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As casas, as estradas e os cercados: o sítio camponês a partir das classificações das crianças Capuxu

Resumo:

Este artigo é uma etnografia do Sítio camponês a partir das classificações das crianças Capuxu, do sertão da Paraíba. Por meio da observação participante, das conversas informais e dos desenhos por elas produzidos, as crianças revelaram classificações do Sítio que diluem a clássica dicotomia casa/roçado formatada pelos estudos do rural (Woortman, 1983; Heredia, 1988; Garcia Junior, 1983Garcia Júnior, A. (1983). Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores (236 p.). Rio de Janeiro, Paz e Terra., Godoi, 1999) apresentando a trilogia: casas, estradas (e seus atalhos) e cercados. Neste sentido, este artigo deseja ser uma contribuição aos estudos da infância e a antropologia da criança, bem como aos estudos de campesinato do Brasil. Ele parte da hipótese de que os estudos do rural elegeram a dicotomia casa/roçado como representativa dos espaços do sítio por terem ouvido em geral, homens e mulheres, e argumenta, conforme Schildkrout (1978), que as crianças deveriam ser sempre ouvidas sob pena de não se ter uma visão completa do tema em estudo.

Palavras-chave:
sítio camponês; crianças Capuxu; classificações; etnografia; desenhos

Abstract:

This article is an ethnography of the peasant ranch (sítio) as classified by Capuxu children, inhabitants of the hinterlands of the Brazilian state of Paraíba. Through participant observation, informal conversations, and the drawings produced by children, they revealed classifications of the ranch that blur the classic house/garden dichotomy established by rural studies (Woortman, 1983; Heredia, 1988; Santos, 1984; Garcia Junior, 1983Garcia Júnior, A. (1983). Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores (236 p.). Rio de Janeiro, Paz e Terra.; Godoi, 1999), revealing the triptych of houses, roads (and their shortcuts), and enclosures. In this sense, this article contributes to childhood studies and the anthropology of children, as well as to peasant studies in Brazil. It starts from the hypothesis that rural studies have elected the house/garden dichotomy as representative of the spaces of the ranch because they have generally heard men and women. Following Schildkrout (1978), it arghues that children should always be heard lest we end up with an incomplete view of the subject under study.

Keywords:
peasant village; Capuxu children; classifications; ethnography; drawings

Introdução

Este é um artigo etnográfico sobre o Sítio Santana-Queimadas1 1 O povo que se autodenomina Capuxu (vespa social) e é assim reconhecido por toda a região, habita o Sítio Santana-Queimadas que está situado no município de Santa Terezinha – Sertão paraibano, com bioma classificado como caatinga. Nos 18 km de extensão do Sítio estão abrigados aproximadamente 200 habitantes em uma comunidade com endogamia parental e de lugar. Além das 61 casas construídas e dos roçados e hectares de terra distribuídos de forma desigual entre as famílias, encontramos no local, o rio Goiabeira, 05 pequenos barreiros e açudes, uma escola, um posto telefônico (em desuso) e a Igreja de Sant’Ana. - doravante SSQ - a partir das classificações das crianças Capuxu. Ele é um recorte da pesquisa realizada entre os anos de 2011 a 2014, entre o povo Capuxu do sertão da Paraíba, cujo objetivo era a análise da produção da pessoa por meio da fabricação dos corpos das crianças. Entre o povo Capuxu, processos individuais e coletivos de produção de corpos e de pessoas culminam na manutenção do ethos camponês e na produção de uma identidade coletiva. Por essa razão, elaborei uma etnografia da produção da pessoa Capuxu tomando como objeto os inúmeros processos de construção do corpo (Sousa, 2014aSousa, E. L. (2014a). Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância (Tese de doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Recuperado em 07 de fevereiro de 2023, de https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/130980
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) dedicando-me a descrição densa de como esses processos resultaram na constituição e perpetuação de um povo com ethos e identidade resguardados.

Uma etnografia das classificações das crianças do Sítio e seus espaços, se justifica devido a forte relação do povo com a terra que está presente numa gama de processos que os constroem, garantindo o vínculo da pessoa com o grupo e demarcando uma condição de territorialidade. O enterro do umbigo dos bebês, assim que se desconecta do resto do corpo, concretiza-se como a expressão mais forte da indissociável relação que a pessoa Capuxu estabelece com a terra, eixo da manutenção da condição camponesa. Por outro lado, sua terra é o “umbigo do mundo” - expressão utilizada por um deles -, onde estão enterrados os umbigos de seu povo, numa tentativa de mantê-lo vinculado ao grupo doméstico, traçando seu destino e perpetuando a identidade Capuxu (Sousa, 2019Sousa, E. L. (2019). Capuxu - de vespa a grupo social: a produção da etnicidade em uma comunidade camponesa no Sertão da Paraíba. Vivência: Revista de Antropologia, 1(53), 188-203. http://dx.doi.org/10.21680/2238-6009.2019v1n53ID13267
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).

Partindo disso é que, neste artigo, esforço-me por analisar os distintos espaços que compõem o Sítio onde vive o povo Capuxu, a partir das classificações das crianças. Esta reflexão visa descrever as casas, as estradas (e seus atalhos) e os cercados (onde vivem os animais), escolhidos pelas crianças para representarem o Sítio. A expressão cercados utilizada neste texto foi escolhida para representar o conjunto de lugares possíveis aos bichos no SSQ. Poleiros, currais, apriscos, chiqueiros ou pocilgas são lugares representados pela expressão.

Fundamentação teórica

Santana-Queimadas: “o umbigo do mundo”

Neste tópico apresento o modo como o SSQ foi transformado em lugar (Certeau, 1994Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano: artes de fazer (11. ed.). Rio de Janeiro: Editora Vozes.; Augè, 1994Augè, M. (1994). Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (4. ed.). Campinas, SP: Papirus.). Para isso faço um mapeamento simbólico do Sítio assentado em sua territorialidade, em seu espaço físico e geográfico - o inevitável, pois toda representação de um lugar repousa em um espaço. Assim, discuto de que modo as representações a respeito dos espaços podem, muitas vezes, ultrapassar fronteiras, cercas, porteiras, mata-burros e se estender pelos mais inusitados espaços, como ocorre com a idéia de casa - conforme veremos adiante.

Como defende Wanderley (2009), oWanderley, M. N. B. (2009). O mundo rural como espaço de vida: reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS. lugar da vida não é apenas o lugar onde se mora, mas no qual e do qual se constroem sentidos e significados que norteiam as identidades sociais e os atores que nele habitam. O sítio onde vive o povo Capuxu é aqui analisado, como em Woortmann (1983, pWoortmann, E. F. (1983). O sítio camponês. Anuário Antropológico, 81, 164-203.. 164) como “um sistema de espaços diversificados, complementares e articulados entre si”. Logo, o sítio é um espaço repleto de significações e laços afetivos. No sítio a paisagem está associada a uma ordem camponesa, em que a relação entre humano e natureza é perpassada pelas categorias terra, família e trabalho, estando esta lógica tríade na essência da definição de sítio (Woortmann & Woortmann, 1997Woortmann, E., & Woortmann, K. (1997). O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Ed. UNB.)

Os espaços do SSQ são classificados a partir de uma lógica configurada pelo modo de vida camponês, onde as noções de família, trabalho e movimento são essenciais e dialogam com as noções de casa, roçado e estradas. Afinal, as relações sociais se constroem em paralelo à construção/apropriação do lugar. Para dar conta das representações e apropriações das crianças Capuxu a respeito do lugar onde habitam, parto das três dimensões que caracterizam o SSQ conforme as crianças: a casa, as estradas (e seus atalhos) e os cercados, sendo a casa e os cercados lugares onde as crianças desenvolvem tarefas (trabalho) como já demonstrei em outra ocasião (Sousa, 2004Sousa, E. L. (2004). Que trabalhais como se brincásseis: trabalho e ludicidade na infância Capuxu (Dissertação de mestrado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. Recuperado em 07 de fevereiro de 2023, de http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/7112
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).

O sítio camponês pode ser ainda compreendido como a morada da vida (Heredia 1988Heredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) das famílias rurais, onde se desenvolve a dinâmica familiar. A morada da vida se caracteriza pelo estabelecimento de laços afetivos com a terra fazendo deste espaço no curso da vida, o lugar de viver, conforme Wolf (1976)Wolf, E. R. (1976). Sociedades camponesas (150 p.). Rio de Janeiro: Zahar., Heredia (1988)Heredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra., Garcia Júnior (1983)Garcia Júnior, A. (1983). Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores (236 p.). Rio de Janeiro, Paz e Terra., Castro (1997)Castro, E. M. R. (1997). Tradição e modernidade: a propósito de processos de trabalho na Amazônia. In Anais do 21° Seminário Temático Trabalho, trabalhadores e sindicatos: desafios teóricos. Encontro Anual da ANPOCS (pp. 31-48). Caxambu/MG., Woortmann & Woortmann (1997)Woortmann, E., & Woortmann, K. (1997). O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Ed. UNB., Stropasolas & Aguiar (2010)Stropasolas, V. L., & Aguiar, V. V. P. (2010). As problemáticas de gênero e gerações nas comunidades rurais de Santa Catarina. In S. Parry, R. Cordeiro & M. Menezes (Orgs.), Gênero e geração em contextos rurais (pp. 159-183). Florianópolis: Ed. Mulheres., Carneiro (1998)Carneiro, M. J. (1998). Camponeses, agricultores e pluriatividade (p. 228). Rio de Janeiro: Contra Capa., Brandão (1993)Brandão, C. R. (1993). Parentes e parceiros In A. A. Arantes & C. R. Brandão (Eds.), Colcha de retalhos: estudo sobre a família no Brasil (205 p.). São Paulo: Editora da UNICAMP..

As áreas que compõem o sítio são articuladas entre si e carregam significados permeados pela moral camponesa. A organização da unidade doméstica Capuxu revela um sistema de valores que se constitui enquanto texto através do qual podemos ler a respeito da família camponesa. Ora, o que informam os ambientes que compõem o lugar de morada e como este se organiza?

Estes ambientes são apropriados pelas crianças Capuxu através de suas próprias experiências a que me dediquei a descrever densamente. Elas atribuem sentidos para estes espaços, onde se ancoram o seu valor de uso sendo estes dois atualizados constantemente por meio da experiência. Embora eu os apresente separadamente (a casa, as estradas e os cercados) não me dedico a estas representações no sentido de opô-las, mas de demonstrar como todos os espaços do Sítio estão conectados por meio da apropriação que deles fazem as crianças.

Em campo, esta análise foi guiada pelos desenhos das crianças cujos elementos evidenciados me deram pistas de como proceder à investigação, especialmente no que diz respeito às classificações do Sítio. Por isso insisto que os desenhos associados à observação direta podem ser importantes ferramentas de pesquisa com crianças (Sousa & Pires, 2021Sousa, E. L., & Pires, F. F. (2021). Entendeu ou quer que eu desenhe?: Os desenhos nas pesquisas com crianças e sua inserção nos textos antropológicos. Horizontes Antropológicos, 27(60), 61-93. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832021000200003.
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). Estes desenhos, mais do que lugares, revelam dinâmicas e relações que se estabelecem nos diversos espaços da vida doméstica e do Sítio em geral. Isto está evidente na quantidade deles que trazem animais de estimação aos redores da casa, alguns soltos perambulando por seu entorno, outros presos em currais, gaiolas e às árvores. Especialmente por aparecerem, quase todos eles, nomeados, é que fui conduzida à investigação da onomástica dos bichos (Sousa, 2014bSousa, E. L. (2014b). Nomear é trazer à existência: A onomástica (de crianças e de bichos) e os apelidos na produção da pessoa Capuxu. Revista de Antropologia, 15(2), 71-97. http://dx.doi.org/10.5380/campos.v15i2.40373.
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). Estas dinâmicas também estão presentes nas estradas cortadas por porteiras e mataburros ligando diversos espaços do Sítio e nas ilustrações dos caminhões de diferentes modelos que transitam por elas, levando os jovens às escolas da cidade ou distribuindo água durante a estiagem.

Os desenhos foram realizados na escola da comunidade, com material fornecido pela própria escola e com tema livre. Apesar disto, todas as crianças desenharam o Sítio. As imagens representam casas, estradas e cercados variando os três elementos em segundo ou primeiro plano. Apenas um desenho representou os roçados. Neste artigo, os desenhos foram dispostos ao longo de cada categoria etnografada - casas, estradas, cercados - além de alguns desenhos gerais do próprio sítio, como estes apresentados abaixo de Anna Clara (7), Iris (9), Maria Rita (6) e Rita de Cássia (8) que expõem elementos diversos do sítio, como lagos, árvores, animais, poleiros e condições climáticas como sol e chuva. A casa representada na maioria dos desenhos revela a sua centralidade em relação aos demais espaços do sitio, como revelaremos no próximo tópico. Esta centralidade está presente já na Figura 1, Figura 2, Figura 3 e Figura 4, como vemos abaixo.

Figura 1
Desenho de Anna Clara (7 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 2
Desenho de Íris (9 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 3
Desenho de Maria Rita (6 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 4
Desenho de Rita de Cássia (8 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora

Metodologia

Para desvendar as características gerais do Sítio, opto pelo modo como as crianças classificam estes espaços e lhes apresentam. Revelando tais espaços, as crianças fornecem um quadro geral dos ambientes que são determinantes para a experiência com a infância.

Por conta disso, elaboro uma análise etnográfica do Sítio a partir dos elementos que as crianças Capuxu apresentaram em seus desenhos e em suas falas, quando elas me deram as pistas sobre os espaços do Sítio para os quais eu deveria lançar o olhar antropológico. Atenta ao ponto de vista das crianças Capuxu, por meio da observação participante, através das conversas informais e dos desenhos por elas produzidos, problematizo a dicotomia clássica dos estudos do rural que reduzem o Sítio às categorias casa e roçado (Woortmann, 1983Woortmann, E. F. (1983). O sítio camponês. Anuário Antropológico, 81, 164-203.; Heredia, 1988Heredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Garcia Júnior, 1983Garcia Júnior, A. (1983). Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores (236 p.). Rio de Janeiro, Paz e Terra.; Godoi, 1999Godoi, E. P. (1999). O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do Piauí. Campinas: Editora da Unicamp.)2 2 Nos estudos de Heredia (1988) e Garcia Júnior (1983) há um consenso de que a organização do trabalho familiar ocorre em duas esferas distintas - a casa e o roçado. Segundo esses autores, a casa é concebida como o lugar da mulher por excelência, espaço em que se desenvolvem atividades referentes aos cuidados com os filhos, alimentação da família e ao conjunto de afazeres domésticos. Já o roçado é tratado com o lugar onde o grupo se materializa como unidade de produção. e apresento a trilogia das crianças Capuxu na descrição do Sítio: a casa, as estradas (e seus atalhos) e os cercados.

Os espaços apontados pelas crianças em seus discursos e sinalizados em seus desenhos revelam o modo como elas se apropriam do Sítio e o significam, atribuem sentidos peculiares aos espaços e o definem a partir dos lugares que lhes são mais acessíveis e demarcadores de uma experiência particular com a infância.

O cotidiano ao lado de suas mães e em companhia destas, a maior parte do tempo; a participação das crianças nas atividades domésticas; a função de fazer circular recados, histórias e avisos em seus pequenos mandados e alimentos numa rede de reciprocidades; e as relações que as crianças mantêm com os animais desde tenra idade estão expressas nas categorias que as crianças elegeram para explicar Santana-Queimadas: as casas, as estradas (e seus atalhos) e os cercados. A percepção disso só se deu por meio dos desenhos que as crianças produziram cuja análise foi fundamental para desvendar diversos aspectos em campo, entre eles, a importância de estradas e cercados para uma percepção mais apropriada do Sítio.

A partir dos desenhos das crianças me deparo com uma visão inusitada do Sítio formatada por meio dos espaços que são significativos da sua experiência com a infância. Neste sentido, este artigo deseja ser uma contribuição aos estudos da infância e a antropologia da criança, mas também, aos estudos de campesinato do Brasil, partindo da hipótese de que os estudos de campesinato elegeram a dicotomia casa/roçado como representativa dos espaços do sítio por terem ouvido em geral, homens e mulheres, e argumentando, conforme Schildkrout (1978)Schildkrout, E. (1978). Age and gender in hausa society: socio-economic roles of children in urban kano. In J. S. La Fontaine (Ed.), Sex an age as principles of social differentiation. London: Academic Press., que as crianças deveriam ser sempre ouvidas como outra variável qualquer em campo, sob pena de não se ter uma visão completa do tema em estudo.

Há ainda um aspecto a ser considerado: a inexistência dos roçados nos desenhos das crianças revela a profunda transformação a que a comunidade foi submetida nos últimos anos. Isto porque entre os anos de 2002 a 2004, em minha primeira empreitada etnográfica em campo, a presença das crianças no roçado era cotidiana, sob diversos aspectos revelados em uma etnografia produzida na época que elegia a aprendizagem, a ludicidade e o trabalho como os elementos que circunscreviam a infância Capuxu (Sousa, 2004Sousa, E. L. (2004). Que trabalhais como se brincásseis: trabalho e ludicidade na infância Capuxu (Dissertação de mestrado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. Recuperado em 07 de fevereiro de 2023, de http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/7112
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). Naquela época já havia aludido que os trabalhos realizados pelas crianças estavam no âmbito do roçado e nos arredores da casa. Com o passar dos anos as crianças passaram a estar cada vez menos no roçado, de modo que em um novo empreendimento etnográfico entre 2011 e 2014, cuja produção de dados subsidia este artigo, os roçados aparecem como inexpressivos nos discursos e nos desenhos das crianças3 3 Parte disso pode ser atribuída às políticas públicas como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil/PETI e aos Programas de transferência de renda condicionada como o Programa Bolsa Família cujos impactos sobre a vida das crianças e a agência e o protagonismo delas foi objeto de análise de Pires (2009 , 2013a, 2013b , 2013c ), Pires et al. (2014) e Pires & Silva Jardim (2014). .

Vivendo entre o povo Capuxu, produzi uma descrição densa, nos termos de Geertz (1989)Geertz, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Aplicada., atenta às categorias nativas e aos conceitos de uma experiência próxima. Como técnicas de pesquisa, a observação participante, a produção de desenhos pelas crianças e as conversas informais foram fundamentais. Como instrumentos, diários e cadernos de campo e máquinas fotográficas foram utilizados. Os desenhos enquanto instrumentos de análise e a produção deles como técnicas de pesquisa já foram problematizados por Pires (2007Pires, F. (2007). Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, 50(1), 225-270. Recuperado em 03 de dezembro de 2018, de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012007000100006
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, 2011Pires, F. (2011). Quem tem medo de mal-assombro?: religião e infância no semiárido nordestino. Rio de Janeiro: E-papers; João Pessoa: UFPB.), Sousa & Pires (2021)Sousa, E. L., & Pires, F. F. (2021). Entendeu ou quer que eu desenhe?: Os desenhos nas pesquisas com crianças e sua inserção nos textos antropológicos. Horizontes Antropológicos, 27(60), 61-93. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832021000200003.
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, Gobbi (2012)Gobbi, M. (2012). Desenhos e fotografias: marcas sociais de infâncias. Educar em Revista, 43, 135-147. Recuperado em 03 de dezembro de 2018, de http://www.scielo.br/pdf/er/n43/n43a10.pdf
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, Sarmento (2011)Sarmento, M. J. (2011). Conhecer a infância: os desenhos das crianças como produções simbólicas. In A. J. Martins Filho & P. D. Prado (Orgs.), Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. Campinas: Autores Associados., Toren (1993)Toren, C. (1993). Making history: the significance of childhood cognition for a comparative anthropology of mind. Man, 28, 461-478., Mead (1985)Mead, M. (1985). Educación y cultura en Nueva Guinea. Barcelona: Paidos Studio. e James et al. (1998)James, A., Jenks, C., & Prout, A. (1998). Theorising Childhood. Cambridge: Polity Press..

Se neste artigo trato das crianças Capuxu indistintamente é, primeiro, porque as características desta infância e as classificações internas ao grupo na definição de crianças já foram tratadas em outro lugar (Sousa, 2014aSousa, E. L. (2014a). Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância (Tese de doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Recuperado em 07 de fevereiro de 2023, de https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/130980
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); segundo porque, vivendo entre eles, tive acesso a todas as crianças da comunidade, não se aplicando neste caso marcadores sociais para distingui-las.

Por fim, informo que este artigo é uma revisitação aos dados etnográficos de minha tese de doutoramento e um avanço em relação à produção dos dados e à leitura que fiz deles à época. Agora, faço um recorte etnográfico e uma releitura dos dados obtidos que me parecem mais fiéis ao campo.

Resultados e discussão

“Ô de casa”: a casa e seu entorno

Conforme observaram Ellen Woortmann (1983), eWoortmann, E. F. (1983). O sítio camponês. Anuário Antropológico, 81, 164-203. Woortmann & Woortmann (1997)Woortmann, E., & Woortmann, K. (1997). O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Ed. UNB. o sistema espacial do sítio camponês obedece a dimensões práticas e simbólicas em que a casa é o ponto de partida para a distribuição das áreas que compõem o sítio. Assim é que os camponeses pensam a localização da casa como uma referência espacial a partir da qual se projetam os ambientes externos, que são correlacionados entre si4 4 Mário W. B. de Almeida (1986) afirmara já que a casa, o quintal e o roçado revelam muito sobre a família rural. . Cabe ao homem determinar a direção do trabalho que segue da casa para o mato, respeitando a lógica que parte do conhecido e domesticado para o desconhecido e natural (Martins & Menasche, 2011Martins, V. S., & Menasche, R. (2011). Trajetórias do lugar de viver em terra de Reforma Agrária. Retratos de Assentamentos, 14(1), 69-92. Recuperado em 03 de dezembro de 2018, de https://retratosdeassentamentos.com/index.php/retratos/article/view/77/67
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). Os autores partem da análise do lugar de trabalho, o sítio, ele mesmo também resultado do trabalho na dimensão espacial e resultado de um processo histórico secular de interação do homem com a natureza, na dimensão temporal5 5 Em Woortmann (1983) o sítio é considerado o lugar de trabalho, para os Capuxu o lugar de trabalho é especialmente o roçado, embora tanto a casa quanto os seus arredores sejam espaços de trabalhos desenvolvidos especialmente por mulheres e crianças. .

Autores como Heredia (1988)Heredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra., Garcia Júnior (1983)Garcia Júnior, A. (1983). Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores (236 p.). Rio de Janeiro, Paz e Terra. e Woortmann & Woortmann (1997)Woortmann, E., & Woortmann, K. (1997). O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Ed. UNB. dedicaram-se a análise da esfera das percepções simbólicas da casa, as relações hierárquicas associadas aos ambientes externos e internos, as diferenças de gênero e associação entre a casa e família. Até mesmo a planta da casa pode ser entendida como expressão das relações sociais entre os indivíduos que moram nela, como sugeriu Bourdieu (1999)Bourdieu, P. (1999). A casa kabyle ou o mundo às avessas.Cadernos De Campo (São Paulo-1991),8(8), 147-159. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v8i8p147-159.
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6 6 Bourdieu (1999) demonstra que a casa para os Cabila da Argélia é produto das práticas sociais e da cultura desse povo. Logo, o “mundo da casa” se opõe ao resto do mundo segundo os mesmos princípios que o organizam e ordenam os domínios da existência. .

Em Santana-Queimadas as casas são de alvenaria, pintadas de branco e estão distantes umas das outras. Os telhados são altos, para se tornarem arejadas e suportáveis durante os verões dos anos de estiagens. Todas possuem grandes áreas livres na frente, os chamados terreiros, e nos fundos, que são os quintais ou monturos. Assim, é possível aos Capuxu criar suas produções animais nos arredores da casa, construindo pocilgas, currais, poleiros, etc. São raros os lugares no Sítio em que as casas estejam próximas umas das outras ou mesmo coladas, isso só ocorrendo quando a família opta por construir uma casa para um dos filhos recém-casados ao lado da sua, numa espécie de casa conjugada, que abriga os chamados agregados num modelo de família extensa. As casas possuem banheiros internos, com chuveiros e sanitários, pias nas cozinhas e fogões à lenha, além de fogões a gás.

Cada uma das casas do SSQ é habitada por indivíduos ligados entre si por laços de parentesco: pai, mãe, filhos solteiros e, excepcionalmente, agregam-se a eles outros parentes: pai, mãe ou irmão de um dos cônjuges, genros ou noras de um dos filhos recém casados, sendo estes indivíduos que compõem o grupo doméstico. Além de residirem numa mesma casa, os membros de um grupo doméstico se ocupam das tarefas do mesmo roçado, se são homens, ou daquelas realizadas na casa e em seus arredores, se são mulheres ou crianças.

Os desenhos de Ana Franciely (8) e Antônio Vitor (7) trazem a casa em primeiro plano com representações da família que nela reside e dos animais ao redor da casa. Amanda (9) desenhou a si mesma na janela, observando o entorno da casa, representado por plantas e animais. Maria Helena (9) se desenhou na parte externa da casa observando o açude. Maria Clara (6) e Thiego (8) desenharam a casa cercada de árvores e animais. Maria Clara aparece no desenho junto a sua mãe. Maria Helena destacou a sua casa, o pé de goiaba, a gata Mari e a cadela Estrela, além do açude e dela mesma à frente da casa.

A Figura 5 diz respeito ao desenho de Thiego (8). A Figura 6 é o desenho de autoria da Amanda (9). A Figura 7 diz respeito ao desenho de Ana Franciely (8) e a Figura 8 é da Maria Helena. Maria Clara (6) é a autora do desenho representado na Figura 9 e Antônio Vítor (7) é o autor do desenho na Figura 10.

Figura 5
Desenho de Ana Francielle (8 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora.
Figura 6
Desenho de Amanda (9 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 7
Desenho de Thiego (8 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 8
Desenho de Maria Helena (9 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 9
Desenho de Maria Clara (6 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 10
Desenho de Antônio Victor (7 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora

A entrada da casa é quase sempre pelo terreiro, onde está localizada a sala. Entretanto, esta entrada é mais utilizada pelas pessoas de fora ou alguém que, mesmo sendo do Sítio, venha daquela direção e não queira dar à volta, devendo da porta da sala ou ainda do terreiro, gritar “ô, de casa!”. Mas aqueles que detêm intimidade com os donos da casa podem se aproximar pela porta dos fundos - da cozinha - e de lá pronunciar o grito de acesso. Estes normalmente o fazem também por aparecer na maioria das vezes para pedir algum condimento emprestado para cozinhar ou um pouco de açúcar ou café. As crianças que circulam em busca dos amiguinhos, vêm dar um recado ou solicitar o empréstimo podem chamar pela porta da cozinha ou por qualquer janela da casa, de onde lhes seja mais prático.

A maioria das casas possui calçadas altas na frente, para onde o acesso se dá através de degraus. Quando não estão dispostas apenas na frente da casa, as calçadas viram alpendres sendo cobertas em volta dela. Mesmo àquelas casas que não possuem calçadas, possuem no

mais das vezes, degraus que dão acesso à porta de entrada. Estes, chamados por eles de batentes, também estão postos nas portas do fundo e funcionam como uma espécie de ligação entre a terra e a casa.

As calçadas são importantes porque o povo Capuxu, de modo geral aprecia sentar à porta de casa durante as noites, de onde é possível sentir uma leve brisa que sopra raramente pelos sertões. Mas se são chegados os meses de junho e julho, certamente haverá frio nas noites do Sítio, especialmente nos lugares mais altos.

As portas das casas são estreitas e as janelas pequenas. Apesar da fragilidade das portas de madeira, elas são fechadas com seus ferrolhos a cada noite ou simplesmente encostadas durante o sono da tarde. É possível, se os adultos vão para o roçado e as crianças estão na escola, deixar a porta da frente trancada e sair pelos fundos, encostando a porta da cozinha somente com um pano de prato. Esta segurança é dada pela tranqüilidade do lugar, onde todos exercem uma vigilância ou cuidado para com as casas dos outros. Algumas famílias podem deixar a chave da porta da frente sob uma pedra na entrada, num jarro com planta, embaixo dos tapetes de boas vindas ou em cima de um vãozinho na parede para o caso dos filhos voltarem mais cedo da escola.

Em geral as casas possuem dois ou três quartos com cortinas de tecido transparente fazendo às vezes de porta. Alguns têm camas postas e forradas, quase nunca usadas, pois geralmente se dorme nas redes. Guarda-roupas de madeira, imagens de santos e fotografias de famílias decoram as paredes.

A organização interna dos ambientes de moradia revela significados importantes para o mundo camponês. A maioria das casas tem uma sala, onde estão dispostos sofás, cadeiras de balanço onde se sentarão as visitas, e uma estante com fotos de família e televisores. Este espaço é predominantemente das mulheres e crianças, por estarem mais tempo em casa. Entretanto, quando o pai chega do roçado, ou depois do jantar, a cadeira de balanço, cuja visibilidade da TV ou da porta e da estrada é melhor, é conferida a ele. Depois da calçada ou terreiro, onde se conversa com as visitas, a sala é o lugar preferido. A área externa termina sendo a mais atraente por conta do calor. Assim, arrastam-se cadeiras de balanços e outras tantas, a depender da quantidade de visitas, que são dispostas num círculo em torno da calçada.

Depois da sala, é de praxe uma sala de jantar, com mesas só usadas em ocasiões comemorativas ou se as visitas que chegam ultrapassam o número de cadeiras disponíveis na mesa da cozinha. É na sala de jantar que estão colocadas, as geladeiras. O banheiro fica em geral entre à cozinha e a sala de jantar. Frequentemente tem porta de madeira, vaso sanitário, pequena pia e chuveiro, embora tenha sempre um tonel ou balde grande de onde se pode tirar água trazida do açude.

Na cozinha, potes e filtros de barro, uma mesa rústica e o fogão à lenha estão postos. Também um fogão a gás pouco usado. As refeições como almoço e jantar são sempre feitas no fogão à lenha, pois acreditam que elas fiquem mais saborosas. O fogão à lenha não é só o lugar da transformação da comida, como também carrega significados que remetem à união da família. A mulher é a responsável pela lenha e pelo fogo, por abaná-lo e pelas refeições. O fogão é também um lugar onde se encostam as mulheres para tomar “um pequeno” (cafezinho) ou se sentam as crianças e adolescente para conversar enquanto as irmãs limpam a cozinha. Para as crianças menores o fogão à lenha, de alvenaria, é o lugar dileto para se escalar e tentar sobre ele permanecer de pé.

A definição de casa entre os Capuxu não está restrita as paredes de alvenaria, ao teto e os cômodos internos7 7 Garcia Júnior (1983), sobre as pequenas produções rurais em Pernambuco, destaca que a casa não é apenas a área coberta e com paredes, para aquele grupo o entorno fechado denominado como terreiro também faz parte do corpo da casa. . Ela se estende pelo seu entorno, e também se classifica como casa o terreiro, a calçada, o quintal (ou muro) e o monturo8 8 Também Godoi (1999, p. 37) observou que “[...] o muro e o quintal são dois espaços sempre contíguos à casa de morada e podem ser pensados [...] como um desdobramento projetivo da casa”. . Os lugares onde estão colocadas plantações e hortas, também são considerados como sendo da casa, neste caso utiliza-se o “dentro de casa” como diferencial para que se entenda de que dimensão da casa se está falando. Isto porque é possível que alguém que esteja na calçada, terreiro ou qualquer um dos espaços ligados a ela por contigüidade e extensão, diga que está “em casa”. Se os pais repreendem por alguma razão a criança e deseja colocá-la de castigo é preciso que se diga “passe pra dentro de casa”, lugar onde, a priori, a brincadeira e a diversão se encerram. O mesmo não ocorreria se a criança permanecesse pelos entornos da casa que são sempre um convite à diversão.

O terreiro está localizado à frente da casa, onde ficam os cachorros, deitados sob as sombras parcimoniosas das árvores. O quintal é a parte dos fundos que se segue à cozinha. Crianças e animais adoram transitar entre cozinhas e quintais, inclusive sentar nos batentes que ligam os dois para comer. Assim, o “quintal”, estaria no âmbito da casa, configurando-se como extensão da cozinha, por ser o lugar em que as mulheres desenvolvem uma série de tarefas domésticas, como lavar roupas, preparar a carne, etc. Além de utilizar a mão-de-obra também das crianças para pequenos serviços9 9 Segundo Heredia este espaço do quintal ou muro é também chamado de terreiro pelos moradores da zona da mata pernambucana: “[...] o terreiro dos fundos da casa está destinado fundamentalmente às aves domésticas e ao chiqueiro dos porcos; é também ali que as cabras passam a maior parte do dia. Em algum setor desse espaço, as mulheres lavam a louça e fazem a higiene das crianças” (Heredia, 1988, p. 38). .

Depois do quintal, segue o monturo, que é o lugar onde se pode jogar o lixo para queimá-lo e está oculto em relação à casa, o que não deve e não pode ser visto pelas visitas. O monturo é uma transição entre a casa e o mato, embora faça parte das dimensões do lugar de morada, por ser diariamente freqüentado pela família, o monturo é quase um lugar de passagem entre a casa e o mato, por isso, ele não é cuidado e mal se tira dele a relva que cresce. O monturo é a verdadeira porta de saída deste complexo de ambientes que os Capuxu denominam de casa. Com efeito, as fronteiras da casa Capuxu podem ser definidas pelos terreiros e monturos.

A casa e seu entorno conformam locais predominantemente femininos10 10 Ramos (2007) em estudo sobre os camponeses de Maquiné observou que “[...] às mulheres, em geral, cabem as tarefas da casa e do quintal onde criam galinhas e porcos, trabalham com vacas de leite e mantêm uma horta” (Ramos, 2007, p. 72). . É que as tarefas do entorno da casa são desenvolvidas especialmente por mulheres e crianças. É comum entre os Capuxu que os homens vão para o roçado e as mulheres fiquem por conta da limpeza da casa e seus arredores (terreiros e quintais também são varridos), da alimentação dos bichos, da confecção do almoço, da retirada da lenha para fazer o fogo, etc.11 11 Heredia (1988) observou que “a oposição casa-roçado delimita a área do trabalho e do não-trabalho, assinalando os lugares femininos-masculinos relativos a essa divisão” (Heredia 1988, p. 79). Assim o roçado corresponderia ao espaço masculino da produção, do trabalho e a casa ao espaço feminino, do consumo, do não-trabalho. Embora as mulheres participem das tarefas do roçado e ainda fiquem responsáveis pelas tarefas da casa e seu entorno o que ocorre na dimensão doméstica não é considerado trabalho, e aquele trabalho que ela desenvolve no roçado é visto como ajuda (Paulilo, 1987). Muito embora as mulheres desenvolvessem tarefas específicas também no roçado, as suas tarefas são essencialmente as da casa e seus arredores onde elas são, em geral, ajudadas pelas crianças. Em todas estas atividades as mulheres são ajudadas pelas crianças.

Na literatura dos estudos sobre o rural no Brasil, a casa, lugar de morada, é complementar ao roçado - lugar de trabalho. E a partir da perspectiva das crianças Capuxu afirmo que o roçado cede lugar aos cercados e estas duas dimensões - casas e cercados - se deixam conectar pelas estradas. Todos estes espaços interagem numa espécie de ciclo que é cumprido diariamente por adultos e crianças. Assim o movimento diário que conduz o cotidiano Capuxu se dá nestas direções e sentidos, da casa para o roçado (e vice versa) e entre os dois, pelas estradas12 12 Os roçados do povo Capuxu estão localizados a alguns metros de suas casas, quase sempre cercados com arame farpado. Na representação dos homens, o roçado aparece como o lugar mais importante do Sítio, logo após as residências. Para as mulheres a casa e seu entorno aparecem como o lugar prioritário, seguido pelo roçado que provém o seu sustento. .

No repertório de crenças Capuxu que os unem a um mundo sobrenatural a casa aparece de modos diversos, denotando como movimentos e dinâmicas em seu interior podem definir a relação com o sobrenatural. A morte de pessoas da família pode ser evitada se as visitas, sempre saírem das casas pela mesma porta que entraram. Atravessar a casa entrando pela porta da frente e saindo pela porta de trás - ou vice-versa - não traz boa sorte. Ainda assim é difícil para as crianças lembrarem-se disso quando, uma vez na cozinha, o monturo e os animais lhes convidam para a brincadeira. São estas crenças que obriga crianças que correm sempre tão hábeis a reconstruírem seus caminhos retornando ao lugar de onde saíram e revertendo a má sorte que uma imprudência desse tipo pode lhes trazer, caindo em desgraça membros de sua família.

Também cabe às crianças procederem rituais que enviarão as visitas indesejáveis de volta às suas casas. Neste caso, enquanto são recebidas nas salas de casa em horários tidos pelos anfitriões como inconvenientes, as crianças, a um sinal de seus pais, botarão a vassoura atrás da porta ou jogarão sal no fogo. Assim, rapidamente as visitas irão embora.

Outros costumes cotidianos revelam as crenças do povo Capuxu: a ideia de que não se deve varrer a casa dos fundos (ou da cozinha) para a frente, mas sempre da porta da sala para a cozinha, do contrário traz má sorte. É também mau agouro dormir com os pés voltados para a porta de entrada da casa, uma vez que os caixões sempre ficam posicionados durante o velório com os pés do defunto para a porta da rua, assim, as camas ou redes são sempre posicionadas para que os pés não fiquem na direção da porta da rua, evitando a “posição de defunto”. Esta posição deve também ser evitada ao dormir.

Por fim, descrevo uma categoria específica de casa: as malassombradas (Sousa, 2021Sousa, E. L. (2021). “Quem pode mais do que Deus”?: As crianças Capuxu e suas experiências com os malassombros.Mana, 27(1), 1-31. http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442021v27n1a205
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; Pires, 2011Pires, F. (2011). Quem tem medo de mal-assombro?: religião e infância no semiárido nordestino. Rio de Janeiro: E-papers; João Pessoa: UFPB.). Dentre os inúmeros malassombros13 13 Termo nativo para aparições, visagens, almas malassombradas, etc que compõem o sistema de crenças local. A análise das almas e dos malassombros foi feita em outra ocasião (Sousa, 2021). a que temem os Capuxu, temos a alma-malassombrada, que geralmente é vista no espaço da casa, e raras vezes pelas estradas do SSQ ou roçados. As chamadas casas malassombradas estão disseminadas pelo Sítio e na imaginação das crianças.

A casa abandonada ou em ruínas é o lugar mais propício, seguida do matagal, das estradas e dos roçados, mas nestes quase sempre à noite. O SSQ não possui um cemitério sendo os mortos do Sítio enterrados no cemitério da cidade de Santa Terezinha, município ao qual o Sítio pertence. O cemitério é sempre um dos lugares mais propícios ao aparecimento das almas-malassombradas, na falta de um, devemos considerar que as almas-malassombradas, a princípio, poderiam aparecer em qualquer lugar. Por conta disso, as crianças evitam as casas abandonadas ou em ruínas.

É preciso atentar para a diferença entre casa abandonada e casa fechada. No caso da fechada, embora ninguém more nela, os familiares têm a chave, as coisas do morto permanecem, em geral, no lugar, e assim ela ficará por muito tempo, até que uma nova família se construa, e na falta de lugar para morar, decida reformar a casa e habitá-la. Mas ela será por muito tempo “a casa onde fulano(a) morreu”, pois se alguém morreu em casa, as chances de que não queira deixá-la são maiores.

Se a casa foi abandonada, não terá portas nem janelas e, em geral, nenhuma mobília, sendo lugar perfeito para habitarem as almas que “já não precisam mesmo de móveis” disse o pequeno Capuxu. Apesar de sua insistência em transformar todos os espaços em lugar para brincadeiras e do potencial que uma casa deste tipo teria, ninguém aventa esta possibilidade. Está fora de cogitação querer frequentar casas abandonadas e fechadas, ou fazer brincadeiras nos seus arredores ou interior, especialmente se já passar do entardecer.

Assim, além da própria casa da criança, onde a alma aparece quando tem vontade, se a criança for a uma casa abandonada ou em ruínas, definida previamente como casa malassombrada, ou seguir pelas estradas do Sítio, matagal ou roçados à noite, as chances de que uma alma venha ter com ela para lhe pedir rezas aumentam. Em geral, as almas-malassombradas são notívagas, sendo raros os casos em que contam terem visto almas em roçados durante o trabalho de dia. Mas os roçados podem ser visitados por almas, em situações pouco comuns, durante o dia, aparecendo para os adultos. Seriam antigos donos do roçado que vêm para verificar a plantação e os cuidados com a terra, revelando a conexão entre vivos e mortos também presente naquela relação que é a mais forte entre camponeses: sua ligação com a terra e o trabalho (Heredia, 1988Heredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Moura, 1978Moura, M. M. (1978). Os herdeiros da terra: parentesco e herança numa área rural. São Paulo: Hucitec.; Woortmann, 1983Woortmann, E. F. (1983). O sítio camponês. Anuário Antropológico, 81, 164-203., 1995Woortmann, E. F. (1995). Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. UnB.).

As estradas: percursos, trilhas e atalhos

As estradas que cortam o Sítio são bastante largas e com alguns entroncamentos, onde elas se dividem, seguindo por trajetos diferentes, mas levando aos mesmos destinos. Apesar da importância das estradas, os moradores recorrem muito aos caminhos da roça, traçando atalhos para os seus destinos. Também entre as crianças é hábito andar pelos atalhos, por cipoais, matagais ou roçados, que são sempre os percursos preferidos. Mas, deve-se registrar que a opção pelos atalhos por dentro da mata só tem preferência durante o dia, especialmente as crianças que tem medo de caminhar por dentro do mato a noite, sob o risco de se deparar com alguns malassombros, e, com menor probabilidade, com bandidos, já que a entrada principal do Sítio não está tão distante assim da BR 361 que é bastante movimentada.

Pelas estradas do SSQ circulam mais do que animais e pessoas, automóveis ou motos, bicicletas e velocípedes infantis, circulam todas as formas de troca, reciprocidade, apadrinhamento. Circulam pelas estradas as crenças e a onomástica humana ou animal. Acredito que toda a organização social camponesa do povo Capuxu circula pelas estradas do Sítio. O parentesco, a família, os casamentos.

Boa parte das estradas do Sítio é interrompida pelos mata-burros, por onde não conseguem passar os animais. Ao lado de cada mata-burro estão colocadas porteiras, geralmente de madeira.

As casas estão construídas um pouco distanciadas das estradas principais do Sítio, embora quase todas possam ser avistadas por quem trafega. Em geral elas estão colocadas de frente para a estrada ou com sua lateral disposta em direção a estrada principal. Não há casos em que as casas estejam colocadas de costas para as estradas principais.

Em geral, os Capuxu optam por percorrer os trajetos mais curtos, sempre tentando fugir do sol escaldante do sertão paraibano, pegando atalhos por dentro dos roçados, onde se pode encontrar alguma sombra útil enquanto se percorre uns poucos metros que seja, tudo é válido para burlar um pouco o sol do sertão, especialmente nos anos fatidicamente secos.

As estradas principais do sítio passam também pela frente e pela lateral de alguns currais, roçados, plantações de modo geral. Pela frente da igreja e da casa paroquial. Há parte do trajeto da estrada principal que é caracterizada pelo trecho conhecido como passagem-molhada e diz respeito a uma pequena ponte de cimento improvisada por sobre o Rio Goiabeira. As estradas passam também pela lateral do campo de futebol, onde se desenrolam as peladas de domingo e os clássicos entre o time de Santana e de outros sítios nos arredores.

Os desenhos de Gabriela (8), Erinaldo (7) e Evai (10) trazem as estradas conectando espaços diversos do sitio, entre casas, casas ou açudes ou sendo percorridas pelos vários automóveis que nelas circulam. Porteiras e mataburros podem ser vistos no desenho de Gabriela. Tales (8) desenhou a escola do Sítio de onde parte o pau-de-arara que leva os jovens para as escolas da cidade. Em frente à escola um curral com um boi preso.

A Figura 11 é o desenho de autoria de Gabriela (8) e a Figura 12 apresenta o desenho de Evai (10). A Figura 13 diz respeito ao desenho de Tales (8) e a Figura 14 traz o desenho de autoria de Erinaldo (7).

Figura 11
Desenho de Gabriela (8 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 12
Desenho de Evair (10 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 13
Desenho de Tales (8 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 14
Desenho de Erinaldo (7 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora

Mas afora o movimento cada vez mais rigoroso de motos, bicicletas e automóveis, de animais - especialmente cachorros, cavalos e jumentos - e de transeuntes que percorrem os caminhos em direção à escola, à igreja ou à casa de um vizinho/parente/compadre, dos homens em direção ao roçado, das crianças que delas se ocupam para brincar, pedalar bicicletas ou simplesmente correr, muitos outros fatos sociais percorrem as estradas do Sítio.

Poderíamos começar pelas almas, visagens ou assombrações que tem lugar cativo nas estradas. A estrada, especialmente à noite, é um lugar profícuo para a aparição de toda sorte de malassombros. Por isso, são evitadas ao anoitecer, principalmente para os solitários, andando sempre as pessoas em grupo, ou até mesmo pedindo a alguns amigos que acompanhem o adolescente ou a vizinha, tia, madrinha, cunhada até em casa, e voltem juntos sem seguida. Nunca se sabe o que as estradas do Sítio guardam para os que decidem percorrê-las em solidão. Por isso, as crianças não costumam caminhar pelas estradas à noite, e se o fazem, buscam estar sempre na companhia de alguém, a largos passos, olhando constantemente para trás para se certificarem de que nenhuma alma-malassombrada as persegue.

É comum construir cruzes de alvenaria na beira da estrada, isto é, às margens de BR’s e estradas onde tenha alguém morrido por ocasião de acidente. Além de acender lá velas, em espécies de mini-túmulo, faz-se o sinal da cruz sempre que se passa na frente destas cruzes, como quando se passa na frente de cemitérios e igrejas, e no caso das crianças Capuxu, coloca-se uma pedrinha sobre ela, cada vez que se passa por lá.

Pelas estradas mais do que pessoas e animais, circulam as muitas formas de trocas e reciprocidade, e todas as formas de socialização. É possível vê-las sendo atravessadas por crianças com panelas, pratos ou pequenas vasilhas nas mãos. Elas vão em busca de utensílios domésticos emprestados, açúcar, café ou sal esquecidos de serem comprados na feira ou que acabaram. Levam milho, feijão, trazem pamonhas, canjicas, etc., este circuito de trocas nunca acaba. Há sempre algo novo para oferecer a comadre, cunhada ou irmã. As crianças são sempre mandadas pelas mulheres que procedem as trocas.

Se tiverem sorte, podem encontrar algum amiguinho cumprindo a mesma função, parar para conversar um pouco, irem os dois juntos as duas casas de destino e ganharem um tempinho para alguma brincadeira pelas estradas, apostando corridas ou brincando de toca. As crianças parecem ser as mais acostumadas com o calor. Pelas estradas correm em apostas com os seus animais de estimação enquanto os chamam pelos nomes (Sousa, 2014bSousa, E. L. (2014b). Nomear é trazer à existência: A onomástica (de crianças e de bichos) e os apelidos na produção da pessoa Capuxu. Revista de Antropologia, 15(2), 71-97. http://dx.doi.org/10.5380/campos.v15i2.40373.
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).

Quem se encontra pelas estradas deve sempre se cumprimentar, independente do nível de conhecimento, grau de parentesco ou vizinhança, ocorre em falta gravíssima aquele que, cruzando com outro morador do sítio pelas estradas, não fizer um aceno de cabeça ou erguer a mão num “ê”, “ô” ou “opa”, que é quase como um gemido ou como costumam tanger o gado. Um aceno de cabeça no mínimo é o esperado por quem se encontra pelas estradas do sítio. Isso vale mesmo para os estranhos que se utilizam da estrada principal de Santana-Queimadas para alcançar rapidamente outros sítios circunvizinhos.

Pelas estradas do sítio se fortalecem as relações sociais, vicinais e de parentesco, as visitas entre casas de parentes, as mulheres que levam seus filhos na rezadeira, os homens que seguem para a casa de Chico Miguel para uma partida de baralho, os jovens que caminham em direção ao campo de futebol para a pelada do fim de semana, as adolescentes que vão visitar o mais novo bebê Capuxu que acabara de nascer, os amigos que visitam a comadre doente, as adolescentes que aprendem a pilotar as motos de seus pais, a criança que corre habilidosa porque acabara de roubar o santo.

Assim é que as estradas Capuxu são os espaços por onde flui a dinâmica do modo de vida camponês. Elas ligam as casas aos roçados, dois importantes lugares para a produção de corpos e pessoas. As estradas são espécies de elos que conectam lugares e pessoas, são espaços férteis para o contanto com o sobrenatural e com o humano ou animal. Por isso dizemos que pelas estradas se estabelecem e se fortalecem as relações sociais, parentais e sobrenaturais, entre humanos e entre humanos e bichos, mas também entre os humanos e os santos (aquela imagem furtada da casa do parente para que consiga ter um ano chuvoso; aquela imagem carregada durante as novenas de maio).

Pelas estradas do Sítio Santana-Queimadas todos se encontram, todas as esferas se conectam, todas as teias sociais se emaranham. Mas é possível também fugir das estradas e percorrer atalhos. O povo Capuxu tem predileção pelos atalhos, especialmente se mais do que encurtam o espaço de tempo requerido para chegar a um destino, os atalhos permitem outras possibilidades de encontro.

Caso deseje encontrar um amigo, o Capuxu pode ir à casa de seu primo pelos caminhos do roçado, neste percurso ele atravessará vários roçados, passando pelos fundos de muitas casas, gritando em cumprimento à família que, pelo latir do cachorro sabe que alguém se aproxima, perguntará dos bichos, do tempo, das novidades, se passa de longe erguerá a mão num aceno gentil e avisará ao dono do roçado se algum bicho está solto, enrolado na corda, ou em situação de risco.

As crianças também apreciam os atalhos de modo geral, seja pelos roçados ou pela mata fechada por onde mal os adultos conseguem entrar, pois apenas seus corpos pequenos conseguem abaixar-se o suficiente para não se machucar entre galhos e cipoais. Mas quase nunca sozinhas percorrem os atalhos, pois as crianças temem animais ferozes que possam por ventura aparecer ou malassombros desavisados que em vez de aparecer na calada da noite, como de praxe, se utilize da solidão da criança e do tom sombrio do matagal para pedir reza ou algum outro favor (Sousa, 2021Sousa, E. L. (2021). “Quem pode mais do que Deus”?: As crianças Capuxu e suas experiências com os malassombros.Mana, 27(1), 1-31. http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442021v27n1a205
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).

São as estradas as responsáveis por garantir a dinâmica de relações Capuxu, a reciprocidade, os encontros fortuitos, o cumprimento gentil e obrigatório, a solidariedade, a diversão e as narrativas de histórias malassombradas. As estradas conduzem ao roçado e a casa, aos cercados, ao matagal e ao Rio Goiabeira, aos açudes e a toda sorte de lugares por onde transita o povo Capuxu e o seu modo de ser camponês, sempre fluido, contínuo e ao mesmo tempo ancorado nos mesmos lugares. Atravessando as estradas do Sítio o povo Capuxu renova e atualiza as redes de relações sociais recíprocas, o modo de ser camponês e a vida!

Neste sentido as estradas do sítio não se configuram em não-lugares nos termos de Augè (1994)Augè, M. (1994). Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade (4. ed.). Campinas, SP: Papirus., embora sejam também lugares de passagem. Elas fazem parte do imaginário local, são espaços que ocupam a memória do povo que narram sobre episódios, acontecimentos que tiveram as estradas como cenário. Elas são paisagens de encontros constantes, os lugares onde se recebem notícias de morte e nascimento gritadas pelas janelas das casas de amigos e parentes que sabendo que alguém passa pela estrada, se pendura pelas janelas ou corre até as portas para dar a notícia. As estradas são lugares onde se faz convites para um café, para um doce ou almoço. Elas são caracterizadas também por esperas intermináveis, pelos bichos que estão lá no pasto de onde são vistos pelos olhos atentos do seu dono, de cócoras à beira da estrada, em busca de uma sombrinha. Em suas margens, parentes e compadres se acocoram para prosear, encostam-se em mata-burros ou puxa-encolhes, num “pé de árvore” ou em qualquer outro lugar enquanto se “troca um dedo de prosa”.

Os cercados: chiqueiros, currais, poleiros e apriscos

Como afirmamos anteriormente, optamos por chamar de cercados todos os espaços onde ficam os animais criados pelos Capuxu: currais, chiqueiros ou pocilgas e poleiros. Embora os poleiros fujam à idéia de cercado a intenção ao assumir tal termo é aglomerar sob sua dimensão todos os espaços cujos animais se abrigam e para os quais estão orientados os olhares, os cuidados e a atenção das crianças. Espaços estes freqüentados por elas ou que estão sob sua responsabilidade.

Nos espaços que denominamos como entorno da casa, que é doméstico e feminino, e portanto, também infantil, estão localizados geralmente os cercados. Não sem razão poleiros, chiqueiros e currais estão mais próximos da casa - esse universo das mulheres - do que do roçado - espaço eminentemente masculino. É que estes animais de médio e pequeno porte, criações domésticas, estão sob vigilância e cuidados gerais de mulheres e crianças. Somente gatos e cachorros são criados absolutamente soltos pelo sítio. Também as galinhas passam a maior parte do tempo soltas, mas à noite seguem para os poleiros, o lugar seguro para seu sono.

Nos textos clássicos de campesinato no Brasil menciona-se, na maioria das vezes, a criação animal como algo que ocorreria no entorno da casa, sob um domínio eminentemente feminino. Assim, omite-se a presença das crianças e sua participação nas tarefas domésticas, classificadas pelas mulheres e pelos pesquisadores como “ajuda”, recaindo no mesmo equívoco conceitual - denunciado mais tarde - sobre o trabalho exercido pelas mulheres no roçado e classificado pelos homens como “ajuda” (Paulilo, 1987Paulilo, M. I. (1987, jan/fev). O peso do trabalho leve. Ciência Hoje, 5(28).).

O fato é que a criança Capuxu está completamente confortável em atravessar estes lugares e cuidar de seus animas. Logo cedo, são elas que atravessam o gado dentro dos currais para pegar o leite das mãos habilidosas de seus pais que ordenham. Quase sempre são acompanhadas de crianças menores que chegam a passar por baixo das vacas, encurtando o caminho até o pai, tio ou avô. Conhecem os animais e chamam toda a produção pelo seu próprio nome: bois, vacas, garrotes e bezerros. É chamado de curral pelos Capuxu o lugar onde fica a criação bovina. Eles são, no mais das vezes, circulares.

Os currais são geralmente feitos de madeiras, com ripas sobrepostas e conectadas umas as outras. Aparecem em vários pontos destes espaços possíveis: alguns na lateral da casa; outros aos fundos, ou quase à frente da casa. Em sua composição aparecem baias onde se colocam a comida e a água. Em grandes cocheiras de borracha, quase sempre com palma cortadas, na época da seca, grandes pedras de sal e água abundante.

Sua entrada é por porteiras de madeira ou puxa-encolhes. As travas de madeira são facilmente removidas pelas crianças que sobem até o alto ripa a ripa e assim, conseguem movê-las. Às vezes são construídas fora dos currais algumas cocheiras de madeiras, suspensas. Noutros casos, grandes tanques de alvenaria comportam a água a ser consumida pelo gado. Às vezes é possível apenas deixar que o gado vá até o açude mais próximo tomar água. Isso quando os açudes e barreiros estão cheios.

O lugar dos porcos é chamado de chiqueiro ou pocilga. Esses chiqueiros são menos comuns pelo SSQ. Eles são feitos geralmente de cerca de arame farpado, madeiras como os currais ou alvenaria. Também possuem em seu interior cocheiras com a água e a lavagem - nome dado as comidas fornecidas aos porcos, que são feitas de restos de comida sem geral, além de vegetais e frutas inclusive estragadas.

Em alguns casos estes chiqueiros não possuem nenhuma cocheira, nem água, nem lavagem, de modo que os porcos são soltos para buscar água e comida livremente e presos apenas a noite. Estes lugares por estarem repletos de lama e serem mal cheiroso são pouco freqüentados pelas crianças. Elas se dedicam apenas a abrir a porteirinha para que a criação saia e conduzi-los - tangê-los como o dizem - até lá no final da tarde para que entrem. Os porcos só são tocados e acariciados quando são filhotes ou recém-nascidos. Depois de grandes, mal recebem nomes pelas crianças e estas não são apegadas a eles como aos outros animais.

Carlos Daniel (9) destacou os animais em detrimento da casa. Desenhou bois, porco, coelho e papagaio presos em currais e gaiolas. O cachorro e a galinha passeiam soltos pelos arredores da casa. Íris (9), além da casa, desenhou as galinhas e os pássaros, o açude e o poleiro das galinhas improvisado com uma escada encostada à árvore. Antônio Victor (7) optou por desenhar o curral, sob o sol, com o gado dentro. Passando em frente ao curral o caminhão com um homem de chapéu ao volante. Tales (8) desenhou a escola do Sítio de onde parte o pau-de-arara que leva os jovens para as escolas da cidade. Em frente à escola um curral com um boi preso.

Todos estes cercados são representados nos desenhos abaixo que seguem: Figura 15 desenho de Tales (8), Figura 16 desenho de Íris, Figura 17 desenho de Carlos Daniel (9), e Figura 18 desenho de Antônio Victor (7).

Figura 15
Desenho de Tales (8 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 16
Desenho de Íris (9 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 17
Desenho de Carlos Daniel (9 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora
Figura 18
Desenho de Antônio Victor (7 anos). Fonte: pesquisa de campo realizada pela autora

Os poleiros se tratam, geralmente, de escadas de madeira, improvisadas, velhas e desgastadas colocadas encostadas aos troncos de árvores amplas e apoiadas em seu tronco e galhos. Assim, as galinhas podem subir para as árvores e dormir sobre elas. As casas capuxu sempre têm algumas árvores em seu entorno, sendo geralmente alguma colocada ao seu lado ou aos fundos sendo as últimas as favoritas para essa função.

Também é possível, na falta de tal árvore, construir um poleiro simples, com ripas de madeira. É também possível cercá-las com madeiras como um pequeno curral, mas em geral elas ficam livres, sendo necessário apenas um conjunto de madeiras erguidas para que elas possam dormir suspensas sobre tais madeiras. Assim, elas ficam protegidas das raposas que, segundo os Capuxu, aparecem esporadicamente em busca de galinhas. Cabe às crianças Capuxu contar as galinhas ao cair da noite e direcioná-las para os poleiros - ou as árvores transformadas em poleiros.

Considerando a relação das crianças Capuxu com os animais que está sendo analisada em outro artigo, de aproximação e cuidados e a quantidade de tarefas que envolvem as crianças em relação a estes bichos, não é de se admirar que ao representar Santana-Queimadas através de desenhos elas não tenham ocultado de seus desenhos os espaços que abrigam tais animais ou mesmo suas parcimoniosas produções. Sob o olhar atento das crianças Capuxu, Santana-Queimadas se faz de casas, estradas e cercados, os lugares que cabem às crianças em todos os sentidos, aqueles sobre os quais têm acesso, cuja presença se torna fundamental e cuja utilidade é expressada. Os lugares que as crianças conhecem e dominam com habilidade e destreza e que seriam capazes de percorrer mesmo com os olhos fechados, como o fazem em um fim de tarde brincando de cabra-cega: olhos vendados, braços erguidos enquanto percorrem o espaço vazio do curral cujo gado saiu para pastar, em busca de seus amigos que se encolhem e se escondem como podem.

Ainda dentro da categoria cercados, não podemos deixar de mencionar os chamados apriscos, lugares de bodes, cabras e cabritos. Embora este tipo de criação não seja a mais comum entre os Capuxu é possível encontrar uma ou outra família que tenha investido na caprinocultura. A espécie é considerada apropriada para o sertão, por sobreviver bem às longas estiagens e ausência de pastos. Assim como ocorre aos porcos, bodes e cabras não exigem muito trabalho para sua sobrevivência, tampouco muitos gastos para sua alimentação uma vez que comem livremente soltos pelo sítio.

Os apriscos são em geral feitos de varas nos moldes dos chiqueiros e currais. Seu acesso também se dá por meio de pequenas porteiras de varas ou puxa-encolhes. Não é necessário possuir cocheiras para comida ou água uma vez que as cabras passam o dia livres e só voltam para o aprisco à noite. As crianças são responsáveis por abrir as pequenas porteiras libertando-as ou colocá-las de volta para dentro no final da tarde. Pequenos cabritos são os preferidos das crianças, sempre encantadas com filhotes.

Quando algum desses animais desaparece, não retornando no cair da tarde com o rebanho, as crianças são responsáveis por ir encontrá-los, como numa brincadeira de esconde-esconde. É possível apostar entre eles quem consegue encontrar primeiro a cabra perdida ou o bezerrinho e contar vantagens de si mesmo, narrando a aventura homérica, a sagacidade e a habilidade daquela criança que o encontrou.

Conclusões

Neste artigo, dediquei-me a descrição do sítio camponês a partir das classificações que dele fazem as crianças. Os achados da investigação revelaram que, para as crianças Capuxu, as categorias que norteiam o sítio são a casa, as estradas e os cercados, diferente do binômio casa/roçado apresentado pela literatura das ciências sociais e estudos do rural no Brasil.

Parto da idéia de que os estudos de campesinato no Brasil não consideraram a crianças em suas análises, como outro sujeito qualquer em campo, negligenciando-as apesar das menções feitas a estas crianças como sempre presentes e servindo como guias para os pesquisadores. Mesmo os estudos que repousavam nas discussões sobre sustentabilidade, herança, territorialidade, viabilidade do sítio não atentavam para a importância do lugar das crianças e do seu olhar sobre aquela terra da qual seriam herdeiras.

A minha hipótese é de que, por terem ouvido apenas homens e mulheres, os estudiosos de campesinato reduziram o sítio camponês a duas dimensões apenas, a casa e o roçado, espaços, por excelência, feminino e masculino - respectivamente - e que tratavam da reprodução da unidade familiar, do ethos ou da condição campesina como se não existissem as crianças. Assim, outras dimensões do sítio igualmente importantes foram omitidas de suas análises, como estradas e cercados, ou não consideradas como essenciais da definição do sítio camponês. Por meio da produção de uma etnografia que considera as crianças como importantes sujeitos de pesquisa, reconhecendo sua agência, este trabalho se dedicou a descrever o sítio a partir das classificações das crianças, e apresenta como contribuição aos estudos de campesinato no Brasil e aos estudos da infância, a trilogia das crianças camponesas Capuxu na dimensão do sítio camponês: a casa, as estradas e os cercados.

As implicações epistemológicas disso nos levam a refletir sobre a importância de atentar para as crianças em quaisquer pesquisas, sob pena de não se ter uma visão completa do tema estudado, algo já defendido pelos estudos da infância. Por outro lado, os resultados da pesquisa apontam para a importância dos desenhos como técnicas de pesquisa com crianças, pois foram eles que me forneceram os primeiros sinais da concepção dos espaços do sítio pelas crianças, me conduzindo a importantes achados na investigação.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Maranhão/FAPEMA.

  • 1
    O povo que se autodenomina Capuxu (vespa social) e é assim reconhecido por toda a região, habita o Sítio Santana-Queimadas que está situado no município de Santa Terezinha – Sertão paraibano, com bioma classificado como caatinga. Nos 18 km de extensão do Sítio estão abrigados aproximadamente 200 habitantes em uma comunidade com endogamia parental e de lugar. Além das 61 casas construídas e dos roçados e hectares de terra distribuídos de forma desigual entre as famílias, encontramos no local, o rio Goiabeira, 05 pequenos barreiros e açudes, uma escola, um posto telefônico (em desuso) e a Igreja de Sant’Ana.
  • 2
    Nos estudos de Heredia (1988Heredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) e Garcia Júnior (1983) há um consenso de que a organização do trabalho familiar ocorre em duas esferas distintas - a casa e o roçado. Segundo esses autores, a casa é concebida como o lugar da mulher por excelência, espaço em que se desenvolvem atividades referentes aos cuidados com os filhos, alimentação da família e ao conjunto de afazeres domésticos. Já o roçado é tratado com o lugar onde o grupo se materializa como unidade de produção.
  • 3
    Parte disso pode ser atribuída às políticas públicas como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil/PETI e aos Programas de transferência de renda condicionada como o Programa Bolsa Família cujos impactos sobre a vida das crianças e a agência e o protagonismo delas foi objeto de análise de Pires (2009Pires, F. (2009). A casa sertaneja e o Programa Bolsa-Família: questões para pesquisa. Revista de Ciências Sociais Política & Trabalho, 27(27-34), 145-156. em 03 de dezembro de 2018, de https://periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/view/6808
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    , 2013aPires, F. (2013a). Do ponto de vista das crianças: uma avaliação do Programa Bolsa Família. Estudos de Avaliação das Políticas do MDS. Brasília: SAGI/MDS., 2013bPires, F. F. (2013b). Comida de Criança e o Programa Bolsa Família: moralidade materna e consumo alimentar no semi-árido. Revista de Ciências Sociais Política & Trabalho, 38, 123-135. Recuperado em 03 de dezembro de 2018, de https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/14575/9381
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    ), Pires et al. (2014)Pires, F. F., Falcão, C. R., & Silva, A. L. (2014). O Bolsa Família é Direito das Crianças: Participação Social infantil no Semiárido Nordestino. Teoria & Sociedade, 1(22), 141-167. Recuperado em 03 de dezembro de 2018, de https://teoriaesociedade.fafich.ufmg.br/index.php/rts/article/view/142
    https://teoriaesociedade.fafich.ufmg.br/...
    e Pires & Silva Jardim (2014)Pires, F., & Silva Jardim, G. A. (2014). Geração Bolsa Família: educação, trabalho infantil e consumo na casa sertaneja (Catingueira/PB). Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29, 99-112. Recuperado em 03 de dezembro de 2018, de https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/HwRknCZrGtM4fk7nscdSw6h/abstract/?lang=pt
    https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/HwRknCZ...
    .
  • 4
    Mário W. B. de Almeida (1986)Almeida, A. W. B. (1986). Redescobrindo a família rural. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1(1), 66-83. afirmara já que a casa, o quintal e o roçado revelam muito sobre a família rural.
  • 5
    Em Woortmann (1983)Woortmann, E. F. (1983). O sítio camponês. Anuário Antropológico, 81, 164-203. o sítio é considerado o lugar de trabalho, para os Capuxu o lugar de trabalho é especialmente o roçado, embora tanto a casa quanto os seus arredores sejam espaços de trabalhos desenvolvidos especialmente por mulheres e crianças.
  • 6
    Bourdieu (1999)Bourdieu, P. (1999). A casa kabyle ou o mundo às avessas.Cadernos De Campo (São Paulo-1991),8(8), 147-159. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v8i8p147-159.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
    demonstra que a casa para os Cabila da Argélia é produto das práticas sociais e da cultura desse povo. Logo, o “mundo da casa” se opõe ao resto do mundo segundo os mesmos princípios que o organizam e ordenam os domínios da existência.
  • 7
    Garcia Júnior (1983), sobre as pequenas produções rurais em Pernambuco, destaca que a casa não é apenas a área coberta e com paredes, para aquele grupo o entorno fechado denominado como terreiro também faz parte do corpo da casa.
  • 8
    Também Godoi (1999, pGodoi, E. P. (1999). O trabalho da memória: cotidiano e história no sertão do Piauí. Campinas: Editora da Unicamp.. 37) observou que “[...] o muro e o quintal são dois espaços sempre contíguos à casa de morada e podem ser pensados [...] como um desdobramento projetivo da casa”.
  • 9
    Segundo Heredia este espaço do quintal ou muro é também chamado de terreiro pelos moradores da zona da mata pernambucana: “[...] o terreiro dos fundos da casa está destinado fundamentalmente às aves domésticas e ao chiqueiro dos porcos; é também ali que as cabras passam a maior parte do dia. Em algum setor desse espaço, as mulheres lavam a louça e fazem a higiene das crianças” (Heredia, 1988, pHeredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.. 38).
  • 10
    Ramos (2007)Ramos, M. O. (2007). "A comida da roça” ontem e hoje: um estudo etnográfico dos saberes e práticas alimentares de agricultores de Maquine (RS) (Dissertação de mestrado). PPGDR, UFRGS, Porto Alegre. Recuperado em 03 de dezembro de 2018, de https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/11918
    https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/1...
    em estudo sobre os camponeses de Maquiné observou que “[...] às mulheres, em geral, cabem as tarefas da casa e do quintal onde criam galinhas e porcos, trabalham com vacas de leite e mantêm uma horta” (Ramos, 2007, pRamos, M. O. (2007). "A comida da roça” ontem e hoje: um estudo etnográfico dos saberes e práticas alimentares de agricultores de Maquine (RS) (Dissertação de mestrado). PPGDR, UFRGS, Porto Alegre. Recuperado em 03 de dezembro de 2018, de https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/11918
    https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/1...
    . 72).
  • 11
    Heredia (1988)Heredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra. observou que “a oposição casa-roçado delimita a área do trabalho e do não-trabalho, assinalando os lugares femininos-masculinos relativos a essa divisão” (Heredia 1988, pHeredia, B. M. A. (1988) [1979]. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.. 79). Assim o roçado corresponderia ao espaço masculino da produção, do trabalho e a casa ao espaço feminino, do consumo, do não-trabalho. Embora as mulheres participem das tarefas do roçado e ainda fiquem responsáveis pelas tarefas da casa e seu entorno o que ocorre na dimensão doméstica não é considerado trabalho, e aquele trabalho que ela desenvolve no roçado é visto como ajuda (Paulilo, 1987Paulilo, M. I. (1987, jan/fev). O peso do trabalho leve. Ciência Hoje, 5(28).). Muito embora as mulheres desenvolvessem tarefas específicas também no roçado, as suas tarefas são essencialmente as da casa e seus arredores onde elas são, em geral, ajudadas pelas crianças.
  • 12
    Os roçados do povo Capuxu estão localizados a alguns metros de suas casas, quase sempre cercados com arame farpado. Na representação dos homens, o roçado aparece como o lugar mais importante do Sítio, logo após as residências. Para as mulheres a casa e seu entorno aparecem como o lugar prioritário, seguido pelo roçado que provém o seu sustento.
  • 13
    Termo nativo para aparições, visagens, almas malassombradas, etc que compõem o sistema de crenças local. A análise das almas e dos malassombros foi feita em outra ocasião (Sousa, 2021Sousa, E. L. (2021). “Quem pode mais do que Deus”?: As crianças Capuxu e suas experiências com os malassombros.Mana, 27(1), 1-31. http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442021v27n1a205
    http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442021v...
    ).
  • Como citar: Sousa, E. L. (2024). As casas, as estradas e os cercados: o sítio camponês a partir das classificações das crianças Capuxu. Revista de Economia e Sociologia Rural, 62(1), e269304. https://doi.org/10.1590/1806-9479.2022.269304pt
  • JEL Classification: Z1.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2022
  • Aceito
    02 Fev 2023
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