas para o autoconsumo. As compreensões dos sentidos subjetivamente visados pelos sujeitos apontam uma orientação da ação a partir da adoção da razão instrumental.

Entre as famílias associadas ao modo de produção integrado (Grupo I), a ação orientada pela racionalidade instrumental se apresentou de forma acentuada. A complexidade do modelo de produção integrada demanda de seus consorciados um domínio das noções de controle de custos e resultados que indicam a influência externa das organizações do agronegócio sobre as atividades produtivas das famílias. Nos significados compartilhados por esse grupo associado à renda, os entrevistados apontaram o caráter intensivo que a produção deve ter, e tem sua ênfase na comercialização. O autoconsumo também existe, mas não é considerado prioridade das referidas famílias.

“Criar mil frangos e vender uns frango aqui e ali não me adianta, vou gastar meu tempo, minha mão de obra e não vou ter nada. Assim vou criar 25 a 30 mil se eu fizer 70 centavos por cabeça me dá uns troco bom em 45 dias. Agora, se criar mil não vou sobreviver. Então hoje tem que ser produção em alta escala em lugar pequeno como aqui. Eu tô desde 2002 produzindo frango, não tenho anotado quantas produções de frango eu já entreguei, mas isso já vai lá em cima. Porque é 6 lotes por ano. Desde 2002, sempre é 27, 28 a 30 mil e seis vezes por ano.” (Entrevistado da família 5)

A noção de que a mecanização minimiza a necessidade de mão de obra, segundo relatos da família 9, evidencia a compreensão instrumental que os recursos devem ter para gerir com maior eficiência e prover melhores resultados na produção, voltada para a comercialização de frangos, leite e gado de corte.

No Grupo II, das famílias ligadas ao modo de produção agrícola não integrado, a instrumentalidade da ação associada à relevância da renda também se manifestou nas falas dos entrevistados. No entanto, essa manifestação foi diferente, na medida em que identificou que a produção não está exclusivamente vinculada à geração de renda, mas à necessidade de produção de alimentos para o consumo, para a troca entre familiares e vizinhos e para a venda de excedentes em pequena escala. Tal interpretação é reforçada quando se evidencia que as fontes de renda também estão atreladas a ocupações não agrícolas. A pequena produção é aceita, diferente das manifestações das famílias do Grupo I.

“Sei lá, vender o leite precisa ter o resfriador, né, então comprar resfriador com pouca vaca quase não compensa se tem como vender o queijo. E assim, com o soro do leite, eu alimento os porcos.” (Entrevistada da família 8, esposa)

“É só pro consumo, a gente trabalha fora pra comprar as coisas que precisa. Porque a gente faz bem uma coisa ou outra, então a gente tem as criaçãozinha lá pro consumo, pra não precisar comprar carne, ovo, coisas assim.” (Entrevistado da família 10, esposo)

Também no Grupo III, em que as famílias estão associadas ao modo de produção agrícola semi-integrado da produção de leite, a instrumentalidade da ação se fez notar nos significados compartilhados em relação à renda, segundo comparações entre as atividades agrícolas e não agrícolas ou na avaliação que se faz do preço do leite.

A “racionalização do mundo” descrita por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. a partir da preponderância da adoção da racionalidade instrumental, no que diz respeito aos modos de produção, parece ter sido internalizada nas falas dos agricultores dos três grupos. O sentido é de que produção agrícola relevante é aquela ligada à produção intensiva e que se reverte em resultados monetários. Está presente, assim, a noção de produção vinculada à capacidade de geração de excedentes visando aos ganhos monetários através da obtenção do lucro. Aqueles que possuem restrições para a produção intensiva se justificam empregando os termos diminutivos para caracterizar sua atividade produtiva.

“Sempre a gente tem um gadinho que a gente vende” (Entrevistado da família 6, esposo)

O modo de produzir orientado para o autoconsumo e para o mercado local, portanto, não é valorizado, pois não representa a capacidade de ganhos monetários significativos, ainda que seja a realidade de diversas famílias e que garante a obtenção de alimentos e recursos que assegurem a sua sobrevivência.

4.3 Indícios de uma orientação da ação de bases afetivas

A orientação da ação de bases afetivas, de acordo com Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., pode ser apreendida de forma intuitivamente compreensiva, a partir das relações emocionais. Entende-se que seja possível, nas relações que se estabelecem entre pais e filhos, significados compartilhados que apontem indícios da ação de base afetiva. Tais ações podem ser mediadas pelas relações de base afetiva que interferem nas escolhas dos indivíduos e que não são determinadas estritamente por um caráter utilitário nem por aspectos racionalizados de caráter ético-valorativos.

As ações orientadas pelo afeto tiveram seus indícios apreendidos a partir da identificação das expectativas que os membros das famílias demonstraram entre si acerca da divisão do trabalho, na colaboração das atividades produtivas e no compartilhamento dos recursos produzidos. Nos significados compartilhados a respeito da permanência dos filhos e das gerações futuras nas propriedades, essa orientação da ação também foi identificada no relato dos entrevistados.

Apesar das diferenças nos modos de produzir entre as famílias, seja nos modos de produção integrado e semi-integrado voltados para a comercialização para a agroindústria, seja para o autoconsumo e comercialização de excedentes locais, os três grupos apontaram a orientação da ação em que predominam o compartilhamento de recursos e a colaboração não remunerada entre familiares nas atividades de produção. Tanto o compartilhamento de bens produzidos quanto o trabalho colaborativo entre os familiares destacam o fato de que o trabalho agrícola dentro dos grupos familiares não é remunerado financeiramente, mas partilhado através dos resultados diretos da produção (carne, verduras). Isso corrobora com dois dos três princípios das relações sociais imersas na economia substantiva não orientada estritamente pelo mercado, de acordo com Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, .: domesticidade (produção para uso próprio) e reciprocidade (troca em favor de ações colaborativas).

Entre as famílias do Grupo I, associadas ao modo de produção agrícola integrado, que vivem exclusivamente da agricultura e que apresentaram mais de um núcleo familiar convivendo na mesma propriedade, o partilhamento, em espécie, da carne suína e bovina, além de outros alimentos produzidos na propriedade, foi constatado.

“Aqui a gente usa o leite pra consumo, faz manteiga, minha Oma, a vó, faz o queijinho, sabe fazer a coalhada ainda, ela faz a manteiga, ela tira uns baldinho de leite e faz para ela. Aí tem a carne que o cara tem, tem o porquinho e tem a carne de porco.”(Entrevistado da família 9, filho)

Nas relações colaborativas entre familiares de diferentes núcleos que convivem na mesma propriedade, na criação do gado de corte da família 9, o relato do neto sobre o compartilhamento da pastagem para a criação do gado com o avô resiste, como reconhecimento da necessidade do avô idoso em ter sua própria criação para não “entristecê-lo”. Tal condição representa um exemplo da expectativa mantida nas relações familiares com os modos de organizar a produção compartilhada entre os núcleos familiares que produzem conjuntamente.

Quanto aos significados compartilhados entre os familiares do Grupo I no tocante à continuidade dos filhos na propriedade, estes manifestaram expectativa positiva. Justificaram tanto as afinidades com o ambiente em que foram criados (F5) quanto a preocupação em garantir a continuidade daquilo que os pais construíram, demonstrando a percepção do jovem no que tange às expectativas que os pais depositam na nova geração (F9). Por outro lado, a geração mais velha tem expectativas em relação aos mais novos, conforme o depoimento a seguir.

“Ah, continua, porque a casa dele eu já ajudei a construir. Ele disse: o pai tem casa ruim, aí eu disse: “O pai vai ajudar a construir uma casa boa, com um fundamento bom pra durar muito”, eu quero que ele cuide de nós, porque ele vai adquirir uma boa parte, o que é justo, eu acho que ele vai tocar até onde vai.” (Entrevistado da família 5, pai)

Entre as famílias do Grupo II, no qual a produção está fortemente atrelada à produção para o autoconsumo e comercialização local de excedentes, a distribuição de resultados da produção também se fez presente, apontando para aspectos de uma orientação de base afetiva em que se espera o partilhamento comum dentro do grupo familiar. Na família 8, a entrega de filhotes de suínos pelo filho casado para a sua mãe incrementar a produção reverte posteriormente no compartilhamento da carne e da banha produzida dentro do grupo familiar. Na família 7, a colaboração dos filhos também se reverte no compartilhamento das hortaliças, do leite e da carne consumida.

Quanto aos significados sobre a permanência dos mais jovens junto à propriedade familiar, apesar da incerteza demonstrada pelos pais, o entrevistado da família 10 exprime a expectativa de que o filho casado possa dar continuidade a atividades de produção, uma vez que irá construir sua casa dentro da propriedade. Portanto, de algum modo também se desenvolvem expectativas de colaboração, compartilhamento de recursos e convivência que apontam para como os modos de organizar estão vinculados à ação de base afetiva dentro das famílias.

No Grupo III, também foram identificados os compartilhamentos de resultados da produção, orientada pelo autoconsumo, assim como a colaboração entre pais e filhos nas atividades produtivas.

No caso da família 11, o partilhamento das pastagens para criação do gado do núcleo dos pais e dos avós foi evidenciado. A entrevistada relatou o cuidado com as reses do filho que reside noutro distrito e não trabalha na propriedade. Espera-se a colaboração na criação dos animais e no compartilhamento das pastagens. Também foi relatada nessa família a colaboração do núcleo mais velho nas atividades domésticas e na produção de verduras realizada em paralelo à produção de leite para comercialização.

Mesmo entre aquelas famílias que mencionaram que os filhos não dividem a residência na mesma propriedade com os pais, a colaboração nas atividades de produção foi confirmada por pais e filhos.

“Os filhos trabalham fora e vêm ajudar, aí a gente reparte do que tem aqui, se a gente mata um boi, dá carne. Por isto eles ajudam aqui e a gente dá tudo para comer, arroz, feijão, de tudo, carne, banha, ovos, quando a gente cria galinhas, eles levam daqui. A filha mora lá embaixo (trabalha e reside na região metropolitana), mas quando ela vem, não escolhe serviço.” (Entrevistado da família 6 – esposo)

Na família 2, além da colaboração na produção de verduras orgânicas, pai e filho compartilham uma série de outras atividades, como a produção de silos e a plantação de eucaliptos.

Os significados compartilhados a respeito da colaboração da mão de obra familiar e do compartilhamento dos recursos voltados para o consumo constituíram, na análise dos autores, as principais características que expressam as ações orientadas pelo afeto. O compartilhamento dos bens, principalmente daqueles direcionados para o autoconsumo de alimentos, estava restrito ao grupo familiar, seja no contexto da família estendida, seja no contexto dos núcleos familiares formados exclusivamente por pais e filhos.

4.3 Indícios de uma orientação da ação pela tradição

De acordo com Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., a ação orientada pela tradição é observada em práticas assentadas em hábitos cotidianos, reproduzidos sem que haja um questionamento a respeito dos meios e fins a eles aplicados. A apreensão desse tipo de ação, segundo Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., também se dá de forma intuitivamente compreensiva pelo pesquisador social, na observação de ações cotidianas baseadas em costumes e hábitos e na compreensão do sentido subjetivamente visado por seus agentes. Indícios da presença ou ausência da ação orientada pela tradição foram identificados nas observações de ações orientadas por costumes, reproduzidos a partir dos conhecimentos dos antepassados. Uma vez que o conhecimento dos antepassados dos agricultores representa muitas vezes a única fonte de informação conhecida a respeito de práticas produtivas, torna-se necessário para compreender o modo como elas são realizadas, sendo também associadas com os significados compartilhados que remeteram à reprodução de tradições e comportamentos entre gerações e dentro da comunidade.

No Grupo I associado ao modo de produção integrado, as famílias ressaltaram, na descrição das atividades associadas aos parceiros do agronegócio, a adoção de técnicas sofisticadas e complexas de criação de aves, reguladas e controladas pelo agente externo da cadeia produtiva. Na produção em maior escala de gado de leite pela família 9 (que também atua no sistema de produção integrado de aves e, portanto, integra o Grupo I), a utilização de maquinário específico também demonstrou essa preocupação com a adoção de novas tecnologias visando à redução da necessidade de mão de obra. Os relatos dos entrevistados quanto aos significados compartilhados da renda mostraram que ambas as famílias reconhecem a importância da produção intensiva, também baseada na automação objetivando melhores resultados de produção. Além disso, é fundamental reconhecer que se encontram menos evidências de práticas organizacionais tradicionais entre as famílias inseridas no modo de produção agrícola integrada. Isso não significa dizer que o modo de organização integrado exclua completamente elementos de orientação tradicional de organização e produção. Evidenciou-se anteriormente que em ambas as famílias existe a criação de porcos para o autoconsumo, atividade tradicional na região de São Bonifácio. Notadamente, ao mesmo tempo que os cuidados demandados com as atividades agrícolas integradas reduzem o tempo disponível para envolvimento com a produção de bens agrícolas diversos, relações formais de contrato proíbem a produção tradicional, como a criação de aves no modo tradicional.

“Ovo e galinha caipira não podemos ter, isso é uma orientação da firma, porque a galinha caipira é muito forte, aguenta doenças, mas o frango não. Então não pode ter para não passar doença pros frangos, isso eles impõem em contrato, mas pode tirar de cada galpão, se não me engano, 12 frangos pra consumo.” (Entrevistado da família 5 – filho)

Já entre as famílias do Grupo II do modo de produção não integrado, a comercialização de hortaliças para o mercado local assim como a produção de queijo e banha, bem como a produção para o autoconsumo, estão baseadas em técnicas tradicionais. Na família 8 ocorre a produção do queijo artesanal e da banha a partir da adoção de técnicas apreendidas no seio da própria família, reproduzindo práticas dos antepassados. Diferentemente do que se verificou no Grupo I, os significados compartilhados apontaram que a produção está vinculada às capacidades limitadas que os agricultores possuem.

De acordo com Favareto (2006)Favareto, A. (2006). A racionalização da vida rural. Estudos Sociedade e Agricultura, 14(1), 9-48., o processo de “desencantamento do mundo” referenciado originalmente por Weber, entre comunidades rurais, seria decorrente do processo de racionalização da vida em função de uma postura na sua condução, cada vez mais pautada pela ação racional, e em decorrência da supressão de práticas tradicionais no cotidiano. As práticas interfamiliares para conter a escassez de mão de obra também representam, na interpretação dos autores deste estudo, elementos que remetem à permanência da ação orientada pela tradição. A prática da realização do “churrasco” para aqueles vizinhos que auxiliam no abate de animais pode ser reconhecida como reciprocidade e associada ao mutirão nas relações sociais de vizinhança identificadas na família 8 do Grupo II. Willems (1980)Willems, E. (1980). A aculturação dos Alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes e seus descendentes no Brasil. São Paulo: Nacional. e Schaden (1940)Schaden, F. S. G. (1940). Notas sobre a localidade de São Bonifácio (Santa Catarina). Florianópolis. analisaram as relações cooperativas entre as comunidades de imigrantes alemães no município de São Bonifácio e as compararam com as práticas de imigrantes germânicos em outras regiões do Brasil e de nações de origem desses grupos étnicos, os estados alemães da época. Dadas as dificuldades encontradas nas novas terras, essas práticas ligadas ao mutirão mantiveram uma representatividade inexistente entre as terras de origem dos imigrantes. A prática de servir refeições para aqueles que colaboram em atividades cooperadas (denominados de Gemeindarbeiten), como a construção de casas, era comum nas localidades de São Bonifácio, de acordo com os relatos de Schaden (1940)Schaden, F. S. G. (1940). Notas sobre a localidade de São Bonifácio (Santa Catarina). Florianópolis. e Willems (1980)Willems, E. (1980). A aculturação dos Alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes e seus descendentes no Brasil. São Paulo: Nacional., bem como em outras comunidades rurais do interior do Brasil, como no Sudeste (Willems, 1961Willems, E. (1961). Uma vila brasileira: tradição e transição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.) e no Nordeste brasileiro (Fukui, 2009Fukui, L. F. G. (2009). A riqueza do pobre: relações entre pais e filhos entre sitiantes tradicionais brasileiros. In S. D. P. Neves (Eds.), Processos de constituição do campesinato no Brasil. São Paulo: UNEPS. p.289-300.). A participação de integrantes das três famílias nas festas comunitárias também foi observada pelo pesquisador quando da sua participação em um desses eventos.

Entre as famílias do Grupo III do modo de produção semi-integrado, diversos padrões tecnológicos foram identificados nas técnicas de produção, sejam elas atreladas à produção de leite, verduras de produção orgânica ou autoconsumo. Entretanto, a tradição ainda consiste no aspecto central nesse modo de organização da produção. Nas famílias 3 e 4, perduram o uso de técnicas tradicionais de tração e transporte dentro da propriedade, como o uso do carro de boi. Foi confirmada por várias famílias desse grupo (F1, F2, F3, F12, F13) a construção de silos artesanais para armazenamento do milho. Sobre as práticas associadas à criação do gado de leite e de corte, o circuito informal da transferência de bezerros citado por várias famílias, como também a “engorda à meia” citada pela família 1 nos terrenos de vizinhos, ou a cessão de touro entre vizinhos para inseminação de matrizes leiteiras, também constituem práticas tradicionais associadas aos modos de produção. A “engorda à meia” é um modo de transação comercial tradicional, baseada no compartilhamento das pastagens e que não envolve necessariamente o uso de dinheiro, visto que a engorda é partilhada entre o proprietário da pastagem e o proprietário do gado, que podem optar pela venda do gado ou pela divisão da carne. Podemos traçar um paralelo com a prática comercial tradicional citada por Ribeiro & Galizoni (2007)Ribeiro, E. M., & Galizoni, F. M. (2007). A arte da catira: negócios e reprodução familiar de sitiantes mineiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 22(64), 65-74. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092007000200005
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. Em localidades do norte de Minas Gerais, essa instituição social chamada de “catira” se caracteriza por trocas baseadas em animais e outros bens de valor estável, sendo a base do pecúlio familiar, sem a utilização de dinheiro.

A construção assim como a comercialização de jacás, que são os balaios tradicionais para armazenamento e transporte de carga, também representam elemento tradicional valorizado pela família 12 e por famílias da região que adquirem tal produto, o que reforça os indícios de que elementos da tradição social se mantêm no cotidiano das famílias que não foram integralmente suplantados por uma “ideologia tecnocrática”, o que corrobora com os estudos de Campbell (2009)Campbell, B. C. (2009). Ethnoecology of the Ozark highlands: agricultural encounter. Ethnology, 48(1), 1-20..

Outra prática interfamiliar para conter a escassez de mão de obra consiste na chamada “troca do dia” e que ainda é praticada e citada por famílias do Grupo III. A “troca do dia” consiste na colaboração entre vizinhos no trabalho cotidiano, o que evidencia indícios de ações tradicionalmente orientadas.

“Quando tem bastante serviço pra fazer silagem, a gente se troca os dias, eu vou uns dois dias lá no (vizinho), o M.(irmão) também vai. Tem, a gente sempre se troca os dias e se dá bem, senão seria difícil. ” (Entrevistado da família 12)

Tais práticas remetem a uma forma particular na organização do trabalho entre as famílias, resistindo ao processo de “desencantamento” regulado pelas condições de contratação assalariada dos serviços executados no contexto rural agrícola. As referidas práticas descrevem os modos de transacionar os recursos de forma não exclusivamente monetarizada.

Contudo, outros aspectos dos comportamentos relacionados ao compartilhamento de recursos e à divisão do trabalho, bem como a organização da vida comunitária, também possibilitaram fazer parte da análise de indícios da ação orientada pela tradição entre as famílias. Isso porque não se pode limitar a discussão das racionalidades estritamente à atividade produtiva exclusivamente, mas aos diferentes elementos da vida cotidiana que, de uma forma ou de outra, estão associados a esses modos de organizar a produção.

A realização das festas comunitárias também mostrou as práticas interfamiliares que se reproduzem enquanto ações colaborativas associadas à tradição da comunidade local em que estão inseridas as famílias. Os leilões de gado doado por famílias nas festas, as doações das prendas entre os moradores, bem como o trabalho voluntário das famílias de “festeiros”, caracterizam as práticas herdadas dos antepassados e que representam condições de reciprocidade e solidariedade interfamiliar, visando ao bem comum dos membros das comunidades. Ainda que a finalidade seja a geração de renda, esta é destinada à manutenção dos bens comunitários, já que os festejos têm como intuito a manutenção das instituições de uso comum: a igreja, o salão comunitário e a escola local. Nessas festividades, foi também evidenciada a atuação dos filhos mais novos das famílias em colaboração com os pais.

5. DISCUSSÃO

Recorrendo aos conceitos complementares a respeito das relações economicamente orientadas descritas por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. e Swedberg (2005)Swedberg, R. (2005). Max Weber e a ideia de sociologia econômica. Rio de Janeiro: UFRJ., as famílias identificadas com os diferentes modos de produção, integrado, semi-integrado e não integrado, apresentam uma composição múltipla de atividades produtivas. Algumas atividades podem estar fortemente relacionadas ao caráter aquisitivo, como é a atividade integrada na cadeia produtiva de aves, e outras podem apresentar um caráter essencialmente vinculado ao atendimento de necessidades cotidianas de escassez de recursos e mão de obra, como é o caso de práticas colaborativas entre vizinhos (“troca do dia”) e do compartilhamento da produção de gado “à meia” entre vizinhos. É fluida, conforme afirma Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., a distinção entre as relações sociais economicamente orientadas de caráter aquisitivo ou para atendimento à supressão de escassez de recursos entre as famílias de pequenos agricultores que buscam essencialmente a manutenção do grupo familiar nas propriedades rurais. Por outro lado, a instrumentalidade da ação referida pelos entrevistados das famílias de todos os grupos identificados revela que mesmo aqueles que não estão atrelados a atividades integradas justificam tal característica pela incapacidade ou falta de recursos para efetivação de atividades produtivas que produzam resultados voltados à obtenção de lucro. A racionalidade instrumental, portanto, é inerente à compreensão da realidade da maioria dos indivíduos, apesar de não se refletir nos modos de produção de todas as famílias. Se a razão instrumental se faz presente nos relatos dos diferentes grupos, as expectativas que os integrantes das famílias têm entre si também revelam aspectos de base afetiva nos modos de determinar o papel dos filhos como colaboradores parceiros ou ajudantes. Como os resultados da produção são compartilhados entre os integrantes dos grupos familiares, considera-se esse fato um indício da ação orientada pelo afeto, pois revela como os laços familiares são determinantes nos modos de organizar. E justamente entre as famílias nas quais as atividades produtivas estão associadas à produção integrada, por conseguinte onde as relações econômicas estão orientadas para o mercado, é que as relações cooperativas entre pais e filhos também se estabelecem. Reitera-se aqui o caráter múltiplo e não dualista da ação, que não exclui as relações cooperativas de bases afetivas em modos de organizar nos quais o caráter instrumental da atividade produtiva está presente.

Apesar de situadas em um mesmo município, as condições produtivas entre as famílias possibilitaram a identificação de modos distintos de organizar as atividades agrícolas, em que algumas dependem mais de estratégias baseadas na subsistência do que da comercialização de produtos. Tais estratégias de subsistência foram observadas em práticas de produção herdadas de hábitos dos antepassados, os quais não foram integralmente sufocados em detrimento da adoção de uma orientação da ação puramente instrumental ou ético-valorativa. Essas práticas seguem como parte do modo de organizar de algumas das famílias, não por uma condição consciente e emancipatória ligada à adoção de uma racionalidade substantiva, tal como sugerido por Guerreiro Ramos (1981)Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598...
, Serva (1996)Serva, M. R. (1996). Racionalidade e organizações: o fenômeno das organizações substantivas (Tese de doutorado). Programa de Pós-graduação Administração, Escola de Administração Fundação Getúlio Vargas, São Paulo. e Habermas (1984)Habermas, J. (1984). The theory of communicative action (Vol. 1). Boston: Beacon Press., e sim vinculada à reprodução de hábitos e costumes que resistem, em seu modo de organizar a vida humana associada.

Nesse sentido é que recorremos à noção de substantividade em Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, ., para analisar os significados compartilhados da ação baseados no afeto e na tradição entre as famílias. O caráter substantivo das relações econômicas não monetárias, segundo Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, ., é expresso na domesticidade (consumo próprio), na reciprocidade (troca em favor de ações colaborativas) e na redistribuição de bens. No caso deste estudo, constituem aspectos inerentes às práticas familiares e comunitárias das famílias entrevistadas o compartilhamento de bens entre familiares e a reciprocidade nas trocas de recursos e mão de obra, embora parte das fontes de sustento tenha também na economia monetarizada uma parcela relevante. Tais práticas, elencadas como princípios por Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, ., representam estratégias que possibilitam superar limitações decorrentes da escassez de recursos e com vistas a garantir a unidade das famílias nas propriedades rurais (Schneider, 2006Schneider, S. (Ed.). (2006). A diversidade da agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS.). As práticas de caráter substantivo nas relações sociais de troca, portanto, convivem com as práticas orientadas pela racionalidade instrumental e, assim, reforçam o argumento de Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, . de que o ponto de partida para analisar as relações econômicas em uma determinada sociedade não ocorre exclusivamente a partir da racionalidade instrumental, mas como um processo social inerente à configuração histórica de cada sociedade. As práticas de produção realizadas no contexto das propriedades rurais familiares, bem como os vínculos familiares e comunitários expressos nas relações de parentesco e eventos sociais, simbolizam uma rede de proteção que pode sim minimizar os efeitos da dependência de uma vida racionalizada da sociedade de mercado da qual outras coletividades se mostram extremamente dependentes. Ainda que a ênfase da pesquisa tenha se debruçado sobre as dimensões da ação orientada pelo afeto e tradição, nos modos de organizar a produção agrícola, não é possível negar que a ação racionalmente substantiva, tal como descrita por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., não se expresse nos valores compartilhados entre grupos de famílias. Por outro lado, o compartilhamento de recursos e as relações cooperadas, interfamiliares, associadas ao trabalho colaborativo, também revelam, como proposto por Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, ., indícios da substantividade das relações sociais inerentes não só ao seu modo de produção, mas ao seu modo de vida, quando associados aos princípios de reciprocidade e redistribuição de bens que caracterizam o conceito de economia substantiva.

6. CONCLUSÕES

Entre os objetivos propostos neste estudo sobre o universo das famílias pesquisadas, buscou-se compreender, a partir das atividades relacionadas aos modos de organizar a produção agrícola familiar, os significados compartilhados que orientam a ação. Buscamos enfocar a multiplicidade das dimensões da ação social para além da discussão polarizada entre as racionalidades instrumental e substantiva nas práticas das organizações familiares vinculadas às atividades de produção agrícola. Todavia, de forma mais ampla, são trazidas à discussão outras dimensões da realidade analisada: a questão que envolve a análise da organização familiar de produção agrícola no contexto dos estudos organizacionais e o caráter multifacetado da agricultura familiar no Brasil e no mundo contemporâneo.

Um dos elementos do processo de individualização da sociedade, segundo Weber (2009Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB., p. 246), está associado à transformação da comunidade doméstica de uma unidade de produção e consumo para se consolidar comunitariamente apenas como unidade de consumo. Entre as famílias dos três grupos pesquisados é possível questionar esse posicionamento, visto que a permanência do grupo familiar/doméstico ainda mantém elementos que congregam o grupo como unidade de produção, seja para geração de renda, seja orientada para o autoconsumo. A ação racionalmente orientada pelo cálculo utilitário entre meios e fins está atrelada tanto a relações econômicas voltadas para a geração de lucro quanto a práticas colaborativas baseadas nas relações afetivas decorrentes dos laços de parentesco e baseadas em costumes de práticas herdadas e compartilhadas.

Os resultados corroboram o entendimento de que práticas baseadas em relações familiares e em costumes e tradições que se distanciam do uso da ação racional instrumental constituem evidências de práticas de reciprocidade, domesticidade e redistribuição de bens associadas ao caráter substantivo das relações econômicas e sociais, tal como argumenta Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, .. Ademais, indicam que o caráter substantivo da ação, como sugeriu Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, ., se distingue do caráter emancipatório proposto por autores como Guerreiro Ramos (1981)Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
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, Serva (1997)Serva, M. R. (1997). A racionalidade substantiva demonstrada na prática administrativa. Revista de Administração de Empresas, 37(2), 18-30. e Habermas (1984)Habermas, J. (1984). The theory of communicative action (Vol. 1). Boston: Beacon Press.. É preciso, portanto, reconhecer que existem diferentes substantividades, como as propostas por Weber (2009)Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB. e Polanyi (1980)Polanyi, K. (1980). A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, . de um lado e autores como Guerreiro Ramos (1981)Guerreiro Ramos, A. (1981). The new science of organizations. Toronto: University of Toronto. http://dx.doi.org/10.3138/9781487574598.
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, Serva (1997)Serva, M. R. (1997). A racionalidade substantiva demonstrada na prática administrativa. Revista de Administração de Empresas, 37(2), 18-30. e Habermas (1984)Habermas, J. (1984). The theory of communicative action (Vol. 1). Boston: Beacon Press. de outro, para que a apropriação de conceitos teóricos não sofra redução e /ou simplificação.

Quanto à dimensão organizacional, entre as observações destacadas neste artigo, foram apresentados aproximações e distanciamentos nos modos de organizar integrado, não integrado e semi-integrado em relação a aspectos vinculados a características das organizações formais. Em relação ao que pressupõe Delagnello & Machado-da-Silva (2000)Delagnello, E. L., & Machado-da-Silva, C. (2000). Novas formas Organizacionais: onde se encontram evidências empíricas de ruptura com o modelo burocrático de Organizações. Organizações & Sociedade, 7(19), 19-33. e Rotschild-Whitt (1979)Rotschild-Whitt, J. (1979). The collectivist organization: an alternative to rational-bureaucratic models. American Sociological Review, 44(4), 509-527. Recuperado em 23 de março de 2015, de http://www.jstor/stable/2094585
http://www.jstor/stable/2094585...
, de que modelos de organizações ditos “alternativos” compreendem a ruptura com um modelo burocrático de organização, pode-se afirmar que outros modos de organizar, evidenciados pelas atividades de produção agrícola entre as famílias pesquisadas, destacam não uma ruptura e sim o caráter persistente e resiliente de modos de organizar que antecedem o modelo burocrático, convivendo com as organizações econômicas contemporâneas, submetidas à autoridade patriarcal e ligadas à comunidade doméstica. Nesse sentido, ao reconhecermos as organizações familiares de produção agrícola não apenas como agentes econômicos de produção, reforça-se o argumento do caráter múltiplo da agricultura familiar, de acordo com Wanderley (2003)Wanderley, M. N. B. (2003). Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos Sociedade e Agricultura, 21, 42-61. Recuperado em 10 de setembro de 2014, de http://wp.ufpel.edu.br/leaa/files/2014/06/Texto-6.pdf
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e Chayanov (2014)Chayanov, A. V. (2014). Teoria de sistemas econômicos. In H. M. Carvalho (Ed.), Chayanov e o campesinato. São Paulo: Expressão Popular., que a distingue como reconhecida pelo Estado enquanto agente econômico de produção e ao mesmo tempo a gênese do grupo familiar de origem camponesa que busca sua perpetuação. Compreender essas organizações familiares, que possuem papel fundamental na atividade produtiva brasileira, é relevante para que políticas de Estado se tornem mais efetivas na compreensão das dinâmicas das organizações que buscam influenciar.

  • 1
    Por organizações formais compreendem-se, neste estudo, aquelas que exibem características específicas, sendo orientadas por objetivos determinados por uma racionalidade que estabelece em todas as suas ações o cálculo utilitário entre meios e fins, visando ao interesse de uma coletividade (Parsons, 1956Parsons, T. (1956). Suggestions for a sociological approach to the theory of organizations I. Administrative Science Quarterly, 1(1), 63-85. http://dx.doi.org/10.2307/2390840
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    ; Blau & Scott, 1979Blau, P., & Scott, W. R. (1979). Organizações formais. São Paulo: Atlas.). Essa mesma racionalidade define a forma como os controles de recursos e resultados são determinados (Child, 2012Child, J. (2012). Organização, princípios e prática contemporâneos. São Paulo: Saraiva.) e apresenta um sistema de autoridade hierarquizada assentada no conhecimento especializado de seus agentes, buscando a impessoalidade de seus processos (Weber, 2009Weber, M. (2009). Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (4. ed.). Brasília: UnB.).
  • 2
    Para Schneider (2003)Schneider, S. (2003). Teoria social, agricultura familiar e pluriatividade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 18(51), 99-120. e Mattei (2007)Mattei, L. M. (2007). A relevância da família como unidade de análise nos estudos sobre pluriatividade. Revista de Estudos Rurais, 45(4), 1055-1073., organização familiar de produção agrícola compreende a organização composta por indivíduos de um grupo familiar que realizam alguma atividade compartilhada, ligada à produção agrícola. Conforme Lamarche (1998)Lamarche, H. (1998). A agricultura familiar (2. ed., 2 v.). Campinas. Unicamp., a organização familiar vinculada à produção agrícola, de forma distinta da organização formal, orienta-se por uma lógica familiar caracterizada pelas relações sociais entre seus integrantes, pela divisão interna do trabalho e pela relação da família com a propriedade.
  • 3
    Palestra proferida pelo professor catedrático da Universidade de Heidelberg, Wolfgang Schluchter, no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: agosto, 2014. Título da palestra: Capitalism from a World-Historical Perspective para as comemorações dos 150 anos de nascimento de Max Weber.
  • Como citar: Boehs, C. G. E., & Seifert, R. E. (2020). Para além da racionalidade: outras dimensões da ação entre organizações familiares de produção agrícola: uma discussão a partir da realidade de famílias de agricultores no sul de Santa Catarina. Revista de Economia e Sociologia Rural, 58(3), e191807. https://doi.org/10.1590/1806-9479.2020.191807
  • Classificação JEL: M10, Q10, Z10

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2018
  • Aceito
    19 Maio 2019
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